Capítulo 50 - Sobre o inferno

O CALOR DENTRO DA TERMELÉTRICA estava forte demais e eu já começava a sentir sintomas de fadiga. Calculei mal o salto pela fenda e, por pouco, não despenquei sobre uma turbina que girava a todo vapor lá embaixo. Sil não estava mais respondendo pelo rádio e eu alcancei a plataforma onde Thunder lutava com os dois homens blindados a tempo de vê-lo se livrar de um deles com um empurrão.

O grito descendente do soldado ecoou por um breve instante, mas não foi possível ver onde ele caiu. Thunder ejetou as lâminas em seu pulso um segundo tarde demais para evitar que um soco violento o atingisse na cara, deslocando a sua máscara. A temperatura elevada daquele lugar devia estar cozinhando o seu rosto contra aquele material metálico e se aproveitando da sua distração enquanto ele procurava arrumar a máscara, o seu oponente lhe deu uma nova pancada com o cabo do fuzil, o desnorteando.

Thunder estava impossibilitado de se esquivar com a sua perna machucada e um terceiro golpe o atingiu de cima para baixo, o deixando inconsciente sobre a plataforma. Eu vi a máscara do meu amigo voar de seu rosto e se precipitar para uma verdadeira fornalha abaixo dos dois. Foi então que entrei em ação, já próximo o suficiente para chamar a atenção do seu adversário.

— EI, IMBECIL!

Sobressaltado por meu grito, o homem blindado agarrou o braço de Thunder no mesmo instante e encostou o cano da sua arma na cabeça dele. Depois, olhou em minha direção.

— Não se aproxima ou o seu amigo aqui já era. — Dava para ver as chamas refletindo na viseira espelhada do soldado. A minha pulsação estava acelerada. — É melhor você se render, se não quiser que eu exploda a cabeça dele!

A passarela metálica tremeu logo que o núcleo do motor de combustão interna atingiu a sua temperatura de fusão. A caldeira expelia verdadeiros gêiseres de um vapor escaldante dentro da termelétrica, aumentando a sua temperatura a níveis insuportáveis. O sistema de refrigeração do meu traje estava no nível máximo e não estava dando conta daquele calor infernal. Quando o núcleo rompesse, a explosão do motor varreria aquele bairro. O tempo agora era curto.

— Já disse! Se renda ou eu acabo com o seu amigo!

A voz eletrônica por dentro do capacete do soldado soou nervosa do outro lado da ponte, o suficiente para que eu interrompesse o meu avanço na passarela e começasse a erguer os meus braços lentamente. Mesmo com os filtros de ar internos em meu capuz, era difícil respirar. O ar quente estalava ao nosso redor. Brasas esvoaçavam por todos os lados e o ruído do rompimento gradativo da caldeira nos obrigava a berrar para nos comunicar.

— Tudo bem. Eu não vou tentar nada. Apenas aponte a arma para mim e deixe o meu amigo aí no chão.

Thunderwing estava desmaiado sem a sua máscara protetora e sendo soerguido do chão por seu braço. O cano da AK-47 estava encostado em sua têmpora. O dedo do soldado não saía do gatilho um só segundo. Qualquer coisa que eu tentasse jamais seria rápido o bastante para evitar a execução à queima-roupa de Ricardo. Cada minuto que passava, aumentava as chances de a termelétrica ir para os ares acabando com todos nós no processo. Espião Negro e Ferina não tinham como ajudar, pois estavam ocupados demais. As paredes do local agora tremiam ante a força do motor prestes a colapsar. Estávamos a uns dez metros do inferno e ele estava nos alcançando ali em cima.

— Você venceu. Está no comando. Apenas aponte a arma para mim. Eu quero me render. — Eu precisava continuar chamando a sua atenção para que ele parasse de apontar a arma para o Ricardo. O fogo ardia cada vez mais intenso abaixo de nós. Eu só tinha uma chance. — Eu não tenho para onde fugir mais. Está tudo pegando fogo.

— Cala essa boca! Ande devagar até aqui com os braços para cima.

A ordem do soldado foi interrompida quando um tremor incrivelmente forte sacudiu a plataforma onde estávamos e fez perder o equilíbrio.

— Eu detonei as kunais. O motor afundou no nível inferior, mas ele explodiu. Ele explodiu!

O berro de Antônio no rádio auricular me estremeceu e, logo em seguida, senti toda a estrutura da termelétrica ruir. Rachaduras surgiram instantaneamente nas paredes ao nosso redor e no teto. Um jato incandescente de um líquido alaranjado partiu lá de baixo encharcando o meu traje. Foi naquela fração de segundos que eu agi.

O disco partiu da minha mão o mais rápido que consegui e, mesmo girando numa velocidade incrível, o dedo do soldado apertou o gatilho. Ele estava desequilibrado sobre a ponte, mas o cano do fuzil ainda estava na têmpora do meu amigo desacordado. Um golpe de sorte absurdo salvou a vida de Ricardo quando a arma engasgou no primeiro disparo e o meu disco atingiu o meio do capacete do homem, o fazendo perder o apoio.

Um trio de lâminas, de repente, atravessou o antebraço do soldado e o obrigou a largar a AK. Enquanto ele urrava de dor vendo o seu sangue esguichar pela abertura feita na armadura quase indestrutível, Thunder retraiu as garras do seu pulso e viu seu adversário rolar por cima do corrimão da passarela e despencar para a morte escaldante. Toda a instalação da termelétrica começou a desmoronar e, enquanto blocos gigantes de concreto despencavam do alto, Thunder e eu lançamos os nossos arpéus e voamos daquela ponte. O meu coração ainda parecia saltar pela boca depois de toda aquela tensão e havia gratidão nos olhos de Ricardo ao meu lado. Tinha sido por pouco.

Encontramos o Espião Negro perto da saída da usina e firmamos os pés no chão segundos antes de todo o teto do lugar começar a soterrar a sua própria estrutura. Uma avalanche de fuligem e poeira nos engolfou antes que conseguíssemos ver a luz do sol lá fora e abraçados, dando força um ao outro, não paramos de correr um só instante. Em meio a falta total de visibilidade à nossa frente, acabamos perdendo o equilíbrio ao tropeçarmos em escombros e só voltamos a abrir os olhos muito tempo depois.

Meu ouvido zunia e os meus músculos doíam quando percebi um batalhão de policiais a mirarem as suas armas para a gente a alguns metros de onde antes era a usina. Eles gritavam alguma coisa em nossa direção que os meus tímpanos não eram capazes de distinguir e, do chão, vi o momento em que uma silhueta esguia num traje brilhante se colocou entre eles e nós três, pedindo que não atirassem. Estava tudo acabado.

Ferina ajudava com os ferimentos de Thunderwing com ele apoiado sobre o capô de umas das muitas viaturas estacionadas diante do que restara da usina termelétrica. A fim de manter a sua identidade ainda secreta, ele tinha enrolado uma camiseta velha em volta do rosto, enquanto dezenas de policiais efetuavam as últimas prisões dos sobreviventes do bando de Edmundo Bispo.

O Espião Negro e eu analisávamos os danos na ASA a alguns metros de toda aquela movimentação. Era incrível como a nave quase nada tinha sofrido após ser atingida por um míssil com a potência de destruir uma rua inteira.

— Mesmo com o seu motor desligado, a ASA parece possuir algum tipo de sistema de defesa que impede ataques aéreos. — elucubrava Espião no interior da cabine. — Algum radar interno da nave deve ter rastreado o míssil segundos antes de ele atingir a sua fuselagem e ativou um campo de força que absorveu a maior parte do impacto.

O terreno ao redor do avião estava totalmente destruído. Ainda havia focos de incêndio causados pela explosão do míssil em volta, mas a ASA só tinha sofrido arranhões leves na pintura.

— Seja lá quem tenha desenvolvido esse jato, parece que o cara era um gênio!

Eu estava na lateral da nave ainda tentando encontrar alguma avaria quando percebi uma movimentação perto de nós dois. A policial Regiane Loyola vinha caminhando ao lado de um outro oficial fardado em nossa direção e, mais atrás, a Ferina apoiava o braço de Thunderwing em seu ombro para ajudá-lo a andar lentamente.

— Vocês fizeram um estrago bem grande lá atrás. — E a moça de pele parda apontou com o polegar em direção à usina arrasada.

— Vocês sabem que a gente devia prender os quatro por essa confusão toda, não sabem? — perguntou o homem negro de nariz comprido e cabelos crespos ao lado de Regiane. Eu hesitei em responder.

— O oficial Pablo aqui tem razão. — E ela apontou para o colega. — Num dia comum, eu estaria carregando todos vocês para o xilindró junto dos caras que vocês nos ajudaram a prender na termelétrica, mas hoje não é um dia comum.

— Vai nos deixar ir embora, policial Loyola? — lhe indagou o Espião Negro.

— Para todos os efeitos, nós recebemos uma ligação anônima que nos mandou vasculhar o subterrâneo do CSU e descobrir os planos da Corporação. Quando chegamos ao local, a usina já tinha sido destruída acidentalmente por uma falha no sistema elétrico. Eu não vi ninguém fantasiado com roupa de pássaro andando por aqui. Você viu, Pablo? — indagou a moça ao homem ao seu lado. Ela tinha a voz carregada de ironia.

— Não vi nadinha! — respondeu ele, também em tom irônico.

Eu estava muito grato por Regiane querer ajudar a acobertar a nossa participação no caso que derrubou a Corporação, mas eu ainda precisava saber:

— Vocês conseguiram prender o Edmundo Bispo?

Os dois policiais se entreolharam e a resposta veio imediata da boca dela:

— Ele conseguiu fugir — Senti como se uma mão congelada tivesse atingido o meu estômago naquele momento. —, mas não foi muito longe.

— Como assim? Onde ele está? — questionou Antônio.

— Morto. — respondeu Pablo. — Enquanto cercávamos a área em frente à usina para prender todos os capangas que ele tinha trazido pra cá a fim de matar vocês, o filho da mãe deu um jeito de escapar por uma passagem subterrânea dentro de uma van.

— Ele ia usar a rede de túneis que a Corporação tinha criado embaixo da cidade para escapar, mas uma das saídas acabou desmoronando sobre o veículo quando o motor de combustão explodiu dentro do buraco que o do capacete aí fez. — E Regiane apontou para Espião Negro. — A reação em cadeia da explosão acabou causando um tremor gigantesco no entorno da região e o abalo acabou soterrando o Bispo e mais dois dos seus capangas. Os nossos homens encontraram a van destruída a alguns quilômetros daqui.

Tinha mesmo acabado. Thunderwing e Ferina estavam próximos o suficiente agora para ouvir o restante.

— Vocês conseguiram desbaratar uma das organizações secretas mais perversas da qual ouvi falar e a polícia nem tem como agradecer de forma decente. — O tom de Regiane agora era ameno. — Pablo e eu estávamos praticamente imobilizados dentro da delegacia de São Francisco d'Oeste sob o comando de Romero Assis. A gente não conseguia fazer nada com aquele cretino sentado na cadeira de delegado. Se não fossem vocês deixando aqueles presentinhos embalados nas cenas dos crimes com os bilhetes endereçados a mim, nós jamais imaginaríamos que algo tão grandioso estava acontecendo.

— Nós sabíamos que a cidade estava mergulhada fundo na criminalidade e que algo estranho acontecia por essas bandas. Só não imaginávamos que era tão estranho assim! — Confessou o policial Pablo. — Nós pensávamos que os grandes inimigos da cidade eram o Antônio Maranelli e o Gerônimo Falcão. Nunca tínhamos desconfiado de Edmundo Bispo.

Silmara se aproximou de Regiane e lhe estendeu uma das mãos.

— Obrigada por acreditar na gente, oficial. Que bom que não precisei bater em você pra isso! — debochou ela.

— Você é mesmo atrevida, magricela! — Rosnou Regiane, pouco antes de apertar a mão estendida da garota. — Mas agradeço por vocês terem confiado em mim também. No meio de tanta gente corrupta, não deve ter sido fácil saber quem era de confiança naquela delegacia.

Nós começamos a nos preparar para voar de volta para casa e, com um pouco de esforço, o Thunder conseguiu entrar na cabine da ASA. Os três se espremeram no banco traseiro do aeroplano e eu já ia fechar o cockpit, quando a voz de Regiane soou lá de baixo:

— Saiam um pouco de cena, meninos. Vocês agora serão perseguidos pela mídia e acredito que a publicidade não vai fazer nada bem para o trabalho que vocês executam. — Ela piscou um dos olhos e, em seguida, colocou um par de óculos sobre o nariz redondo. — Ah... E obrigada mais uma vez!

Eu acionei as turbinas da ASA e ouvir o ronco daquele motor poderoso mais uma vez revigorou as minhas energias. O cockpit se selou sobre as nossas cabeças e, com um aceno, eu me despedi dos dois policiais.

Eu não sabia o que o futuro reservava para o Pássaro Noturno, mas eu tinha certeza que se ele continuasse na ativa, a Regiane e o Pablo seriam ótimos parceiros na luta contra o crime. O trem de pouso já tinha se recolhido e a nave planava a onze metros do chão acidentado enquanto eu manobrava. Um aglomerado de curiosos tinha se juntado nas ruas do Bairro dos Laranjais lá embaixo e pescoços se esticavam para fora das janelas das casas da Comunidade da Boa Vista para olhar a ASA levantando voo. No banco de trás, sentada entre os dois e já sem a sua máscara, a Silmara envolveu os seus ombros com os seus braços e os apertou. Estava contente.

— Toca pra casa, piloto. Nós temos que comemorar essa vitória!

Os dois reclamaram de dor com o abraço envolvente e caloroso, mas era óbvio que eles também estavam contentes e aliviados que tudo tinha acabado bem. Sil tinha razão. Aquilo valia uma comemoração.


Nota do autor: Toda a saga "Pássaro Noturno" de Rod Rodman é um trabalho de uma vida toda e houve muita dedicação na construção desse universo. Se você chegou até aqui, não esqueça de votar no capítulo e comentar o que está achando da história. A sua opinião é muito importante para o autor. NAMASTE!  

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