Capítulo 25 - O assalto

O NOSSO ATAQUE à refinaria de drogas da Corporação não teve nem de longe o desfecho que imaginávamos, além de nos fazer perder o elemento surpresa. Agora, eles sabiam da nossa existência e estariam nos esperando em uma nova oportunidade, mais espertos e ainda mais armados.

Os dias que se seguiram foram os mais difíceis para nós três. Estávamos abalados emocionalmente, a nossa moral nunca estivera tão baixa e ainda tinham as dores físicas. O traje de Antônio era o que melhor tinha funcionado durante o confronto — fato que ele usou para se vangloriar —, mas mesmo a sua resistência não tinha impedido aquele tiro no ombro direito de doer muito, a ponto de ele mal conseguir levantar o braço na semana seguinte.

Ricardo tinha ficado com hematomas no rosto devido as pancadas que levara do capanga grandalhão que o esmagou contra aquela picape, além de que a fumaça tóxica que inalara havia prejudicado os seus pulmões o fazendo ter dificuldades para respirar normalmente.

Eu sentia dores por todo o corpo, além do rosto visivelmente ferido pelos socos que o sujeito de cabeça raspada havia desferido contra mim. O meu peito estava levemente queimado pelas balas que estropiaram o meu terceiro traje de Pássaro Noturno e parecia que todos os músculos das minhas pernas doíam pelo esforço contínuo de correr e lutar por minha vida.

Decididamente, não estávamos minimamente preparados para aquilo que tínhamos nos proposto a fazer e, naquela primeira semana, foi difícil conceber que a vida real não era como nos filmes de ação.

O Quinteto Macabro aproveitou para tirar bastante sarro pela nossa aparência surrada na sala de aula, o que só contribuiu para fazer com que nos sentíssemos ainda piores.

— O que aconteceu com as três bichinhas? Caíram da escada... DE NOVO?

— Que nada! Se liga! Os três devem ter tirado a noite pra brincar de lutinha pra ver se viram homens de verdade!

— Ei! Apareçam lá na quadra dia desses que a gente bate em vocês de graça. Não precisam mais fingir que não gostam de apanhar!

Eu nem precisava dizer que Carlos e a sua gangue tinham ficado bem insatisfeitos pela eliminação no campeonato de basquete e que, por isso, mais do que nunca, eles queriam ver as nossas caveiras até que o ano acabasse. Eu não via a hora que dezembro chegasse para me livrar daqueles caras para sempre.

Infelizmente, dezembro também significaria que eu estaria longe para sempre de Daniela, uma vez que cursaríamos o ensino médio em escolas diferentes a partir do ano seguinte. Eu tinha optado por uma escola de ensino técnico gratuito e estudaria em tempo quase integral em São Paulo, enquanto ela se mudaria para uma escola particular no interior do estado. A rede de supermercados do seu pai, a Imporius, estava indo de vento em popa na vizinhança e o homem havia decidido que queria o melhor para a mais velha dos três filhos. Mandar a garota para o interior do estado a fim de cursar o ensino médio em uma boa escola a deixaria mais próxima da universidade e lá, ele acreditava que Dani teria mais foco nos estudos, que ela se prepararia melhor para o vestibular nos três anos que se seguiriam. A garota até estava feliz com a mudança, mas havia algo que ainda a prendia à São Francisco.

Na segunda semana após o ataque à refinaria, o inchado em meu rosto já tinha diminuído e a Patrícia me chamou de canto durante o intervalo subindo o tom antes sempre ameno.

— Você vai mesmo deixar a Daniela ir embora sem nem falar com ela? Todos nós estaremos em escolas diferentes ano que vem. A gente só vai se esbarrar por aí ao acaso. Deixe de ser mole de uma vez por todas e conversa com ela!

Eu nem preciso dizer que a minha pulsação acelerou mais durante aquela conversa com a amiga de Daniela do que quando estava correndo dos tiros do Falcão há duas semanas. Aquela foi uma decisão de supetão, mas eu sabia o quanto ia me arrepender se não a tomasse.

— Eu... Eu vou me encontrar com ela... — Eu estava suando frio. — Na praça. Diga a ela que estarei na Praça Álvares Fonseca na sexta-feira, às dezessete horas.

Patrícia realmente estava torcendo por nós. Mais do que ninguém na escola, ela sabia os sentimentos que a Daniela nutria por mim e que, claro, eles eram recíprocos. Quando marquei o encontro, ela abriu um sorriso e, em seguida, comentou, já indo dar a notícia à amiga:

— Gostei de ver! Se tremeu todo, mas tomou uma atitude! Vou dizer a ela.

Aquela semana inteira foi de provas na escola e devo admitir que parei de pensar um pouco na Corporação. Assim como os meus amigos, eu estava frustrado. Olhava para as notícias no jornal e só via frivolidades, além de uma clara propaganda pró-governo exaltando os feitos da prefeita Renata Leme, elogiando o combate à criminalidade da "eficiente" equipe do delegado Romero Assis e, claro, a benevolência do cidadão ilustre Edmundo Bispo para com os cidadãos de São Francisco.

O que aconteceria quando a população da cidade descobrisse a verdade sobre todos aqueles canalhas?

Quando a sexta-feira chegou, uma ansiedade muito grande me dominou e eu comecei a sentir todos os sintomas que a falta de coragem me causava. Não havia copo d'água que conseguisse acabar com aquela sensação de boca seca e parecia que a Antártida havia se mudado inteira para o meu estômago de tão frio que ele estava. As minhas mãos ficavam trêmulas ante a menor possibilidade de eu não estragar tudo e, enfim, declarar o que eu sempre sentira por aquela menina desde a quarta série. Parecia até que outra pessoa tinha tomado conta do meu corpo.

Não é possível que você seja tão frouxo assim, Henrique Harone! Reaja!

A diretora da escola havia marcado um conselho de professores para aquela sexta-feira, logo, todos os alunos estavam de folga por um dia. Eu tinha trabalhado na pizzaria no final de semana passado e, naquela tarde, precisava pagar algumas contas no banco com o que tinha ganhado.

Pagar as contas era o mínimo que eu podia fazer por minha mãe depois de obrigá-la a trabalhar dobrado para conseguir saldar por seis meses as minhas despesas médicas com o braço fraturado. Antes de sair de casa, coloquei a minha melhor roupa, passei um perfume, penteei os cabelos o melhor que pude e a caminho do banco, parei em uma loja para comprar um cartão musical. A mensagem gravada nele era singela, mas eu sabia que Daniela gostava de coisas simples.

Ela teria adorado aquele poema do Pablo Neruda... Se soubesse que eu o tinha escrito e não o idiota do Claudio Fontes! pensei, lembrando o que havia acontecido um ano antes, em meu primeiro rompante romântico.

O nosso encontro estava marcado para as dezessete horas no parque que ficava a vinte minutos do banco. Cheguei na agência por volta das quinze horas e, embora já previsse a fila costumeira de pessoas para o atendimento que estaria lá dentro, eu tinha certeza que daria tempo.

Devia ter umas vinte e cinco pessoas à minha frente. Quanto mais eu me aproximava do caixa para pagar as contas de água e luz de casa, mais a Antártida em meu estômago parecia gelar. Eu nunca tinha me declarado para uma garota antes e nem sabia exatamente o que fazer.

Eu chego lá e digo o que? Aperto a mão dela ou lhe dou um beijo no rosto? Abraço? Me declaro segurando a sua mão? Me ajoelho diante dela?

Eu não tinha uma figura paterna em casa com a qual eu pudesse pedir conselhos. O meu pai tinha desaparecido há anos, o meu irmão mais velho andava ocupado com o seu serviço de gerência e só me sobrava o senhor Magno. Quem é que iria pedir conselhos amorosos ao próprio patrão?

A fila à minha frente tinha se reduzido a oito pessoas. Eu segurava o cartão musical em minhas mãos com um sorriso meio tonto no rosto. O meu relógio de pulso marcava dezesseis horas e dez minutos. As contas e o dinheiro para pagá-las estavam no bolso esquerdo de trás da minha calça jeans e foi naquele momento que uma agitação fora do comum de pessoas tomou a porta giratória de vidro do banco.

Um burburinho começou a aumentar atrás de mim e, quando aquela voz irrompeu anunciando um assalto, eu nem sequer consegui ouvir os tiros disparados para cima. A voz em minha mente gritou tão alto que eu só consegui ouvir a mim mesmo.

Isso não pode estar acontecendo! Não agora!

Na hora dos tiros, todo mundo dentro da agência se encolheu e os mais espertos começaram a se jogar no chão temendo que as balas os atingissem. Aqueles que ainda estavam em choque, como eu, demoraram mais para reagir, mas os cinco bandidos armados e encapuzados que invadiram o banco nos fizeram lembrar qual devia ser a nossa posição naquele momento.

— Pro chão, todo mundo! Pro chão! Quem não quiser obedecer vai levar chumbo!

No momento que comecei a abaixar, vi o corpo do segurança do banco encostado na porta de saída, ensanguentado. O homem negro devia ter uns quarenta e poucos anos e tinha sido baleado bem no peito, sem qualquer defesa. Um dos bandidos fazia guarda na porta com uma UZI automática na mão. Era o único que usava uma espécie de meia-calça feminina no rosto para ocultá-lo. Todos os demais usavam balaclavas pretas na cara, o que tornava a sua identificação ainda mais difícil.

Senti a mão pesada de um dos bandidos empurrar o meu ombro para baixo, me forçando a deitar no chão, e aquilo fez eu me lembrar dos ferimentos do dia do ataque à Corporação.

— Esvaziem os bolsos. Joguem carteiras, relógios e telefones celulares no chão. E não tentem nenhuma gracinha ou levam aço!

Havia uma senhora bem idosa ao meu lado que estava na fila preferencial do caixa quando o assalto foi anunciado. Ela tinha reunido as duas mãos já bem enrugadas e tinha começado a rezar baixinho. Do chão, eu vi alguns funcionários levando golpes de cabo de fuzil e sendo obrigados a indicar a direção do cofre a um dos bandidos. Outro deles ficou de guarda no meio do saguão do banco com o dedo no gatilho da sua pistola caso algum de nós fizesse movimentos bruscos. Aquele que parecia ser o mais alto dos assaltantes se aproximou dos caixas apontando o seu fuzil e foi o momento em que uma das operadoras entrou em pânico emitindo um grito agudo que enervou aquele que liderava o assalto.

— Cala essa boca! CALA ESSA BOCA!

Sem o menor aviso, o cara disparou um tiro contra o vidro do caixa e ele começou a dar comandos para que as demais mulheres atrás do balcão enchessem uma sacola com o que havia nas gavetas. Aquela que tinha gritado antes estava ferida, caída no chão. Tinha sido alvejada através do vidro.

— Encham a sacola! Agora! AGORA!

Eu tinha algo em torno de duzentos reais no bolso para pagar as contas e o meu relógio não devia valer nem isso. Mesmo assim, o tirei do braço, apanhei vagarosamente o dinheiro do bolso e colaborei, deixando tudo no chão. Um dos assaltantes começou a passar entre as pessoas recolhendo o que encontrava. Os meus companheiros de fila estavam deitados de bruços perto de onde eu estava. Todo mundo estava muito nervoso naquela situação.

O chefe do bando havia provado que tinha o dedo leve no gatilho e já tinha alvejado duas pessoas ali dentro. As minhas mãos suavam. A minha adrenalina estava à mil e eu só tinha um único pensamento quando aquele cretino se aproximou de mim o bastante para pegar o relógio vagabundo e a minha grana:

Se eu for rápido o bastante, eu posso dominar ele, lhe tirar a arma e...

Eu sabia que não era rápido o bastante. A experiência durante a invasão à refinaria de Toni Maranelli tinha provado para mim mesmo que eu não passava de um moleque magrelo de quatorze anos. Eu não tinha força, eu não tinha agilidade ou mesmo habilidade. O máximo que eu podia conseguir ali era levar um tiro. Ou pior: Eu podia colocar a vida de outras pessoas em risco. Eu estava tão indefeso quanto aquela senhora idosa ao meu lado que tremia e rezava.

Talvez eu devesse começar a rezar também!

Toda a ação dos bandidos levou uma hora. Após recolher todo o dinheiro que podiam carregar, além dos pertences dos clientes do banco, os homens nos fizeram sentar no chão com as mãos entrelaçadas atrás da nuca e nos usaram de refém por um tempo. Os funcionários do banco haviam sido amarrados para que não tentassem nada estúpido como acionar o alarme, por exemplo, e nós ficamos ali no chão, impotentes.

O gerente do banco foi arrastado até a porta de saída e obrigado a destrancá-la. Tão logo isso aconteceu, uma van preta estacionou bem na porta da agência e mais dois caras encapuzados surgiram de fora para começar a carregar o fruto do assalto. Com todos ali dentro dominados, o bando começou a agir calmamente levando uma bolsa cheia de dinheiro de cada vez para o veículo lá fora.

Onde está a polícia uma hora dessas? Estamos presos dentro de um banco sendo assaltados à luz do dia e nem sequer uma viatura passou em frente daqui? A delegacia fica a uns quinze minutos do banco. E será que esses caras sabem que esse banco pertence ao todo poderoso Paulo Menezes? Será que eles sabem que estão roubando um dos caras mais poderosos da cidade?

O último encapuzado saiu do banco por volta das dezessete horas e trinta e cinco minutos, não antes de golpear o gerente e deixá-lo desacordado no chão. A van acelerou e partiu à toda velocidade à porta do banco enquanto, lá dentro, choros de alívio e de desespero começaram a ser ouvidos. Incrivelmente, a polícia só apareceu uns vinte minutos depois para atender ao chamado do alarme que um dos funcionários da agência, enfim, pode tocar. Os presentes tiveram que prestar depoimento e todos só conseguiram ser liberados cerca de uma hora depois de todo aquele terror. A policial Regiane Loyola estava presente e, ao passar por perto, a ouvi cochichar com um colega de farda:

— Nós tínhamos que ter chegado mais cedo aqui. Como não ficamos sabendo antes desse assalto?

Pois é, policial. Como?

Apesar de todo aquele pânico, eu não soltei o cartão musical um só momento e, mesmo com ele meio amassado, me dirigi até o parque para o local de encontro com Daniela apenas para constatar o óbvio: Ela não tinha esperado por mim. Era tarde demais.


Nota do autor: Toda a saga "Pássaro Noturno" de Rod Rodman é um trabalho de uma vida toda e houve muita dedicação na construção desse universo. Se você chegou até aqui, não esqueça de votar no capítulo e comentar o que está achando da história. A sua opinião é muito importante para o autor. NAMASTE!    

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top