Capítulo 40 - Cerquem o Bispo
UM TELEFONE TOCOU na luxuosa sala de Edmundo Bispo naquela manhã de segunda-feira e, do alto da sua torre brilhante, ele atendeu prontamente.
— Aconteceu de novo. Fomos atacados por aqueles moleques mais uma vez! — O seu tom era áspero. — Eles tiveram a ousadia de invadir o meu prédio fingindo ser entregadores de pizza.
— O que foi destruído desta vez, chefe? — A outra voz era grave e melodiosa. Não pertencia a nenhum dos capangas tradicionais de Bispo.
— Os recepcionistas disseram que eram dois; um rapaz alto e uma garota de mais ou menos um metro e sessenta e três de altura. Entraram, deixaram as pizzas e depois foram embora. Aparentemente, nada foi destruído ou roubado. Os seguranças do décimo quarto andar informaram que as luzes se apagaram brevemente por duas vezes. Já pedi para a equipe de TI verificar se algo foi apagado ou surrupiado dos servidores.
— Isso é muito sério! — rosnou o de voz melódica. — Primeiro, os três ataques aos galpões e os milhões de reais de prejuízo. Agora, um cyber-ataque. Precisamos descobrir logo quem são eles e o que querem.
— O que eles querem, Hudson? — Enfim tínhamos um nome! — Eles querem me destruir! Acione os demais membros imediatamente. Comece a caçar esses malditos! Eu quero cada um deles mortos o mais rápido possível!
— Farei isso agora mesmo, chefe. Melhor desligar o telefone. Não temos certeza se a linha foi grampeada de novo.
Depois daquela gravação da conversa entre um irritado Edmundo Bispo e o tal "Hudson", nós perdemos a nossa conexão com os servidores da Xeque-Mate mais uma vez, porém, já era tarde para as medidas protetivas do facínora. Com a cópia do seu disco rígido secreto em mãos, nós tínhamos Bispo exatamente onde queríamos e, agora sabíamos cada um dos seus segredos mais imundos.
Eu cheguei mais cedo da escola naquela tarde e o Ricardo me acompanhou até o endereço onde uma festa estava montada desde a manhã para recepcionar o Governador do estado Geraldo Wasserman, organizada pela trupe abjeta do partido PSN de São Francisco d'Oeste.
Próximo da chegada do Governador à cidade, a praça Álvares Fonseca estava apinhada de gente e, para onde se olhava, via-se manifestantes a favor das ideias do PSN usando camisetas amarelas, com faixas estendidas, bandanas na cabeça e segurando muitos balões coloridos. Mais além, um laço verde gigantesco bloqueava a entrada do novíssimo Elevado Intermunicipal que seria inaugurado em conjunto por Wasserman e a prefeita Renata Leme. O povo empolgado aguardava ansioso pelos sorteios de prêmios que aconteceria em paralelo a inauguração da ponte.
— Como está a pataquada da inauguração do Elevado, pessoal? — indagou-nos Antônio pelo rádio auricular. Ele estava em nosso esconderijo na companhia de Sil e ambos comiam cachorro-quente enquanto nos ouviam.
— Já vi circos menos animados! — desdenhou o Ricardo, de olho no alto do palanque de estrutura coberta de mais de dez metros à nossa frente.
Uma banda muito talentosa tocava um repertório variado que ia de Jazz a MPB no palco enquanto a multidão aguardava a chegada dos representantes do governo. O barulho era tão alto que por pouco a voz de Antônio não foi abafada completamente.
— Encontrei boas referências sobre um jornalista chamado Alexsandro Batista na internet. O sujeito não é de fazer grandes amizades no meio profissional, mas é muito competente e imparcial. Trabalha para A Gazeta há dez anos desde que se mudou para São Francisco. É um rival ferrenho da família Santinni e eles já bateram de frente algumas vezes em convenções de jornalismo. Ele pode ser o cara certo para vazarmos o material que conseguimos ontem na Xeque-Mate.
— Numa cidade tão corrupta, temos que tomar cuidado. Investigue mais sobre esse tal Alexsandro. Se ele for o cara certo, vai nos ajudar a desmascarar essa farsa de bom samaritano do Bispo.
Assim que eu disse aquilo em voz baixa para evitar ser ouvido e não acabar linchado pela turba de apoiadores do PSN e do Bispo ao meu redor, a banda cessou os acordes no palco e a própria Renata Leme surgiu de microfone em mãos para anunciar a presença do governador Wasserman. Uma explosão de aplausos e gritos efusivos rompeu aquele instante e, por algum tempo, nos vimos em meio a uma plateia apaixonada e emotiva que adorava os seus governantes.
Ricardo e eu fomos empurrados e acotovelados pela multidão adoradora. Enquanto isso, lá em cima do palco, o homem alto de nariz tão fino quanto grande, cabelos ralos no alto da cabeça e que usava um par de óculos retangulares começou um discurso enfadonho do tipo que faria um insone dormir. Foram dez minutos insuportáveis de demagogia rasa em forma de um discurso pré-definido para agradar as massas e, depois da rasgação de seda entre Wasserman e Leme no alto da estrutura metálica gigante montada apenas para aquele momento de autopromoção, os dois enfim chamaram ao palco — segundo palavras deles — o "grande benfeitor da cidade, o homem que tinha tirado sozinho São Francisco d'Oeste da pré-história tecnológica para a modernidade. O grande Edmundo Bispo".
— Não dá pra acreditar nessa palhaçada! — resmungou Ricardo, ao que ele notou, ao fundo do palco, além da fileira de homens que faziam a segurança das figuras públicas lá em cima e dos puxa-sacos de praxe, uma sombra que parecia se esgueirar para não ser vista. Ele o apontou para mim discretamente e, então, acionei o rádio.
— Espião Negro, na escuta? Você ganha um doce se adivinhar quem também está no palco se esgueirando feito uma hiena atrás da presa.
— Quem? O cavalo do Rei? — indagou ele.
— Estou te devendo um doce.
— Mais cedo pesquisei o nome "Hudson" no CAD e usei um algoritmo de cruzamento de dados para o relacioná-lo aos nomes de Bispo, Maranelli e Belo Falcão. O computador me deu o nome de Hudson Porto.
— Parece que achamos o nosso cavalo. — comentou Ricardo já ganhando espaço na multidão e se aproximando mais do palco.
Seguindo o meu amigo naquele momento, os meus pensamentos se voltaram ao instante em que conectamos o disco rígido clonado ao CAD e começamos a desvendar os planos diabólicos que o aclamado Edmundo Bispo tinha para a cidade de São Francisco e os seus habitantes.
DOMINGO – 23h34
Após a bem-sucedida missão no prédio da Xeque-Mate, nós quatro voltamos a nos reunir em nosso esconderijo. Eu ainda tive que devolver a motoneta à pizzaria e cheguei a fazer três entregas na vizinhança de bicicleta. Reginaldo estava bem e, como esperado, ele não se lembrava o que tinha acontecido. Todos concordaram que o entregador tinha sofrido um mal súbito e Magno lhe deu o resto da noite de folga após encontrá-lo inconsciente no banheiro. Cheguei em casa por volta das onze horas e trinta e quatro minutos da noite e trouxe uma pizza de escarola que foi muito bem-vinda pelos meus amigos.
Antônio já carregava os dados do HD clonado na tela do CAD sem nenhuma criptografia e a primeira pasta de arquivos que abrimos tinha o nome de "Projeto Túneis".
Um mapa detalhado desenhado num software de planta 3D mostrava uma extensa conexão de túneis que interligava vários pontos da cidade à linha central por onde o novo metrô passaria. As escavações para a construção da estação e da linha metropolitana que ia até o centro de São Paulo já estavam em estágio avançado no subsolo de São Francisco e não era raro se ouvir explosões e tremores nas vias principais ao longo do horário comercial, em decorrência das obras.
Máquinas de escavação e perfuração, caminhões basculantes, bem como homens devidamente trajados de macacões eram vistos o tempo todo adentrando os túneis subterrâneos que começavam numa das travessas da . Todo mundo já estava até acostumado àquela movimentação toda desde que as primeiras obras haviam se iniciado no mês de setembro passado.
— Aqui diz que a infraestrutura técnica da obra está sendo coordenada pela Castle Industrial, propriedade do papai do nosso querido amiguinho Carlos Eduardo Castellini Junior. — mencionou o Antônio ao ler um trecho demarcado no mapa 3D. Sil deu um risinho irônico ao ouvir o nome "Junior", mas não caçoou Antônio novamente.
— Ao que parece, a construção da linha do metrô é só um pretexto para que a Corporação possa transitar livremente por debaixo da cidade sem a interrupção de nenhuma autoridade e longe dos olhos do público. — comentou Ricardo.
— Se essa teia de túneis começar a funcionar, o transporte de cargas ilegais vai ser muito mais eficaz e vai ganhar mais velocidade e precisão do que transportar tudo por caminhões e trens como acontece atualmente. — comentei. — A rede de túneis liga o subsolo da torre da Xeque-Mate à Castle Industrial na , ao Complexo Sônia Ubiratan da rua Piranambá e a mais três endereços; um deles, no subúrbio perto da Comunidade de Boa Vista, outro perto do Cassino Santisteban na região norte e do outro lado da avenida Princesa Isabel...
A avenida Princesa Isabel cruzava a Senador Barbosa Bulhões, mas esse não foi o principal motivo que alarmou Silmara naquele momento. O ponto específico onde ficaria uma das saídas dos túneis subterrâneos era justamente sobre o conjunto habitacional onde ela morava e da qual tinha sido expulsa há algum tempo.
— A construção do estacionamento grã-fino também é uma fachada. Eles vão fazer uma saída dos túneis em um local movimentado por veículos para facilitar a entrada e a saída das cargas de drogas, armas e dinheiro lavado. — Silmara se entristeceu mais uma vez ao se lembrar da forma como tinha sido escorraçada da única casa que conhecera desde a infância. A sua adesão à nossa causa lhe fazia cada vez mais sentido agora.
SEGUNDA-FEIRA – 0h46
A pasta "Bloco Petrolífero" nos chocou ainda mais que a construção dos túneis secretos na linha do metrô e os arquivos contidos ali dentro detalhavam planos para a devastação de uma área protegida ecologicamente para a exploração de petróleo na região. O projeto tinha o aval e a assinatura de Vicenzo Mateo Santinni, o avô de Manoela e Nicola e previa o início das obras já para o mês de junho.
— A área de preservação fica a alguns quilômetros do sítio de Sebá. Nós dois vimos uma equipe demarcando a floresta próximo do sítio no final de março. Ele me pediu ajuda para descobrir o que aqueles caras queriam lá e agora nós sabemos. Há petróleo no subsolo de São Francisco d'Oeste, por isso os Santinni se aliaram ao Bispo e aos seus recursos quase infinitos. Eles querem faturar alto com a exploração do óleo, nem que para isso, tenham que assolar toda uma área florestal protegida por lei. — Todos estavam horrorizados com a simples menção àquele fato medonho e foi de Ricardo a ideia:
— Precisamos atrasar os planos desses caras. O Sebá pode nos ajudar a conscientizar o povo que vive naquela região a reagir e nós vamos dar cobertura.
SEGUNDA-FEIRA – 2h21
Uma pasta sem nome continha uma centena de fotos em alta resolução da construção do que pareciam ser duas termoelétricas em território são-franciscano. As fotos tinham sido tiradas desde a fase de marcação dos terrenos onde as bases seriam construídas até os seus estágios mais recentes. Uma das usinas ficava localizada no , próximo a uma das comunidades mais carentes da cidade — a Boa Vista — e se ocultava em uma espécie de vale cujos arredores estavam sendo fortemente protegidos de olhares curiosos. A outra termoelétrica estava sendo construída, em estágio de finalização, no Bairro das Oliveiras, local onde ficava o ferro-velho do seu Juca que tínhamos visitado há um ano.
— Caras... Isso é pior do que pensávamos! — Havia terror nos olhos de Antônio. Quando ele ampliou a próxima imagem na tela de cristal, todos nós ficamos boquiabertas com a esquematização de um plano maligno para colapsar as principais redes hidrelétricas do Brasil — incluindo Itaipu, São Luiz do Tapajós e Jirau — e tornar metade do país dependente da energia gerada por suas próprias termelétricas.
— Além das duas usinas em São Francisco, esse megalomaníaco está construindo outra no território de Tocantins. Tem documentos aqui que firmam parceria entre Bispo e outros empresários para a aquisição de mais três termelétricas desativadas no Brasil, num total de seis usinas. Tem arquivos com data de cinco anos atrás. Muito antes de nós sequer imaginarmos que a Corporação existia. Isso é terrível! — Antônio estava em choque. Nós também.
— São Francisco d'Oeste não é nem de longe o foco desse louco. Ele quer o Brasil e o mundo! — Abismou-se Silmara passando as mãos nos cabelos castanhos e os tirando do rosto estarrecido.
— O plano dele é mergulhar o Brasil em um apagão de proporções gigantescas e, em seguida, oferecer os seus serviços ao Governo Federal para posar de herói. Até lá, com o aval da Renata Leme e de todos os corruptos que comandam a cidade, São Francisco d'Oeste já seria um modelo de autossustentabilidade energética à base da queima de gás natural ou petróleo e o Bispo conseguiria vender facilmente o seu projeto para outros estados, usando nossa cidade como case de sucesso. — Elucubrou Ricardo, mostrando tensão em seu semblante.
— Com uma negociação dessas, a Corporação faturaria milhões... talvez bilhões! Seria o maior investimento da história! — comentei, igualmente assustado com as proporções dos planos de Bispo.
— A curto prazo não parece haver tantos danos ao meio ambiente o funcionamento dessas termelétricas, mas a longo prazo, os efeitos podem ser devastadores para a natureza. O despejo dos dejetos superaquecidos nos rios que banham a cidade traria risco aos peixes. A queima do combustível e a liberação de gases tóxicos elevaria a temperatura da região, além de prejudicar a atmosfera. Sem falar no aumento do custo da energia térmica para a população que costuma ser uma das mais caras do mundo. Não é possível que nenhum dos membros da Corporação tenha se oposto a um plano devastador como esse! — revoltou-se Antônio, ao que respondi:
— O que importa a essa gente é o lucro, Antônio. Eles não se importam com as vidas inocentes que vão desgraçar com as suas maquinações. Nós quatro precisamos impedir o avanço dessa organização maldita o quanto antes. Precisamos salvar nossa cidade e o país deles, antes que nós mesmos sejamos liquidados.
SEGUNDA-FEIRA – 17:39
Bispo tomou o microfone naquele momento sobre o palco e a voz grave e imponente que ouvimos na gravação em que ele mandava o seu capanga destruir a mim e a meus amigos deu lugar a um tom suave, quase doce, de um homem contido e ponderado.
— Em primeiro lugar, eu quero agradecer o apoio da população dessa terra linda que é São Francisco d'Oeste e pela qual eu acordo todas as manhãs para fazer o meu máximo, dar o melhor de mim para melhorar a sua condição de vida. Cada projeto que assino em minha empresa com o aval aqui do nosso excelentíssimo Governador e da nossa digníssima prefeita — E ele tocou o ombro de ambos com a mão livre. — é para proporcionar um futuro melhor a vocês que representam aqui cada trabalhador guerreiro que levanta cedo todos os dias para garantir o seu sustento, com esforço, com custo. Eu não sou nada além de um cidadão são-franciscano como todos vocês. Amo essa cidade como qualquer um aqui reunido e é com muita honra que o grupo empresarial Xeque-Mate entrega hoje essa maravilha de construção que é o Elevado Intermunicipal Alceu Franco a todos vocês.
Os aplausos e urros ensurdeceram a mim e a Ricardo. Nós dois estávamos bem lá na frente da multidão naquele momento a poucos metros do palco. Bispo sorria de forma cínica abraçado por Wasserman, Leme, Giácomo e Marco Mateo, ambos pai e irmão de Manoela Santinni respectivamente, os dois deputados estaduais que tinham vindo a São Francisco para a inauguração do Elevado. Lá de baixo, eu olhei bem nos olhos frios de Edmundo e, por um instante efêmero, ele me notou a encará-lo. Fitando-o, eu fiz uma promessa a mim mesmo.
Eu vou derrubar você da sua torre, calhorda. Vou acabar com os seus planos repugnantes custe o que custar.
Nota do autor: Toda a saga "Pássaro Noturno" de Rod Rodman é um trabalho de uma vida toda e houve muita dedicação na construção desse universo. Se você chegou até aqui, não esqueça de votar no capítulo e comentar o que está achando da história. A sua opinião é muito importante para o autor. NAMASTE!
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