Capítulo 2 - O gigante de ferro

A TORRE ENVIDRAÇADA DA SEDE da Castle Industrial reluzia a luz do sol poente daquele fim de tarde quando Marcos Eiras deu como iniciada a reunião da presidência num dos andares mais altos do edifício imponente. Ao redor da mesa, além do herdeiro da família Castellini e de sua mãe Zulmira, estavam presentes também os oito acionistas minoritários do grupo e o chefe de finanças das filiais espalhadas pelo país. O assunto discutido era justamente os gastos que vinham sendo dispendidos desde a prisão do presidente da empresa, há alguns meses, e o fechamento de cinco das treze unidades da Castle.

Eiras estava numa das pontas da mesa envernizada e a sua cabeça quase totalmente sem cabelos refletia na superfície lisa enquanto ele exibia com certa ênfase a queda de faturamento sofrida pela companhia desde o último Natal. Um gráfico pizza aberto no telão às suas costas mostrava a defasagem numérica da empresa de tecnologia para as suas concorrentes de mesmo ramo e havia uma rusga de preocupação nos rostos de cada um dos oito representantes do grupo.

— O fechamento das cinco unidades nordestinas da Castle foi uma medida paliativa para que tentássemos recuperar os valores investidos em marketing após a saída do senhor Castellini da presidência, mas mesmo com essa ação, perdemos mais de 38% do lucro obtido no último semestre.

O homem calvo vestia um elegante terno Armani azulado e mirava com o apontador laser entre os dedos a porcentagem mencionada na tela. Os cabelos que lhe sobravam jaziam penteados de lado tentando esconder o couro lustroso da cabeça e um cavanhaque claro circundava o queixo fino.

— De acordo com o senhor Cícero Freire aqui presente — e Eiras apontou em direção ao homem sentado à sua esquerda, no primeiro assento —, ainda teremos que fechar as portas de mais duas unidades da Castle no Sul do país até que tenhamos em caixa o valor necessário para darmos continuidade aos projetos que já haviam sido acordados com nossos clientes, em especial, os estrangeiros.

O chefe do setor de finanças da empresa de tecnologia era um sujeito mirrado de olhos pretos grandes e barba espessa no rosto arredondado. Acenou positivamente à fala do CEO em exercício e fez uma anotação rápida no tablet sobre a mesa. Era formado em Ciências Contábeis com especialização em Finanças e tinha sido o homem-forte do setor desde os primórdios da Castle Industrial. Havia sido nomeado pelo próprio Carlos Castellini Sênior e sabia de todos os segredos do sucesso indiscutível de seu patrão, até a sua derrocada.

Carlos Júnior estava acompanhando as reuniões de negócios desde a prisão do pai, mas se sentia despreparado para assumir o cargo de presidente do grupo. Eiras tinha sido o braço-direito de Castellini em todos aqueles anos e havia sido colocado à frente da empresa por uma razão simples: Ele sabia exatamente como o homem que pagava o seu salário pensava e agia. Como seu tutor para os negócios, Marcos exigia que o garoto estivesse ciente de cada um dos meandros da engrenagem que fazia a companhia funcionar o quanto antes, e para isso, o queria atento a tudo que se dizia no interior daquela sala nas quase infindáveis reuniões semanais.

Em detrimento às inseguranças do filho como sucessor do pai, Zulmira tinha plena confiança de que ele logo estaria a par de cada um dos pormenores do império tecnológico que o marido havia construído do zero em São Francisco d'Oeste e a mulher permanecia tranquila quanto ao empenho de Carlos Júnior em seu aprendizado diário. Para ela, seu único herdeiro era um modelo perfeito de obstinação e perseverança, qualidades que havia herdado do pai. Enquanto acompanhava a reunião sentada numa das cadeiras mais ao fundo da sala, olhava para seu rebento com orgulho, certa de que logo seria ele a presidir toda e qualquer deliberação da Castle.

Naquele início de noite, Carlos chegou ao apartamento onde morava com a mãe num dos condomínios mais luxuosos da região norte da cidade e após um banho relaxante, trancou-se no escritório que antes pertencia ao pai para dar início aos estudos referentes à figura mítica denominada pela imprensa como Pássaro Noturno.

De frente para uma tela de dezoito polegadas de um recém-lançado computador da Apple e com acesso à internet de banda larga mais cara que se podia pagar na região, o rapaz começou a pesquisar notícias acerca dos acontecimentos que haviam levado à ruína a, até então, secreta organização comandada pelo homem chamado Edmundo Bispo na cidade de São Francisco d'Oeste. Com uma impressora a postos na escrivaninha larga dentro da sala escura, o rapaz começou a imprimir alguns resultados obtidos em suas buscas.

Carlos nunca antes havia se interessado por qualquer uma daquelas notícias e pouco se importava quanto a assuntos que envolviam política. Desde muito jovem, tinha aprendido a desfrutar das facilidades econômicas que a fortuna da família lhe proporcionava e a ele não importava como o dinheiro chegava as suas contas, à revelia dos verdadeiros desejos de seu pai de querer vê-lo participando mais ativamente da empresa que dirigia.

Quando soube que o patriarca dos Castellini estava sendo investigado pela polícia da cidade por associação criminosa, achou que tudo seria resolvido, como sempre, pagando uma quantia grande de dinheiro aos advogados, mas a realidade estava longe de ser como ele imaginava.

Carlos Castellini Sênior era, desde sempre, o provedor tecnológico dos planos de crescimento de Edmundo Bispo dentro da cidade. Há dezesseis anos, os dois tinham firmado uma parceria rentável com os homens que, através de meios escusos, moviam as engrenagens da cidade e aquela aliança o levou a mergulhar diretamente no coração do que eles passaram a chamar de "Corporação".

A Corporação era um grupo formado pelas pessoas de maior influência da cidade, e que como tal, moviam as peças certas do tabuleiro como em um jogo de xadrez, sempre visando o lucro financeiro acima de tudo. Além de Castellini — que com a sua empresa fornecia não só a base tecnológica das construções planejadas por Bispo como também providenciava a mão-de-obra especializada —, a Corporação tinha em sua folha de pagamento a imprensa — representada pela família Santinni, dona de um jornal, de um canal de TV e de um site de notícias —, a polícia — com Romero Assis sentado na cadeira de delegado —, o magistrado — na figura do proeminente juiz Sérgio de Alcântara dentro do Fórum de Justiça — e até mesmo o crime organizado, que em São Francisco d'Oeste, há muitos anos, era chefiado pelo experiente Antônio Maranelli.

De repente, Carlos Júnior estava mergulhado até o pescoço em uma intrincada trama de poder a que o pai fazia parte e com a qual havia obtido boa parte das riquezas que ele e a mãe usufruíam. Seus olhos brilharam diante do monitor, sentado na poltrona confortável tantas vezes usada por Carlos Sênior. A sua voz soou ameaçadora, quase em um sussurro:

— Alguém impediu que o nosso império continuasse crescendo e esse alguém precisa pagar.

Dois dias depois do início de seus estudos sobre a derrocada da Corporação, Carlos quis visitar os diferentes setores da Castle Industrial e pediu que Marcos o conduzisse pessoalmente pelo prédio da sede da empresa.

— Eu quero conhecer melhor o lugar que vou comandar um dia, Marcos. Me apresente a cada um desses setores.

Como queria seu discípulo, o tutor passou aquela tarde lhe apresentando cada um dos andares dos quase quarenta que formavam a Castle e fez questão de explicar em detalhes o que exatamente acontecia em cada um deles, bem como quem eram as pessoas responsáveis a fazer com que tudo funcionasse na mais perfeita ordem.

Os diversos setores de criação da empresa se dedicavam dia e noite a apresentar soluções para as solicitações de seus clientes, e uma vez aprovados, os projetos eram transferidos para as equipes de montagem que, seja localmente dentro do próprio prédio ou na área de implementação, davam vida ao que os projetistas imaginavam.

— Boa parte das construções desenvolvidas na cidade na última década foram projetadas dentro dos laboratórios da Castle, Carlos — disse Marcos, enquanto os dois olhavam do alto da passarela de um dos laboratórios as equipes de montagem trabalhando em um modelo de liga metálica que seria usada em pontes —, o Elevado Intermunicipal Alceu Franco teve toda a sua base de infraestrutura modelada pelas equipes de engenharia a nosso serviço, por exemplo.

— Mas o meu pai não estava apenas fornecendo material mecânico para construções civis e urbanas, Marcos. Eu li em alguns relatórios que a Castle estava envolvida também com robótica e armamento bélico. Eu quero que você me leve até esses projetos.

Havia agora certo desconforto no rosto do tutor. Enquanto o barulho de uma máquina de solda irrompia o ambiente do laboratório à frente, o homem se virou para o rapaz.

— Veja bem, Carlos, por conta do que houve com o seu pai, a pedido dos advogados que estão trabalhando em seu caso, nós fomos obrigados a remover qualquer vestígio desses projetos mais secretos de dentro do prédio...

— Meu pai foi acusado de fornecer equipamento militar de alta tecnologia a uma empreitada secreta de Edmundo Bispo na termelétrica que ele havia construído naquele bairro miserável, ao pé de uma favela... Eu quero conhecer esses projetos.

Marcos fez menção de afrouxar a gravata em seu pescoço.

— Nada disso está mais dentro desse prédio, Carlos...

— Me leve aonde está.

Algumas horas depois, conduzidos por um dos motoristas da empresa, Marcos e Carlos chegaram a um galpão amplo cercado por segurança reforçada e muros altos nos arredores da Zona Oeste da cidade. Após identificar a sua digital em um painel junto ao portão principal e abrir espaço junto a uma dupla de guardas fortemente armados, o homem conduziu o garoto até uma passagem estreita que os levou direto a um armazém trancado por uma porta espessa de aço.

— Depois que a polícia começou a investigar todas as instalações da Castle e as treze unidades da empresa espalhadas pelo país, nós removemos tudo que não devia ser visto por ninguém para esse galpão. Ninguém além de mim e do seu pai tem acesso.

Carlos ficou impressionado com a grandiosidade do armazém e enquanto luzes automáticas começavam a se acender sobre a sua cabeça, iluminando gradativamente um pátio de mais de cem metros quadrados à sua frente, seus olhos se fixaram nas centenas de projetos que haviam sido estocados no lugar.

— O que é tudo isso?

Duas das paredes estavam cobertas por caixotes grandes de madeira ocultando equipamentos que ainda estavam em fase de teste. Proteções plásticas e lonas extensas cobriam veículos de combate dotados de armamento pesado utilizado pelos exércitos israelenses e russos e num suporte de metal, ao lado de uma das caixas, havia até mesmo um fuzil balístico que estava sendo desenvolvido para abater caças da força aérea.

— Isso — respondeu Marcos — é tudo o que realmente movimentava as finanças da empresa, Carlos, e o que fomos obrigados a encaixotar até que as investigações em torno do que seu pai faz cessem.

— Então, o meu pai estava realmente desenvolvendo armamento para exércitos?

O garoto parecia maravilhado e começou a andar pelo pátio puxando as lonas de lado, descobrindo projetos e levantando poeira.

— Não se constrói um império apenas trabalhando dentro da lei, Carlos. O seu pai é um visionário. Muito antes de você nascer, ele já tinha a ambição de fornecer equipamentos para exércitos, milícias e todo tipo de mercenário que se possa imaginar. A Castle Industrial é bem mais do que uma companhia ligada a engenharia.

Carlos saltou para o chão de cima de um jipe equipado em sua traseira com um fuzil de calibre .50 depois de analisá-lo e seus olhos se fixaram em um volume largo e alto que se ocultava por de trás de uma lona amarronzada num canto, à sombra de uma viga horizontal.

— E aquilo? O que é?

Os saltos de seu sapato social ecoavam no assoalho enquanto Carlos andava rapidamente até o colosso erguido feito uma estátua imensa ao fundo do salão. Conforme Marcos tentava acompanhá-lo em seu ritmo apressado, o garoto deu um salto e agarrou um cordão que prendia a lona, o afrouxando.

— Bem... Isso ainda é um protótipo. Estava sendo desenvolvido por seu pai em parceria com uma empresa japonesa de componentes cibernéticos... Foi pensado para ajudar na construção de pontes e viadutos.

A lona enfim tombou e o que se revelou por baixo dela fez com que o coração de Carlos palpitasse sob a camisa social e a gravata slim que usava.

— Isso é... Isso é...

Um exoesqueleto metálico de superfície brilhante fazia sombra sobre a sua cabeça. Media dois metros de um ombro da armadura a outro e se elevava a mais de três metros do chão, com um cockpit em formato ovalado para comportar uma pessoa de estatura mediana sentada em seu interior.

— Essa... Essa é a coisa mais fantástica que eu já vi em toda a minha vida!

Os olhos de Carlos estavam arregalados e enxergando a própria imagem refletida na película metálica, de repente, ele havia definido o mais novo alvo de sua cobiça. 

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