Capítulo XIII
Sexta-feira, 12 de setembro de 2014
Manhã, 08h01
Na manhã seguinte, a neblina se abateu sobre as copas das árvores e serpenteou a rua como se ela a pertencesse. Harley, que acordar bem antes do que Eldric, vítima de uma dor de cabeça que ela sabia que não seria passageira, observava o exterior com os braços cruzados, os olhos atentos à camada branca extra naquela vista que misturava o bucolismo e o urbano. O Homem e a Natureza.
Apesar da dor em suas têmporas latejantes, a detetive conseguia raciocinar razoavelmente bem, e a falta de piedade em todos os assassinatos a fez se perguntar: que tipo de Deus daria à sua criação uma natureza tão cruel? Os religiosos explicariam que o Diabo os teria corrompido, mas... parando para analisar, Harley sabia que, na verdade, o único momento em que o homem não fora mal era exatamente quando ele nada sabia, quando seus lábios ainda não haviam tocado a fruta da verdade.
Mas valia a pena esse sacrifício? Viver sem saber, sem ter consciência do que faz...? Sem saber a verdade, como reconhecer o seu certo e o errado?
Eram perguntas demais para o início da manhã e, ainda que quisesse respondê-las, o corpo de Cleanwater sabia que precisava resguardar mesmo a mais ínfima energia para o decorrer do dia. Afinal, não fora apenas a dor de cabeça que a acordou, mas também o tocar de seu celular, o qual a mulher atendeu rapidamente para não acordar Heartland, que respirava denso contra o travesseiro que agarrou.
— Cleanwater — atendeu com a voz sonolenta.
— Aqui é o delegado Lover — apresentou-se o homem do outro lado. — Sei que está cedo, mas creio que vocês já estejam de pé trabalhando na investigação.
Harley obviamente percebeu que naquela frase havia uma pergunta subentendida, a qual ela não fez questão de responder, retendo-se a perguntar:
— O que quer?
O homem pigarreou e Harley percebeu, com um leve movimento das costas, que talvez estivesse acordando Eldric, mesmo que falasse em sussurros. Assim, ela correu para a pia do banheiro e encostou a porta atrás de si.
— A questão não sou eu, Cleanwater, mas sim Elena. — A voz dele escapou fria, tal qual o ar do lado de fora, que encontrava seu caminho para dentro do quarto por entre a fresta da janela. — Ela está chamando por você.
A detetive franziu o cenho.
— Então por que não é ela a me perturbar logo cedo? — resmungou estreitando o olhar para a figura que se apresentava diante o espelho; cabelos amassados, os lábios secos, sem batom algum, mas desejando um cigarro, olheiras e sobrancelha despenteadas. Ela teve de admitir: já esteve em dias melhores.
— Ela está abalada pela morte do filho, detetive, espero que entenda isso — explicou em um tom severo que fez as sobrancelhas de Harley se alinharem. — Recebemos ontem na delegacia a confirmação e eu fui avisá-la.
— Tudo bem — anuiu a mulher. — Eu verei o que posso fazer.
— O que você pode fazer é voltar! — insistiu e ela lhe lançou uma sobrancelha erguida, apesar de Lenny não estar diante dela.
— Como eu disse, verei o que posso fazer. — Então Harley encerrou a chamada, abriu a torneira e molhou o rosto, respirando fundo, apoiando-se na pia logo em seguida.
Sim, ela teria de voltar para Painswick, mas o fato de ela estar olhando para além da janela do quarto, agora, trocando o peso do corpo entre as pernas, não adivinha da ligação, mas sim da mensagem que recebera minutos depois, de Felícia, com o endereço de Dariel Adams. O homem morava na Cornualha, e Harley conseguia quase ouvir o arrebentar da maré contra a costa, o modo como o sol surgia por detrás dele e o iluminava em diferentes tons durante todo o dia, a maresia grudando na pele, as garças grasnando alto e algumas crianças rindo conforme corriam pela praia.
Era essa a visão que a detetive desejava ter, mas, assim como Heartland, parece que todo lugar de enorme beleza está apenas esperando para se desdobrar em um momento infernal. Será que, então, os mais belos são os mais perigosos? Para isso a detetive não tinha uma resposta, afinal, se a vida fosse como em filmes de horror, os monstros estariam bem distintos, o que seria tão mais fácil...
Mas na realidade eles vem em diversas formas, e até o sorriso mais gentil pode vir de um assassino.
Atrás da detetive, Eldric se remexeu na cama e o ar escapou por entre os dentes dela. Precisaria convencê-lo a seguir com a investigação, ir atrás do pai de Ursel, enquanto ela teria de enfrentar Elena Hargroove em sua perda.
Porém, quando a detetive sentiu os pelos de seus braços se arrepiando, ela sabia que não fora por causa dos ventos gelados; era a apreensão de que algo muito ruim estava prestes a acontecer, que tocava o âmago de seu peito e fazia seus olhos arderem.
...
09h36
Depois do café da manhã, no qual eles resumiram sua conversa entre "bom-dia" e "me passa o açúcar", Eldric antecipou-se a sair do hotel, os últimos vestígios da neblina conforme ela se dissipava. O homem ainda estava sonolento, e ele podia notar como Harley estava mais desperta do que ele, o que o fez considerar que, talvez, ela tivesse acordado bem antes.
Ele havia chorado na noite passada. Ele não conseguia se perdoar por isso.
Merda! Seu filho da puta idiota!
Se xingar já era comum, porém era o motivo que lhe perturbava, tanto quanto aquele caso. Eldric Heartland jurou para si mesmo que nunca mais derramaria uma lágrima por seu passado, porque ele não sentia tristeza pelo o que houve, mas sim fúria. Fúria por não ter protegido sua mãe dos tapas que o pai lhe dera. Fúria por não ter tido força o suficiente para tirá-los de casa antes. Fúria por realmente ter ficado quieto enquanto seu pai passava a mão por todo seu corpo.
E, de alguma forma, ele sentia que Harley podia notar o modo como a raiva já fazia tão parte dele quanto a nicotina fazia dela, por isso Eldric preferiu ignorar tudo o que contou na noite passada e também o que ouvira da detetive.
Ainda assim, ali estava Cleanwater, aproximando-se com um cigarro já entre os lábios, fumando um e depois outro, sem falar nada, até que o segundo começou a chegar ao seu fim e ela disse:
— Dariel Adams mora em Callington, na Cornualha. — Seu olhar permaneceu distante, fitando o modo como as folhas das árvores se moviam conforme a brisa.
— Eu sei — admitiu ele mordendo a bochecha conforme apalpava o bolso de trás em busca de um cigarro.
— Aqui — ofereceu ela lhe entregando um e acendendo-o para ele.
Eldric não agradeceu e toda a conversa tornou-se tão densa que parecia que eles estavam se conhecendo novamente, desde o início e de uma forma bem desconfortável. E Harley sabia que não tinham tempo para isso, de tal forma que falou:
— Olhe, podemos fingir que nada aconteceu na noite passada e seguimos com nossas vidas, tá bem? Mas não podemos deixar que isso nos atrapalhe, não agora.
Os olhos dele lentamente foram na direção dela.
— Você e falou sobre o seu filho...
Harley engoliu em seco ao relembrar a mentira a respeito de Dalton.
— Sim.
— E ainda quer ficar ao meu lado?
Ela franziu o cenho e um esgar de surpresa surgiu em seu rosto.
— Eldric, se lhe contei algo do tipo não foi porque queria afastá-lo, mas porque confio em você.
Claro, só não o suficiente para dizer toda a verdade, pensou ela ao mesmo tempo.
Geralmente, quando falamos algo tão pesado as pessoas vão embora — afirmou tragando a primeira vez, os lábios repuxados e os olhos apertados na direção de uma lojinha de conveniência.
— Foi o que aconteceu? — indagou ela e o homem sorriu apenas para, em seguida, manear a cabeça de um lado para o outro.
— Não me analise, Cleanwater — retrucou e ela deu de ombros.
— Justo. — Harley permaneceu fitando-o. — Quer dizer, então... que você irá embora?
O pomo de Adão dele subiu e desceu pelo pescoço largo conforme a fumaça invadia seus pulmões e os aquecia.
— Não, foda-se as pessoas que fazem isso. — Ele lançou a bituca para frente e irou nos calcanhares, ficando de frente para ela. — Vamos para a Cornualha.
Um tijolo desceu pelo peito da mulher e os olhos vidraram nas feições dele antes de baixarem na direção de seus pés.
— Harley?
— Eu preciso que você vá para a Cornualha, Eldric — começou sentindo algo em sua garganta, que não queria descer, por mais que ela o forçasse a isso. — Elena está chamando por mim em Painswick.
O cenho dele fechou-se, sério.
— Como sabe disso? Ela te ligou?
— Lenny, na verdade — explicou com certo desânimo, estudando as reações do homem à sua frente, o qual enterrou as mãos nos bolsos detrás das jeans.
— Um dos suspeitos pede para você voltar, e você vai?
Ela estreitou o olhar conforme ele dava um passo para frente, os seios dela tocando seu corpo firme.
— Não acha que ele está chamando-a para nos despistar? Você mesma disse que o assassino quer nos retardar, Harley.
A mulher teve de respirar fundo antes de responder:
— É por isso que preciso que vá para a Cornualha, Eldric. — Ela tocou seu peito sob a camiseta amassada. — Lenny sempre desconfiou de mim, não de você. Se eu estiver onde ele pode ver, então talvez corramos menos riscos.
Eldric teve de concordar com aquilo, ainda que, em seu rosto, não mostrasse animação alguma.
— Riscos? Acha que o assassino viria atrás de nós?
Por mais que doesse em seu coração dizer isso, não teve outro jeito:
— Ele está matando crianças, Eldric, não há limites para alguém assim.
...
Já era quase meio dia e faltava apenas meia hora para alcançar Painswick naquela porcaria de ônibus de viagem, o qual fazia o trajeto parecer quase interminável, a vista de Harley cansando de ver enormes pastos, muros feitos de rochas cobertas por vinhas e algumas ovelhas, que passaram tão rapidamente que poderiam enganar a vista como se fossem nuvens rentes à grama.
Talvez fosse um trajeto agradável de se fazer em um carro de família, ouvindo músicas já esquecidas das quais a memória se lembra apenas o refrão, mas que, de qualquer maneira, não importa, porque a companhia das pessoas dentro do carro era a melhor possível.
Mas, naquele caso, a companhia de Harley poderia ser um homem devorando um burrito duas fileiras de banco para frente, o cheiro de feijões, pimenta e coentro atiçando o estomago dela, que a punia por não ter comido mais de duas torradas no café da manhã. Então, antes de olhar sua segunda opção, ela apenas apanhou uma garrafinha de vodca — a qual se lembrou de apanhar antes de saírem do hotel —, e virou-a nos lábios, digerindo o álcool tal qual os olhos da mulher faziam, com uma palavra-cruzada, sentada na fileira de trás, cabelos altos, castanhos, e um rosto esguio.
Além deles dois, o ônibus fez algumas paradas e mais três pessoas adentraram a viagem antes que a primeira placa de Painswick surgisse, porém eram tão desinteressantes que Harley apenas preferiu continuar ali, sozinha, mesmo que seus pensamentos não a deixassem descansar.
Com o brilho da tela do celular ferindo seus olhos, ela leu novamente a mensagem de Felícia om o endereço de Dariel Adams. Mas é claro que a mulher não iria satisfazer-se com a ajuda, de tal forma que havia uma segunda mensagem logo abaixo:
FELÍCIA: Poderia vir me visitar. Podemos ir até a Picadilly Circus jantar, e você pode dormir lá em casa.
Harley sorriu ao ver que Felícia omitiu o fato de que seu marido também estaria naquela casa, e a detetive nunca gostou dele.
FELÍCIA: Apenas pense nisso, por mim.
E ela pensaria, mais tarde, porque agora sua mente apenas parecia elaborar a lista de suspeitos:
Dariel Adams
Lenny Lover
Paul Dickens
Os dedos de Harley detiveram-se antes de digitar o último nome.
Elena Hargroove?
Cada vez aquela teoria se tornava mais improvável, porém não seria prudente descartá-la de imediato, assim como não era possível afastar o nome do delegado de sua mente. Sim, sim, ela sabia que ele poderia realmente ser apenas um homem prepotente, mesquinho e que não quer seu nome e o de sua cidade sujos, mas essa seria uma hipótese tão fraca quanto a de Elena.
Sempre chega a hora, em uma investigação, que suas opções são as mais difíceis, que as pistas acabam e o caso fica estagnado. Mas, ali, parecia que quanto mais tentavam afunilar as teorias, mais complexas elas ficavam, porque todos naquela cidade tem segredos e mentiras.
Elena Hargroove: a mãe "perfeita".
Paul Dickens: o amante estéril.
Lenny Lover: o delegado hostil.
Dariel Adams: o pai distante.
Harley respirou fundo recostando a cabeça sobre o vidro, deixando-se levar pela vista que começou a se tornar mais familiar aos poucos. Familiar o bastante para que ela fechasse seus olhos com força e tentasse centrar sua mente.
Mas a verdade era que todos os substantivos que descreviam os suspeitos poderiam ser substituídos por "assassino". E a detetive não se surpreendeu ao não ver tanta diferença assim.
...
Antes de ligar para Elena, Harley precisou tomar um banho no hotel. A pele grudava tanto com o suor que sentir o sabonete sobre os poros foi uma das melhores sensações, as roupas largadas no piso do quarto para serem lavadas depois, os pés agradecendo-a por saírem dos saltos, mesmo sabendo que entrariam neles novamente em alguns instantes.
Depois de se secar, ela desembaçou o espelho, encarando furtivamente o cabelo enroscado em teias negras que mais pareciam linhas de piche, apanhando o secador debaixo do armário e colocando-o sobre a pia.
— Elena? — chamou quando ligou para a mulher, tocando os botões do secador para aliviar o nervosismo.
— Quem é? — A voz da mulher, mesmo distante, parecia diferente. Seu tom não estava tão jovial, como ela sempre tentava transpor, e Harley considerou que a morte de Ursel tivesse sido a responsável por isso.
Porém ela descobriria a verdade dentro de minutos.
— Cleanwater. O delegado Lover disse que queria falar comigo.
Algo caiu no outro lado da linha. Parecia uma panela. O estômago de Harley roncou.
— Ah.... ah, sim, é verdade, eu... eu pedi.... — Elena estava tão distante que não parecia estar em casa. — Bem, eu só... eu estou fazendo o almoço..., mas podemos...
— Ótimo, vou aí almoçar com você.
— Não, Harley, espere....
Mas antes que Elena pudesse terminar de protestar, a detetive desligou o celular.
...
Confrontar a Sra. Hargroove seria estimulante, mesmo que tão difícil, se Ursel não estivesse morto, porém a realidade era outra, e tocar no fish and chips parecia uma tarefa árdua demais para que a mãe realizasse, e a própria detetive se sentiu desestimulada a comer, porém seu corpo compeliu-a a devorar as tiras de peixe uma atrás da outra, conforme conversavam:
— Eu sinto muito pelo o que aconteceu com Ursel, Elena. — A detetive decidiu abandonar quaisquer impessoalidades na frase para que sua voz emanasse com maior empatia, porém seu tom foi seco, áspero, pois ela sabia que havia algo errado, e assistir Elena em silêncio era enervante. — E eu entendo perfeitamente se não me quiser mais aqui.
Não houve uma reação específica no rosto da mulher; seus lábios se moveram devagar, secos, os braços cruzados, como se negando a refeição que ela própria se servira, os cabelos sem brilho caindo como duas cortinas diante seu rosto ao responder em um fiapo de voz:
— Fui eu que te chamei aqui, não foi?
Harley ergueu uma sobrancelha.
— Sim.
— Então espero que fique.
— Ficarei, Sra. Hargroove, mas... — Harley tomou um segundo para si, baixando uma das últimas tiras de peixe de volta ao prato, entrelaçando os dedos em seguida — ...apenas se realmente falar comigo.
Demorou alguns segundo para Elena responder:
— Não.
A detetive franziu o cenho.
— Não?
— Você não vai ficar aqui apenas se eu falar. — O rosto da mulher se ergueu como uma carranca pontuda, as maçãs do rosto saltando, os olhos profundos e o queixo pontiagudo, o que fez Harley se perguntar há quanto tempo ela deixou de se alimentar direito.
Para uma mãe que quer ser perfeita, a aparência é tudo.
Mas talvez não haja perfeição alguma na morte.
— Elena...
— Vai ficar aqui porque eu estou pagando você, Cleanwater — interrompeu-a para completar a frase, os olhos vidrados na detetive, que se recostou sobre a cadeira, surpresa, olhando-a na outra extremidade da mesa de vidro.
— Okay... — O tom de Harley escapou um tanto evasivo e os olhos estreitaram-se. — Então, comece a falar.
Nada. Nem um mero murmúrio.
Elena a queria ali, mas não parecia estar conseguindo reunir forças — ou coragem o suficiente — para de fato expor o que afligia seu peito, o que a apavorou na noite passada e a perseguiu durante toda aquela faixa da manhã.
— Está me pagando para perder tempo, Sra. Hargroove? — perguntou irônica, olhando-a debaixo, atraindo seu olhar novamente, que havia se desviado para o prato intocado. — Ou para pateticamente te assistir encarando o prato? Acho que dá no mesmo.
— Me dê um tempo, está bem? — pediu de imediato, erguendo a mão apenas para voltá-la para debaixo dos braços, como se ela fosse sua própria camisa de força. — Paguei para você encontrar meu filho, e você o fez, quer que eu lhe parabenize por isso?
Harley mordeu o lábio e respirou fundo, os olhos piscando lentamente, as narinas dilatadas e o gosto de óleo ainda em sua boca.
— Seu cheque já está no balcão da cozinha — completou Elena com um dar de ombros, os olhos correndo a vastidão da sala, seus tons de branco, a imaculada limpeza e os pequenos cristais nos detalhes das estantes, a claraboia lançando os raios para metade da sala de estar.
— Acho que deveria conversar com alguém, Sra. Hargroove.
— Já estamos fazendo isso.
— É claro que não estamos — retrucou em meio seguindo, debruçando-se sobre a mesa. — Isto é andar em círculos, Elena, não vai levar a lugar algum.
A mulher baixou o olhar para os braços cruzados, colocando a perna direita sobre a esquerda.
— Precisa de alguém em quem confie, para se abrir, um psicólogo, talvez...
Harley percebeu como a palavra "psicólogo" a feriu, fazendo-a franzir o cenho em um esgar que retraiu seus lábios.
— Já foi a um? — insistiu a detetive, estudando-a.
Elena negou.
— Seus filhos já foram?
A mãe, de repente, ergueu o rosto, passando os dedos contra os fios de seu cabelo e iluminando a face, as sobrancelhas arqueadas conforme sentia o sangue em suas veias acelerando seu ritmo, as bochechas corando, tímidas, mas já era um começo.
— Eu... — Ela olhou firme para dentro dos olhos de Harley. — Eu confio em você.
— Não confia, não — negou ela veemente endireitando-se na cadeira.
— Eu confio, caso contrário não a teria contratado.
Uma sobrancelha de Harley se ergueu. Estava na hora de riscar um nome da lista de suspeitos ou finalmente destruí-la de vez.
— Tem certeza disso?
Elena endureceu no lugar.
— Como é?
O ar pareceu esquentar ao entorno do rosto de Harley e ela, fincando as unhas na própria carne de suas mãos, respondeu sem pudor:
— Ainda confiaria em mim se eu lhe dissesse que a senhora se tornou uma de minhas suspeitas?
O rosto da Sra. Hargroove diminuiu um tom, como se fosse meramente possível se tornar mais branca do que já era, e seu corpo encolheu-se na cadeira.
— O-O quê? — gaguejou em hesitação.
Harley sentiu a pele de seus lábios desgrudar sob a força de seus dentes e o gosto de sangue foi breve antes de prosseguir:
— Não se preocupe, você não é a única.
Aquilo não a acalmou.
— Como pode achar que eu sou uma suspeita, detetive? — Sua voz realmente parecia ofendida e ela descruzou os braços, a mão direita sobre o coração, sentindo a dor e o peso das palavras de Cleanwater. — Eu perdi um filho... durante todo esse tempo, ele esteve morto... por que eu faria isso?
Um bolo de pressão, seco e rançoso, desceu pela garganta da detetive e deixou um gosto amargo em seu paladar.
— Sei que Paul foi seu amante, enquanto ainda estava casada com Dariel — admitiu sem rodeios, encarando-a de forma furtiva, as unhas da mão direita batendo contra o vidro da mesa. — Mas eu sei, também, que Ursel não é filho de Paul, Elena.
A cada palavra, a loira se afundava cada vez mais no assento, parecia encolher, os ossos diminuindo, mas a verdade era que seu orgulho estava destruído e seu ego dilacerava-se e se desnudava ali, em uma mesa de vidro em uma sala branca, onde não havia sombras para que a verdade tentasse se esconder.
Elena não tinha mais como mentir.
— Agora, queria que você mesma me dissesse quem traiu primeiro.
A mulher franziu o cenho encarando a detetive, confusa, ainda que a pergunta tivesse sido clara.
— Sei que Dariel dormiu com Mary Yard, Elena. — A cada palavra era como se os lábios dela rachassem, mas um alívio em seu peito aumentava em picos de adrenalina e satisfação, porque, pela primeira vez em muitos dias, a Sra. Hargroove estava ali, do jeito que realmente era: envergonhada por suas próprias escolhas. Essa foi uma diferença gritante, no momento.
Há pessoas que se arrependem do que fazem.
E há aquelas que se arrependem de terem sido pegas.
Elena, para certo conforto no coração da detetive, se encaixava no primeiro grupo, e a decepção e arrependimento reuniram-se no tom que usou ao perguntar:
— É por isso que desconfia de mim, não é? — Os olhos dela estavam marejados, ardidos, e fitavam a detetive por entre um véu embaçado. — Acha que eu mataria Lucas Yard por vingança a uma amante?
Dizer a dúvida em voz alta pareceu cortar a pele de Elena, de tal forma que ela gemeu baixinho logo depois, tentando conter as lágrimas que começaram a rolar por sua face.
— Não sou eu quem dita os limites das pessoas, Sra. Hargroove — ressaltou a mulher, sem gracejos, sem acidez, apenas a realidade crua e fria. — São elas mesmas.
— Eu... eu nunca conseguiria...
— Vou precisar que me diga algo melhor, Elena — assumiu a detetive e a mãe pigarreou, erguendo-se lentamente pela cadeira.
— Eu não matei meu filho, Harley. — Os olhos dela foram como duas agulhas que perfuraram o coração da detetive. — Eu o amava tanto... tanto... — O primeiro filete úmido escorreu por seu rosto e a lágrima se desfez sobre o tecido de seu pulôver verde. — Mesmo que ele tenha vindo de uma decisão impensada.
— Impensada?
Elena uniu as sobrancelhas em um único ponto, empurrando o prato para o meio da mesa, puxando os joelhos na altura dos seios, e umedeceu os lábios antes de continuar:
— Eu estava com Paul, já. Não era para eu ter tido outro filho com Dariel.
— Dariel Adams.
— Para quê dizer o sobrenome dele?
— Porque você fez questão de omiti-lo em tudo — explicou calmamente, mas com a força de um porrete. — Nunca me disse que os garotos têm o sobrenome Adams, também.
— Não queria nenhuma ligação entre eles e o pai...
— Por quê?
— Porque o pai é um descarado imoral, que vai contra tudo o que Deus acredita.
Nesse momento, por mais que fosse indelicado, Harley não se conteve:
— Pare com isso, Elena!
— Mas é a verdade...
— Você quer saber o que é verdade, Elena? — As palavras atropelaram-se e escaparam em um disparar, interrompendo a mulher, que voltou a se retrair. — A verdade é que eu não me lembro de que parte na Bíblia está escrito que está tudo bem em trair seu marido. Não me lembro da parte em que diz explicitamente que Deus permite mentiras, criar uma ilusão em torno de si mesma! Então, acho que não lhe cabe falar de moralidade, agora.
Harley sentiu como a respiração acelerou e pesou em seu peito, assim como sobre a Sra. Hargroove, atônita.
— Já estou cansada da hipocrisia das pessoas dessa porra de cidade! Você não só traiu Dariel, como também traiu Paul!
— Chega...
— Não só o traiu, como engravidou de seu ex-marido novamente!
— Para...
— Você mentiu para Paul. Disse que foi algum tipo de milagre divino ou qualquer merda religiosa que pudesse inventar, mas depois de anos acreditando nessa mentira, ele descobriu isso!
— Não! — protestou, o desespero começando a afobar seu corpo, dominando suas veias, lançando seus pulmões ao ápice. — Quero dizer, de início, sim, mas...
— Ele descobriu tudo, e depois matou Ursel!
— CHEGA! — berrou com um estrondo, as mãos espalmadas no vidro em uma pancada que fez sua superfície tremer, os talheres saltando e o som tamborilando pelas paredes. — Chega, Harley! — repetiu respirando por entre os lábios. — Isso não é verdade!
A detetive inclinou-se para frente.
— Então, conte-me ela.
Vencida. Era esse o estado de espírito que Elena Hargroove se encontrava e, por entre os fios de seu cabelo quebradiço, ela notou como a detetive realmente sabia de tudo, e que seu silêncio e negações apenas piorariam tudo.
— Sim, eu traí Dariel Adams depois de alguns anos de casamento. Conheci Paul por acaso, em um retiro da igreja, ele estava fazendo uma viagem pelo país atrás de novos patrocinadores... não era para eu tê-lo beijado, mas estava tão furiosa com Dariel... porque ele me traiu primeiro.
Harley ouvi-a atentamente e não parecia disposta a dizer algo que interrompesse a confissão da mulher.
— Com Mary, que era minha amiga... — Elena olhou para cima e respirou fundo, agitando os cílios para controlar a queda das lágrimas. — Mas eu me vinguei, vinguei dos dois. Mary agora é uma vagabunda para todos e Dariel... teve o que mereceu.
A detetive apertou o canto dos olhos, encarando-a.
— Como assim "mereceu"?
— Se ele me trai, eu o traio.
Harley sentiu um sorriso surgir em seus lábios.
— Muito religioso, não acha?
Elena a fuzilou friamente quando ouviu a frase.
— Deus já me perdoou, eu confessei tudo ao Padre Lewis.
A detetive recostou-se sobre a cadeira.
— Não acho que seja verdade.
— Pergunte a ele, então! — sugeriu no mesmo instante e Harley piscou lentamente, expirando por entre os lábios.
— Há dois motivos pelo o qual eu não farei isso. O primeiro: Padres não tem permissão para falarem sobre qualquer confissão. Segundo: não desconfio de que realmente tenha ido conversar com ele, mas duvido que Deus a tenha perdoado.
Elena reagiu como se aquilo fosse o maior ultraje que já lhe tivessem dito, porém, no fundo de seu ser, parecia concordar com Harley.
— Não acredito em um Deus que diz que devo me submeter ao desejo de homens, ou que é quase tão hipócrita quanto seus seguidores, Sra. Hargroove, mas sei que, para o perdão valer, você realmente tem de estar arrependida.
Dessa vez, era a mulher que permanecia em silêncio, mordendo seus lábios, rangendo os dentes. Um ciclo vicioso. Elena parecia tão frágil quanto no início da conversa.
— Não tem problema em não se arrepender, Elena. Não estou aqui para te julgar.
— Porém claramente o faz! — replicou com a saliva estalando na boca. — Julgou-me como suspeita...
— Mas vim até aqui...
— PORQUE EU PEDI! — explodiu ela novamente e Harley deu um salto para trás. — PORQUE EU PRECISAVA FALAR COM ALGUÉM QUE ME DESSE UMA SOLUÇÃO MELHOR!
Harley ergueu-se no mesmo momento, na defensiva, os músculos tensos conforme ela assistia ao desenrolar das ações de Elena, em uma mistura de agonia, dor, desespero e euforia.
— Onde está Paul, Elena? — indagou a detetive sentindo até mesmo o céu da boca secar, só agora, de fato, notando que ele não estava ali mesmo diante os gritos da mulher.
— Ele não está falando comigo, agora... — admitiu em um tom surpreendentemente baixo.
Era incrível como Elena conseguia passar por entre picos em um piscar de olhos. De afável a triste, de feliz a enraivecida. Uma bipolaridade que Harley já devia ter notado antes.
— Por que não? — perguntou hesitante, sentindo a saliva arranhar a garganta.
— Porque eu o mandei embora, hoje de manhã.
Harley franziu o cenho e inspirou o bastante para seus pulmões doerem.
— O que quer dizer? Mandou-o embora?
— Nós discutimos hoje e... — Os olhos dela voltaram a encará-la, brilhantes das lágrimas que paravam de rolar de repente, os lábios encolhidos. — ... na verdade, isso tem a ver com o motivo de eu tê-la chamado aqui.
Elena sentou-se novamente, aliviando as mãos, prendendo-as sob os braços, mais uma vez, retornando à sua camisa de força natural. Harley preferiu manter-se de pé, segurando a cabeceira da cadeira.
— Sobre o que falaram, Elena?
Um sopro no coração da mulher a fez hesitar por alguns instantes e seus cílios se agitaram, as compleições de seu rosto tornando-se tristes, melancólicas à medida que admitia em alto e bom som, um pesadelo se tornando verdade:
— Eu acho que... bem, talvez... eu não sei... — seus olhos arregalaram-se — acho que Leonard matou os meninos.
*Opaaaaaaa que o final desse capítulo eu gosto hehehe preparem-se para o próximo!!!
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