Capítulo 5 - Teste de voo

HENRIQUE APROVEITOU AQUELE FERIADO de celebração ao mártir da inconfidência mineira, Tiradentes, para tirar a poeira da velha garagem de seu pai, e lá embaixo, enquanto organizava as prateleiras velhas com as bugigangas que se acumulavam sobre o carpete estendido no chão, começou a pensar em maneiras práticas de impedir que outras pessoas, além dele, acabassem descobrindo aquilo que se escondia no subsolo da casa há vários anos.

Embora tivesse investigado, rodeando o assunto com a própria mãe e pesquisado documentos públicos da prefeitura sobre os terrenos do Bairro do Encanto até pouco antes de sua família se mudar para a região, o rapaz jamais desvendara o mistério que envolvia os equipamentos tecnológicos ocultos sob a casa onde os Harone moravam, e até então, não tinha conseguido responder à pergunta mais básica que permeava o achado: Qual era a origem daquele maquinário?

Aos treze anos de idade, Henrique tinha descoberto, por acaso, uma passagem que ligava a garagem da casa onde vivia desde os sete anos a um tipo de caverna subterrânea. No interior da galeria, em um espaço amplo de mais de vinte metros quadrados com as paredes e o teto reforçados por cimento e argamassa, haviam três equipamentos de grande porte que, mais tarde, ele soube se tratar de um computador avançado de comando e duas matrizes de impressão. Uma dessas matrizes tinha o objetivo de materializar formas pequenas e médias sobre uma plataforma pouco espessa de formato retangular, e a outra, possuía a capacidade de modelar trajes especiais de combate.

O computador era composto de um console que armazenava uma poderosa central de processamento com armazenamento físico incalculável em seu interior, uma tela robusta feita por um tipo de cristal transparente ultrarresistente e um teclado dotado de botões grafados com signos diversos e indecifráveis para a linguagem humana comum.

O gabinete media um metro e vinte de altura, sessenta centímetros de largura e cinquenta de comprimento. A tela cristalina ficava suspensa por um suporte preso ao console, era retangular, media setenta e duas polegadas e tinha uma espessura de dois centímetros. O teclado era composto de um material semelhante ao plástico que respondia a comandos gestuais, não sendo necessário o toque nas teclas para a entrada de dados.

Através desse magnífico conjunto desenvolvido com tecnologia décadas à frente daquele tempo, Henrique conseguia desenvolver projetos intuitivamente sugeridos por uma base de dados rica e complexa gravada na memória do computador e podia, literalmente, dar asas à sua imaginação.

Denominado como "Sarcófago" devido seu incomum formato humanoide que o assemelhava às antigas tumbas verticais dos antigos faraós egípcios, a primeira matriz de impressão reproduzia em seu interior qualquer tipo de material sólido cuja composição química lhe fosse devidamente enviada pelo computador, ou C.A.D, a sigla para Computador de Acesso Direto. Um painel frontal à estrutura tubular dividido em três pequenos recipientes era capaz de assimilar qualquer material cuja amostra lhe fosse depositada em seu interior, e com isso, logo, Henrique descobriu que podia confeccionar com facilidade todo tipo de tecido ou objeto metálico. O Sarcófago modelava internamente em sua matriz as versões 3D idealizadas no CAD e para isso, se valia de um eficaz sistema de feixes luminosos que cortavam e moldavam a matéria-prima a uma temperatura bastante elevada.

Tal qual o "tecelão mecânico instantâneo", a segunda matriz de impressão também era capaz de solidificar objetos 3D em sua base interna, se valendo para tal feito da precisão de lasers e braços robóticos hidráulicos conectados à sua engrenagem. Em formato de caixa, cobrindo uma área de dois metros quadrados, a impressora possuía uma plataforma de cinco centímetros de espessura que podia ser enxergada pelo lado de fora através de um visor feito do mesmo material que o monitor do CAD.

Em volta da placa, haviam barras tubulares por onde eram emitidos os feixes vermelhos que avançavam sobre a base e modelavam os objetos de acordo com o projeto gráfico. Os braços hidráulicos eram capazes de segurar, pressionar e construir sistemas mais complexos com seus dedos mecânicos e com isso, era possível se fazer todo tipo de artefato ali dentro, dos mais simples, como uma lâmina afiada, até os mais engenhosos, como um explosivo.

Após meses de estudos sobre o intrincado dialeto com que boa parte do computador havia sido fabricado — além de alguns detalhes que, misteriosamente, apareciam escritos em inglês —, Henrique se tornou capaz de acessar os diversos arquivos armazenados na central de processamento do CAD, e com isso, descobriu que, além de equipamentos para suporte de vida como máscaras de oxigênio, o estranho computador também guardava os segredos para o desenvolvimento de armamentos diversos; alguns de poder de fogo limitado e outros com capacidades bem mais destrutivas.

Em quatro anos, Henrique sabia que ainda estava em fase de aprendizado quanto àquele maquinário desconhecido e embora tivesse recebido a ajuda de Antônio Rodrigues, seu habilidoso e engenhoso amigo gênio, durante todo o ano anterior, ele desconfiava que o CAD ainda guardava para si muitos arquivos secretos, alguns dos quais ele tinha receio de descobrir.

Se o CAD é capaz de projetar uma bomba de impacto do tamanho de uma bola de tênis, o que o impede de desenvolver uma bomba atômica capaz de destruir uma cidade inteira?

Enquanto pensava aquilo, sentado em uma poltrona confortável que havia levado para o subsolo de sua casa, diante da tela de cristal do CAD, Henrique sentiu os pelos do braço se arrepiarem e um incômodo passou a afetar a sua nuca. Ele preferia não saber aquela resposta e voltou a trabalhar apenas em projetos das quais já tinha conhecimento.

21 de abril, 13:21. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Hoje aproveitei o feriado para fazer uma faxina na antiga garagem onde o meu pai guardava o seu Voyage 1988, e instalei uma roldana numa das prateleiras metálicas que guardam as bugigangas da família. Todas as vezes que eu abrir o alçapão que liga o esconderijo à garagem, essa prateleira vai deslizar para o lado automaticamente por um suporte preso à parede e o mesmo vai acontecer quando eu fechar a porta. Coloquei uma porção de coisas pesadas nessa prateleira como halteres, caixas cheias de livros e revistas. Assim, por pura preguiça, nem a minha mãe e nem a minha irmã vão querer inventar de ver o que se esconde embaixo do tapete. Não quero correr o risco de que elas descubram o meu bunker".

21 de abril, 15:13. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Acabei de ter a ideia de inserir um tipo de painel com senha na porta do alçapão. Me dei conta que qualquer pessoa com acesso à garagem pode descobrir a entrada para o esconderijo embaixo da prateleira e chegar até aqui. Até agora, dei sorte, mas preciso começar a me preocupar e impedir que o CAD, o Sarcófago e a Matriz de Impressão acabem caindo em mãos erradas... Sem falar no que poderia acontecer se alguém descobrisse a ASA! ".

21 de abril, 15:49. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Enquanto eu gravo essa mensagem, o Sarcófago está confeccionando mais um protótipo para o traje do Pássaro Noturno. Eu o estou chamando de 'versão 5.0'. Descobri alguns projetos muito legais de proteção antibalística nos arquivos do CAD e estou colocando em teste na nova armadura de combate. Antes que tudo fosse removido do local, eu consegui confiscar algumas camadas sobressalentes do traje usado pelos caras da Brigada de Elite ano passado, após a nossa batalha no Bairro dos Laranjais. Nunca tinha visto nada tão resistente quanto o metal da qual as roupas da Brigada eram feitas e estou testando esse material em minha nova proteção dorsal. Isso deve me fazer capaz de aguentar tiros de calibres mais potentes de armas... Espero...".

21 de abril, 16:36. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Ouvi sons lá em cima na casa... minha mãe já deve ter começado a fazer o jantar. Ela e a Carina, minha irmã, estão de folga hoje e as duas não sabem que eu estou aqui quase que o dia inteiro trabalhando em meus novos projetos.

A versão 5.0 do traje ficou perfeita. Apesar de mais pesado que seus antecessores, o peitoral está muito mais reforçado, além de que instalei uma proteção cervical nas costas que vai impedir que eu quebre o pescoço ou a coluna em caso de queda muito feia. Confesso que fiquei com inveja do capacete do Espião Negro que possui visão noturna embutida no visor e copiei a ideia para as novas lentes do meu capuz. O sensor que aciona o sistema night vision é ridiculamente sensível ao toque e eu posso enxergar no escuro pelo tempo que durar a carga dos óculos internos.

Ainda preciso achar um jeito do meu traje se tornar autossustentável quanto à energia. Em missões muito longas, corro o risco de ficar sem bateria para a visão noturna, o suprimento de ar, a refrigeração do uniforme e o Imã, que é a maior arma que carrego no cinturão.

Talvez eu deva pesquisar na memória do CAD algum tipo de bateria portátil que eu possa carregar por aí. Tudo aqui embaixo na caverna é alimentado pela energia do sol, deve ter alguma forma de eu tornar meu traje um tipo de bateria solar ambulante".

21 de abril, 18:26. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Eu ouvi minha mãe me chamar pela porta de cima da garagem, mas achei melhor não responder nada. Não senti fome e não me importei em subir para jantar.

Aproveitei para acoplar o trio de garras retráteis de trinta centímetros do traje do Thunderwing ao meu bracelete direito e agora tenho uma nova opção ofensiva em caso de confronto direto. Além de perfurantes, as três laminas são afiadas e consegui confeccioná-las com o mesmo material que meus discos de arremesso. São bem resistentes, mas talvez eu devesse conseguir uma amostra da fuselagem da ASA para torná-las ainda mais indestrutíveis.

Mandei a Matriz de Impressão produzir uma nova leva de explosivos esféricos que cabem nos bolsos laterais do meu cinturão. A nova versão das bombas pode ser programada à distância para detonação ou podem explodir por impacto. Também anexei mais bombas de fumaça que servem como distração durante um combate e vou fazer um teste com um emissor de som que encontrei na galeria de armamentos atordoantes. Sempre quis ter um artefato sônico em meu cinto de utilidades!

Não encontrei nada pequeno o suficiente para usar como bateria para os equipamentos que necessitam de carga extra depois de um período de uso e mandei que o CAD tentasse desenhar um painel solar miniaturizado para que eu acople aos braceletes. O computador ainda está renderizando o projeto e devo ter um modelo funcional em mais algumas horas.

Valeu a pena ter estudado durante as férias os novos diretórios de equipamentos que encontrei no sistema e tê-los traduzido para o português. Eu e o CAD estamos nos entendendo cada dia melhor. Estou muito animado para colocar o novo traje em teste. Espero poder usá-lo em breve".

21 de abril, 19:32. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Consegui ativar o sensor de calor da fuselagem da ASA — ou Aeroplano de Sobrevoo e Assalto — remotamente no hangar subterrâneo em que mantenho o avião de guerra escondido e captei movimentação intensa no campo de terra sobre o local. Pela quantidade de leituras de calor, devem ter dois times de futebol completos espalhados pela área a essa hora.

Em todos esses anos, ainda não entendo como nenhum curioso acabou encontrando o painel secreto que ativa as comportas do hangar e nem como ninguém nunca encontrou o avião lá embaixo antes de mim.

O descampado é usado pela molecada do bairro para jogar bola, andar de bicicleta e empinar pipa nas férias e quando tem muita gente por perto, não tem como levantar voo com uma aeronave de quinze metros, trinta toneladas e asas curvas.

Talvez seja melhor manter a nave com sua fuselagem em modo-invisível sobre a torre da antiga sede da Xeque-Mate. O local tem um heliporto próprio, é mais alto que a maioria dos prédios do centro da cidade e está abandonado desde que Edmundo Bispo morreu e os demais acionistas viram as ações da empresa despencarem no mercado. O topo do edifício me parece mais seguro do que o campo de terra na rua de cima da minha casa, mas não estou seguro quanto a isso. Queria fazer alguns testes de voo com a nave hoje, mas pelo visto, vou ter que esperar até mais tarde, quando a garotada sumir de perto do hangar subterrâneo".

22 de abril, 1:36. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Aproveitei para colocar algumas atividades da escola em dia quando subi em casa e ouvi minha mãe falando ao telefone com meu irmão sobre não termos dinheiro suficiente para pagar o imposto anual do terreno em que moramos.

Desde que a pizzaria do Magno foi criminosamente incendiada com ele e todos os seus funcionários dentro, eu deixei de colaborar em casa com o que ganhava em minha atividade como entregador de pizza aos finais de semana. Como se não bastasse me sentir culpado pelo que houve ao meu antigo chefe — e amigo —, agora ainda tenho que arcar com o peso na consciência de estar vivendo de maneira parasitária em minha própria casa!

Ser o Pássaro Noturno é algo que me deixa realizado, mas às vezes, eu sinto que preciso arranjar um meio de ganhar dinheiro com todos os equipamentos que posso criar embaixo da garagem.

E se eu criasse um mercado online de vendas de armamentos?

E se eu me tornasse uma espécie de mercenário, colocando os meus talentos como vigilante mascarado à venda para quem quisesse pagar?

Me senti enojado só em pensar nisso e em vez de arranjar um modo imediato de ganhar dinheiro para pagar as contas de casa, eu acabei de vestir o traje 5.0 e vou até o hangar da ASA. Tenho algumas coisas em mente e não quero dormir antes de tirá-las por completo daqui".

22 de abril, 4:47. Diário de bordo de Henrique Harone.

"Foi incrível!

Em todos esses anos, eu nunca havia testado os limites da ASA, mas pelo que percebi hoje, o meu aeroplano tem pouquíssimos!

Depois de descobrir o ano passado que a fuselagem possui algum tipo de campo de força bastante espesso que consegue defletir um disparo direto de um míssil stinger, hoje consegui fazer com o jato atingisse a velocidade muito próxima a Mach 2, ou seja, duas vezes a velocidade do som, que é de 1238 km/h!

É algo muito difícil de explicar por gravação de voz e eu ainda estou sentindo os efeitos em meu corpo da mudança radical de velocidade, mas foi como se o meu cérebro estivesse se desprendendo do crânio e meus olhos estivessem afundando em suas órbitas!

Durante a viagem, o jato não apresentou qualquer instabilidade e a perda de energia foi baixíssima. É como se todo o material da fuselagem fosse composto de células fotossensíveis que armazenam energia solar durante o dia, mesmo com o avião enterrado metros abaixo da superfície e como se ele não precisasse de nenhum outro tipo de combustível para funcionar.

O manche e o painel de controle dentro do cockpit são muito simples de manusear e atingir a velocidade do som dentro do avião foi brincadeira de criança. Devo ter sobrevoado a distância de São Paulo ao Rio de Janeiro em poucos minutos, foi demais! O traje 5.0 ainda não é o ideal para me fazer suportar as pressões a que meu corpo foi exposto no interior da cabine, e certamente, eu não suportaria viajar a uma altitude maior que a de trinta mil metros em que mantive o jato durante o deslocamento.

Não queria correr o risco de colidir com um avião comercial que estivesse dividindo o espaço aéreo comigo àquela hora, por isso, tive que me manter a uma altitude de cruzeiro superior aos jatos comerciais. Eu posso viajar para onde eu quiser sem correr o risco de ser rastreado!

Apesar dos percalços físicos — ainda estou um pouco enjoado —, foi uma experiência incrível. Preciso estudar mais sobre força gravitacional e velocidade de deslocamento para poder preparar o meu traje com o intuito de suportar viagens a altitudes maiores a que testei hoje e isso vai levar algum tempo.

Seja lá quem tenha projetado a ASA, essa pessoa é um grande gênio da engenharia aeronáutica e desenvolveu o caça de guerra mais espetacular do planeta Terra.

Nem sei como vou conseguir dormir hoje depois de tanta agitação! Ainda me sinto nas nuvens! ".  

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