Capítulo VII
Segunda-feira, 08 de setembro de 2014
Madrugada, 00h58
Antes da uma da manhã, Harley já estava na frente da imponente casa dos Hargroove, uma construção larga de rochas polidas, amareladas, que se tornaram cinzentas ao cair da noite, a qual tinha nuvens granuladas que anunciavam uma nova chuva, que seria de bom uso ao jardim da propriedade, enorme, com sebes naturais misturadas a flores que Harley, nem que fosse de dia, saberia dizer a espécie, seu conhecimento de botânica razoavelmente escasso compensado pelo ódio que tinha a anões de jardim, aqueles que ela podia ver ali, encarando-a distantes, mas ainda encarando, úmidos pelo orvalho do ar impregnado nas janelas largas que permitiriam uma visão completa do interior do enorme sobrado se não estivessem cobertas por cortinas leitosas, que exibiam um tom frio da luz ali de dentro.
— Bom-dia? — A voz de Eldric soou como um martelo na cabeça da detetive, ainda sonolenta. — Acho que não fica bonito boa-madrugada.
— Que tal: foda-se? — Harley uniu os lábios em um sorriso e estreitou os olhos. — O que aconteceu?
Ele expirou, os ombros relaxando com a grosseria típica da mulher conforme fechava a porta. Eldric não conseguiu deixar de notar — não pela primeira vez — como aquilo a deixava bem mais gostosa e atraente aos seus olhos, formigando sua virilha e fazendo o sangue correr para áreas mais baixas, de tal forma que o homem achou melhor antecipar-se a falar, distraindo a mente do andar rebolado de Harley.
— Elena teve uma crise, esta noite.
— Crise? — Harley franziu o cenho. — Que tipo de crise?
— Do tipo que assusta os vizinhos a ponto de eles ligarem para a polícia.
Harley agitou seus cílios diante da claridade apática do lugar, tão branco que pareceria uma ala de hospital se não fosse pelo enorme sofá marrom disposto no meio da sala de estar, interligada à cozinha por uma porta larga o bastante para duas pessoas passarem lado a lado. A figura de Elena estava trêmula, histérica e apoiada sobre os cotovelos na mesa de jantar, no lado esquerdo da sala, o vidro servindo de coletor das lágrimas geladas que cortavam suas bochechas vermelhas.
Os olhos da detetive foram diretamente aos pulsos dela, procurando por sinais de cortes ou torniquetes improvisados, mas nada havia. Tirando o estresse evidente, Elena parecia normal.
— Ela começou a gritar? — perguntou Harley em um sussurro conforme detiveram-se ainda na entrada.
— Começou a quebrar os pratos na cozinha — explicou o homem apontando para a passagem larga.
— Ah, eu não acredito... — Elena ergueu o rosto na direção deles antes que Harley pudesse dizer qualquer coisa, a beleza exaurida, fazendo com que a detetive olhasse por sobre seu ombro antes de girar nos calcanhares e encarar o olhar frio da mulher. — Quem chamou ela aqui?
— Eu... — Harley fez menção de responder, porém Elena a interrompeu de imediato:
— Foi o Howard? — Os olhos dela estavam vermelhos. Vermelhos demais, veia saltando nas áreas brancas como vinho sobre carpete. — Não bastava aquele cretino já ter chamado pela polícia, agora por ela também? Nunca mais conseguirei olhar no rosto daquele homem...
Percebendo que Elena dialogava mais consigo mesma do que qualquer outra coisa, Harley tomou alguns segundos para si, irritadiça, o rosto sério e duro fitando Eldric.
— É nessa parte que você me explica como conseguiu meu número? — A voz dela escapou afiada, quase metálica, assim como a risada que se instalou por entre os lábios dele, que sorriram, os olhos brilhando contra os dela diante da rapidez de seus pensamentos.
— Sabe, você me surpreende a cada dia — admitiu ele passando o indicador sobre os lábios.
— E o senhor também, pena que tem tido o costume de ser decepcionante — resmungou com o tensionar do maxilar. — Não gosto que mintam para mim, Heartland.
— Mas parece que não se importa em fazer isso com os outros — ponderou ele com o erguer da sobrancelha. — É hipocrisia dizer isso.
Ela engoliu em seca, cerrando os punhos.
— Estava dormindo? — perguntou descendo o olhar por todo o seu corpo. — Suas roupas estão amassadas.
Harley ergueu uma sobrancelha, fitando a figura de Elena por sobre o ombro, ainda apoiada na mesa de vidro, os braços enfiados em uma malha leve, bege, e os seios marcados no cetim da regata por debaixo de tudo.
— Cale a boca — retrucou se encaminhando na direção da mulher alterada. — Senhora Hargroove...
— FINALMENTE! — O som de uma voz forte como um trovão tamborilou até os ouvidos de Harley, fazendo seu corpo inclinar-se na direção da cozinha, onde um homem de quase dois metros estava parado.
Lembram-se do corredor largo o bastante para duas pessoas? Bem, ele ficava apertado para aquele homem, o qual tinha músculos tão saltados que era difícil de acreditar que as roupas dele durassem muito, desgastadas, um rosto quarado, feio, grosseiro, mas bem cuidado, sem sinais de acne na adolescência ou pelos encravados por entre a barba rasa, ainda que muito escura, tal qual seu cabelo, raspado de forma militar. Talvez ele tivesse servido à guarda inglesa em algum momento, porque seu caminhar era firme e robusto, marchando na direção dela, segurando um saco de lixo preto que lutava para não rasgar com os pedaços pontiagudos dentro dele.
— ACHEI QUE NÃO FOSSE CHEGAR NUNCA!
O homem aproximou-se dela e parou como um poste diante da detetive.
— E você seria...? — O tom de Harley pareceu pinçar a garganta dele, o pomo de adão subindo e descendo.
— Ela não faz parte do pessoal do hospital, senhor Dickens. — Eldric interveio, sério.
— Estão de brincadeira, não é? — Elena e fez presente, mais uma vez. — Os três aí, parados, rindo de mim.
— Não estamos rindo, querida. — O homem respondeu, e o termo final em sua frase fez Harley concluir que ele era o atual marido da mulher, Paul.
— Não na minha frente — retrucou ácida, a saliva escapando por entre os dentes. — Não são tão burros assim.
— Eles vieram ajudar. — Mas a frase pareceu errada em sua boca e Paul encarou Harley. — Eu acho.
A detetive ergueu uma sobrancelha.
— Não vieram ajudar, vieram me ver aqui, humilhada!
— Elena...
— Não, Paul! Isso é... isso é terrível... — Ela realmente se sentia ofendida por entre sua histeria, os cabelos caindo sobre os olhos conforme as mãos chafurdavam-se neles. — Eu nunca chamaria alguém para vê-lo nesse estado! Lembra de quando vomitou no banheiro? Fui eu quem limpou aquela porcaria azeda! Eu! Não chamei alguém para desdenhar de você.
O homem respirou fundo com um esgar, os olhos desviando da esposa e indo na direção de Harley e Eldric.
— Vou jogar esses cacos fora, e então conversamos — definiu sem perguntar. — É bom essa ambulância chegar logo.
...
O hospital mais próximo era o Stroud General Hospital, que ficava a cinco quilômetros de Painswick, no distrito de Stroud, no condado de Gloucestershire, e que certamente saberia lidar melhor com Elena Hagroove e seu ataque inesperado, resultado da pressão, dor e desespero de ter seu filho desaparecido.
Talvez Elena realmente sentisse mais do que Harley pensava, ou talvez tudo aquilo fosse uma mera encenação. De qualquer maneira, Paul Dickens parecia bem menos sensitivo do que a mulher, sentado no sofá junto à detetive conforme os dois paramédicos enviados, uma mulher morena de cabelos curtos chamada Jennifer e um rapaz magricela de rosto ossudo chamado Yan, acalmavam Elena, que se recusava a sair da mesa de jantar.
— Ela sempre foi assim? — indagou a detetive apenas para dar início à conversa.
— Quer saber se Elena sempre quebrou pratos nas paredes? Não.
O tom dele era arrogante, prepotente, e, por mais absurdo que isso pudesse ser, Harley tinha certeza de que ele estava flexionando os músculos de seus braços, como se para impressioná-la, apesar dos olhos dela estarem mais atentos em Eldric, na outra extremidade do sofá.
— Quero saber se ela sempre teve recaídas desse tipo — explicou em um tom paciente incomum.
— Olhe, nos anos que estivemos juntos, tudo sempre foi muito bom...
— Não devem te sido muitos anos. — Harley cruzou as pernas. — Já que Elena já foi casada antes e seu nome quase nunca foi comentado.
Seu rosto arrefeceu, assim como os músculos, que relaxaram.
— O que quer dizer?
— Como o senhor conheceu Elena? — Harley decidiu ser mais direta.
— No confessionário.
A mulher franziu o cenho, mas foi Eldric quem perguntou:
— Como assim?
Paul esticou seu pescoço na direção dele.
— É estranho, né? Pensar que uma gostosa dessas vá pra igreja. — O comentário grosseiro foi seguido de uma risada que em nada encantou a detetive. — Mas é verdade, conheci Elena no confessionário. Eu tava lá pra... pra refrescar a cabeça, sabe?
— Claro, porque as pessoas pecam, se arrependem, e depois pecam de novo. — O tom de Harley conseguia ser incisivo ainda que o corpo tivesse despertado a pouco.
— Não é assim que funciona — protestou perdendo a risada.
— Não?
— Não.
— Então me explique — sugeriu ela inclinando-se na direção dele. — Não sou a mulher mais religiosa, mas gosto de aprender coisas novas.
— Um confessionário só é válido se você realmente se arrepende do que fez.
— E o que foi que o senhor fez? — Eldric apanhou o final do comentário e o jogou de volta para Paul.
— Eu traí minha esposa.
Harley ergueu as sobrancelhas.
— Então também já foi casado?
— Achei que isso fosse óbvio — retrucou com um dar de ombros.
— Fala quase como se já nos conhecêssemos, senhor Dickens. — Ela sentiu a mente pesar.
— Não é como se as pessoas dessa cidade não falassem de mim.
— Até hoje, nunca havia ouvido sobre o senhor. — Harley mordiscou o lábio. — Mas admito que me interessa muito saber por que não compareceu à reunião de buscas por Ursel.
O rosto dele se fechou.
— Como é?
— Elena, no dia em que cheguei, estava na igreja pedindo para que as pessoas intensificassem as buscas por seu filho. Mas não me lembro de tê-lo visto por lá.
— Ah, sim, eu estava viajando — explicou, mas a mulher não se deu por convencida.
— A trabalho?
— Sim.
— Com o que trabalha?
— Sou dentista. Tenho um consultório em Barnwood...
— Com licença. — O rosto redondo e moreno de Jennifer surgiu ao lado deles, tímida, as mãos atrás do corpo todo vestido de branco.
— Sim? — Foi Paul quem respondeu.
— A senhora Hargroove se recusa a ir para o hospital. Não podemos forçar alguém a ir, mas há um termo de responsabilidade que ela deve assinar.
— Termo?
— Sim, senhor Dickens. O hospital nos enviou, mas não será de nossa responsabilidade eventos que possam posteriormente acontecer caso a senhora Hargroove não venha conosco.
— Merda! — praguejou ele. — Vou falar com ela. Tentar convencê-la.
A mulher concordou e, antes de se levantar, ele lançou um olhar fuzilante para a detetive, dizendo que voltava em um instante, tempo o suficiente para que Harley escorregasse seu corpo para mais perto do de Eldric.
— Isso não dará em nada — afirmou. — Não acredito em Paul...
— Nem eu — admitiu Heartland olhando para o lado, vendo a figura corpulenta do homem inclinado sobre a esposa. — Há algo... estranho, nele.
— Há algo de estranho nessa família, e isso é fato — concluiu ela rapidamente. — Por isso tenho um novo plano.
— Vai vasculhar a casa, não é?
Harley tentou não se mostrar surpresa por ele ter descoberto exatamente o que pensara, porém, seu corpo traiu, recuando brevemente, mas o bastante para ele perceber.
— É, eu também pensei nisso — admitiu franzindo os lábios. — Mas como?
— Vou convencer Elena a subir para o andar de cima, assim tenho acesso aos quartos dos garotos.
Eldric anuiu, atento.
— Você continua aqui. Enrole-o, mas tente descobrir algo...
— Útil? — Ele sorriu. — Duvido que ele vá ajudar em algo.
— Ele não precisa ajudar. — Harley se levantou, o coração batendo mais forte. — Consiga, apenas. Faça seu trabalho... pergunte sobre o casamento deles.
O detetive franziu o cenho e estreitou os olhos.
— Acha que vale a pena ir por esse lado?
— Sim. Que casal apaixonado não usaria o mesmo sobrenome? — Ela olhou para trás. Elena parecia estar se exaltando com Paul.
— Uma mulher moderna...
— Elena é religiosa, colocaria o sobrenome de Paul — insistiu. — Apenas vá por esse caminho, pode dar certo.
Mas, assim que ela fez menção de contornar o sofá, Eldric segurou seu pulso e ela o encarou, surpresa, quase assustada.
— O que foi?
— Você foi mesmo visitar Allura? Foi por isso que me largou na igreja?
Harley apenas desvencilhou-se do toque e engoliu em seco, a respiração feita pela boca e o calor subindo até sua nuca conforme caminhava até a mesa de vidro, sem responder a Eldric, o que, querendo ou não, já era uma resposta.
— A senhora precisa se acalmar — dizia Yan com toda a paciência quando Harley os alcançou. — Pense bem, será o melhor para a senhora...
— Não...
— Ande logo, Elena, pare de frescura! Não vê que precisa de ajuda!? — Paul tinha um tom bem mais áspero.
— NÃO! EU NÃO VOU! MEU FILHO PRECISA DE MIM, AQUI! — A mulher estatelou as duas mãos sobre a mesa de vidro, que tremeu, todos assustados achando que ela se partiria, porém nada além do cair das lágrimas de Elena aconteceu.
— Venha, vamos descansar... — sugeriu Harley contornando a mesa, envolvendo os ombros de sua cliente com o braço direito, acolhendo-a com carinho, ainda que fosse um sentimento falso.
— Vá embora... — pediu por entre o choro.
— Vamos deitar, você precisa pensar direito...
— E-Eu não quero dormir — resmungou fungando o nariz.
— Ela tem tomado remédios para o sono? — perguntou Jennifer com cuidado para que Elena não os ouvisse.
— Desde o desaparecimento do filho, sim — afirmou Paul conforme Harley guiava Elena, inconscientemente, até a beirada da escada.
— Basta um primeiro passo, Elena — incentivou diante do degrau que parecia uma muralha. — Vai dar tudo certo.
— Por que você não vai embora? — O rosto da mulher, sempre tão belo, estava vermelho e inchado, ranhoso e com os fios perdendo-se em moinhos de nós.
A resposta iria pesar no consciente da detetive, mais tarde, porém ela precisava dizer aquilo, precisava que Elena confiasse nela o bastante para que subissem ao andar de cima, para que ela pudesse vasculhar a casa e, por mais que isso a fizesse uma pessoa horrível — afinal, quem mentiria de forma tão falsa a uma mãe em crise pela perda do filho? —, ela respondeu:
— Porque a senhora me contratou para encontrar seu filho, Elena, mas também estou aqui por você. — Os olhos chorosos, embaçados, encararam Harley com dor, as sobrancelhas em arcos disformes, sem nem imaginar que a detetive desconfiava dela. — Por você — insistiu.
Foi assim que Elena conseguiu subir o primeiro degrau.
...
— Você andou bebendo? — Aquela foi a primeira frase que a agradabilíssima Elena Hargroove fez questão de dizer, o braço escorregando do ombro da detetive conforme ela a largava sobre a cama.
— Pois é, e você quebrando pratos, agora deita direito na porra da cama e não me julga — mandou agressivamente, tomando cuidado para não bater a cabeça nos dosséis da cama.
Mas que raios de pessoas ainda usam essas merdas de dosséis!? Deve ser mania de rico, só pode.
— Eu não quero deitar — resmungou como uma criança chorona, ainda que o corpo estivesse comprimido sobre os lençóis, sem fazer menção de se mover para fora.
— Mas precisa, senhora Hargroove — continuou Harley ajudando-a a colocar a cabeça sobre os travesseiros. — Ande, ajeite-se, se não irá cair.
— Por Deus, que hálito horrível! — O rosto da mulher fechou-se em uma carranca. — Vire essa boca pra lá!
— Acredite, eu queria virar muitas coisas na senhora — retrucou colocando as mãos na cintura. Elena era mais pesada do que aparentava.
— Eu pago você! — continuou. Era incrível como, mesmo em meio a um surto pela perda do filho, ela conseguia ser tão arrogante.
— E é só por isso que não o faço. — Harley respirou fundo. Ao menos agora ela estava mais ao meio da cama, afundada entre três dos quatro travesseiros que ali havia. A detetive teve de ressaltar que era, sem dúvidas, um quarto luxuoso, com suas paredes beges e piso forrado por um carpete marrom, que lembrava a pelagem de algum mamífero que o grandalhão do Paul se vangloriaria por ter caçado. Havia também dois abajures cilíndricos repousando nas laterais da cama, em balcões de madeira polida.
A detetive notou o amontoado de pílulas e comprimidos que havia no lado em que Elena dormira. Nas caixas dos medicamentos, uma tarja preta os envolvia.
— Merda... — praguejou Cleanwater para si em um sussurro abafado, sentindo um leve pesar sobre os ombros.
Lidar com a morte é uma coisa.
Lidar com a iminência dela é outra, assim como assistir a ambos os casos é do mesmo modo inquietante e horroroso. O definhar dos envolvidos... é terrível.
Talvez por isso as pessoas queiram que encontrem logo um corpo. Finalizar tudo de uma vez. Um ponto final. A mulher já ouvira comentários do tipo conforme caminhava na rua. O assunto se tornou algo tão banal que se comentavam em quiosques, cafés, mercados, seja lá onde, porque o terror e a dor não conhecem paredes.
— Quem você.... acha que é... pra falar assim comigo? — A voz de Elena tornou-se mais fraca. Estava adormecendo por entre as camadas doídas de seu peito ardido. Os olhos já se fechavam devagar e, de um deles, uma lágrima escorria como um filete frio.
A partir daquele momento, a mulher deixou de ser uma suspeita de Harley, mas a detetive sabia que ela escondia algo, só precisava saber o que era.
Só espero que Heartland esteja tenho mais sorte do que eu...
E, por entre o pensamento, ela disse:
— Acredite, senhora Hargroove, vai me agradecer mais tarde. Precisa descansar e, depois, considerar ir para o hospital.
— Você poderia... ir embora, isso sim...
Harley não era uma pessoa do tipo que insiste muito. Uma pessoa só pode ser ajudada se quiser ser e, naquele momento, Elena precisava lidar com sua dor sozinha, mesmo que em seus sonhos, onde reencontrava-se com o filho mais novo. Então a detetive apenas encostou a porta do quarto e seguiu corredor adentro.
No tipo de trabalho que ela fazia, devesse saber separar o trágico do oportuno, e somente por isso a mente dela não pesou em tirar vantagem de estar no andar de cima ou de ter planejado tudo isso improvisadamente com Heartland.
O corredor do andar de cima era largo, de paredes brancas, cada uma com uma faixa vinho, dividindo-a ao meio, passando a sensação de estar no corredor de um navio, de alguma forma. Havia fotos na parede direita, inúmeros, assim como um quadro feito a partir de um gigantesco quebra-cabeça que deveria ter demorado meses para ser montado, ao lado da primeira porta, de um banheiro.
Harley seguiu para a próxima, aproveitando seu tempo, ouvindo o ranger da porta antes de ela revelar a figura de Leonard de joelhos, as mãos unidas enquanto rezava na direção da janela de seu quarto, fechada, porém ainda permitindo que a luz prateada entrasse e banhasse a pele do menino, dando-lhe um aspecto fantasmagórico que embrulhou as entranhas da detetive.
Ele parecia morto, ainda que murmurasse.
Mas aquilo não era a única coisa estranha naquele quarto. A verdade é que, se não tivesse uma cama ali no meio, talvez se passasse por qualquer outro cômodo. Era vazio demais. Escuro demais. Frio demais.
— Não é educado interromper a reza de alguém — reprovou o menino erguendo-se, surpreendendo Harley, que fixou sua mão direita sobre a maçaneta da porta.
— Desculpe. — O garoto foi uma das poucas pessoas que ouviram Harley se desculpar.
— O que está fazendo aqui? — perguntou rapidamente, sentando-se de frente para ela enquanto movia as cobertas a fim de ir se deitar.
— Vim ver sua mãe — explicou, tensa. Algo naquele menino a enervava. — Por que está acordado tão tarde?
— Por causa de mamãe. — O rosto de Leonard era impassível, duro, frio, ainda mais sob aquela luz, e Harley sentiu um bolo surgindo em sua garganta. A resposta dele fazia o mais óbvio dos sentidos, afinal, Elena quebrara pratos e gritara durante o início da madrugada, mas ainda assim havia algo... artificial.
Montado.
Harley se perguntou se Leonard estava passando por um luto tão profundo quanto sua mãe. E não era incorreto dizer "luto", pois, de alguma forma, a morte do irmão estava representada em seus olhos fixos, intensos, mas sem brilho.
— Leonard, eu gostaria de falar com você sobre Ursel.
Ele inclinou o rosto ligeiramente, o suficiente para demonstrar interesse.
— Mas há algo a falar sobre ele? — O garoto percebia a dúvida em Harley, sua apreensão, quase como se pudesse sentir o odor dessa sensação e se divertia em vê-la confusa.
— Não há algo que queira me contar?
— Foi você quem fez a pergunta, não eu — retrucou displicente. Ficou parado ali, sentado, inconfortavelmente ereto. — Não há o que falar sobre Ursel.
— E por que não?
— Tem dois motivos para isso — Ele jogou a resposta no ar, as mãos apertando as calças daquele pijama largo, esperando que ela perguntasse quais eram.
— E quais seriam?
Ela pode jurar que viu um sorriso surgir no canto dos lábios dele, mas talvez fossem as sombras brincando com sua mente. Mas algo era inegável: havia uma seriedade adulta em seu olhar que nunca deveria ser vista em um rapaz de quinze anos. Não. Ainda não.
Não havia mais inocência nele.
Nenhuma.
Mas não no sentido de perder a virgindade ou ter um coração partido, mas de ter encarado a realidade como ela realmente é: fria e obscura.
Aos quinze anos, dever-se-ia ter esperança.
Leonard tinha raiva. Ah, sim, ele sentia essa ira e, surpreendentemente, a canalizava em uma figura quieta, que encontrava seu calmante em zombar dos outros. Talvez eles, Harley e Leonard, não fossem tão diferentes assim, e por isso ela se sentisse tão desconfortável, vendo-se através de seus olhos.
— O primeiro, é que meu irmão está morto. — A voz soou seca, direta, e o silencio se abateu sobre eles.
— E o segundo? — Harley não pode evitar: seu queixo tremia.
— Você não veio aqui para conversar, subiu para espiar os quartos, a casa, procurar pistas. — O sorriso em seu rosto se desfez e ele se deitou, encarando o teto, onde as sombras eram mais firmes, em um ponto fixo que ela só reparou depois. — Mas não se preocupe, detetive, pode continuar seu trabalhinho sujo, não vou atrapalhar.
Então, engolindo em seco e rangendo os dentes por ter sido vencida por um garoto de quinze anos, ela fez menção de fechar a porta, mas não sem antes perguntar, o cenho franzido e a boca seca:
— O que estava rezando?
O garoto virou o rosto em sua direção ainda sobre o travesseiro.
— Como é?
— Não era um pai nosso, ou ave maria... o que estava falando?
Um sorriso voltou a aparecer em seu rosto.
— Estava pedindo para que o Senhor perdoasse os pecados de meu irmão, para que ele entre no céu.
Aquilo desceu como um ácido excruciante pelo peito dela, afinal, que tipo de pecado uma criança poderia cometer? E como Leonard poderia ter uma severidade e crueza em relação ao irmão?
— Achei que Deus confortasse as pessoas nos momentos de perda. — As palavras escaparam pelos lábios dela quase automaticamente.
— Mas é preciso que nós rezemos pela alma dos que já foram.
— Fala com tanta certeza de que ele já morreu... isso me faz questionar se há um motivo para isso.
Leonard estreitou o olhar e voltou a fitar o teto.
— Todos os pecadores morrem antes. — Os lábios moviam-se calmamente, como se tivessem voltado a rezar. — Mas, se quiser espionar mais, o quarto dele é o último no corredor.
Harley fez menção de prosseguir, se perguntando se deveria abordar o pai dele, Dariel , naquela conversa, mas o garoto se antecipou:
— Eu gostaria que saísse, agora.
Porém ela preferiu se dar por vencida. O fanatismo religioso não a levaria em nenhum lugar, naquela noite, de tal forma que ela fechou a porta do quarto dele, mas não sem antes seus olhos notarem, desgraçada e previsivelmente, a forma do objeto que Leonard encarava com tanto apreço em seu teto:
Uma cruz.
...
Se o quarto de Leonard a fez sentir-se apreensiva, então o de Ursel a recebeu com um abraço gentil e caloroso, as paredes pintadas em tons de laranja-pastel, com pilhas e mais pilhas de bichinhos de pelúcia no canto esquerdo, a cama disposta logo na frente da porta, em atravessado, com um cobertor listrado por cima, assim como dois travesseiros intocados, quase como se fossem novos, com exceção de uma pequena mancha de baba seca.
Mas o que fez o coração de Harley apertar-se foi ver uma foto. Sim, passou por muitas no corredor, mas não lhe deu atenção, o que foi impossível ali, já que o sorriso de Ursel brilhava enormemente em um parque, ao lado da mãe, que o agarrava com força, sorrindo com honestidade.
E agora ela chorava no quarto e ele estava desaparecido.
— Eu vou encontrá-lo, Ursel, eu prometo — disse para si mesma, começando a procurar por algo que a ajudasse no caso. Tinha de agilizar a investigação, as procuras, os interrogatórios.
Mas o que ela não sabia era que o tempo do garoto já havia se esgotado.
Agora, era com o tempo dela que Harley devia se preocupar, pois, no andar debaixo, Paul começava a ficar nervoso, o tom de sua voz elevando-se o suficiente para que reverberasse no piso de cima, mas não o bastante a ponto de ser compreensível.
— Droga, me mostre algo, Ursel, me ajude!
Decepcionada e constrangida consigo mesmo, com sua aparente incapacidade de seguir em frente, Harley largou o corpo sobre a cama, que rangeu com seu peso. Uma cama de criança não foi feita para um corpo adulto.
Assim como o número de um telefone não foi feito para ficar largado sobre o chão.
Sob a sola de seu pé direito, havia um pequeno papel amassado, onde alguns números eram visíveis, as bordas rasgadas, vítimas de um puxão rápido, talvez de um caderno de anotações, já que a folha aparentava ser pautada. Os olhos dela foram diretamente no pequeno cesto de lixo que havia ao lado do armário dele, recheado de adesivos em suas portas de madeira, e percebeu que ele estava limpo, sem descartes.
Ela se inclinou para frente e apanhou o número.
Não era supersticiosa e aquilo poderia representar um nada. O número de uma tia. Um primo. Da escola de natação. Do asilo de sua avó. Mas aquelas possibilidades eram apenas a mente dela tentando não criar expectativas diante de algo que, de fato, veio a se tornar revelador.
Se não fosse por aquele número, Harley não teria descoberto a verdade sobre Elena.
...
— Por Deus, por que demorou tanto!? — Paul estava enérgico, vermelho, esbravejando no início da escada conforme Harley a descia rapidamente.
— Porque sua esposa estava tendo um surto, não era óbvio? — retrucou sem lhe dirigir o olhar, focando nos enfermeiros que, pacientemente, esperaram. — Vocês já podem ir, obrigado pelo serviço.
— Todo esse tempo pra nada, porra!? — A voz soou irritante aos ouvidos da detetive.
— Na verdade, todo esse tempo para ela conseguir adormecer, então seria de bom grado que falasse mais baixo. — Harley lhe ergueu uma sobrancelha e o olhou por sobre o ombro. — Parece que Elena tem um gênio tão forte quanto o meu. Deixe-a dormir, converse com ela pela manhã, quando estiver mais calma.
— Ah, sim, mais calma, até parece! — resmungou passando a mão sobre a cabeça, fitando o além. — Sabe, vocês são dois inúteis.
Para o azar de Eldric e Harley, os enfermeiros já haviam saído pela porta da casa, então os inúteis só poderiam ser eles.
— Procure descansar, Sr. Dickens, foi uma noite complicada — sugeriu Eldric em um tom mais amigável, batendo sobre seu ombro e caminhando na direção da detetive.
— Descansar!? E onde é que eu vou dormir, se ela já está na cama apagada!? — O tom soava tão absurdamente estupefato que os olhos de Harley reviraram, mordendo a própria língua antes de falar:
— No sofá, Sr. Dickens.
O homem-armário encarou-a com olhos arregalados. Eldric não fez objeção alguma, na verdade, abriu a porta e saiu, esperando por ela na madrugada fria.
— O que foi? — questionou a mulher ardilosamente cínica. — Não finja como se fosse a primeira vez que uma mulher te coloca pra dormir no sofá.
E quando Paul fez menção de perguntar o que ela estava insinuando, Harley bateu a porta atrás de si.
...
Mesmo tendo saído antes, Eldric ficou para trás, os passos rápidos de Harley lançando-a na dianteira conforme batia nos bolsos à procura de um cigarro, lembrando-se que esqueceu sua bolsa no hotel.
Merda!
— Se quer um cigarro, basta pedir — ofereceu o detetive atrás dela, lançando uma caixa de cigarros para ela.
Em suas mãos, a mulher fitou a embalagem branco e vermelha, lembrando-se dos corredores da casa de Elena, os quartos dos meninos tão distintos um do outro, de forma que ela apenas arremessou a caixa novamente para ele.
— Não, obrigada.
Eldic deixou uma risada curta escapar por seus lábios, porém ela pouco ligou, continuando a caminhar, ainda que os passos dele ressoassem por detrás.
— Então é isso? Só vai embora?
A detetive parou, girou nos calcanhares e colocou as mãos na cintura.
— O que exatamente você espera de mim, Sr. Heartland?
Ele foi pego de surpresa pela pergunta, parando de caminhar, as sobrancelhas erguidas e os cílios se agitando, as mãos enfurnadas nos bolsos.
— Vai só fingir que nada aconteceu?
Impaciente, cansada e definitivamente aborrecida, a mulher caminhou com passos firmes até ficar próximo o bastante, sentindo seu cheiro, uma mistura de tabaco e colônia de barbear, a boca entreaberta, o que a fez pensar se ele achava que ela iria beijá-lo.
— Sim, eu vou fingir que nada aconteceu, Sr. Heartland, porque preciso de você, sei que o que fiz foi errado, peço desculpas, mas quero que a investigação continue.
O rosto dele iluminou-se em surpresa, com um sorriso e um brilho, que se desfizeram tão rápido quando surgiram ao ouvi-la continuar:
— Era isso que queria ouvir?
Ele engoliu em seco, seu pomo de adão subindo e descendo.
— Realmente não vai me pedir desculpas?
— Pelo o que?
— Poupe-me, Clenwater, ser idiota não combina com você! — retrucou sem gracejos, os músculos de seu rosto tão tensos quanto toda aquela situação, fazendo a mulher expirar por entre os lábios, controlando os ânimos. — Me largou naquela igreja e interrogou o padre sozinha.
Harley apoiou a mão sobre o peito dele e estreitou o olhar:
— Já é bem grandinho, Sr. Heartland, sabe se virar.
Mas ele não se deu por vencido, tocando o pulso dela quando ela fez menção de prosseguir, recebendo um arregalar de olhos como resposta, pasmos.
— Harley, eu preciso saber se estamos nessa, juntos, como tinha dito que estávamos.
— E qual a diferença se estivermos ou não? Todos nessa cidade parecem mentir a todo tempo!
—Eu não menti para você e sabe disso.
Ela o encarou debaixo para cima, estudando o modo como a noite ficou silenciosa sem suas vozes dando vida àquela rua fantasma, onde nem mesmo cigarras cantavam ou sequer um cachorro passava para mijar.
Naquele momento, estavam sozinhos, e ela tinha de fazer uma escolha que fosse sincera, porque brincar de gato e rato não daria certo.
— Encontrei um número de telefone no quarto de Ursel, largado no chão — admitiu, os olhos marejados com a secura do vento que batia de vez em quando contra seus corpos. — Podemos ligar e ver onde isso nos leva.
— Tudo bem — concordou ele maneando a cabeça de cima a baixo, soltando seu pulso ao perceber que ainda o segurava, a pele quente e macia, de uma mulher ardilosa e firme, que enevoava seus pensamentos com tantas dúvidas que ele sabia que jamais obteria todas as respostas. — Te dou uma carona agora até seu hotel e nos vemos amanhã, então, e eu lhe conto o que consegui descobrir com o Sr. Dickens.
A detetive ergueu uma sobrancelha e cruzou os braços.
— Descobriu algo?
— Para a sua decepção, sim — zombou ele, sarcástico, mordendo o interior da bochecha. — E, acredite, vai querer ouvir.
*Opaaa que foram quase 6.000 palavras de novo!!! Nesse capítulo as coisas começaram a ficar mais tensas hehehe espero que tenham gostado!!!
*Não se esqueçam de votar, hein!!!
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