Capítulo 3 - "Não te quero senão porque te quero..."

NA PRIMEIRA METADE DO mês de março, Henrique marcou um encontro com seus amigos Ricardo e Antônio na praça Álvares Fonseca, no centro de São Francisco d'Oeste, e os três puderam conversar de uma maneira mais descontraída como há muito tempo não faziam.

Aquele era um sábado bastante ensolarado de verão e eles pararam num banco de madeira para observar o seu entorno. Vários casais passeavam com seus filhos pequenos pelo gramado enquanto alguns jovens namoravam sentados próximos a fonte d'água que ornamentava o meio da praça. Haviam também muitos ciclistas se locomovendo com suas bicicletas, além de praticantes de musculação que aproveitavam o ar livre para usar os equipamentos instalados ao pé de um dos vários jacarandás plantados na área.

— E como está essa perna, Ricardo?

Henrique estava tomando um sorvete de abacaxi no copo enquanto observava a perna esquerda enfaixada de Ricardo. Ele estava sentado ao centro, entre o amigo de pele preta e o outro, o menor dos três em estatura.

— Fiz novos exames semana passada — respondeu Ricardo —, o ortopedista disse que em mais uns quinze dias, eu devo estar conseguindo me locomover normalmente de novo. Poderei até voltar a praticar esportes.

— Pobres atletas de fim de semana. O terror das quadras estará de volta!

O tom de Antônio era irônico. Ele levou um tapa na nuca desferido por um Ricardo desgostoso.

Os três pararam um instante hipnotizados pelo rebolado de uma bela morena que passou diante deles no banco e só então Henrique retomou o raciocínio.

— Vai mesmo seguir com a ideia de fazer faculdade de Educação Física?

— Sim — Ricardo tinha firmeza na voz quando respondeu —, a prática de Fei Hok Phai com o tio Sebastião me deu a certeza de que os esportes e as atividades físicas são o meu futuro.

Há alguns anos, os três haviam começado um extenuante treinamento de artes marciais com o tio de Ricardo em um sítio onde o homem morava nos arredores de São Francisco. Embora Henrique tivesse levado a prática da modalidade conhecida como Fei Hok Phai mais a sério que os seus outros amigos, todos eles haviam se beneficiado pelo aprendizado daquela arte milenar chinesa.

— Passamos de saco de pancada dos valentões da escola para praticantes de artes marciais... Quem diria!

Antônio riu, agora encarando um casal que se divertia perto da fonte a alguns metros de onde eles estavam.

— Visitar o Sebá naquele primeiro momento, quando estávamos prestes a concluir o Ensino Fundamental no Belém Capela, foi a melhor decisão que tomamos.

Henrique agora parecia pensativo. Ainda visitava o sítio afastado da cidade regularmente e treinava sempre que podia com o mestre de pele cor-de-ébano e postura militar.

— Aprender Kung Fu nos ajudou a deter a Corporação, com certeza — refletiu Ricardo —, mas não sinto saudades de correr de tiros e de sair na porrada com bandido. Ainda tenho pesadelos com aquela tarde em que quase fomos mortos por helicópteros de guerra... As dores em minha perna e em minhas costas não me deixam esquecer daquela loucura!

E ele mostrou as ataduras que envolviam a perna ossuda aparente pela bermuda folgada que usava.

— Também não sinto falta nenhuma dos tiros e das lutas — disse, em concordância, Antônio —, estou bem feliz apenas com os meus estudos em informática.

Henrique os olhou de maneira incrédula. Sabia o quanto a última missão que haviam executado juntos, num passado não muito distante, tinha sido traumática para os amigos, mas se recusava a acreditar que eles estavam satisfeitos em nunca mais trajar suas roupas de batalha sob as identidades de Thunderwing e do Espião Negro.

— Estão falando sério?

Ricardo apenas olhou para o horizonte, mas foi de Antônio a resposta mais enfática:

— A gente podia ter morrido aquele dia — seus olhos castanhos encararam os de Henrique a seu lado no banco da praça —, aqueles helicópteros enviados pelo Edmundo Bispo dispararam contra nós três naquele deserto... Os caras de armadura da tal Brigada de Elite tinham poder de fogo suficiente para nos liquidar e era para aquele motor de combustão interna ter destruído com todo o Bairro dos Laranjais matando a gente no processo. Como alguém em sã consciência pode querer levar uma vida como essa, correndo risco de ser morto o tempo todo, botando a sua família em risco constantemente?

Henrique estava desapontado, e de repente, com as palavras saindo gaguejantes de sua boca, respondeu:

— Eu... Achei que vocês dois gostassem do que a gente fazia... — Algumas pessoas passaram por eles, e então, o rapaz diminuiu o tom de voz — Nós somos heróis... Ajudamos a derrotar a maior organização criminosa da América Latina...

Ricardo prosseguiu:

— Sim, e agora não precisamos mais correr riscos. A Corporação está acabada.

Henrique sacudiu a cabeça e argumentou:

— Nós derrotamos uma parte da Corporação, mas vocês dois sabem tanto quanto eu que muitos dos membros se safaram das ações que permitiram que nós interrompêssemos o seu funcionamento. A prefeita, a imprensa, a máfia... Eles ainda estão atuando livremente...

Foi a vez de Antônio falar, com seu tom desafinado:

— A gente fez a nossa parte. Derrubamos o Edmundo Bispo e expulsamos o Toni Maranelli da cidade... E tivemos muita sorte de continuarmos vivos e com nossas identidades secretas intactas! Agora não é mais com a gente. Que a polícia lide com o restante dos criminosos.

Henrique sentiu um aperto dentro do peito.

— Vocês estão desistindo, é isso?

Não houve uma resposta imediata. Henrique encarou os amigos um a um. Os três ficaram em silêncio um instante e foi a voz de Ricardo que quebrou o clima seco.

— Olha, cara, eu não vou negar que foi legal por um tempo botar o traje e sair por aí fazendo umas loucuras, mas o tempo que passei no hospital com todos os ferimentos causados naquele dia em que ajudamos a destruir a termelétrica do Bispo junto com as suas pretensões de colapsar as matrizes energéticas do país me fizeram pensar que eu quero mais para a minha vida.

— Eu também quero — emendou Antônio.

— Eu conheci uma garota maravilhosa na escola esse ano — acrescentou Ricardo —, ela é inteligente, educada, bonita... É tudo que eu sempre quis na vida. Eu quero poder me casar um dia, ter filhos... Se eu continuasse sendo o Thunderwing, sinto que acabaria morrendo num beco qualquer cravejado de bala ou decapitado por algum maníaco e não é isso que eu quero para mim, de verdade.

— Nem eu — concordou Antônio.

Henrique ficou sem palavras por um instante. Quando se deu conta que seus dois grandes amigos estavam querendo se afastar daquele que tinha sido o seu grande projeto de vida juntos, a realização dos seus sonhos infantis mais bem-elaborados, ele se sentiu abalado demais para continuar aquela conversa.

— Vocês... Vocês não devem estar pensando direito. Eu vou voltar pra casa agora. Tenho alguns projetos da escola para tocar. Uma outra hora a gente conversa.

O mês de março se encerrou, o de abril começou e depois daquela conversa na praça, os três amigos não voltaram mais a falar sobre aquele assunto.

Na segunda metade de abril, o projeto integrado das aulas de computação reuniu Henrique, Rafael e Alfredo com Thais Augusto, Denise Luara e Kátia Fogaça, o que tornou o sexteto mais próximo para a execução daquele que era o trabalho que valia a maior nota do semestre.

Todos os dias, eles se organizavam em duplas no laboratório de informática e passavam horas discutindo a melhor maneira de escrever um código-fonte que servisse a algum propósito mercadológico.

Denise logo tomou a liderança do grupo e com a sua coordenação, o sexteto se decidiu pela criação de um sistema de supermercado que controlasse não só as entradas e saídas de produtos em estoque, mas também a compra e venda de itens, calculasse o lucro obtido, imprimisse relatórios de dados e que funcionasse de um jeito simples e intuitivo.

— Nós precisamos fazer algumas pesquisas de campo para entender melhor o funcionamento de um sistema real — disse a enérgica adolescente de estatura baixa aos demais, numa tarde de aula —, podemos visitar algumas redes de supermercados para estudarmos in loco os softwares que eles usam. O que acham?

Os outros cinco sacudiram a cabeça concordando com a ideia de Denise e foi de Thais, a garota de olhos puxados, o comentário:

— Podemos nos dividir em três duplas, assim, cada um de nós visita um supermercado diferente para depois reunirmos as informações e decidir qual modelo é o mais prático para nos basear.

— Ótima ideia! — Comentou Rafael — O meu tio é dono de um mercado perto de casa. Eu e o Alfredo podemos visitar o lugar para colher todas as informações para o projeto.

— Eu também tenho acesso a um supermercado que fica bem perto de onde eu moro — disse Kátia, levantando a mão como que pedindo permissão aos colegas antes de falar —, eu e a Denise podemos trabalhar juntas.

Thais encarou Henrique que estava sentado em uma das cadeiras a observar os colegas.

— Então, eu e o Henrique vamos visitar uma das unidades do Imporius. Minha mãe é gerente de lá e tenho certeza que consigo acesso ao sistema deles.

O coração de Henrique palpitou dentro do peito e aquela taquicardia repentina tinha dois motivos: O fato de Thais o encarar de maneira tão incisiva e o nome Imporius.

Durante muitos anos, Henrique havia sido completamente apaixonado por Daniela Ramos, aquela que ele considerava a garota mais bonita e inteligente da escola nos tempos de Ensino Fundamental. Embora nunca tivesse declarado efetivamente o que sentia para a musa inspiradora de seus sonhos mais românticos desde a quarta série, o rapaz alimentou por muito tempo um amor que chegou a ser correspondido próximo do fim do oitavo ano, mas que fora interrompido bruscamente por uma jogada do destino.

No dia em que Henrique havia planejado dizer a Daniela tudo que sempre sentira, um assalto à agência bancária em que ele estava impediu que o rapaz chegasse a tempo para o encontro marcado com a menina numa praça da cidade e ela jamais o perdoou por isso. Desesperado, ele ainda tentou fazê-la entender que não tinha sido sua culpa o atraso, mas Daniela jamais soube o que realmente havia acontecido naquela tarde fortuita.

Thais e Henrique chegaram de táxi à unidade da Imporius que ficava localizada na Barra Funda, em São Paulo, e aquela tarde, após a aula na escola técnica, os dois se dedicaram a visitar o local de trabalho da mãe da garota. O supermercado ocupava todo um quarteirão em uma região bastante movimentada repleta de shoppings e outros prédios comerciais. Era o principal ponto de compras por ali e aquela era uma das principais filiais da rede que crescia cada ano mais no estado.

— Venha. Eu vou te apresentar à minha mãe — ela segurou em seu pulso fino e o puxou com firmeza ainda na entrada do supermercado —, mãe, esse é o Henrique Harone, o meu colega da escola.

A mãe de Thais era uma mulher de postura ereta, cabelos negros lisos e sorriso largo no rosto. Tinha uma camada de gordura extra projetada para fora sob os olhos, exatamente como os da filha. Um brilho intenso quase se ocultava pelas pequenas frestas que suas pálpebras permitiam abrir. Embora nenhuma delas tivesse qualquer ascendência asiática, Henrique achava bonito o formato de seus olhos.

— Olá, Henrique. Eu sou a Márcia Augusto. Prazer em conhecer.

Os dois se cumprimentaram brevemente, logo em seguida, como já estava combinado, a dupla de estudantes foi conduzida pela gerente do mercado até uma sala de escritório localizada no andar superior do prédio.

— Quando a Thais comentou o que precisava para o trabalho de vocês, eu conversei pessoalmente com um dos técnicos em informática que comanda a manutenção do nosso sistema. É ele quem vai explicar melhor o que vocês precisam saber.

Thais e Henrique acompanharam Márcia um lance grande de degraus acima e pouco depois, foram apresentados a Milton, o rapaz de vinte e oito anos que era o responsável pelo setor de gerenciamento de dados. Munidos de canetas, cadernos e até mesmo um gravador de voz que Thais havia feito questão de usar, os dois passaram algumas horas aprendendo sobre o sistema informatizado do Imporius e tiraram juntos grande proveito daquela visita.

Quando a dupla saiu do supermercado, a noite já havia caído completamente sobre a cidade e algumas estrelas ousavam exibir sua forma brilhante no céu poluído da grande metrópole. Thais estava bastante tagarela, empolgada com tudo que havia aprendido com Milton no escritório da empresa, mas não pode deixar de notar um detalhe em Henrique que havia guardado para comentar mais tarde. Enquanto os dois caminhavam de volta ao ponto de táxi, prontos a retornarem dali para a entrada da escola técnica, ela o questionou:

— Por que você ficou todo hesitante quando eu disse que a minha mãe trabalhava no Imporius? Algum problema com ela ser gerente?

Era um horário de bastante trânsito na cidade e não havia nenhum veículo estacionado no ponto. Os dois caminharam lentamente até o local e ficaram aguardando por um táxi livre. Ele deu um riso e pensou na melhor forma de explicar aquilo para a colega.

— Não tem nada a ver com a sua mãe... É outra coisa.

Ela sentiu um ar de mistério em sua voz e insistiu:

— Eu posso perder um ou dois minutos com a sua explicação.

Havia um ar simpático no belo rosto da menina de corpo esguio. De onde estavam, era possível ver a imensa fachada do supermercado do qual eles haviam saído há pouco tempo e o letreiro brilhava de longe.

— Há algum tempo, eu conheci o dono da rede Imporius, o senhor Adonis Ramos... Ele é o pai de uma garota pela qual eu era apaixonado na época da escola.

Thais arregalou os olhos miúdos. Descruzou os braços de frente do tronco e gesticulou.

— O dono da rede toda? O big boss?

Ele acenou que sim, depois riu, visivelmente envergonhado com a lembrança que lhe viera à mente.

— Você vai me achar um idiota... — Ele então deu uma olhada tímida para o rosto dela — Na ocasião, eu trabalhava como entregador de pizzas, estava com a minha motoneta e parei em frente à casa onde a família Ramos morava em São Francisco d'Oeste...

Thais já o tinha ouvido comentar sobre a cidade que ficava em direção ao interior do estado, além da Grande São Paulo.

— Eu tinha escrito um poema para ela e queria deixar na caixa de correio junto de um urso de pelúcia...

— Ah, que bonitinho!

Ela riu e o deixou continuar a contar a história.

— Bem, eu não tinha coragem de dizer a ela o que eu sentia, então, tive a ideia de deixar ali o presente com a carta... Infelizmente, não foi bem o que aconteceu.

— Por que não? — Indagou Thais, agora ainda mais curiosa com a história.

— Tinha um cara na escola que me odiava... Ele morava no mesmo bairro que essa garota. Ele apareceu do nada com alguns colegas e começou a me bater. Sem que eu pudesse evitar, o sujeito pegou o urso da minha mão, roubou a carta e ficou tirando um sarro de mim lá caído com o nariz sangrando...

— Que horror!

A garota agora tinha ficado com uma expressão de pena no rosto.

— Pouco depois, ele e os colegas fugiram, e foi então que o pai dessa garota apareceu e me socorreu em frente a seu portão. Eu não consegui entregar o presente para ela e acabei sentado no meio da sua sala de estar com a cara arrebentada e uma sensação imensa de impotência. Foi um dos dias mais vergonhosos da minha vida...

Henrique sabia que poderia citar outros ainda piores, mas já havia causado mais sentimento de pena do que desejava à sua colega. Naquele momento, um táxi estacionou no ponto e os dois embarcaram. Sentada a seu lado no banco traseiro do sedan branco, a garota confessou:

— Achei a sua atitude linda. Eu ficaria muito feliz se um garoto fizesse todo esse esforço só para me dar um ursinho de pelúcia e uma carta de amor. — Os olhos de Thais brilharam por um instante. — Uma pena que você não tenha conseguido concretizar o seu plano aquela noite.

Nem aquela noite e em nenhuma outra, pensou Henrique, desolado.

— Então você é do tipo romântico? — Ela o cutucou o braço com seu indicador — Qual poema escreveu para a sua garota?

Ele hesitou em responder, com um sorriso bobo atado ao rosto enrubescido.

— Me fala! Qual era o poema?

Ela insistiu, rindo.

— Foi meio idiota, mas eu escrevi para ela na carta "Soneto LXVI" do Pablo Neruda. Era o autor preferido da Daniela na época...

O táxi agora deslizava por uma avenida de bastante tráfego próximo ao shopping mais movimentado da região. O motorista encarou o casal de adolescentes no banco de trás por alguns segundos pelo retrovisor.

— Que fofo! Você ainda lembra algum trecho?

— É melhor mudarmos de assunto agora — ele estava cada minuto mais sem graça —, é um pouco constrangedor...

— É nada! Vai, recita pra mim um trecho pelo menos.

Ele riu mais uma vez e começou a puxar da memória aquele poema que havia decorado na oitava série.

"Talvez consumirá a luz de janeiro, seu raio cruel meu coração inteiro, roubando-me a chave do sossego... Não te quero senão porque te quero..."

Os dois terminaram aos risos e ele não conseguiu se lembrar do restante. Aquele tinha sido seu maior momento de entrosamento desde o início das aulas do curso técnico. Henrique nunca antes havia se sentido tão bem ao lado de uma garota.

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