Capítulo 9 - Alçando voo

NÃO FORA DIFÍCIL seguir um dos garotos suspeitos de ajudar a Corporação na saída da escola, mas para isso, eu tive que ocultar o meu rosto na sombra da aba de um boné, andar vagarosamente e fazer paradas estratégicas atrás dos postes de concreto fixados nas calçadas pelo caminho.

Arthur já estava no último ano do fundamental e tinha repetido duas vezes, assim como o Claudio, que era o aluno mais velho da nossa turma. Ele morava bem próximo do Bairro do Encanto — o lugar onde os Harone tinham se estabelecido desde a sua chegada a São Francisco d'Oeste — e eu já o tinha visto arrumar encrenca com o dono de um posto de gasolina local para usar as bombas de abastecimento de graça.

Embora menor de idade, Arthur dirigia um Volkswagen Brasília velho e barulhento pelo bairro e, há muito tempo, se dizia que ele cometia pequenos delitos na vizinhança. Os tais delitos nunca tinham sido comprovados, mas naquele início de noite, após a escola, eu o segui até bem perto do nosso bairro e o vi conversando com dois sujeitos suspeitos em um sedan preto numa esquina, saindo em seguida com um pacote marrom entregue a ele embaixo do braço.

A conversa na hora do intervalo falava sobre garotos que faziam o serviço de "aviãozinho" do crime em troca de algumas centenas de reais. Eles entregavam drogas e armas para alvos específicos em locais sigilosos da cidade e, às vezes, sem grande discrição. Naquela noite, eu pretendia descobrir os segredos da criminalidade de São Francisco.

Na primeira vez que experimentei o traje negro de borracha o meu estômago foi tomado por um frio instantâneo, seguido de uma exaltação que me deixou inquieto. Justo, apesar dos preenchimentos musculares de espuma, o uniforme era bastante abafado, além de um pouco claustrofóbico.

Em sua fabricação, eu tinha procurado ajustar para o meu número de manequim sem que eu parecesse um espeto de pau chamuscado e amarrado dentro de um saco de borracha, mas era exatamente assim que eu estava me sentindo. Quando coloquei o capuz, mesmo com a abertura entre o nariz e o queixo, era difícil respirar com ele, e as lentes brancas bloqueavam completamente a minha visão periférica.

Quando fixei a capa nas costas, testei o comando magnético que prendia as pontas das "asas" aos meus braceletes metálicos, deixando a capa num formato de asa delta e aquilo funcionou a contento. O próximo empecilho foi arranjar um jeito de carregar a corda e o gancho para escalada com o uniforme e decidi que precisava projetar uma espécie de cinturão para transportar alguns gadgets para as missões. Aquilo ficaria para depois.

— Que eu não falhe logo na minha primeira missão! — Balbuciei, segundos antes de sair da garagem e seguir em direção onde a aeronave de combate estava guardada. Aquele também seria o meu primeiro voo nela.

Foi bastante difícil atravessar os poucos quilômetros que separavam a minha casa do descampado onde o hangar tinha ficado escondido todo aquele tempo sem chamar muito a atenção da vizinhança. Os cães reagiam imediatamente de dentro dos seus portões quando ouviam o farfalhar da minha capa e foi extremamente trabalhoso evitar os seus latidos de alerta.

Eu estava me sentindo ridículo vestindo aquela fantasia justa a correr pela rua e me esgueirando no escuro, mas tão logo me posicionei no assento daquele jato, eu senti uma carga de adrenalina carregar cada célula do meu corpo, me dando uma sensação de poder indescritível.

Eu havia estudado o manual do que eu chamava de A.S.A – Aeronave de Sobrevoo e Assalto – quase à exaustão. Tinha a noção exata do estrago que aquela arma alada podia fazer caso eu errasse o seu manuseio, por isso, estava temeroso quando toquei os manetes do manche pela primeira vez.

Tão logo a carapaça transparente do cockpit foi selada sobre a minha cabeça, um cinto de segurança em formato de "X" se fechou em meu peito automaticamente. O motor começou a sibilar na parte de trás da fuselagem fazendo toda a estrutura estremecer. Eu senti uma pressão forte em meu ventre sentado no banco do piloto, além de uma vontade incontrolável de gritar de emoção.

A nave começou a emergir verticalmente do hangar levantando poeira com a potência das duas turbinas traseiras e das duas inferiores. Um LED verde piscou incessante no painel principal indicando que eu acionasse a camuflagem da fuselagem por meio de um toque na tela de cristal líquido à minha frente. O avião já estava planando a cinco metros do chão quando as comportas do hangar começaram a retornar para o lugar de origem lá embaixo, se fechando.

As minhas mãos tremiam no comando do manche com a certeza absoluta que nenhum moleque da minha idade já tinha passado por aquilo alguma vez na vida. Era difícil manter o foco de pensamento no comando de uma máquina de guerra de mais de trinta toneladas, mas mesmo apesar de todo o meu deslumbramento, eu procurei me manter firme na missão de espionar e seguir Arthur, o garoto que, naquela noite, serviria como o aviãozinho da Corporação.

As primeiras duas horas de espionagem foram tão infrutíferas quanto maçantes, apesar do conforto da minha cabine. Mantive a ASA numa altura segura, entre as nuvens noturnas e a poluição do bairro, enquanto as câmeras de movimento acopladas na base do veículo mostravam imagens em tempo real do que estava acontecendo lá embaixo em meu monitor. Silenciosa como um falcão a espreitar a presa, a minha aeronave mantinha-se no ar com o mínimo de gasto de energia possível e a sua camuflagem a mantinha invisível a olho nu. Embora as ruas lá embaixo estivessem tranquilas, mesmo que alguém ousasse olhar para o alto entre as nuvens, veria somente as poucas estrelas que brilhavam no céu sujo da periferia. Eu continuava incólume.

Arthur esperou a meia-noite para sair de casa no Volkswagen enferrujado que dirigia. Ele teve o cuidado de tirar o carro da garagem sem ligar o seu motor para não acordar a família e olhou para os lados como se receasse ser visto àquela hora em atitudes suspeitas. Soltando o freio de mão, ele manobrou virando o veículo de frente para a rua onde morava, já planejando dirigir pela estrada que desembocava à frente. Tão logo fechou o portão, virou a chave na ignição, abriu o vidro do lado do motorista girando a manivela fixada à porta, colocou o cinto de segurança e só então partiu em velocidade.

O motor ruidoso poluiu sonoramente o bairro silencioso e, do alto, passei a segui-lo ajustando habilmente as duas câmeras de bordo ampliando o seu zoom com um movimento de pinça invertido com meus dedos na tela de cristal. A sensação da ASA deslizando pelos céus era como estar em um carrinho de montanha russa sem a pressão do vento em meu rosto. A pressurização e a climatização da cabine criavam um ambiente aconchegante e seguro de viagem, sem falar que o comando era como um jogo de videogame intuitivo e simples. Não tinha como errar. Quem tinha desenvolvido aquele avião era um gênio!

O centro de São Francisco me fez redobrar a minha atenção atrás do manche já que viadutos e arranha-céus passavam a emergir do chão repentinamente conforme nos afastávamos da periferia da cidade. Do alto, notei que Arthur estacionou a Brasília numa esquina escura de dois becos e seguiu a pé dali até o que devia ser o seu ponto de encontro.

A ASA localizou com o seu computador de bordo um ponto seguro de pouso sobre um dos maiores prédios da cidade, a sede da Xeque-Mate, a empresa de tecnologia em engenharia civil e urbana. O dono do prédio era o milionário Edmundo Bispo, um magnata do petróleo que agora trabalhava com empreiteiras e construtoras e achei que ele não se incomodaria de emprestar o seu heliponto por algumas horas.

Pousei a ASA e desci pela escada da cabine, me colocando lá de cima à espreita de Arthur. A torre da Xeque-Mate era alta demais para que eu pudesse ver ou ouvir o que quer que iria acontecer na esquina onde o garoto de dezesseis anos da minha escola aguardava o seu cliente, então, decidi me mover para o prédio ao lado. A distância entre eles era maior do que eu imaginava e uma insegurança me tomou na hora de arremessar o gancho da minha corda para o outro lado.

— Se eu errar o alvo, eu não terei uma segunda chance de arremessar a corda.

Aquele contratempo me fez entender que carregar cordas para as missões estava fora de cogitação e que eu precisava de um meio mais eficaz de mirar um alvo e atirar um gancho de escalada.

— Preciso encontrar um arpão nos projetos do computador.

Enquanto eu divagava sobre como ia alcançar o outro prédio que estava há quase vinte metros do telhado da Xeque-Mate, lá embaixo, uma movimentação suspeita na esquina me fez perceber que eu ia perder o encontro entre Arthur e o receptor do seu pacote se continuasse naquele impasse. Deixando a corda de lado, resolvi ousar em meu plano de atravessar o espaço vazio entre os edifícios. Abrindo os braços e acionando um comando magnético em minhas luvas, senti as pontas da minha capa se prenderem aos braceletes metálicos.

— Eu só posso estar ficando maluco!

Eu me joguei do alto da sede da Xeque-Mate em direção ao outro prédio menor em frente, porém, percebi tarde demais que eu estava confiando em excesso naquela tecnologia nunca antes testada. O couro da capa inflou-se em resistência ao ar funcionando como a asa de um pássaro, mas a trajetória do vento forte que soprava naquela altura mudou de súbito e me jogou em outra direção. Eu não devia pesar muito mais do que uns cinquenta quilos naquela época e vi o meu corpo magrelo ser atirado contra a parede do próprio Xeque-Mate, a uns quarenta quilômetros por hora. Após o choque, eu meio que perdi a noção de distância e altura e, então, comecei a me debater, procurando voltar a posição inicial e tentando fazer a capa voltar a funcionar como uma asa delta.

— Ai, droga! 

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