Capítulo 38 - Um quarteto fantástico

SILMARA ESTAVA CADA vez mais integrada ao grupo e, com o tempo, começou a desistir da sua ideia fixa de se manter à margem do processo em que já estivera intimamente ligada no passado por causa do pai. De alguma forma, ela se sentia culpada por ter feito parte indiretamente da Corporação e de, certo modo, contribuído para que a cidade continuasse corrompida pelos poderosos que a dominavam. O nosso projeto de acabar com a organização a tinha cativado agora mais do que há dois anos quando eu a tinha convidado para me ajudar e ela tinha se recusado alegando que "não tinha o que era necessário". Sil se animou tanto que logo começou a querer um traje de combate para ela também, embora questionasse a nossa opção em usar armas não-letais.

— Como vocês querem combater tiros de armas de fogo com faquinhas e disquinhos?

Cheia de sarcasmo, ela caçoou da nossa decisão em não se rebaixar ao mesmo nível dos nossos inimigos e tirar vidas deliberadamente, mas acabou aceitando os nossos métodos. Enquanto eu e ela desenhávamos juntos algumas ideias que tinha em mente para a sua personalidade heroica, Antônio continuou acessando a rede de Bispo até que descobriu algo interessante.

— Nós passamos meses vasculhando cada byte de informação que esse pulha guarda em seus servidores e não descobrimos quase nada concreto que pudesse ser levado à mídia para incriminá-lo. Eu descobri o porquê! – Nós três paramos para observá-lo ali sentado diante da tela de setenta e duas polegadas, dando espaço para que enxergássemos o que ele queria mostrar. — Vocês estão sentindo falta de algo nesse mapa de rede?

Eu estava estudando na escola quase tudo sobre sistemas informatizados, mas admitia que estava alguns — muitos! — passos atrás de Antônio no quesito arquitetura de rede. Eu via na tela um emaranhado de linhas interconectando, o que parecia ser uma hierarquia informatizada ligada a servidores, mas não decifrei o que ele queria que enxergássemos.

— Desisto, Antônio. Ao que está se referindo? — falei, vencido, ao que Ricardo e Sil assentiram.

— É simples. O que não conseguimos enxergar nessa rede de informação é um terminal mudo. Um local mantido dentro de uma rede, mas que não está conectada de nenhuma forma a ela. — Ricardo coçou a cabeça. Sil mexeu o cabelo Chanel de lado e eu continuei tentando entender. — Pensem num servidor usado para armazenar um backup, mas que está alheio a ele, sem amarras e que, portanto, não pode ser alcançado pelo meu cavalo de Tróia.

— Quer dizer que o Bispo possui um terminal que não está ligado à rede principal dentro do seu próprio prédio? — indaguei.

— Exato. É como ser burro o bastante pra guardar uma cópia de segurança dentro do arquivo original! — Zombou ele. — E eu tenho certeza que também é lá que ele guarda as informações que vão fazer com que a gente derrube esse filho de uma mãe de uma vez por todas.

Era véspera da inauguração do Elevado Intermunicipal, no final do mês de maio, quando colocamos em prática um de nossos planos mais ousados contra a Corporação. Não havia outra forma de nos apossarmos das informações secretas de Edmundo Bispo se não invadíssemos o prédio da Xeque-Mate pessoalmente, portanto, repassamos cautelosamente cada etapa da invasão inúmeras vezes nas semanas anteriores, tomando as devidas precauções para que nada saísse errado.

Através do CAD e do vírus que criara, Antônio tinha grampeado mais uma vez a rede telefônica do edifício e, naquele início de noite, um telefone do décimo andar fez uma ligação para a pizzaria do Magno no Bairro do Encanto, encomendando cinco pizzas de sabores diversos. O próprio Magno atendeu naquele domingo movimentado no estabelecimento e os seus olhos pequenos se arregalaram ao saber a procedência do pedido. O descendente de italianos moveu a sua corpulência característica do balcão até a cozinha e gritou a plenos pulmões para os três funcionários que metiam a mão na massa lá atrás aprontando os inúmeros pedidos que tinham para aquela noite:

— Pedido grande para o prédio da Xeque-Mate! Uma pepperoni com borda recheada; uma portuguesa sem azeitonas; uma de frango com catupiry e duas de atum com muita cebola. Caprichem neste pedido, são clientes importantes!

Eu estava num canto do lado de fora do balcão fingindo que estava de olho num jogo de futebol que era transmitido na TV de tubo pequena posicionada na parede central da pizzaria quando ouvi o meu patrão falar sobre o pedido. Assim como tinha sido definido no ano passado, eu continuava fazendo somente as entregas mais próximas do bairro de bicicleta, mas, naquele dia, tinha tomado uma providência da qual não me orgulhava para tirar de ação o entregador oficial do local e tomar o seu lugar.

Ao longo do meu treinamento físico com Sebá quatro vezes por semana, eu tirava várias dúvidas com ele sobre defesa pessoal e métodos de combate corpo a corpo. Numa dessas vezes, havia perguntado sobre técnicas hábeis de tirar um oponente de combate rapidamente, no que ele me apresentou — na prática — um golpe no pescoço ensinado pelo Hapkidô, a arte marcial coreana para defesa pessoal.

Eu tinha sentido na própria pele que a técnica funcionava e, pouco antes do telefonema forjado por Antônio, eu tratei de apagar Reginaldo, o entregador que tinha ficado em meu lugar pilotando a Honda Biz. Ele estava distraído quando lhe apliquei um golpe preciso na base do pescoço, o deixando desacordado no banheiro do estabelecimento sem nem saber o que tinha lhe acontecido. Para que o nosso plano de invasão desse certo, era preciso que eu estivesse pilotando a motoneta da pizzaria no momento da entrega e, embora tivesse sido uma solução suja golpear o rapaz, eu sabia que estava evitando que ele entrasse em encrencas.

Quando as cinco pizzas ficaram prontas na cozinha, enquanto a garçonete Luiza, que também era a esposa de Magno, servia alguns clientes às mesas do restaurante, o meu patrão corpulento começou a chamar do balcão por Reginaldo que não respondia.

— Onde está esse garoto? Preciso fazer essa entrega imediatamente! O cliente não pode ficar esperando!

Dissimulado, comecei a fingir que o procurava para Magno e, passados cinco minutos, dei a ideia:

— Ele pode ter passado mal e voltado para casa sem avisar. Não o achei em lugar nenhum. Se o senhor quiser, eu posso fazer a entrega. Sei o caminho.

O homem titubeou alguns instantes, provavelmente, se lembrando da promessa que tinha feito à minha mãe de nunca mais me deixar pilotar a motoneta, mas, ao mesmo tempo, ele tinha uma encomenda esfriando no balcão e ela precisava ser entregue com urgência.

— Chispe daqui! E não conte sobre isso para a sua mãe!

As coisas não podiam ter dado mais certo.

A Magno's Pizzaria ficava a meio caminho da minha casa e assim que dobrei a esquina da Gomes Brossard com a Teixeira Barreto, encontrei Sil já pronta para pegar uma carona. Passei-lhe a caixa térmica com as pizzas e, assim que ela a colocou nas costas, subiu na garupa e se segurou a mim pelo meu torso, eu arranquei com a motoneta exigindo tudo que a máquina de cem cilindradas tinha a oferecer em potência.

Aquela seria a segunda vez que eu ia a campo sem o meu traje de Pássaro Noturno, mas era a primeira em que eu teria que atuar de cara limpa, frente a frente com os homens que prestavam serviço a Edmundo Bispo.

Eu nunca na minha vida havia estado num prédio tão luxuoso como aquele, o que causou um certo tremor em meus joelhos logo que firmei os pés no último degrau do lance de escadas em frente à porta de entrada. Sil usava um boné que encobria o seu rosto e eu havia lhe providenciado um colete vermelho que se assemelhava muito ao uniforme que nós entregadores de pizza usávamos em serviço. A primeira dupla de seguranças fez sombra sobre as nossas cabeças enquanto outros dois nos espiavam de cima da guarita, com os cães. Um deles espalmou uma das mãos enormes proibindo a nossa passagem.

— Entrega de pizza para o décimo andar, chefia. — falei, procurando botar uma segurança que não havia em minha voz normalmente.

— Ninguém nos avisou dessa entrega. — respondeu o maior deles, um sujeito de cabeça raspada e porte físico de Shaquille O'Neal. O segundo meteu a mão por dentro do paletó e, por um momento, eu quase me esquivei, achando que viria uma pistola dali. Quando ele sacou um walkie-talkie, respirei aliviado e olhei para Sil, que sentiu a minha tensão. Uma breve comunicação via rádio com a portaria foi o suficiente para que fossemos liberados.

— Podem entrar. Mantenham-se à direita até o balcão. — Soou a voz do sósia do Shaquille que abriu espaço para que entrássemos.

A porta automática deslizou para o lado e nós dois entramos, seguindo as instruções. Sil retirou a caixa das costas e já foi colocando sobre o balcão enquanto uma dupla de recepcionistas se aproximava.

— Isso aqui está virando uma bagunça! Agora pedem pizza e nem avisam a portaria! — falou o loiro de cabelos bem cortados e olhos encovados a ajeitar o seu colete preto antes de discar um número. Certamente, estava confirmando o pedido para o décimo andar.

Naquele momento, Antônio estava tranquilo em nosso esconderijo diante do CAD observando todas as câmeras do sistema de segurança do edifício. Ele havia direcionado as ligações do ramal dentro da sala do décimo andar para o celular Nokia que havia ganhado de presente de aniversário do pai e foi ele quem atendeu quando o sujeito loiro ligou.

O outro recepcionista, um baixote de olhar ferino e um vasto cabelo crespo castanho-escuro, por alguma razão ficou a nos encarar ali atrás do balcão. Sil mascava um chiclete nervosamente vestindo um blusão e uma calça bem solta por baixo do colete vermelho. Eu segurava o capacete da moto em mãos ansioso para que os recepcionistas nos liberassem logo.

— OK. Um de vocês pode subir até o décimo andar para a entrega. O outro fica esperando. — disse o loiro colocando o fone de volta no gancho. — Alguém lá em cima vai esperar pelas pizzas assim que descer do elevador. Siga até o final do corredor. Elevador de serviço, por favor.

O homem nos indicou a passagem à direita do corredor. Eram dez passos depois do balcão da recepção e mais cinco após as poltronas posicionadas ali na sala de espera. Eu apanhei a mochila térmica e comecei a me dirigir até o elevador. Encenei:

— Me espera aqui, Catarina. Dois palitos eu desço.

Sil — ou "Catarina" — acenou positivamente e deu para ouvir, já da entrada do elevador, quando ela perguntou sobre o banheiro ao de cabelos crespos no balcão.

— Segunda porta à esquerda. Banheiro dos empregados. Seja rápida. Visitantes não podem ficar zanzando pelo hall do prédio. 

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