Prólogo
ERA UMA TARDE CHUVOSA no município de Marechal LaRocca, a 80 km de São Paulo. Os termômetros marcavam 14° e aquele era um dia atípico de verão. As ruas da cidade se preparavam para recepcionar os blocos carnavalescos que nas próximas semanas passariam a tomá-las em comemoração aos três dias festivos de fevereiro, no entanto, o jovem proprietário de um Mercedes preto estacionado diante dos portões da penitenciária estava alheio a festas populares.
Pouco antes de descer do veículo encharcado, ele encarava as grades de acesso do lado de fora do pátio frontal, tomando coragem para enfrentar o seu destino. Pelo reflexo do vidro pincelado de gotículas, seu semblante era sisudo e seus olhos verdes estavam encovados.
— Está na hora, Carlos.
A voz rude o trouxe de volta à realidade. Tão logo disse aquelas palavras, o homem calvo sentado a seu lado no banco de couro fez contato visual através do espelho retrovisor com o motorista da família Castellini, o que o prontificou a desembarcar, acionar um guarda-chuva automático e dar a volta no automóvel por trás dele. Gentilmente, o serviçal abriu a porta por fora e cedeu espaço para que seu jovem patrão descesse.
— Cuidado com a poça, senhor.
Um desnivelamento no pavimento criava um espaço de quase quarenta centímetros de diâmetro preenchido com água barrenta que o rapaz de cabelos loiros penteados de lado evitou pisar após o alerta do motorista. Ele foi acompanhado até o portão principal da prisão, depois, o seu funcionário retornou a passos largos ao veículo que dirigia. A presença de Carlos foi anunciada aos carcereiros no interior da guarita de segurança que se prontificaram a recebê-lo. O homem calvo continuou no interior do Mercedes acompanhando a chegada do herdeiro que tutorava ao presídio com olhos agourentos.
Após a identificação de praxe, a revista pessoal e o preenchimento de um formulário para a visita semanal controlada, Carlos Eduardo Castellini Júnior foi levado até um corredor estreito dentro do prédio rigidamente vigiado, e dali, seguiu ao pátio onde aconteciam os encontros entre os detentos e seus familiares. O homem que o acompanhava tinha ombros largos, bigode espesso cobrindo o lábio superior e fedia a tabaco. Em sua cintura, por baixo da barriga saliente, de um lado pendia um cassetete de borracha rija preso a uma argola de metal, enquanto do outro, uma pistola repousava em um coldre de couro. Os dois deram exatos vinte passos. O carcereiro fez um gesto para uma câmera de segurança apontada para um portão de ferro pintado de azul à sua frente, pouco depois, um sinal sonoro alertou que a trava elétrica tinha sido acionada. Carlos foi conduzido para dentro da área de visitas e o portão se fechou às suas costas.
Carlos Eduardo Castellini Sênior estava sentado em um banco marmoreado fixado no chão próximo a uma parede lateral do pátio. À sua volta, vários outros assentos se espalhavam em um espaço coberto por um telhado metálico que ressoava barulhento os pingos da chuva pesada que caía do lado externo. Uma dezena de detentos recebia visitas de entes queridos àquele horário e os seus murmúrios quase não podiam ser ouvidos por causa do som intermitente sobre suas cabeças. O filho se aproximou, os dois se cumprimentaram com um aperto de mãos e o garoto se sentou a seu lado.
— O Marcos está lá fora?
Carlos Sênior encarou o herdeiro com seus olhos azuis acusadores, no que o enxergou acenar positivamente com a cabeça.
— Ele o tem instruído frente à presidência da Castle Industrial como o orientei fazer?
Outro aceno.
— Ótimo – murmurou o homem —, muito em breve, você estará a par de todos os negócios da família para poder cuidar sozinho de tudo, meu filho, e eu estarei mais tranquilo aqui dentro.
Os dois lançaram um olhar pelo pátio da Penitenciária Municipal de Marechal LaRocca. Ao canto sul, um par de olhos castanhos estava direcionado para os Castellini e o mais velho sentiu um torpor antes de continuar a interrogar o filho. O homem que os encarava tinha a cabeça raspada, queixo quadrado e feição desafiadora no rosto carrancudo.
— Como está o colégio técnico, Carlos? Preciso que continue levando os seus estudos a sério. Em dois anos, quando estiver na faculdade de Administração, Marcos arranjará uma cadeira para você na presidência e não quero questionamentos dos acionistas quanto a sua capacidade de gerir os negócios, está me entendendo?
Carlos Júnior tinha notado o homem sem cabelos a fitá-los de maneira ameaçadora a seis metros deles.
— Sou um dos melhores alunos da turma... — ele fez uma pausa — Quando o senhor vai sair daqui, pai? Marcos e eu temos pressionado o advogado que está cuidando do seu caso, mas só recebo respostas vagas...
— Em breve — a resposta fora direta, mas não havia qualquer segurança no tom empregado —, Benjamin Fujiwara tem se esforçado para conseguir um acordo junto ao juiz da comarca para que eu cumpra a minha pena de três anos em regime semiaberto, mas os trâmites legais são mais complicados do que se pensa. A firma que ele representa vai tentar uma negociação jurídica para que a pena seja reduzida em pelo menos um terço, porém, temos que esperar até que a apelação seja feita.
— Temos dinheiro suficiente. Quanto mais eles querem para fazer alguma coisa?
Carlos Sênior riu brevemente, pouco depois, voltou à sua expressão gélida e nórdica. Os cabelos loiros já estavam quase que completamente tomados por um tom acinzentado que lhe chegava até as raízes no topo da cabeça. As bolsas sob os olhos claros eram evidentes e as marcas de expressão lhe tomavam agora a testa, as bochechas e o queixo. Pai e filho guardavam várias semelhanças físicas entre si, em especial, a ruga que se formava na testa de ambos quando ficavam preocupados. O empresário deu uma última olhada para o canto sul do pátio e notou que o careca mal-encarado tinha desviado, enfim, seu olhar dos dois.
— Infelizmente, nem tudo pode ser garantido com o nosso poder financeiro, Carlos. Algumas coisas ainda estão fora do nosso alcance. O juiz que está à frente do meu caso é do tipo honesto.
Carlos Júnior fez uma expressão infeliz.
— Mas não foi para falar de amenidades que o chamei aqui...
O rapaz então voltou-se para o pai. O homem mudou o tom da voz para que continuasse sendo ouvido. A chuva se tornara ainda mais intensa sobre o telhado de alumínio.
— Como você bem sabe, eu estou preso aqui dentro com outras pessoas que também estavam envolvidas na operação que foi desbaratada pela polícia de São Francisco d'Oeste, e muitas delas têm falado que o atual delegado de nossa cidade recebeu ajuda externa para chegar até as cabeças da Corporação.
Carlos Júnior deu uma olhada discreta para o homem no canto sul. Havia uma moça morena a seu lado cumprindo o horário de visita e os dois pareciam bastante íntimos.
— O careca do outro lado do pátio é uma dessas pessoas?
O pai assentiu.
— Aquele homem se chama Vitor Assis — explicou ele —, é primo do antigo delegado de São Francisco e teve contato direto com duas das pessoas que ajudaram a polícia com o esfacelamento da organização que dava a seu pai poderes sobre as instituições mais básicas da cidade.
— O que aconteceu com ele? Parece que foi atropelado por um carro!
Vitor estava com um dos braços engessado preso a uma tipoia e havia um protetor sobre seu nariz quebrado.
— Como eu disse, o sujeito esteve em contato direto com os responsáveis pela prisão de seu pai, filho.
Os olhos de Carlos Júnior se apertaram e a ruga familiar se formou em sua testa, por baixo dos fios loiros agora despenteados.
— Eu preciso que você se dedique a descobrir a real identidade das pessoas que mataram Edmundo Bispo, que expulsaram Antônio Maranelli da cidade e que acabaram com as carreiras do delegado Romero Assis e do juiz Sérgio de Alcântara. Marcos estará bastante ocupado em gerir a Castle e impedir que a sua mãe gaste toda a nossa fortuna em joias. Eu quero que você se dedique pessoalmente a rastrear aqueles que derrubaram a Corporação e que colocaram o seu pai atrás das grades.
Havia dúvidas no rosto de Carlos.
— Como quer que eu faça isso, pai? Tem o colégio, o estágio na Castle...
O homem o encarou de maneira ameaçadora e o rapaz sentiu o estômago gelar.
— Não seja uma bichinha, Carlos Eduardo! Arranje um tempo. Dedique-se um pouco mais. Eu quero que trabalhe em suas folgas no intuito de revelar quem são as pessoas que puseram abaixo o império que vinha sendo construído há quase duas décadas. Nós tínhamos a cidade de São Francisco d'Oeste em nossas mãos, e da noite para o dia, tudo ruiu. Ainda há meios de recuperarmos nosso domínio mesmo com a morte de Edmundo Bispo, mas para isso, primeiro precisamos destruir os nossos adversários.
— Por onde quer que eu comece?
Havia receio na voz do garoto de dezesseis anos.
— Quero que memorize um nome: Alexsandro Batista. Ele é um repórter que trabalha para o jornal A Gazeta. Foi esse homem quem revelou os planos que a Corporação tinha de desestabilizar as matrizes energéticas do país para que apresentássemos ao Governo Federal um modelo autossustentável de geração de energia das termoelétricas desenvolvidas em solo são-franciscano. Sabemos agora que esse jornalista, no entanto, não descobriu tudo sozinho. Ele recebeu ajuda externa. Consiga provas de que o repórter estava mancomunado com alguém e descubra detalhes sobre quem o auxiliou a chegar até nós.
Carlos Júnior parecia agora sustentar em suas costas um peso maior do que podia carregar. Sua expressão corporal entregava o seu incômodo.
— Eu... Eu não sei...
Carlos Sênior segurou o ombro ossudo do rapaz magro a seu lado e disse, com firmeza na voz rouca:
— As pessoas aqui dentro estão falando de uma figura fantasiada que ronda as noites de São Francisco d'Oeste para punir criminosos, meu filho. Muitas delas têm convicções de que esta mesma criatura da noite ajudou o repórter e foi a responsável direta em deixar Vitor Assis no estado lastimável em que se encontra. — Carlos Júnior deu uma última olhada no braço esgarçado do homem de cabeça raspada no canto sul. — O seu pai não é um criminoso, porém, se queremos mesmo retomar o poder em nossa cidade natal, alguma coisa precisa ser feita quanto a esse justiceiro que se esgueira pelos becos imundos.
— E como... como chamam esse tal... justiceiro?
Os olhos de Carlos Sênior brilharam de um ódio intenso e crescente antes de sua resposta. O som da chuva sobre o telhado havia amenizado quando o homem proferiu aquelas palavras.
— O chamam de Pássaro Noturno. Quero que descubra quem se esconde por trás de sua fantasia e quero que faça imediatamente.
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