Capítulo 42 - Rei em xeque

A EDIÇÃO ESPECIAL de domingo do jornal A Gazeta daquele primeiro de julho foi histórica e, pela primeira vez em muitos anos, o número de exemplares vendidos superou aos dos concorrentes A Hora do Oeste e Correio d'Oeste.

Com letras garrafais vermelhas e uma foto do magnata Edmundo Bispo ao lado, a manchete de capa intitulada "A QUEDA DE UM MITO" chamava a atenção de quem passava pelas bancas. A matéria assinada por Alex Batista e autorizada por seu editor-chefe, Afonso Pacheco, deixava pouco a se especular sobre a falta de caráter do milionário empresário, detalhando em quase quatro páginas o seu plano megalomaníaco de atingir as fontes elétricas do país e de começar a exploração de petróleo em São Francisco d'Oeste às custas de uma área de preservação ecológica.

Com imagens de cópias de documentos assinados por ele, o furo jornalístico ainda expunha o velho Vicenzo Mateo, um dos patriarcas da principal família da cidade, como o grande cúmplice de Bispo por trás das queimadas criminosas na floresta da Alameda dos Cajarás ocorridas no último mês. O velho Mateo era um notório engenheiro de petróleo e tinha continuado o trabalho do seu pai, um dos fundadores da cidade, à frente da exploração do óleo no país. A matéria não deixava qualquer lacuna mal preenchida e entregava sem grandes firulas textuais a culpa de Bispo e de seus asseclas, embora aparentemente, aquilo não fosse suficiente.

— Mas que grande mentira desse jornaleco de quinta categoria! — esbravejou Otoniel Vieira, um cidadão pai de família que foi filmado atirando o jornal no chão e cuspindo sobre ele numa matéria televisionada do Oeste News.

— A quem eles acham que estão enganando com esse monte de provas forjadas contra um homem exemplar como o Edmundo Bispo? — disse Dolores Campos, uma senhora meio gorducha que carregava uma sacola de supermercado da Imporius em mãos diante da câmera de TV.

Grande parte dos cidadãos são-franciscanos duvidavam da veracidade da matéria muito bem conduzida por Alex Batista e acusavam de aproveitador e conspiracionista. Por conta disso, a redação de A Gazeta sofreu represálias na madrugada de domingo para segunda-feira e um coquetel Molotov foi atirado contra uma das vidraças do primeiro andar do prédio meio decadente.

Batista, Pacheco e até mesmo a fotógrafa do jornal, Renata Alves Costa, autora das imagens de toda a matéria, precisaram de escolta policial nas primeiras semanas após o lançamento da matéria e, num repente, a cidade se tornou um caldeirão pronto a explodir. Ao vazar aquele material para Batista, ao menos, nós tínhamos despertado aquela pulguinha adormecida atrás da orelha dos adoradores míopes de Bispo e toda a corja política do PSN. Já era um começo.

Enquanto o Tribunal de Contas, o Ministério do Meio-Ambiente e o Ministério de Minas e Energia do país começavam a se sentir incomodados com aquele escândalo, agentes do Governo Federal começaram a chegar aos bandos em São Francisco para investigar as denúncias reveladas pela Gazeta. Do outro lado, o grupo midiático controlado pelos Santinni continuava fazendo silêncio absoluto sobre o esqueleto que começava a surgir em seu armário, publicando apenas matérias sobre floriculturas e jardinagem para desviar o assunto.

Evitando contatos muito notórios com a população, Edmundo Bispo se enclausurou no alto da sua torre de vidro enquanto a sua equipe de relações públicas emitia notas rasas e pouco convincentes de que os seus advogados já estavam tomando as medidas cabíveis contra A Gazeta. Naquele mês, as investigações às atividades comerciais do grupo empresarial Xeque-Mate começaram a se aprofundar pela Polícia Federal e Bispo foi obrigado a contratar um grande escritório de advocacia para abafar o escarcéu em que estava metido. Um verdadeiro batalhão de engravatados da firma CASAVETTE & MONTANARO desembarcou em São Francisco no começo de agosto e os advogados começaram a apagar os focos de incêndio na reputação do, até então, ilibado e proeminente cidadão Edmundo Bispo.

Com um empurrãozinho do magistrado Sérgio Alcântara, o homem da lei que abocanhava uma fatia considerável do dinheiro levantado pelo crime organizado, um festival de habeas corpus passou a ser emitido pelo Fórum de Justiça, livrando a cara da maioria dos bandidos que tínhamos prendido em nossa batida às refinarias de drogas no mês de abril daquele ano — apesar do flagrante — e dos milicianos encontrados amarrados na Alameda dos Cajarás perto do incêndio que queimava a floresta.

— As ações desse juiz estão favorecendo escancaradamente os criminosos dessa cidade e ninguém está fazendo nada quanto a isso! — Enervou-se Silmara, num surto que também nos indignou quando lemos aquela notícia.

Para não levantar mais suspeitas sobre o Bispo, Paulo Menezes, o homem do dinheiro da Corporação, passou a assinar os cheques da Casavette & Montanaro, cujo principal advogado, Benjamin Fujiwara, um dos mais experientes do escritório de Direito, passou a assumir a maioria dos casos. Sentimos um gosto amargo de derrota nos descer goela abaixo e, em poucos dias, Demétrio Santoro, o pai de Silmara, estava solto, assim como os demais capangas que o seguiam no caso das refinarias e os milicianos que haviam botado fogo na área de preservação ecológica.

Diferente do que eu imaginava, Silmara não se comoveu com a saída do pai da prisão e nem o procurou depois. Focada em nosso plano de derrubar pouco a pouco a Corporação, ela chegou a participar da nossa missão para explodir as duas últimas refinarias de drogas de Toni Maranelli, fato que ocasionou uma cisão profunda entre os membros da organização.

Com o tráfico da cidade paralisado momentaneamente pela falta de bases para operar, Maranelli arrastou o seu corpo balofo pessoalmente até o prédio da Xeque-Mate para cobrar providências de Edmundo Bispo, o que causou um mal-estar generalizado entre as grandes cabeças do grupo. Através de uma escuta que havíamos plantado do lado de fora da janela de Bispo numa noite chuvosa no alto da sua torre, acompanhamos ao vivo a discussão entre os dois e "os moleques fantasiados" eram o grande foco da briga.

— Você precisa tomar uma atitude imediatamente quanto a esses delinquentes juvenis. Nossa organização está sendo esfacelada por um bando de cuccioli dall'inferno. Não vamos mais admitir questo oltraggio!

Depois daquele dia, as coisas não voltaram a ser as mesmas entre Maranelli e Bispo. Algo como uma fissura ocorreu na confiança de ambos, o que fez com que as operações da Corporação começassem a não seguir mais qualquer padrão.

Naquela noite de inverno, Ricardo e Antônio ficaram no esconderijo com os ouvidos ligados na escuta do lado de fora do prédio da Xeque-Mate enquanto eu decidi seguir uma pista que Silmara dizia ter sobre o novo esconderijo de Belo Falcão na cidade. Desde que a disputa entre Maranelli e Bispo tinha começado, nada se sabia sobre o paradeiro do influente mafioso e braço-direito do gordo. Misteriosa como nunca a tinha visto antes, Sil alegava que estava verificando um antigo endereço em que o pai chegou a trabalhar para Falcão certa vez e onde tinha certeza que encontraria o criminoso.

Estávamos no telhado de um antigo teatro abandonado próximo da estrada que dava para a Boca do Crime, o principal reduto dos marginais de São Francisco. Um vento forte nos atingia ali em cima fazendo a capa esvoaçar às minhas costas. O traje de Sil não era tão isolado quanto o meu, embora fosse dotado de uma fina película de material à prova de balas no torso também. Eu a vi tremer de frio algumas vezes agachada ao meu lado, porém, firme em nossa missão de reconhecimento, a garota estava olhando fixamente para o outro lado da rua, para a porta de um decadente depósito de bebidas.

Com o canal aberto em nosso rádio auricular, ouvíamos as piadinhas de Ricardo e Antônio do Bairro do Encanto sob a garagem da minha casa, mas ela parecia particularmente de mau humor aquela noite.

— Como foi que o Maranelli nos chamou mesmo aquela vez? — indagou Ricardo a Antônio.

— Espera! Eu anotei aqui para não esquecer. — E ele levou alguns segundos para achar a anotação. — Cuccioli dall'inferno. Somos os cuccioli dall'inferno! Os filhotes de uma cadela do inferno! — E os dois gargalharam, abafando o áudio do rádio. — A gente devia começar a chamar nosso grupo assim!

Sil e eu começamos a ver movimentação diante do depósito enquanto as risadas da dupla de engraçadinhos ecoavam em nosso ouvido. Até então, o local parecia abandonado, assim como toda aquela antiga rua onde, em tempos boêmios, funcionavam alguns prostíbulos. Dois homens surgiram de uma esquina escura e pararam em frente ao local para acender cada um o seu cigarro. Subitamente, vi Silmara abrir o zíper do seu capuz por trás, retirá-lo completamente e remover o seu rádio auricular para guarda-lo num dos bolsos do cinto.

— O que está fazendo, Ferina?

Os cabelos curtos e finos dela esvoaçaram no rosto ante o vento que soprava contra nós e, sem dizer nada, apenas com gestos, ela pediu que eu desligasse o meu rádio também. Aquela não era uma medida inteligente uma vez que estávamos à espreita de bandidos e podíamos precisar do reforço dos meninos. Desliguei o rádio mesmo assim.

— Vou te contar algo que ainda não estou pronta para falar pra mais ninguém. — Sil estava com uma fisionomia extremamente preocupada no rosto. Os olhos grandes pareciam ainda maiores em suas órbitas e ela tirou os cabelos do rosto por um segundo. — Não estamos aqui por causa do Belo Falcão. Eu menti.

Houve um instante de silêncio quebrado apenas pelo uivo do vento.

— É por causa do seu pai? Você me trouxe aqui por causa do seu pai? — elucubrei.

— Não totalmente. — Ela parecia desconcertada. — Eu estou aqui principalmente por causa de um homem chamado Hernandes. Algumas pessoas o chamam de "Jack", outras apenas "JJ". Ninguém sabe exatamente como se chama. Aconteceram coisas comigo em minha pré-adolescência relacionadas a esse cara, coisas que o meu pai podia ter evitado, mas que não fez nada para impedir.

Os dois homens baforavam fumaça para o alto e, daquela distância, era quase impossível reconhecê-los. Um deles era corpulento e usava um gorro andino na cabeça, típico de certos povos bolivianos. O outro, era do tipo esguio, alto e usava um chapéu Panamá enfiado na cabeça. Nós dois estávamos protegidos à sombra no telhado, mas deu para ver os olhos de Sil marejarem enquanto ela falava.

— Quando eu era criança, eu passava fácil por um menino. O meu pai sempre cortou os meus cabelos bem curtos e eu sempre usei roupas folgadas, em geral, trapos que pertenciam a outras pessoas do conjunto habitacional onde a gente vivia desde os meus quatro anos de idade. Tudo mudou quando comecei a crescer e me tornar adolescente. O meu corpo começou a ganhar sinuosidades indesejáveis e isso não passou despercebido a esse tal de Hernandes. Ele começou a me olhar cada vez mais estranho quando o meu pai me carregava a essas reuniões da organização, até que um dia, eu fui deixada sozinha no Bairro Burlesco da Boca do Crime. — Os lábios dela se contraíram, depois, começaram a tremelicar. Por um breve momento, eu comecei a torcer para que ela não dissesse o que eu achava que ela estava prestes a me contar.

— O meu pai podia ter evitado. Ele sabia que eu estava ali sozinha, assustada. Esse Hernandes me levou para o interior de um sobrado desse bairro. Uma casa horrível que tinha uma fachada cafona cheia de letreiros em neon em frente. Eu não sabia que ali funcionava um prostíbulo e, quando dei por mim, estava sendo jogada dentro de um quarto para ser entregue a um homem que eu nunca tinha visto na vida e que me cobiçava. Eu olhei para aquele homem gordo de sorriso amarelo, aquela cara larga, o nariz enorme e os cabelos ensebados... Tive vontade de fugir, mas eu não tinha forças. Gerônimo Falcão era a criatura mais abjeta que eu já tinha encarado de frente e eu não pude fazer nada para me defender.

— Eu... Eu sinto muito, Sil. — Eu nem sabia o que dizer para consolá-la. Aquele era um relato terrível demais. Um ódio crescente passou a me queimar por dentro e, lá embaixo, as duas silhuetas abriram a porta e desapareceram no interior do depósito mal iluminado.

— Naquela noite, ele consumou o ato. Aí vieram outras noites e mais outras. Eu comecei a ser "agenciada" por JJ Hernandes e novos clientes dele começaram a me querer. O meu pai devia uma grana alta para o Falcão devido dívidas de jogo e bebedeira na época e ele não moveu um dedo para salvar a sua única filha daquele martírio. Eu passei quase dois anos nas mãos de Hernandes, até que outras meninas acabaram me substituindo quando me tornei "velha" demais para a função.

Sil abaixou a cabeça como que envergonhada e enxugou as lágrimas que banhavam o seu rosto com o dorso da mão enluvada antes de prosseguir o relato.

— Esse Jack é o chefão do Bairro Burlesco dentro da Boca do Crime e ele possui vários prostíbulos pela cidade. Ele comanda uma máfia de tráfico internacional de adolescentes para outros países da América Latina e Europa e faz o "agenciamento" de meninas para clientes interessados, assim como fez comigo. Nas noites em que você subia para a sua casa para dormir, eu passava horas vasculhando a Deep Web através do seu CAD. Descobri vários fóruns secretos em que Hernandes leiloa garotas, as vendendo pelo maior lance, como gado. — Sil, de repente, se virou em direção à rua. Assim que vestiu seu capuz novamente, com as lágrimas agora cobertas, ela continuou, com a voz abafada. — Aquele antigo depósito de bebidas — E ela apontou. — é na verdade um cativeiro onde Hernandes e os seus homens ocultam várias meninas que ele vende por aí. A gente precisa salvar essas coitadas e impedir que aconteça a elas o que aconteceu comigo e com centenas de outras infelizes.

Sil não podia ver através do meu capuz preto e cinza, mas o meu semblante estava endurecido. Eu não tinha começado aquela cruzada contra a Corporação em busca de vingança pessoal ou para ferir pessoas gratuitamente, mas pela primeira vez em três anos, eu estava com gana de bater forte em alguém, de um jeito que eu só pararia quando a minha fúria estivesse satisfeita.

Que Sebá me perdoe, mas hoje vou deixar os ensinamentos do Fei Hok Phai de lado! Jurei a mim mesmo.


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