Capítulo 1 - Rotina escolar
A ESCOLA MUNICIPAL BELÉM CAPELA havia sido fundada na primeira metade da década de 70 como uma instituição católica controlada pela igreja local. Em suas salas de aula, os filhos dos mineradores de carvão que habitavam a cidade eram catequizados pelos padres oriundos da cidade de São Paulo e estes, além dos dogmas religiosos, ensinavam às crianças também estudos de Língua Portuguesa, Geografia espacial e Matemática, como mandava o figurino da época.
Foi só a partir da década seguinte que a instituição passou a ser administrada pela prefeitura de São Francisco d'Oeste com as verbas repassadas pelo Estado, e apesar de ter mantido o nome que remetia ao passado dogmático, a escola nada mais tinha a ver com a igreja.
Belém Capela era a instituição de ensino público mais longeva de toda a cidade — com seus agora 180 mil habitantes, muitos dos quais, em idade escolar — e figuras ilustres que atualmente ocupavam cadeiras importantes nas principais instituições municipais haviam recebido educação básica em suas salas de aula, incluindo a prefeita Renata Leme, o vice-prefeito Josleno Cavalcante e o presidente da câmara dos vereadores, o senhor Nazareno Fernandes.
Henrique desembarcou do ônibus que o havia conduzido do Bairro do Encanto onde morava desde os sete anos e esperou na calçada em frente à escola até que sua irmã Carina também descesse do coletivo acompanhada do sobrinho de ambos, Michael Douglas. Era uma manhã de fevereiro e um número grande de crianças se aglomerava diante do Belém Capela para aquele que seria o primeiro dia letivo do ano.
— Está ansioso, Michael?
O menino de cabelos castanhos claros carregava uma mochila azul nas costas e trajava uma calça jeans com uma camiseta branca estampada com o rosto de seu super-herói de histórias em quadrinhos favorito. A arte mostrava um homem sorridente por baixo de um capacete reluzente em cor-ouro que deixava parte de sua face descoberta. Acima da sua cabeça estava o logotipo comercial com que o personagem fictício era mais reconhecido e o letreiro amarelo trazia escrito "Defensor da Galáxia".
Em resposta à pergunta do tio, ele inclinou a cabeça para o lado e seus olhos dourados se arregalaram ante a visão caótica em frente à escola em que estava se apresentando para o primeiro dia de aula da sua vida. Dezenas de crianças começavam a subir os degraus em frente ao portão de acesso ao prédio e ele parecia assustado.
— É assim mesmo no primeiro dia. Depois você se acostuma!
Carina tocou de leve o ombro do sobrinho com um sorriso, depois, acenou para ele e se precipitou ao primeiro degrau. De longe, avistou uma dupla de amigas de turma e as três começaram a caminhar juntas até a entrada. Estavam ansiosas para os desafios da oitava série, seu último ano naquela instituição de Ensino Fundamental e se afastaram rápido. Vendo a tia sumir na multidão, Michael então se voltou para a figura mais familiar próxima a ele e Henrique o puxou de lado, um metro depois do portão. As crianças do primário continuaram subindo as escadas, muitas delas, acompanhadas dos pais. Os adolescentes das outras turmas entravam por um portão lateral com acesso ao prédio adjacente.
— Escuta, Michael... — Henrique se abaixou apoiando um dos joelhos no chão, mantendo contato visual com o sobrinho — Você está começando uma nova etapa hoje e o que vai fazer dentro das paredes desse prédio aí — e ele apontou para a escola degraus acima — vai determinar o que vai querer ser para o resto da sua vida inteira.
Os olhos do menino foram do rosto do tio para as paredes levemente assustadoras sobre a sua cabeça. O que havia além delas lhe era misterioso e aquilo o intimidava.
— Eu também estudei aí, assim como a tia Carina e o seu pai. Tenho certeza que ele gostaria muito de estar aqui com você nesse dia especial, mas infelizmente, hoje ele tinha que trabalhar bem cedo. — Michael ficou levemente desapontado. — Mas eu estou aqui. Isso não é legal?
Ele balançou a cabeça para cima e para baixo, com um arremedo de sorriso se formando no rosto.
— Agora você vai ter novas responsabilidades em sua vida além de brincar com seus bonecos articulados, mas isso não significa que as coisas vão se tornar mais chatas. Pelo contrário! Estudar e fazer novos amigos também pode ser bastante divertido.
Ele lançou um olhar para as outras crianças que subiam barulhentas em direção ao portão. Uma mulher sorridente e corpulenta recepcionava os recém-chegados perto da entrada. Henrique reconheceu de longe a dona Soraia, a mesma inspetora de alunos que estava ali há quase dez anos atrás. Ela agora tinha cabelos mais grisalhos e havia ganhado alguns quilos extras, mas tinha a mesma cara risonha de sempre.
— Você vai estar aqui quando eu sair?
Havia certa carência no tom de voz do menino. Apesar de esperto e comunicativo, Michael não estava acostumado a se ausentar do seio familiar, da casa onde morava com o pai, a mãe e a irmã recém-nascida no centro de São Francisco.
— Com certeza.
Com a resposta afirmativa do tio, o garoto de sete anos ajeitou a mochila nas costas e os dois caminharam juntos até o portão. Henrique cumprimentou Soraia que sorriu ao reconhecê-lo, e pouco depois, Michael estava se juntando à turma do primeiro ano a formar uma fila junto ao pátio principal da escola. O menino acenou para o tio e caminhou a passos lentos até o local onde aguardaria para seguir rumo à sala de aula. Por um momento, o rapaz se lembrou com carinho de todas as emoções que vivera em seu primeiro dia naquela mesma escola e também de todas as agruras que se seguiram depois.
Um sinal soou pela escola alertando os alunos de que as aulas do dia iam começar. As crianças e os adolescentes debandaram lentamente para as suas respectivas classes nos três andares do Belém. Henrique se caminhou até o corredor da diretoria com certa nostalgia no olhar e parou diante da sala dos professores para dar uma olhada através da janela de vidro.
O mural na parede lateral lhe trazia boas lembranças de seu período como aluno. Ele reconheceu uma foto da sua antiga turma da sétima série tirada pela professora Neusa de Ciências. Na imagem, ele e seus amigos da época apareciam perfilados, separados por meninos no alto e meninas no degrau abaixo.
Parece que faz uma eternidade desde que tiramos essa foto, pensou, no momento em que a autora da fotografia o reconheceu de dentro da sala que ele via através do vidro e acenou em sua direção.
— Henrique! Que surpresa!
A professora loira de olhos azuis cintilantes o abraçou tão logo o recebeu à porta e pouco depois, o conduziu para dentro. Em torno de uma mesa em formato circular haviam mais três membros do corpo docente e dois deles também lhe eram familiares. A professora Ester de Geografia o cumprimentou de maneira efusiva, mas o professor Claudemir de Educação Física apenas acenou com a sobrancelha esquerda, logo desviando de volta o olhar para a caneca de café que sorvia enquanto lia um jornal. A outra figura era um sujeito gorducho de cabelos crespos, mas Henrique não o conhecia.
— Já ficou com saudades da escola? Não tem nem dois anos que se formou no Ensino Fundamental!
A voz calorosa de Ester preencheu o espaço da sala onde os mestres se reuniam diariamente antes e depois das aulas.
— Na verdade, eu fiquei encarregado de trazer o meu sobrinho para o seu primeiro dia de aula. A essa hora, ele deve estar conhecendo a sua professora e os amiguinhos na sala.
Neusa ofereceu um assento a Henrique junto ao que os professores chamavam internamente de "Távola Redonda", mas ele declinou o convite. Não se sentia merecedor.
— Não quero incomodar. Estou só de passagem.
— Deve ter passado um filme em sua cabeça... — Elucubrou Neusa, olhando fixamente para o rapaz alto em pé diante dela — Há uns dez anos, era você entrando por aquele portão, cheio de sonhos e expectativas na cabeça...
Cheio de medo e com muita dor de barriga, você quer dizer! Pensou ele, em resposta ao que ela havia dito.
— Passou sim — respondeu ele, no entanto —, tentei deixar o garoto tranquilo. O primeiro dia de aula sempre é bastante tenso e como o pai dele não pode estar aqui, eu me prontifiquei a ajudar.
Havia agora um sorriso sincero no rosto de Henrique. Claudemir lhe deu uma olhada enviesada e seu comentário soou com sarcasmo.
— Esperamos que o sobrinho seja mais talentoso nos esportes do que o tio!
Durante anos, Henrique havia sofrido nas aulas de Educação Física procurando se adequar aos exigentes treinamentos físicos conduzidos semanalmente pelo professor, mas jamais conseguira demonstrar qualquer aptidão em nenhum dos esportes praticados no ginásio do Belém Capela. Nesse período, por conta de sua inabilidade, ele e seus grandes amigos de turma, Ricardo Costa e Antônio Rodrigues, tinham sido alvo de chacotas públicas, muitas delas, estimuladas pelo próprio educador junto aos colegas mais hábeis no futebol, basquete ou qualquer outra modalidade que se jogava com uma bola.
— Ele puxou mais ao pai dele que é praticante de esportes...
Havia certo rancor na voz de Henrique e Claudemir deu uma risada levemente irônica, voltando a ler o caderno de esportes do Correio d'Oeste daquela manhã. Uma manchete destacava o sucesso da equipe feminina de vôlei do município que havia chegado às semifinais do campeonato estadual. Pouco depois, o outro professor corpulento arrumou alguns livros sobre a mesa, os colocou sob o braço e se retirou, em silêncio.
— Eu soube que começou a estudar informática na escola técnica do estado, Henrique — comentou Neusa com os olhos brilhantes —, achei a sua cara! Sempre teve talento para a computação e muita facilidade com os números!
Nem tanto, pensou ele, se recordando da dificuldade que tinha nas aulas de Matemática do professor Freixo.
— As aulas na escola técnica são bastante puxadas. Estou precisando redobrar os esforços para dar conta de tudo... Semana que vem, eu volto ao batente.
Ester estava fazendo uma anotação em um post-it. Assim que o colocou no mural interno da sala, se voltou para Henrique.
— E já tem planos para a faculdade? Dependendo da carreira que escolher, quem sabe você possa estar dando aula aqui no Belém Capela daqui a alguns anos?
Deus me livre! Pensou ele, sem coragem de verbalizar aquilo.
— Pretendo seguir a área de informática, professora. Tecnologia da Informação, Análise de Dados...
Claudemir revirou os olhos sem que o notassem. Em seguida, mexeu a página do jornal de maneira ruidosa, ainda sentado à mesa.
— Tenho certeza que vai ser muito bem-sucedido — disse Neusa com um sorriso esperançoso no rosto — você, o Ricardo, o Antônio, a Daniela e a Patrícia sempre foram os melhores alunos da sua turma. Vão ser ótimos profissionais em suas carreiras, tenho muita fé!
A conversa animada com as antigas professoras ainda durou algum tempo dentro da sala dos mestres e serviu para que Henrique rememorasse velhas histórias de sua passagem conturbada por aquele colégio. Embora fosse bastante querido por parte dos educadores que ali lecionavam, o rapaz tinha muitos momentos dolorosos guardados em sua mente, todos vividos para dentro daqueles portões. O nome de Daniela, o primeiro amor de sua vida, citado pela professora de Ciências, era uma daquelas recordações ruins. Sempre que pensava nela, o seu coração ainda pulsava de maneira diferente dentro do peito e ele sentia muitas saudades da garota.
Depois de uma semana, Henrique voltou à sua rotina normal e de segunda à sexta passou a frequentar a escola técnica em São Paulo onde aprendia pela manhã matérias regulares de Ensino Médio e à tarde, recebia aulas com alguns dos melhores especialistas da cidade sobre sistemas informatizados e gerenciamento de dados. Estava agora no segundo ano e os desafios para a tão sonhada carreira de analista de sistemas só aumentavam gradativamente. Até o final do primeiro semestre, ele e a sua turma teriam que desenvolver um projeto avaliativo de programação funcional para um sistema integrado com base de dados e os professores estavam empenhados em deixar seus pupilos afiados para encarar aquele desafio.
— Se eu já não estava conseguindo dormir direito no semestre passado, agora que vou me tornar um verdadeiro zumbi movido à cafeína para dar conta desse projeto!
Desabafou Rafael Nogueira, o principal parceiro de trabalhos escolares de Henrique desde o começo das aulas na escola técnica. O garoto corpulento que usava um par de óculos retangulares era um dos alunos mais extrovertidos da classe. Gostava de fazer piada com tudo e todos durante os intervalos e sempre deixava o clima geralmente sério das aulas um pouco mais agradáveis.
— Adeus vida social!
Lamentou-se a seu lado Alfredo Lima, o outro colega de grupo que com Henrique e Rafael, formava o trio fundamental dos estudos de informática. O garoto tinha os cabelos pretos cortados à máquina e trazia no rosto um sem-número de espinhas. Sofria de acne desde o início da puberdade e fazia tratamento há dois anos para amenizar as bolhas avermelhadas que cresciam em profusão no rosto pardo.
— Que vida social, mané? — Questionou Rafael, debochado, enquanto os três lanchavam no pátio arborizado da escola, à sombra de uma árvore frutífera. — Desde quando jogar videogame até cair os dedos e ler pilhas de revistas em quadrinhos é vida social?
As risadas ecoaram da mesa do trio. Um grupo de meninas conversava de maneira efusiva e barulhenta a poucos metros deles. De onde estava sentado, enquanto comia o seu sanduíche, Henrique estava de olho em uma mocinha de cabelos pretos e olhos levemente puxados entre elas.
— Quadrinho também é cultura. Além disso, é muito comum que textos escritos por Neil Gaiman, Alan Moore e Will Eisner caiam no vestibular.
Alfredo parecia dizer aquilo com bastante propriedade. Rafael sorveu metade do conteúdo da caixinha de suco de uma vez. Encarou o colega por um tempo e em seguida, caiu no riso.
— Você só pode estar de sacanagem! — Henrique o acompanhou com os risos. Na outra mesa, os olhos da menina que ele encarava se voltaram para a sua direção e os dois trocaram sorrisos tímidos. — Pela sua lógica — continuou Rafael —, todo mundo agora tem que parar de ler Machado de Assis, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos para o vestibular e perder tempo com esses gringos aí que você citou? Só na sua cabeça doentia!
A voz exaltada de Rafael chamou a atenção das garotas na outra mesa. Alfredo tentava conter o riso ainda querendo provar o seu ponto e como que para provocar Rafael, aproveitou que estavam de olho neles para iniciar um diálogo com uma das ocupantes da mesa vizinha.
— Aí, Denise! Eu trouxe aquele quadrinho que você me pediu.
Denise era a menor das quatro amigas. Media menos de um metro e sessenta, usava um par de óculos de armação cor-de-rosa no rosto, tinha cabelos crespos presos num coque e possuía o quadril largo. Pareceu animada com o chamado de Alfredo e se levantou, caminhando até a mesa dos garotos.
— Estou louca para ler! Onde está?
Alfredo aproveitou o momento para lançar um olhar desafiador para Rafael que se voltou para ele um instante, incrédulo. Henrique também acompanhou o momento em que o de cabelos pretos se abaixou e tirou de dentro da mochila pousada no chão um encadernado de capa dura.
— Edição comemorativa dos sessenta anos do Defensor da Galáxia com quinhentas páginas. Você vai adorar!
Denise segurou o livro como se estivesse recebendo em mãos o Santo Graal das edições de quadrinhos e arregalou os olhos ao encarar a capa detalhadamente desenhada por um dos artistas britânicos mais conceituados do cenário de graphic novels.
— Uau! Isso é muito maneiro! — A menina estava genuinamente contente com o empréstimo. — Vou começar a ler hoje mesmo, assim que chegar em casa.
Rafael enfiou o canudo do suco na boca e enquanto sorvia o restante da bebida na caixinha, viu uma Denise agradecida dar um beijo no rosto de Alfredo e voltar a se juntar às amigas na outra mesa levando o quadrinho. Henrique aproveitou para trocar mais olhares com a de cabelos escuros.
— E aí, mané? Qual era mesmo a sua opinião preconceituosa quanto as revistas em quadrinhos?
Havia um ar de incontestável confiança no rosto de Alfredo e Rafael foi obrigado a reconhecer:
— Então quer dizer que, além de ser tema de questões do vestibular, as histórias em quadrinhos também servem para os nerds se darem bem com as gatinhas?
Alfredo riu e enquanto arqueava quase perdendo o fôlego por se divertir às custas do colega, as meninas voltaram a tagarelar na mesa vizinha. O encadernado do Defensor da Galáxia agora estava sendo folheado por Kátia, a garota de pele ébano e sorriso largo no rosto.
— Hoje em dia, as garotas também se interessam por essas coisas que sempre foram consideradas "de meninos" — disse Henrique, sorridente após terminar o seu croissant de frango —, não é porque a Denise se interessou pela leitura do Defensor da Galáxia que ela está dando mole para o Alfredo!
O garoto ainda tinha confiança estampada no rosto espinhento.
— Está dizendo isso porque está morrendo de inveja do beijinho que ela me deu!
— Não, não estou. Fico feliz pelos meus amigos!
E Henrique deu uma palmada no ombro do outro que ainda ria entusiasmado.
— Olha lá! — Alertou Rafael. — A Thais também está dando uma folheada no seu gibi!
E os olhos de Henrique e Alfredo se voltaram para a mesa das meninas. A garota de olhar monólito parecia curiosa pelo conteúdo do livro.
— Eu estou dizendo, caras — comentou Alfredo, cheio de si —, as nossas amigas de turma são tão nerds quanto a gente. Devíamos estreitar logo o espaço entre os nossos grupos e aumentar o nosso círculo de amizades dentro dessa escola.
Os outros dois concordavam, e algum tempo depois, eles começaram a se preparar para as aulas de algoritmo avançado que teriam aquela tarde.
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