Prólogo
FAZIA UM CALOR AGRADÁVEL naquele começo de tarde e eu estava andando do lado da calçada tentando acompanhar os passos largos do meu pai. Pessoas muito apressadas passavam pela gente esbarrando em mim e, tudo que conseguia ouvir em meio à bagunça da cidade grande eram os pedidos incessantes para que eu não me afastasse dele e prestasse a atenção aonde pisava.
— Aqui está muito movimentado, Henrique. Olha pra frente e não sai de perto de mim.
Eu não era acostumado a sair para muito longe de casa, por isso, sempre que me via em meio à muitas pessoas estranhas, tendia a ficar arredio. Tudo era incrivelmente assustador enquanto eu olhava dali de baixo e, às vezes, eu sentia como se a cidade inteira quisesse me engolir com os seus prédios altos, as fachadas coloridas, os postes a perder de vista e o barulho infernal das buzinas dos carros em meio à estrada.
Naquela tarde, o meu pai tinha me levado para São Paulo a fim de buscar documentos de aquisição da nossa casa nova com a imobiliária. Eu não sabia o que aquilo significava e nem porque ele havia me levado junto, mas na volta do tal lugar, ele parou em um bar de esquina e me comprou uma coxinha e uma lata de Pepsi gelada para que eu tomasse. Foi a primeira vez que experimentei ambos.
Ainda na cidade grande e em meio às pessoas agitadas que passavam por nós, o meu pai segurou o meu ombro e me fez seguir em direção a uma banca de jornal que antecedia a entrada da estação de trem onde retornaríamos para casa. Eu tinha passado mal ao longo da viagem para São Paulo e achava que ele estava tentando me compensar pelo constrangimento que eu havia causado ao vomitar no chão do vagão na frente de todos os outros passageiros.
Quando paramos diante da banca, o meu pai pediu ao homem atrás do balcão que ele lhe desse um exemplar de um jornal esportivo que sempre lia às segundas-feiras e, enquanto isso, os meus olhos acabaram se fixando numa das prateleiras da banca, bem onde as revistas em quadrinhos ficavam expostas. Havia uma variedade muito grande delas e em muitos tamanhos diferentes, mas apenas uma me chamava particularmente a atenção.
— Quanto é, moço? — O meu pai já estava com a carteira aberta e o jornal embaixo do braço. O homem corpulento respondeu à sua pergunta e o seu Jorge Harone logo percebeu que eu estava olhando quase hipnotizado para a edição noventa e quatro do Defensor da Galáxia que havia sido posicionada em destaque ao fundo da banca, logo entre as revistas do Homem-Gralha e do Hiperman.
— Você quer levar uma revistinha pra ler, filho?
Eu não era de pedir nada aos meus pais quando saíamos para a rua e nem achava que eles fossem me comprar se eu o fizesse. Eu os ouvia dizer quase sempre sobre as condições difíceis em que a nossa família vivia e sabia que não tinha o direito de exigir que os dois fizessem as minhas vontades de criança. Quando o meu pai fez aquela pergunta, no entanto, eu o olhei com a cara alarmada e fiz que sim com a cabeça.
— E qual delas você quer?
Eu não titubeei. Apontei logo para a capa da edição onde o Defensor da Galáxia aparecia voando de cima de uma nave espacial pronto a entrar numa luta contra o General Kron.
— Me vê aquela ali com o desenho amarelo, moço. Eu vou levar junto com o jornal.
O homem da banca acenou com a cabeça e, em seguida, puxou da grade um dos volumes dos vários iguais que ele tinha em exposição. Caminhou com a sua barriga grande em minha direção e me estendeu a edição que eu tinha pedido. O meu sorriso se abriu instantaneamente no meu rosto enquanto eu a segurava em mãos.
— São dois reais e cinquenta centavos.
Logo que o meu pai acertou os valores com o dono da banca, nós dois caminhamos juntos em direção à estação de trem. Eu tinha ficado receoso de embarcar novamente naquele veículo apertado e cheio de pessoas, mas a estratégia do meu pai de me distrair com a revistinha já havia funcionado. Eu mal podia esperar para folhear aquela edição noventa e quatro, e quase nem estava mais me lembrando que havia passado mal a caminho da cidade.
Minutos depois de passarmos pelas catracas e de descermos alguns lances de escada rumo à plataforma, o meu pai nos conseguiu um lugar junto a um banco para que esperássemos o próximo trem e eu tratei de começar a ler o gibi. Eu ainda não sabia juntar as letras muito bem como a minha mãe havia me ensinado, mas já conseguia entender algumas frases mais simples. Comecei a passar as páginas agora totalmente alheio à movimentação ao meu redor e só percebi que o meu pai estava sorrindo quando ele apontou para um quadro em específico e me perguntou, fingindo interesse:
— E quem é essa aqui com cara de gato?
Eu já conhecia a maioria dos personagens do universo do Defensor da Galáxia e nem esperei ele perguntar uma segunda vez para responder:
— É a Mi'Haul, pai. Ela é a mascote da tripulação do Defensor da Galáxia. Ela é uma gata do espaço!
Ele riu como se estivesse entendendo tudo e, em seguida, apontou para outro desenho onde uma moça de cabelos escuros aparecia segurando um canhão de prótons.
— E essa aqui que parece a sua tia Alice? Quem é ela?
Eu ri depois de franzir o nariz. A Patrulheira Sh'Rann tinha a pele azul e eu não a achava nada parecida com a irmã da minha mãe.
— Ela não parece não! — E nós voltamos a rir num dos momentos mais leves de toda a vida entre nós dois.
Um tempo antes de o trem estacionar na plataforma, o meu pai voltou a ficar sisudo e me tirou a atenção do meu gibi para conversar comigo. Começou a falar sobre responsabilidades futuras, disse que dali a alguns anos eu teria que saber escolher bem a minha profissão, falou de escola, de computadores, mas logo mudou o rumo do assunto. Eu não entendia a razão pela qual ele estava falando aquelas coisas comigo em meio àquela estação, mas quando segurou o meu ombro mais uma vez e me fez encará-lo, eu fiz de tudo para prestar a atenção.
— Um dia você vai crescer, Henrique e vai ter idade para entender que o mundo não é tão preto e branco como nas revistas em quadrinhos. O mocinho nem sempre vence o bandido. Na verdade, às vezes, o bandido nem mesmo é mau. São as escolhas que fazemos que nos conduzem a caminhos obscuros muitas das vezes. Se fosse na vida real, você ia acabar descobrindo que o General Tron não é tão ruim quanto o Defensor da Galáxia pensa. Ele só é mal compreendido!
Eu ri e o corrigi na mesma hora.
— É General Kron, pai!
Ele também riu por um instante, mas logo voltou a me fitar daquele seu jeito gelado, meio sem expressão.
— O que eu quero dizer é que você vai acabar aprendendo que "bem e mal" são conceitos um tanto complexos. Você não tem que se apegar a isso pra sempre. Leia os seus gibis, mas não se esqueça que no mundo de verdade, as pessoas não são totalmente boas e nem totalmente más. Existe uma escala de cinza entre ambos e é justamente nela que estamos todos nós, incluindo os Harone.
Eu não tinha entendido muito daquele assunto estranho, mas pouco depois, o meu pai mandou que eu o segurasse firme para que nós embarcássemos no trem que tinha acabado de chegar. Aos empurrões das outras pessoas que também adentravam o vagão, nós dois acabamos espremidos bem ao meio de uma multidão e foi uma luta para que o seu Jorge alcançasse uma das barras de apoio, no alto.
Durante toda a viagem, a fim de me fazer esquecer do enjoo que eu sentia preso em locais fechados e pela movimentação incessante das rodas sobre os trilhos, o meu pai incentivou que eu continuasse a ler a minha revista para me distrair e assim eu o fiz até que, enfim, chegássemos a São Francisco d'Oeste, o nosso lar.
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