Capítulo 15 - Ressurgido das cinzas
O QUARTO ESTAVA EM CHAMAS e Pássaro Noturno ouvia gritos desesperados ecoando de seu interior. As paredes se comprimiam conforme ele procurava avançar e a resistência parecia cada vez maior.
Magno e Luiza estavam presos por correntes de elos grossos e rijos. O fogo se alastrava rapidamente pela casa como se estivesse vivo. Ambos imploravam por ajuda.
— Agora eu sei quem se esconde atrás desse capuz. Vou acabar com a sua família. Exterminar todos eles, assim como aconteceu com os funcionários daquela pizzaria. Com verme não se lida. Verme a gente elimina!
Os olhos de Henrique se arregalaram por trás das lentes brancas de seu traje de combate, e de repente, ele estava indefeso preso à parede e incapaz de alcançar as duas pessoas no outro cômodo. Carlos gargalhava por trás da película transparente da sua cabine elíptica. Seus olhos verdes brilhavam intensos refletindo as chamas que dançavam pela casa. O braço esquerdo da sua Máquina Brutal e os seis canos da M134 miravam duas mulheres caídas no chão aos seus pés. Ele saboreava seu momento de júbilo.
— Eu vou acabar com você, desgraçado! E quando finalmente tiver vencido, eu vou cuspir no seu cadáver e depois vou trucidar a sua família.
O teto do quarto onde estavam Magno e Luiza desabou com um estrondo. Uma fumaça espessa e sufocante tomava toda a residência. O calor do fogo que ardia intenso queimava a pele de Henrique por baixo de seu traje. As correntes envolviam seus membros os comprimindo com cada vez mais força. Era difícil respirar.
— Carlos... Não faça isso...
Henrique estava engasgado e o som de sua voz mal chegava aos ouvidos do rapaz dentro da colossal armadura a poucos metros dele. Uma gargalhada estridente soou através das chamas um segundo antes de Henrique reconhecer a sua mãe Cecília e a sua irmã Carina sob a mira da minigun. Elas estavam indefesas no chão. Carlos acionou o gatilho e o estrondo dos disparos irrompeu ensurdecedor.
— NÃÃÃÃÃOOOOO!
Henrique acordou do pesadelo com o sol refletindo em seu rosto e quando percebeu, seu corpo estava boiando na água, carregado pela corrente do Rio Timaué.
Em súbito desespero, se debateu, procurando recobrar de vez os sentidos e só então percebeu que já havia amanhecido.
Carlos... A casa em chamas... Foi um sonho... Pensou por um segundo, com o coração ainda tamborilando apressado dentro do peito.
Desnorteado, sentia os braços e as pernas dormentes e a sua cabeça latejava como se fosse explodir. Parte do traje que ainda cobria a sua pele era impermeável, mas os rombos causados pelos tiros impiedosos do Máquina Brutal haviam permitido que a água gelada invadisse a sua roupa lhe causando os primeiros sintomas de hipotermia. Ainda se debatendo debilmente, olhou em seu entorno e percebeu que havia chegado a um local arborizado cercado de verde. A correnteza o havia levado até a Alameda dos Cajarás, na Zona Sul de São Francisco. Com os lábios trêmulos, ele balbuciou:
— Sebá...
O gancho do arpéu se prendeu ao tronco espesso de um pé de sumaúma. A carretilha da pistola o içou do rio direto para o terreno firme em volta da árvore. Não tinha qualquer firmeza nas pernas ou nos pés e teve que esperar até que a dormência nos membros inferiores amenizasse e ele fosse capaz de caminhar novamente.
Sem direção ou qualquer noção de onde estava dentro da mata, Henrique cambaleou a esmo por entre as árvores forçando os músculos exaustos e prejudicando ainda mais o pulmão que estava sendo apunhalado por uma de suas costelas fraturadas.
Por mais de uma vez, se viu vencido pela dor e se prostrou em meio à floresta, urrando, tentando puxar um ar que não conseguia lhe descer pelas narinas. O capuz agora o estava sufocando e ele o arrancou tão logo alcançou uma clareira em meio à mata que reconheceu de imediato.
Eu já estive aqui... Há um ano... O Sebá me trouxe... Os homens de Vicenzo Mateo, o avô de Manoela Santinni, estavam demarcando as terras para devastar a região ecológica e começar a explorar o petróleo...
Enquanto a mente parecia trabalhar a todo vapor, o corpo já não conseguia responder com a mesma intensidade e Henrique caiu desmaiado sob a sombra de um jequitibá. Estava a menos de vinte minutos do sítio do mestre em Fei Hok Phai, mas não tinha mais energia para continuar.
Uma hora depois, um rapaz magro e esbaforido surgiu correndo da floresta em direção ao portão de entrada do sítio de Sebastião Costa e bateu palmas de maneira insistente. Um galo cantava a plenos pulmões dentro do galinheiro construído à direita da entrada do quintal enquanto o bambuzal atrás da casa reagia a uma brisa forte e fria que soprava naquela manhã de inverno.
— Sebá! Sebá!
A voz aguda chamava ininterruptamente atrás das grades de madeira e foi então que o homem alto de pele cor-ébano surgiu à porta de sua casa.
— Que gastura é essa, Marcelino? Vai tirar o pai da forca?
O garoto de dezessete anos estava ofegante apoiado numa das grades de madeira maciça.
— O senhor precisa vir comigo. Eu e a Anelize encontramos uma pessoa caída na floresta. Está usando uma roupa toda preta e parece que está bastante ferida.
Os olhos do homem se arregalaram ainda mais e num instante, ele estava calçando um par de sandálias de couro nos pés e correndo com Marcelino na direção apontada pelo garoto. Não havia tempo a perder.
Não pode ser ele. Não pode!
Sebá se alarmou ao ver que as suas preces não haviam sido atendidas quando reconheceu a pessoa caída na mata fechada. Quando verificou os sinais vitais junto ao corpo desfalecido, percebeu que estavam fracos.
— Precisamos levá-lo até a minha casa. Eu posso salvar a sua vida.
Marcelino olhava para o rapaz caído na mata boquiaberto e a seu lado, Anelize, sua irmã de quinze anos, se apoiou nos joelhos antes de resmungar:
— Não devíamos levá-lo ao médico?
Sebá começou a erguer Henrique do chão com os braços fortes e após emitir um grunhido pelo esforço que fazia, respondeu:
— Não com ele vestido desse jeito.
Os três andaram juntos pelos vários metros que separavam a floresta do sítio. Ao chegarem na casa, Sebá deitou Henrique cuidadosamente na cama instalada em seu quarto e ordenou a Marcelino:
— Rápido. Ferva um pouco de água e pegue alguns lençóis que eu deixei estendidos no varal do lado de fora. Eu preciso limpar os seus ferimentos.
Anelize tinha expressão assustada no rosto sardento e perguntou, enquanto o irmão corria até a cozinha:
— E eu? O que faço?
Sebá apontou para o peito de Henrique.
— Pegue uma faca e me ajude a arrancar esse traje dele.
A respiração do rapaz inconsciente sobre a cama estava ainda mais irregular e Sebá sabia que tinha pouco tempo para salvar a sua vida.
Você não vai morrer. Não aqui, não agora!
Os pensamentos do mestre em artes marciais eram intensos e suas mãos começaram a agir habilmente no intuito de manter seu aprendiz vivo. O tempo agora era seu mais mordaz inimigo.
Várias horas tinham se passado quando Henrique recobrou a consciência. Seus olhos se abriram debilmente e a iluminação que entrava pela janela pequena do aposento feriu sua retina num primeiro momento. Estava deitado com o torso desnudo sobre a cama e uma faixa resistente envolvia o seu tronco procurando imobilizá-lo. Seus olhos estavam nublados, sensíveis, mas pela visão periférica notou uma presença a seu lado. Uma voz aguda e jovial pode ser ouvida.
— Sebá! Ele acordou!
Henrique sentia o cheiro bom de ervas recender o ambiente. Do seu lado esquerdo, um defumador expelia uma névoa aromática que se espalhava pelo quarto abrindo-lhe os canais nasais e melhorando a sua respiração. Seus braços e pernas estavam envolvidos por ataduras e uma substância oleosa havia sido aplicada sobre as queimaduras causadas pelos tiros que o seu traje de Pássaro Noturno não havia conseguido defletir.
— Procure não se mexer. Você ainda não descansou o bastante.
Anelize estava sentada em um banco de madeira ao lado direito da cama e seus olhos castanhos miravam o rosto do jovem combalido à sua frente. Um som metálico soava da cozinha como se alguém estivesse preparando alguma refeição pronta a ser servida e só então Henrique começou a recuperar de vez a consciência.
— Quem... Quem é você?
Mãos pequenas e delicadas seguraram o seu ombro quando ele se esforçou para erguer o tronco, o convencendo a permanecer imóvel. Mesmo com a fumaça aromática lhe abrindo caminho do ar até os pulmões, ainda era como se o tivessem apunhalando o peito.
— Eu me chamo Anelize. Eu e meu irmão, Marcelino, o encontramos caído na mata e chamamos o Sebá para ajudá-lo — os cabelos castanhos estavam presos para trás e alguns fios caíam-lhe rebeldes no rosto. A adolescente era dona de lábios finos e seu olhar era firme —, você deve ter se arrastado pela floresta até a clareira e desmaiou. Estava encharcado, ensanguentado... Sebá limpou os seus ferimentos e fez o que pode para te manter vivo.
Henrique sentia a cabeça pesada e a visão turva. Estava vestido apenas com a bermuda que mantinha sob o traje de Pássaro Noturno e tremia de frio. Tinha sido resgatado a tempo, mas havia passado a madrugada toda sendo carregado pela correnteza do rio, inconsciente.
É um milagre que eu tenha sobrevivido, pensou, tão logo seus olhos conseguiram fitar pela primeira vez a figura da mocinha próxima da cama.
A silhueta robusta de Sebá atravessou a cortina de miçangas que separava o aposento da cozinha da casa e o homem parou de braços cruzados ao pé da cama. Observou bem o rosto abatido de seu jovem pupilo com sua expressão séria, em seguida, sua voz grave ecoou:
— Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos.
Anelize se mexeu devagar ao lado da cama e desviou o olhar de Henrique para Sebá enquanto os dois iniciavam um diálogo.
— Sinto como se tivesse sido atropelado por um trem de carga... — Henrique estava com fisionomia dolorida — Por quanto tempo fiquei desacordado?
A área abdominal doía conforme ele falava e ainda era difícil respirar. O sol do lado de fora brilhava intensamente e a temperatura era amena àquela hora.
— Anelize, pode nos dar licença, por favor?
A menina esguia assentiu ao pedido do homem que todos conheciam na vizinhança como uma espécie de guru de sabedoria, e em seguida, se retirou, lançando um último olhar para Henrique antes de atravessar a cortina de miçangas. Sebá esperou até que ela atravessasse a cozinha da sua casa para se juntar ao irmão do lado de fora, então disse:
— Você dormiu por quase oito horas. Eu o encontrei praticamente morto em meio à floresta, Henrique. Trouxe você para cá com a ajuda dos irmãos Ribeiro. Se não fosse por eles, com certeza você teria morrido sozinho na mata.
Sebá o encarou com firmeza e Henrique fez uma careta ao sentir novamente a costela o incomodar. Colocou uma das mãos sobre o rosto e indagou, preocupado:
— Eles me viram com o traje...?
Sebá desviou o olhar para o lado de fora um instante e viu o casal de irmãos conversando perto da soleira da porta de entrada.
— Os dois são de confiança — respondeu sem titubear —, não vão dizer nada a ninguém sobre o que aconteceu aqui hoje. São bons meninos. Os conheço desde criança e o pai deles me ajudou o ano passado quando protestamos contra a devastação da área protegida da floresta. Todos são gratos pelo que o Pássaro Noturno e seus amigos fizeram para salvar a Alameda dos Cajarás.
Henrique pousou as mãos sobre a faixa que pressionava o seu torso e após franzir o cenho, sentindo dor, quis saber:
— O que aconteceu comigo?
Sebá deu alguns passos diante da cama e respondeu, em tom monocórdico:
— Usei algumas técnicas orientais para colocar a sua costela no lugar e apliquei unguentos medicinais em seus ferimentos para conter a infecção causada pelas queimaduras. Seu corpo estava bastante ferido, porém, a água fria do rio deve ter agido como anestésico natural, por isso você não entrou em choque imediatamente.
Henrique sentia-se febril e o corpo tremia, embora a temperatura ambiente fosse agradável.
— Haviam buracos imensos de bala em seu traje, Henrique — o tom do homem tornou-se paternal —, fiz o que pude para limpar os seus machucados e foi mesmo um milagre que tenha conseguido sobreviver...
Com dificuldade, o rapaz sentou-se sobre a cama de colchão duro e abaixou os olhos não conseguindo encarar o homem sábio em pé a poucos metros dele.
— Eu fui atraído para uma armadilha — começou a explicar, ressentido —, devia ter imaginado que estava sendo manipulado, mas não analisei todas as possibilidades antes de embarcar em meu aeroplano e voar até a Boca do Crime...
Sebá permaneceu de braços cruzados. A sobrancelha esquerda arqueou-se.
— A Boca do Crime é um dos piores lugares de São Francisco d'Oeste. Só mesmo alguém muito corajoso ou incrivelmente idiota voaria para lá sem qualquer apoio.
Henrique achava que merecia ouvir aquilo e assentiu.
— Nos últimos meses, eu estreitei relações com dois policiais do DPSF e usaram essa nossa conexão para me atrair até uma rua perto da antiga estrada de ferro da cidade. Eu recebi um chamado da policial Regiane Loyola através do nosso canal prioritário e nem imaginei que pudesse ser uma cilada... Quando cheguei lá, fui atacado por dois sujeitos usando os trajes da Brigada de Elite que enfrentei ano passado durante a derrocada de Edmundo Bispo...
Sebá franziu a testa.
— Foram eles que fizeram todo aquele estrago em seu traje?
Henrique balançou a cabeça em negativa.
— Os dois eram apenas capangas. Eu consegui detê-los e descobri logo que eles eram apenas uma distração para o seu chefe... Um cara vestido como um tanque de guerra humanoide armado com uma M134 imensa.
Havia agora terror nos olhos grandes do homem de pele preta.
— Meu, Deus, Henrique!
O garoto sentiu-se envergonhado e novamente abaixou os olhos. Enquanto encarava o próprio colo, continuou:
— Eu não estava preparado para enfrentar aquele monstro de quase quatro metros, mas quando o vi ameaçar a vida da policial Regiane, senti que não tinha escolha. Eu precisava salvá-la atraindo os tiros para mim. Há algum tempo, havia aplicado camadas extras de proteção no torso do meu traje, achava que podia aguentar...
— Você está enfrentando adversários que atiram com miniguns, Henrique? Por Deus! Onde está com a cabeça?
Enquanto eles discutiam, era como se o som retumbante dos tiros disparados pelo Máquina Brutal ainda soasse em seus ouvidos. Como se o calor das rajadas ainda estivesse queimando a sua pele, estraçalhando os seus ossos.
— Eu fiz o que pude para salvar os dois policiais, mas a máquina assassina atirou sem nem hesitar no agente Pablo... Ele foi jogado para trás inconsciente... Eu devia ter conseguido salvar a sua vida...
Henrique havia feito mais esforço do que o seu corpo suportava e quando a sua vista escureceu, Sebá o convenceu a se deitar novamente para que descansasse por mais algum tempo sobre a cama.
Enquanto dormia, novos pesadelos o assaltaram, e a todo momento, o rapaz sentia como se o corpo ainda estivesse sendo alvejado por tiros. A emboscada na Boca do Crime o havia traumatizado, e mesmo inconsciente, sua mente não conseguia fazê-lo descansar.
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