Capítulo XXII
Segunda-feira, 15 de setembro de 2014
Manhã, 07h23
Harley precisava centrar sua mente, sabia disso. Se seu estado mental estivesse como deveria, então ela certamente teria percebido toda a armação, porque não importava quantas vezes Hawkins negasse, era exatamente isso que acontecera, afinal, se a detetive tivesse decidido ficar na delegacia na tentativa de expô-lo, a culpa recairia sobre ela.
Laurence Hawkins era astuto, inteligente e manipulador.
Tudo que ela também era e, por isso, a mulher sentia seu ódio por ele crescendo internamente.
Assim que chegou à casa de Eldric, um arquivo intitulado Caso Lilá Goldstein alcançou sua caixa de e-mail. Primeiro, ela apanhou a chave exatamente debaixo do vaso marrom, não o vermelho ou o preto, que também havia ali, e depois destrancou a porta, sentindo uma fresta de ar frio acolhendo-a, resultado do piso de porcelanato.
Tem certeza de que está ao lado das pessoas certas?
Aquela foi a única frase escrita no e-mail, que ela decidiu não abrir de imediato, largando suas malas no sofá de couro, na sala, uma estranha sensação subindo por seu peito, como se dissesse: você não pertence aqui. Não sem ele. Aqui você também transpassa e se torna uma invasora.
A casa era grande, e isso diminuía Harley ainda mais. No andar inferior, três cômodos, no superior mais três, além de um pequeno armazém aos fundos, que ela avistou pela janela da cozinha, o ambiente que ela decidiu ficar logo que chegou, vasculhando os armários de madeira fincados na parede em busca de algo para beber.
Desculpe, Eldric.
Era um assalto à propriedade? Ela não sabia mais o que pensar quando finalmente encontrou uma garrafa de vinho.
Merda...
Harley nunca gostou de vinho. A maioria deixa a boca seca, traz um tanino estranho aos lábios e não tem o mesmo efeito que a vodca sobre seu corpo, porém ela não teve muita escolha e, como uma das quatro garrafas no fundo do armário esquerdo já estava aberta, foi o que ela decidiu beber.
Merlot. Um tom de sangue que inebriava o próprio olhar e a levou a perceber como os braços dele estavam limpos do sangue de Lenny Lover, mas embaixo das unhas os resquícios continuavam.
Um lembrete de sua selvageria.
Um lembrete da minha selvageria, que não fiz nada e o assisti ser espancado.
As imagens eram tão vívidas que ela podia materializar os dois homens se massacrando – bem, ao menos Eldric o massacrava – com os punhos, sujando o porcelanato tingindo os armários com respingos de sangue.
O sangue que ela bebia.
O Merlot.
A mente pesou tanto que duas taças foram em um piscar de olhos, cobrindo sua boca com a uva maturada e aquecendo seu interior à medida que subia para os cômodos no segundo piso, jogando suas malas sobre o primeiro quarto, pequeno, com uma cama de solteiro e armário de correr.
Acho que é aqui que eu devia ficar...
Porém a ideia se desfez rápido e ela se encaminhou para o segundo aposento, imaginando qual seria o que Eldric dormia, e descobrindo-o assim que viu uma cama de casal um tanto bagunçada, com quatro travesseiros, dois em cada lado, uma cortina de bocado, tênis jogados pelo chão e um pijama sobre a beirada do edredom.
Ela sentou-se ao lado do tecido, a taça apoiada sobre as pernas conforme apanhava a camiseta dele, aproximando-a do rosto, sentindo como o seu perfume amadeirado estava até mesmo em seus trajes de descanso.
Um descanso que ela precisava.
Um descanso que ela se forçou a ter, deitando-se sobre a cama, sentindo a maciez dos travesseiros conforme os olhos perdiam-se em uma escuridão onde nada se podia sonhar.
...
16h40
Seu corpo a acordou no início do fim da tarde, com o crepúsculo dando seus primeiros toques no horizonte, os cabelos dela caindo sobre os olhos como teias emaranhadas, alertando-a de como um banho era necessário.
E foi o que ela fez. Tirou as roupas, alcançou o banheiro, se levou e, depois, secou-se na única toalha dentro do box, embaçado pela água quente, sabendo que teria de alertá-lo sobre tudo que estava fazendo.
Depois, quando seu corpo pareceu agradecê-la pelo banho rejuvenescedor, sentou-se de volta na cama, o celular sobre as mãos conforme poucos pingos ainda escorriam das pontas de seu cabelo, relendo a frase de Laurence Hawkins em seu e-mail, mordiscando o lábio antes de, finalmente, abrir o arquivo.
Havia um relato e dois vídeos dentro da pasta. Com a mente ainda sentindo resquícios de vinho, a detetive decidiu assistir ao primeiro vídeo, o qual mostrava o rosto de Eldric embaçado, sentado diante uma mesa de metal.
Por não saber onde seus fones de ouvido estavam, Harley acabou por, a quase todo instante, olhar para os lados, certificando-se de que realmente estava sozinha naquele casarão, onde a voz de Eldric foi ouvida de um jeito como nunca antes:
"Eu já disse que fui eu, o que mais você quer?" Estava embargada, quase bêbada, e os olhos se reviraram ao responder, os ombros largos justos naquela camiseta de manga comprida cinza, os cabelos maiores do que agora.
"Sr. Heartland, este é o vídeo em que a sua versão dos fatos é ouvida" A voz de Lenny Lover era fácil de notar, fosse ela metálica ou não, com chiado ou sem. Mas, ainda assim, você nunca se acostuma com a voz de um monstro. "Conte-me o que aconteceu no seu último interrogatório com o Sr. Gayle a respeito do caso de Lilá Goldstein."
Os olhos dele moveram-se na direção da câmera, assustadores, cercados de olheiras inumanas, de tal modo que desviam o seu olhar de suas mãos, machucadas, roxas, com curativos e remendos sobre a pele.
"Não há nada que eu já não tenha contado, delegado."
"Sr. Heartland..."
"Escute, estou cansado, um tanto bêbado e com dor. Se quer que eu diga algo específico, pergunte de uma vez." Sua voz escapou fria mesmo que para um vídeo.
"Vamos treinar novamente: por que o senhor surrou o rosto de Gayle Lavender ao interrogá-lo?"
Harley estranhou o termo "treinar", mas antes que pudesse pensar algo, Eldric jogou-se para trás em sua cadeira e cruzou os braços, os músculos ficando maiores ao responder:
"Porque ele merecia." Não havia traços de mentira em seu olhar.
Um bufar de Lenny antes de prosseguir.
"Sabe que não é isso que tem de falar, Eldric."
"É a verdade" retorquiu inexpressivo. "Ele admitiu, diante de mim, que colocou a filha para dormir e depois a estuprou. Eu o surrei até que falasse todo o resto, me desse os detalhes."
"Não é como trabalhamos..."
"É como eu trabalho, delegado" sua voz soou displicente e uma sobrancelha se ergueu, um nó surgindo na garganta de Harley. "Sabe, há muitos filmes, por aí, onde pessoas cometem crimes terríveis, matam, estupram, torturam..., mas, no fim, são apenas filmes, não é? O problema é que aqui estamos diante uma realidade horrenda demais para lidar apenas com palavras, senhor delegado. Gayle Lavender mereceu o que eu fiz e faria novamente."
"Você só devia tê-lo interrogado."
"E o fiz. Vocês têm uma confissão." Eldric ergueu-se no vídeo. "Se não gostaram, vão vocês mesmo buscar outra no inferno de onde ele saiu..."
Então a câmera cegou-se e o vídeo se encerrou.
Harley ainda não tinha certeza do que havia assistido, mas sabia que seu peito pesava e a respiração tornou-se dolorosa.
A mulher debruçou-se sobre a cama, procurando pelas suas malas, lembrando-se que as deixou no sofá no andar inferior, o que a fez se esgueiras pelas cobertas, descer os degraus e alcançar o cartão de Laurence Hawkins em meio as suas coisas.
HARLEY: O que é isso que você me mandou?
Dois minutos se passam depois de ela adicionar o número em seus contatos e ele já responde:
HAWKINS: Assistiu aos vídeos?
HARLEY: Um deles.
HAWKINS: Veja os dois, então.
HARLEY: Responda o que eu pedi.
Alguns instantes sem resposta, até que, no cursor, lê-se "digitando".
HAWKINS: Um dos vídeos é o ensaio que Lenny Lover fez ao lado do seu namorado depois de a família de Gayle Lavender processar o condado por negligência e abuso de poder.
Harley franziu o cenho.
HARLEY: Ele fez tudo o que Lover falou?
HAWKINS: Assista ao segundo vídeo.
E ela o obedeceu, abrindo novamente seu e-mail, agora sentada sobre o sofá, as pernas cruzadas e as juntas das mãos tensas conforme a mulher apertava o play na segunda gravação.
Eram dois homens, Eldric, indiscutivelmente pela postura larga, e um homem mirrado, magricela, de rosto minguado e cabelo liso, olhos profundos, sobrancelhas já com sinais grisalhos e um nariz de gancho.
Um nariz que se desfez na mesa depois que Heartland arremessou sua cabeça contra o metal maciço, o sangue transbordando pelas beiradas, escorrendo como fios de tecido conforme o homem gritava, mudo, já que o vídeo não tinha som, mas sua dor era audível.
Gayle caiu ao chão, tombando da cadeira, a qual Eldric usou para trancar a porta apenas para, em seguida, chutar as costelas do homem, berrando algo que Harley não conseguia decifrar. O único momento em que ele parou, realmente, para respirar, foi quando o Sr. Lavender já não mais tentou se erguer, apenas esmorecendo em sua própria poça de sangue enquanto Heartland penteava seus cabelos para trás.
HAWKINS: Assistiu?
Harley sentiu o maxilar endurecer.
HARLEY: O que houve depois?
HAWKINS: Nada disso chegou a ser mostrado ao juiz no julgamento dele contra as acusações da família Lavender.
Ela não respondeu, sentindo os pulmões ardendo dentro do peito quando o homem voltou a digitar.
HAWKINS: Há um terceiro vídeo, no qual o Sr. Heartland finalmente acerta a versão que deve contar ao juiz para sair do caso, sem dizer que estava bêbado, sem afirmar que Gayle Lavender merecia.
HARLEY: Mas era verdade?
Alguns minutos de silencio. Ela roeu a unha do indicador, encolhendo as pernas.
HAWKINS: O quê?
HARLEY: Gayle realmente estuprava a filha?
HAWKINS: Sim. Na verdade, o caso não aconteceu aqui, os Lavender são uma família da capital, mas o homem tentou se esconder em Painswick e, por azar dele, encontrou com o Sr. Heartland.
Ela digitou: então ele merecia. Porém, deletou aquilo antes de finalmente mandar:
HARLEY: Mas o que você quer com tudo isso? Por que me mandar essas coisas?
HAWKINS: Porque eu sei que você desconfia de mim, detetive, e não a culpo, mas não ache que está ao lado de pessoas santas.
A mulher respirou fundo e não respondeu, encarando além da janela da sala, que dava de frente para a casa vizinha, com um telhado que mais parecia uma flecha rasgando o céu. Então o celular vibrou com uma nova mensagem.
HAWKINS: Você sabe que o Sr. Heartland não sairá tão facilmente daquela cela, detetive, especialmente se Lenny Lover morrer.
Harley sentiu um tijolo descer por seu estomago.
HARLEY: Ele pode morrer?
HAWKINS: Conversei com os médicos e a situação dele é muito instável. O Sr. Heartland sabia onde acertar os socos, detetive.
Ela mordeu o interior da bochecha.
HAWKINS: Isso agrava tudo.
Naquele momento, ela soube que não havia outro caminho a seguir. Para resolver tudo, Harley teria de suprimir seu orgulho.
HARLEY: Talvez não.
HAWKINS: Como assim?
HARLEY: Se Lenny Lover for comprovado como o assassino de Ursel e Lucas, as pessoas não ficarão tão emocionadas quanto ao fato de o delegado estar em coma no hospital.
Ela o viu digitar.
Apagar.
Digitar novamente.
HAWKINS: O fato é: até a última instância, vamos lutar pela inocência de Lover. Ele fazia parte da corporação. Isso iria enfraquecer a confiança na polícia.
HARLEY: Elas não confiam mais. Por isso, ouça o que tenho a dizer.
Então, ela ligou para ele, dois toques antes de a voz de Laurence soar em seus ouvidos como um barítono:
— É melhor que seja a ideia mais plausível, Cleanwater.
— Vocês querem evitar um escândalo maior e eu quero tirar um amigo detido. Voce não queria um acordo? Faremos um.
— Não é você que dita as regras...
— A partir de agora, é sim — interrompeu-a ele. — Se quer a minha ajuda, se não quer que eu espalhe por toda a Inglaterra sobre a ineficiência e corrupção dessa gestão, Sr. Hawkins, então vai acatar aos meus termos.
— Ah é? E como vai fazer tudo isso? Com que provas?
Ela colou os lábios em um sorriso.
— Vai querer arriscar?
Alguns segundos de quietude no outro lado da linha.
— Se ligou apenas para me ameaçar, já podemos encerrar por aqui. — Sua voz não estava tão feliz quanto mais cedo, ao encurralá-la. Era ele que, agora, sentia medo. — Estaria arranjando um inimigo poderoso.
— Ótimo, ao menos estaríamos no mesmo nível — replicou rapidamente, umedecendo os lábios, erguendo-se, usando o braço esquerdo de apoio ao direito conforme parava ao lado da cortina, o anoitecer alcançando sua pele com feixes fracos de luz. — Sr. Hawkins, a minha proposta é simples: inverta seu plano.
— Meu plano?
— Não defenda o delegado Lover. Culpe-o.
Laurence pigarreou no outro lado.
— Você está louca, só pode ser... — Sua voz estava lucidamente incrédula. — Acabei de lhe dizer que o objetivo da administração é outro!
— E é exatamente por isso que vão falhar. — Harley adquiriu mais firmeza conforme as ideias elucidavam em sua mente.
— Creio que vá me explicar encarecidamente o motivo — zombou do outro lado.
— Lenny Lover, assassino ou não, é um pedófilo. É ao lado dessas pessoas que o Condado quer estar? — Suas sobrancelhas arquearam-se. — Culpe-o. Temos quase certeza de que ele era o responsável.
— Na verdade, não foi encontrado vídeo algum sobre Ursel ou Lucas naquele computador. Passaram o dia investigando e nada. — Respiração pesada, ele sentando-se sobre uma cadeira. — O delegado mantinha tudo em disquetes e há centenas de vídeos.
— Então assista a cada um.
Nenhuma resposta, até que:
— Sabe como é difícil, não é?
Os olhos dela não se encheram de lágrimas, essa vez, ao admitir;
— Acredite, Sr. Hawkins, eu sei, e por isso insisto que aceite minha proposta.
— Terei de passar aos meus superiores, sabe disso, não?
— Que seja, desde que isso solte Eldric. Este será o nosso acordo.
— O que você fará?
— O que nós faremos, Sr. Hawkins — ressaltou. — Lenny Lover, assassino ou não, será o culpado.
Ela pode imaginar como os cílios de Laurence se agitaram, seu corpo indo para frente na cadeira.
— Quer incriminá-lo?
— Sim... — Sua voz travou e ela girou nos calcanhares, afastando-se da janela quando um garotinho a viu na casa da frente.
— Srta. Cleanwater...
— Poupe-me de seu discurso moralista e foque no que digo — interpelou ríspida. — Se tem algo que essa maldita cidade tem mostrado é que as pessoas não querem a verdade, Sr. Hawkins, elas querem alguém para culpar.
Silêncio do outro lado. A detetive continua:
— Por que não culpar um pedófilo? Enquanto isso, seguimos com a investigação por trás de tudo. Vocês conseguem sua discrição, resolvemos o caso e Eldric fica livre.
Mais silêncio. Talheres batendo ao fundo.
— Você tem certeza de que Lenny Lover é o culpado?
— Se não for, estaremos às cegas mais uma vez, porque ele é meu último suspeito.
— Não posso aceitar seu acordo sem passar aos superiores, tem ciência disso, não é?
— Sim.
— E eu preciso de provas mais fortes que o liguem ao crime.
Ela sabia que talvez ele dissesse isso.
— Até agora, só temos algo que o ligaria, mas não temos certeza.
Aquilo fez os olhos de Harley se acenderem.
— O que seria?
— É uma pista fraca, mas...
— Amor, vem jantar! — Uma voz feminina chamou-o ao fundo.
— Já vou! — gritou ao fundo. — Desculpe, minha namorada veio passar a noite aqui.
Harley nada disse, deixando-o retomar sua linha de pensamento sozinho.
— Encontramos uma nota fiscal de uns cinco anos atrás, na casa de Lenny Lover, que mostra que o computador fez parte de uma compra maior, dez unidades, e isso ligaria a prova às proximidades de onde um dos corpos foi encontrado...
— Vem senão vai esfriar! — A voz era insistente.
— Vou te encaminhar uma foto. Espero que descubra algo.
Eu também, Sr. Hawkins, eu também.
Mas ela não chegou a digitar isso nem mesmo ao receber uma imagem de uma nota fiscal amarelada, com vincos profundos de alguém que a amarrotou no bolso das calças.
Bom, já é um lugar para recomeçar.
No topo da nota, próximo ao nome da loja e o CNPJ, estava a localização:
Exeter.
Cornualha.
*Olha mais um capítulo aqui!!!! Perdão pela demora, tem sido dias doidos, maaaas espero que tenham gostado!!! Hehehe quais as teorias com esse final, hein?
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