Capítulo 1 - A garagem

TOMO 1 - ORIGENS

TENTE SE LEMBRAR do seu lugar preferido da infância. Imagine aquele ambiente com a sua percepção da época. Você não deve ter mais do que um metro e meio. Tem pernas finas. Cabelos vastos. Os olhos em suas órbitas parecem maiores do que cabem em seu rosto... E há uma vida inteira a te esperar pela frente.

Esse lugar lhe parece espaçoso, largo, arejado, aconchegante. E você se sente bem em brincar horas e horas lá dentro. Aliás, o tempo é tão relativo quando se é criança! Eu me lembro bem do meu lugar preferido da infância. A velha garagem do meu pai.

Eu tinha sete anos recém completados. A minha família e eu havíamos acabado de nos mudar para aquela casa de subúrbio em São Francisco d'Oeste, a cinquenta quilômetros da cidade de São Paulo. Eu passava muito tempo dentro da garagem empoeirada fingindo que o Voyage 1988 do meu pai era uma nave espacial com a qual eu vivia diversas aventuras ao lado dos meus amigos imaginários Alex e Roger.

O Voyage de duas portas possuía um potente motor 1.6 e injeção eletrônica, mas, naquela época, tudo que me importava era que o meu pai deixava as chaves sobre o batente da porta frontal da sala de casa e que quando ele saía para trabalhar, se despedindo da minha mãe e dos meus dois irmãos, Lucas e Carina, eu tratava de apanhá-las para abrir a porta, afivelar o cinto, levantar voo e começar a singrar o espaço em busca de ação.

O Roger resmungava no banco de trás por nunca poder sentar no banco do carona. O Alex sempre olhava para ele e gargalhava. Colocava os pés sobre o painel do Voyage, reclinava o banco e aproveitava a vista através das janelas de vidro.

Perdi as contas de quantas vezes eu brinquei sozinho dentro daquele carro de "Defensor da Galáxia", o meu super-herói preferido dos gibis...

Eu era uma criança solitária na infância e buscava na imaginação a maioria das minhas brincadeiras. Quando o meu irmão mais velho, o Lucas, casou e se mudou de casa, acabei herdando as suas revistinhas em quadrinhos e os seus brinquedos, o que me ajudou a diminuir a solidão, bem como serviu para ocupar o meu tempo ocioso.

Agora éramos quatro em casa, mas as coisas pareciam que pioravam a cada instante. As brigas e discussões cada vez mais constantes entre o meu pai e a minha mãe aumentavam aquela sensação de vazio que eu sentia. Na época, eu não sabia explicar o que era, mas enquanto eu procurava abafar os gritos e xingos, a minha nuca latejava fortemente, como que me prevenindo de que o desfecho daquela história não seria bom.

Com o tempo, a escola e os amigos de verdade começaram a fazer com que as minhas aventuras espaciais a bordo do Voyage fossem ficando cada vez mais raras, mais esparsas. Enquanto eu crescia, a garagem ficava cada vez menor. Já não tinha mais tanto tempo vago para brincar de "faz de conta" e os estudos acabaram ocupando uma lacuna que antes só as brincadeiras pareciam preencher.

Eu sentia uma necessidade grande em aprender o que me era ensinado para não decepcionar os meus pais, para que eles não sentissem vergonha de mim. Depois do meu primeiro dia na escola, o meu pai me chamou em seu quarto e me falou francamente o quanto a educação seria importante em minha vida, o quanto ela dignificaria o homem que eu viria a ser.

O seu Jorge Harone nunca fora de falar muito com os filhos. Estava sempre sisudo. Observava mais do que falava. Mas lia muito sozinho sentado à mesa da cozinha à noite. Tinha livros sobre economia, engenharia e até física. Entendia o quanto o aprendizado era necessário.

Decidido a seguir o exemplo do velho, comecei a estudar com afinco, o que ajudou com que os primeiros anos na escola passassem depressa.

Eu já tinha nove anos quando fui acordado por uma discussão que vinha da sala e, mesmo sem saber, eu estava prestes a aprender a minha primeira lição de vida. O quarto — que antes do seu casamento e o nascimento do seu primeiro filho eu dividia com o meu irmão mais velho — estava com a porta entreaberta, mas as vozes acaloradas de meu pai e minha mãe ecoavam pela casa toda.

As palavras saiam trêmulas da boca da dona Cecília, e ele não parecia abalado com a briga. O rádio relógio marcava quatro horas da manhã. Eu me senti compelido a ir até a porta e ver o que estava acontecendo. Através da fresta, eu vi o meu pai em pé diante da porta de saída. Estava vestido com uma jaqueta de couro e uma calça jeans. Ao seu pé estava uma mala preta grande além de uma bolsa azul-escuro onde ele costumava guardar as ferramentas de seu trabalho como mecânico hidráulico. A minha mãe estava em pé diante dele. Vestia um robe verde e estava banhada em lágrimas.

— Isso não é justo! Depois de todos esses anos você simplesmente decide ir embora? E como vão ficar as crianças?

Carina, a minha irmã caçula, apareceu à porta da sala vindo da cozinha. Esfregava os olhos após ser acordada pela discussão dos nossos pais. Ela era dois anos mais nova que eu e, enquanto se aproximava da nossa mãe, Jorge colocou a bolsa nas costas, apanhou a mala, ergueu a mão sobre o batente da porta para apanhar as chaves do Voyage e saiu.

Ele deu as costas para as duas sem nem olhar para trás e, naquele momento, Cecília ajoelhou-se em prantos enquanto a Carina a consolava acariciando os seus cabelos negros.

A minha primeira reação foi atravessar a sala e ir atrás dele. Enquanto eu andava pelo quintal a caminho da garagem, a nossa cadelinha vira-latas, Suzy, veio assustada ao meu encontro. De onde eu estava, consegui ouvir o ronco do motor do Voyage. Corri em direção à garagem. Ele manobrou o carro para posicioná-lo de frente para a avenida que desembocava em nossa rua. Eu ainda consegui encará-lo através do vidro. Os seus olhos sempre sombrios fitaram os meus por alguns segundos. Ele engatou a marcha e desapareceu logo em seguida.

Assim como mamãe havia feito, eu ajoelhei com o peito invadido pela tristeza. Me senti abandonado e indefeso. A rua de casa estava deserta. A minha única companhia era a Suzy que começou a lamber o meu rosto enquanto algumas lágrimas esboçavam cair, tão frias quanto o olhar de Jorge. Aquela foi a última vez que vi o meu pai, o que me ensinou a dura lição. Mais cedo ou mais tarde, um dia as pessoas vão embora.

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