Capítulo XIX


*Atenção: este capítulo contém severos gatilhos. Leia com moderação e cuidado, distraia-se caso ache necessário. Espero que gostem.


Domingo, 14 de setembro de 2014

Manhã, 06h11

Assim que Eldric chegou, ele soube que havia algo de errado, desfazendo seu sorriso e substituindo-o por uma compleição séria conforme Harley Cleanwater demonstrava-se impassível, de braços cruzados, aguardando-o na entrada de Painswick, assim como ela pediu em uma mensagem digitada às pressas por entre a madrugada.

— Você é péssima de se conversar pelo celular, sabe disso, não é?

Harley não o respondeu.

— Te liguei duas vezes depois daquela mensagem, por que não retornou?

A cabeça da mulher batia na altura do peito dele conforme Eldric se aproximava, a placa da cidade um tanto enferrujada, a tinta verde e branca já com algumas linhas descascadas, como se algum animal as tivesse arranhado.

— Harley, o que houve?

O rosto dela se ergueu, sem óculos escuros, naquele dia, apesar da vista ainda estar dolorida. Cleanwater queria que Eldric visse o quanto era duro e verdadeiro o que viera dizer.

— Eu acho que estraguei tudo.

Ele franziu o cenho.

— Como assim? Você me disse ontem que tudo estava bem. — O rosto do homem pareceu impacientemente confuso, os olhos fuzilando-a com apreensão.

— Porque, se eu tivesse dito o contrário, nada iria mudar. Você estava longe e não tinha o que fazer...

Então, da forma mais inesperada possível, Eldric apenas a abraçou, o rosto dela colocado contra seu peito firme, os olhos marejados na direção da cidade que, agora, lhe responsabilizava por tudo.

— O que aconteceu? — sussurrou ele já sentindo a desgraça que estava por vir.

...

Ela preferiu entrar no carro para mostrar a gravação da entrevista de Nathan Dills no programa de rádio do Sr. Kelloway e, assim que os homens terminaram de falar, Harley deu pausa no áudio e sorriu de forma triste.

— Todos já estão me culpando... — falou com a voz baixa, o ar quente do carro acolhendo o rosto frio. — Eu queria essa divulgação, Eldric, mas não deste jeito, não...

— ... sobre você — completou o homem e os olhos dela o encararam de esguelha antes de ela pentear seus cabelos para trás. — Harley, o que achou que ia acontecer?

— Não sei.

— Mentira — disparou o homem virando-se no banco do motorista, a cabeça sacudindo na direção do vidro, negando-se a acreditar no que ela disse.

— Eldric...

— Harley, vou te falar algo e quero que escute com atenção. — Seus olhos não piscavam e pareciam não se incomodar em encará-la. — Desde que chegou aqui, eu a vi planejar, eu a vi elaborar os suspeitos e a vi investigando, então não me venha com essa merda de "eu não sabia", porque não tenho como acreditar nisso.

Ela respirou profundamente e sentiu as palmas das mãos transpirarem conforme tomava forças para perguntar:

— E o que você quer que eu diga?

Ele bufou, irritadiço.

— Porra, você é brilhante, é óbvio que havia pensado em algo!

— Sim, eu pensei que Elena e Mary iriam querer essa divulgação para acelerar todo o caso dos filhos delas — admitiu em uma frase rápida que, instantaneamente, puxou outra. — Também achei que aquele merda de jornalista iria responsabilizar a polícia, por tudo, não eu!

Eldric analisou-a conforme as emoções subiam pelas veias do pescoço de Harley e o endureciam, o maxilar firme, as maçãs do rosto pontudas e os olhos inconformados.

— Elena e Mary não querem isso?

— Não falei com Mary — Harley sentiu-o erguendo uma sobrancelha e antecipou-se em explicar o motivo: — Se Lenny Lover convenceu Elena a não querer mais que eu trabalhe para ela, não vai demorar muito para também virar Mary contra mim.

— Ou, talvez, ela te apoie — sugeriu ele apenas para receber um olhar descrente da detetive, que retrucou:

— Estou esperando pelo pior desta vez, Eldric, porque fui estúpida ao esperar o melhor.

O ar sempre pareceu ter uma capacidade impressionante de condensar o ar em uma nuvem morna, salgada, como a brisa de um mar no verão, que gruda em sua pele e fazia a detetive quase abrir a porta para refrescar um pouco. Mas nem isso adiantaria. O ar parecia imóvel, tal qual eles dois, que não sabiam ao certo por onde seguir.

— Não tem como eu investigar, Eldric, se todos me culparem pela morte dos meninos.

O detetive debruçou-se sobre o volante, a massa musculosa de seu corpo tapando quase todo o vidro.

— É o que estão fazendo?

— Parece que estou no mesmo patamar que o assassino — admitiu ela tentando ver por entre os troncos finos das árvores, que cercavam o início da estrada para Painswick apenas para, em seguida, serem substituídas por pequenas casas e a igreja central.

— Bom, então ele conseguiu.

Harley estranhou o comentário, virando-se para ele.

— Como assim?

— Se eu fosse o assassino, iria querer jogar a culpa para outra pessoa, não? Iria querer que todo mundo focasse tanto nesse detetive que eu ficaria longe de suspeitas.

— Um bode expiatório.

— Isso — declara à meia-voz.

Foi aquela mudança súbita no tom, o recair dos ombros, as pálpebras parecendo querer se fechar em pesar, que fez Harley dizer:

— Você descobriu algo em Exeter, não foi?

Ele sorriu de forma amarelada, endireitando o corpo, passando a mão sobre a testa e depois desgrudando a roupa de seu peito, pequenas manchas de suor surgindo debaixo de suas axilas.

— E lá vai você, brilhante de novo, estudando as pessoas...

— Eldric! — insistiu com mais afinco, os olhos arregalados de expectativa.

— Não ache que é algo bom. — O sorriso adiciona nervosismo aos lábios e ele brinca com as pontas dos dedos. — Dariel Adams...

— ... é o assassino.

— ... é inocente.

As vozes escaparam ao mesmo tempo como acordes errados em um violão, de tal forma que Harley recostou-se sobre o banco, afundando abaixo do cinto, sentindo as costas doerem conforme as mãos apertavam os olhos, decepcionada pelo uníssono imperfeito.

— Você realmente esperava que ele fosse o assassino? — perguntou ele com uma curiosidade pesada.

— Você não?

— Fui sem saber o que esperar, na verdade — admitiu com o dar de ombros. — Chega uma hora nas investigações, que não esperar é o melhor a se fazer. — Seu tom escapou quase como estivesse lhe dando um conselho e Harley o encarou com desdém. — Mas não é ele.

— Como sabe disso?

— Dariel Adams é um professor da academia Waterside, na Cornualha — começou como se exibisse um slide a ela. — Está com eles tem dois anos, e consegui seu itinerário de aulas. Ele está na academia de segunda a quinta, sem aulas na sexta, e volta lá no sábado. — Seus olhos cruzaram os de Harley, que pediam por mais. — Ursel desapareceu dia trinta de agosto, um sábado, então ele tem um álibi garantido pela própria academia, que confirmou para mim que ele estava dando aula tanto no dia do desaparecimento quanto quando encontraram o corpo.

Não demora para que o silêncio se abata sobre eles e Harley tenha um ímpeto de inclinar-se para frente, procurando em sua bolsa, a qual ela jogou sobre os pés, seus cigarros, apanhando um deles, acendendo-o ao encaixá-lo nos lábios e assistindo à fumaça subindo para além do carro.

— Se desconfia disso, podemos conseguir uma ordem judicial para acessar as gravações do mês passado...

— Acha necessário? — questionou por entre um trago.

— Não — admitiu mordendo o lábio inferior. — Dariel não parecia mentir e, na verdade... ficou bem abalado. — Eldric deu de ombros. — Não dispenso a hipótese de ele ser um excelente ator, mas... ele não é mais um de meus suspeitos. Com um álibi desse e seu espanto...

O comentário ficou vago no ar, porém não precisava de um fechamento. Harley já o estava dispensando, também.

— Então, só restou um — falou em uma tentativa de arrancar uma risada de si mesma por lembrar-se de um dos livros favoritos de Felícia.

— Um?

Harley rolou a cabeça pelo banco a direção dele.

— Elena Hargroove não tem como ser suspeita, não mais. — Os olhos dela arderam ao lembrarem-se do dia anterior. — Tinha de ver o choque em que ela está, Eldric, tão frágil, magra..., não foi ela quem matou os garotos. — Uma última tragada antes de arremessar a bituca para longe. — A vingança de Elena foi feita de outra forma.

— Assim como a de Dariel — ressaltou atraindo os olhos dela, de tal forma que a detetive ergueu uma sobrancelha. — Ele admitiu para mim que queria machucá-la, por isso a traiu com Mary.

A detetive não pode deixar de se impressionar com a rede mesquinha em que aquela família se emaranhou.

— No fim, Dariel é um pai ausente que, ainda que culpe Elena, sabe que também tem uma parcela de culpa. — Eldric engoliu em seco. — Ele não sabia do desaparecimento e muito menos da morte. Eu lhe contei.

Harley sentiu como aquilo pesou sobre eles.

— As pessoas fazem escolhas estranhas na vida, não é? — perguntou sem querer uma resposta, rindo na direção de seu colo, imaginando que ambos podiam apenas ligar o carro, ele pisaria no acelerador e iriam embora dali. Mas seu coração também tinha conhecimento de que o trabalho precisava ser terminado. — Enfim... por que dispensou Paul Dickens, também?

O modo como Eldric uniu as mãos e inclinou-se para frente fez parecer que iria rezar.

— Porque ele é só um homem escroto, grosseiro, que está com uma mulher por uma questão financeira. — Ela se lembrou das cédulas arremessadas contra seu rosto e suas entranhas pinçaram. — Ele não tinha motivo para matar Lucas Yard e, se tivesse sido ele a matar Ursel, isso nos diria que há dois assassinos.

O rosto de Eldric empalideceu com a possibilidade.

— Mas teriam agido do mesmo modo? — A detetive perguntou-se em voz alta e respondeu a si mesma com um negar da cabeça. — Não. É muito improvável. E eu não acho que Paul tenha coragem para matar alguém, embora queira que acreditemos que sim.

— Por que acha que não?

— Porque quem realmente quer matar, Eldric, não espera que as pessoas saibam disso — explicou com um ponderar, como um elemento dissuasivo da conversa.

— Então, realmente, só restou um...

— Lenny Lover — falou ela para que o monstro se materializasse diante os olhos deles, ainda que isso fizesse Eldric se retorcer em raiva.

— E se não for ele? — perguntou num súbito.

— Hã?

Os olhos do detetive estavam confusos, como se aqueles mares azuis estivessem em tempestade.

— E se não for Lover?

Harley deu de ombros e seus lábios crisparam-se em aflição.

— Então... — sua voz escapou altiva — ... as pessoas realmente poderão me culpar por tudo.

Sob a luz da manhã que se opunha nos céus azuis, em um dos tons mais claros de todo aquele mês, Harley sentiu que havia se perdido, porque, apesar de não querer admitir, Eldric tinha razão: havia a possibilidade de Lenny Lover não ser o assassino.

— O que quer fazer? — questionou Heartland com a boca seca. — Pediu-me para esperar na entrada da cidade...

Ela sabia que havia um comentário implícito ali, que ele fez questão de ressaltar em uma nova pergunta:

— Pensou em ir embora?

Harley sentiu o coração pesar.

— Não irei antes de descobrirmos o motivo do delegado mentir a respeito da violação dos meninos — afirmou, escolheu seu caminho naquele instante, onde ela poderia simplesmente partir, mas decidiu ficar. — Ele é minha última tentativa, Eldric...

Então, quando as pontas dos dedos da detetive tremeram, ele colocou sua mão sobre a dela.

Nossa última tentativa — conclui, afinal, ainda que Harley tenha puxado sua mão para perto do peito, respirando fundo ao sentir como os olhos chegaram a arder com a úmida das lágrimas. — E como quer descobrir isso? — Eldric resolveu perguntar para que o clima arrefecesse. — Não podemos chegar até ele e perguntar.

— Não.

— Também acho que seria melhor se ele não soubesse que o estamos investigando — aconselhou também, apesar de só estar seguindo a linha de seus pensamentos em voz alta. — Então... como faremos isso?

Conforme o sol se estabelecia firme como um enorme olho amarelo que tudo vê, naquele céu limpo, Harley já tinha sua resposta.

Nas situações em que os segredos estão escondidos a sete chaves, às vezes se faz necessário arrombar as fechaduras.

...

06h53

Harley Cleanwater só percebeu que prendia a respiração quando ouviu a porta dos fundos da casa de Lenny Lover se destrancar, Eldric guardando seus grampos, que lhe custaram bons minutos para funcionar, de tal modo que a detetive não conseguia parar de bater seus pés contra o cimento duro dos fundos.

Esperar-se-ia um jardim no fundo de casas tão bucolicamente prontas para o interior, porém, no caso do delegado, ali tinha pilhas e mais pilhas de caixas amontoadas, desesperadas por um armazém que não caberia ali; uma bike enferrujada jazia esquecida à direita e plástico bolha já estourado balançava calmamente pelo vento, enrolando-se sozinho sobre o chão conforme os detetive certificavam-se de que ninguém os observava.

Quando o perigo não parecia presente, Eldric empurrou com cuidado a maçaneta para dentro e um rangido fez arrepios percorrerem sua coluna.

— Ainda acha que não devíamos ter esperado anoitecer? — questionou ela olhando por sobre o ombro dele diante o estreito corredor.

— Não. Hoje é domingo, o delegado voltará mais cedo de seu posto.

A voz dele foi como uma trilha que a guiou para dentro, os pés sentindo o piso de taco anunciando sua presença com pequenos chiados, como se houvesse um gato arisco abaixo deles.

— Espere aqui — ordenou Heartland com a mão detendo o avanço da mulher, andando para a cozinha, onde o lava-louças ainda está aberto, recheado de talheres e dois pratos, e a pia goteja como se contando os segundos em que estavam ali.

Harley virou à esquerda a tempo de ver o modo como Eldric rapidamente fechava as cortinas de brocado. Podiam não cobrir muito, mas iriam protegê-los.

— Não queremos bisbilhoteiros, não é? — perguntou como se esperando pela aprovação da detetive, que apenas concordou que não, assistindo-o parar, as mãos sobre o balcão da pia.

— O que foi? — Ela estranhou o súbito movimento.

— O que exatamente viemos procurar, Harley?

— Algo que possa ligá-lo ao caso... documentos, conversas...

— Ele não deixou o celular em casa, é claro — resmungou mais consigo mesmo do que com ela.

— Mas talvez tenha um computador — ponderou ela como uma estátua, parada entre a cozinha e o corredor. — Você checa o andar de baixo e eu vejo o de cima, combinado?

Ele concordou e a detetive não esperou para vê-lo se mover, sabendo que o tempo podia ser curto, os pés desbravando a casa misteriosa, alcançando a sala de estar, onde um sofá de camurça estava de frente a uma televisão empoeirada suspensa por um suporte, acima de um aparelho de vídeo cassete, desligada ainda que, diante ela, houvesse uma vasilha com salgadinhos e uma lata de cerveja aberta, transpirando, sujando o vidro da mesa de centro.

Harley respirou fundo e focou na outra direção, onde uma escada tão estreita quanto o corredor, o qual os obrigou a entrar em fila, exibia-se colada na parede, coberta por um papel de parede tom de creme. Havia pregos na parede, também. Não havia fotografias penduradas.

Enquanto isso, na cozinha, Eldric fitava a cortina inerte tanto quanto ele, que apenas se moveu quando girou nos calcanhares, encarando os armários presos na altura do teto, que não chegava a ser alto, de tal forma que o detetive não precisou se esticar para abri-los, encontrando dois nichos, no primeiro havia sacos de arroz e pacotes de macarrão instantâneo, no segundo latas amassadas. Ele apanhou uma delas, sentindo sua textura contra a pele conforme procurava por seu rótulo, porém tudo que encontrou foi a cola que o prendia, como uma camada a mais, uma cicatriz branca em meio ao metal.

Lenny Lover arrancou o rótulo e, assim que percebeu isso, o detetive olhou na direção do lixo na cozinha, encostado ao lado do lava-louças.

Eldric se agachou a fim de apanhar o saco de lixo, porém isso nem foi preciso. Assim que pisou sobre a pequena alavanca preta, a tampa se abriu em um salto e ali estava o rótulo, escondido por debaixo de uma casca de maçã e sobras de arroz.

Com cuidado, ele apanhou o rótulo, azul, branco e vermelho, trazendo-o para cima da pia e sentindo as pernas fraquejarem conforme um temor corroía seus ossos à medida que seus olhos liam: Chef Boyardee, comida enlatada para crianças. E, logo ao lado, um super-herói sorria, encapuzado, apontando o polegar na direção do rosto de Eldric, que sentia os dentes rangerem tanto que juraria que um deles poderia se partir.

E eles talvez se partissem se um som pesado não tivesse soado na frente da casa, como uma porta batendo, de tal forma que Eldric debruçou-se sobre a lava-louças, apanhando a primeira faca que encontrou, apenas para, em seguida, esconder-se atrás da parede que ligava a cozinha ao corredor.

Seu sangue pulsava em seus ouvidos, as têmporas latejando e a respiração densa, até que a voz de Harley surgiu:

— Merda!

Pelo tom que ela praguejou, o homem apressou-se para a frente da casa, olhando rapidamente para a sala de estar antes de ver como Harley batia a mão contra os joelhos.

— Mas que porra aconteceu!? — questionou com estranhamento.

— Pisei em falso, só isso — mentiu, tentando esconder o fato que havia caído. — O que achou que ia fazer com essa faca?

Só agora ele percebeu que correu com a lâmina junto do corpo, as bochechas esquentando conforme ele ria em meio ao nervosismo.

— E-Eu só...

— Eldric, respire — aconselhou ela. — Precisamos de uma prova, não o matar.

O rosto do homem ergueu-se, plácido, desacreditando, quase ensandecido à medida que erguia a lata na outra mão.

— Sabe o que é isso?

Harley disse que não.

— É comida enlatada para crianças.

Um bolo desceu pela garganta dela. Ele continuou:

— Mas Lenny não tem filhos.

Ela não teve como não respirar fundo. Eldric alterava-se diante dela, como um drogado que começava a sentir o efeito da cocaína dentro de seu corpo, as pupilas dilatadas, um sorriso nervoso, o suor escorrendo por todo o corpo em meio aos batimentos violentos.

— Eldric, dessa vez você é que vai me escutar. — Harley desceu dois degraus e tocou o rosto dele, atraindo seus olhos aos dela. — Não é porque trabalhou ao lado de Lenny que você também é culpado. Nada disso é sua culpa.

Ele não pareceu acreditar, mas tentou disfarçar isso, sorrindo com os lábios colados.

— Se encontrar mais latas, tire uma foto...

— Tem um armário com quatro, pelo menos — interrompeu-a ele e seu pomo de adão subiu e desceu.

— Tire uma foto e espere por mim, tá bem? — prosseguiu. — Vou olhar aqui em cima.

Ela deu o primeiro passo, porém ficou claro o desconforto que sentiu ao vê-lo se afastar com aquela faca, desaparecendo no corredor de cabeça baixa. Era uma sensação semelhante ao de se deparar com um policial de muito perto. A presença de um fuzil faz seu corpo todo hesitar, porque sabe que aquilo pode se tornar, em um piscar de olhos, uma ameaça.

Harley apenas desejou que eles não tivessem de usar aquela faca.

Mas seu sangue e músculos pareciam alarmá-la de que algo ruim iria acontecer, e a urgência de sair daquele lugar crescia em seu peito conforme alcançava o segundo piso, mas era essa exata sensação que divergia de uma segunda, mais racional, e que Harley não conseguia deixar de lado: tudo parecia arranjado.

Era um sentimento esquisito, como se algo quisesse que ela estivesse ali. Se fosse religiosa, diria Deus. Mas o medo em seus ossos a fez lembrar que também poderia ser o Diabo.

O corredor de cima era mais largo, frio, amedrontador, porque estava contra o sol e não havia janelas, de tal forma que as sombras dali fizeram seu próprio reino e Harley teve de apertar os olhos para distinguir duas portas, uma à direita e a outra no fim do corredor, aberta como uma boca escura em um grito eternamente inaudível.

A detetive pôs-se a caminhar na direção da boca voraz e macabra, permitindo que as sombras banhassem sua pele, a respiração densa, escapando por entre os dentes, os saltos estalando no assoalho velho.

Assim que entrou, a detetive teve de fincar as unhas na própria carne para se controlar. Nunca teve medo do escuro, mas nem por isso queria viver nele, porém não podia arriscar acender as luzes, de tal forma que se inclinou ligeiramente para frente, tentando decifrar se o que havia na parede esquerda era uma janela ou um quadro, sentindo o aroma de lavanda no ar.

Sua mente concluiu que era uma janela fechada e, assim, ela arriscou acender as luzes.

O horror, às vezes, é pateticamente normal, porque a mente não tem limite para a crueldade, mas sim um mínimo, e por isso não percebemos como um horror pode acontecer sobre uma cama aparentemente limpa de frente a uma televisão antiga, nem como um aromatizador de lavanda disfarça o cheiro da carne ou como os travesseiros foram testemunhas oculares de algo realmente hediondo.

Harley somente apagou a luz depois de checar as gavetas daquele cômodo e nada de anormal encontrar. Sua mente lhe disse que nada aconteceu ali.

Mas havia, sim.

A segunda porta fez sua espinha gelar, pois logo que encostou a mão sobre a maçaneta, ela já achou que toda a passagem fosse desmoronar sobre ela, porém nada aconteceu. Harley respirou fundo. Um cheiro lúgubre, salgado, bem diferente do outro quarto, fez sua orelha formigar.

Ela não percebeu janelas.

Não notou quadros.

Acendeu a luz, então.

O quarto era inóspito em suas paredes, que careciam de pintura e sofriam com um vazamento, mas ali havia um colchão inflável guardado desleixadamente em uma caixa de papelão, ao lado de uma cômoda com quatro gavetas, vizinha de um computador tão antigo, bem no centro, que a detetive confundiria com um amontoado de caixas cobertas por um véu se, além do tecido branco, um risco de luz não tivesse surgido.

A mulher se ajoelhou, o coração batendo na altura de sua garganta, conforme os dedos puxavam a capa branca como se fosse o véu de uma noiva, que caiu para o lado, a tela preta piscando mais uma vez.

Não era apenas uma luz. Era um botão de play, que indicava que um vídeo fora pausado.

Sua mente gritou no mesmo instante para que ela fugisse dali, para que ela arrumasse as malas e voltasse para Castle Combe, chamasse Eldric e vivessem longe de tudo aquilo. Seu corpo a compelia a ir embora, a virar as costas para aquele computador, a apenas preservar o mínimo de sanidade que ela ainda tinha quanto ao ser humano. Mas seu coração acreditou que era forte o bastante para ficar.

No entanto não há quem se prepare para o horror que ela encontrou.

Com um click sobre o esc do teclado, a tela se iluminou em um flash branco e se abriu em uma pasta, a tela preta diminuindo e dando espaço para pequenos vídeos alinhados em três pastas simples: gaveta 1, gaveta 2, gaveta 3 e gaveta 4.

Harley Cleanwater olhou na direção da cômoda como se ela fosse o animal mais perigoso de todos. As pequenas maçanetas refletiam sublimemente a luz do monitor e a madeira empalideceu tal qual o rosto da detetive, que esticou a mão trêmula até a quarta gaveta, a mais próxima, abrindo-a com cuidado, sentindo como se arrastou e levantou espirais de poeira.

A princípio, não havia nada, apenas escuridão, até que os olhos dela se acostumaram com a vista e seus dedos tocaram o tecido azul-marinho.

— Não... — A negativa escapou por entre um sussurro conforme ela erguia o pano e assistia-o formando-se em uma pequena camiseta. — Não...

Seus olhos foram desesperados para a tela e as mãos tocaram as setas de direção até que a pasta quatro surgisse, dando enter sobre ela e vendo duas fileiras de vídeo se formando antes que as demais, que constavam como fotografias.

Harley não esperou pelas fotos. Deu enter novamente e assistiu à tela preta ressurgir.

O vídeo começou embaçado, como os olhos ao despertarem, mas logo assumiu suas formas e uma voz, ainda que baixa, soou como um grito para Harley, a imagem exibindo-se em todo o seu horror.

"Isso, sorri para mim!"

Quem falava não apareceu no vídeo, porque a câmera focava em um garotinho sorridente, rindo, uma camiseta azul-marinho cobrindo seu corpo e um par de shorts largos demais, os quais faziam de suas pernas dois galhos finos.

Harley não o reconheceu, mas o dono da voz certamente sim.

"Nicolas, gostou da camiseta?"

"Aham!" A voz era fina e respondeu em júbilo, os joelhos batendo contra um colchão branco.

"Pode dar ela para mim, então? Há mais alguém que a quer."

"Por quê?"

"Porque essa pessoa a comprou, Nic."

"Mais..., mais é minha."

O erro gramatical fez o coração de Harley se apertar ainda mais e seus olhos compenetraram-se na tela, temerosos.

"Eu sei, querido, mas essa pessoa te achou tão especial que quis até mesmo comprá-la de você!"

"Ele... ele me achou especial?"

"Aham."

"Mesmo?"

"Sim, Nic, agora, me dê a camiseta."

Quando o menino obedeceu, Harley deixou a camiseta escorregar de suas mãos, com nojo de si mesma e com pena pelo menino, o qual agora exibia-se com o peito nu, magro, mamilos pequenos, sem nenhum sinal de pelo.

"Puxa, mas está quente hoje, não tá?"

A voz soou amigável. Manipuladora.

"Aham."

"Acho que a gente podia tomar um sorvete depois daqui, se você for um bom menino"

"Eu sou um bom menino!" cantou animado e Harley baixou o olhar, fechando os olhos por alguns momentos que a perturbaram para sempre.

"Ah, sim você é!"

Nicolas era doce, e escondeu a risada por entre as mãos.

"Mas, bem, acho que não posso te chamar mais de menino, não é? Quantos anos você já...

"DEZ!"

O grito foi estridente. Nicolas tinha a mesma idade de Lucas Yard...

"Dez anos, puxa... já é um mocinho!"

"Sou sim!"

"Por isso que está escondendo seu picolé dentro das calças, é?"

Aquilo fez o estômago de Harley se embrulhar.

"Hahahahaha não é um picolé, tio, é o meu pipi" explicou com vergonha, segurando a virilha.

"Nãaaao, pra mim é um picolé!"

"Não é não."

"Então mostra pra mim!"

E Nicolas, como o bom garoto que queria ser, obedeceu, livrando-se das roupas, deixando-as sobre a cama, mostrando seu pequeno pênis encolhido enquanto ria e o homem salivava.

"Puxa, mas ele é bem bonito e branquinho, não é? Pequenininho, como eu gosto!"

O menino não soube responder àquilo, deitando-se de costas com um sorriso.

"Posso mostrar o meu também?"

Então Harley parou o vídeo, mas não antes de ouvir Nicolas dizer:

"Wow! Não vai caber na minha boca!"

A frase repeliu seu corpo para trás e ela chutou o ar, socando o chão com força, sentindo as mãos doerem conforme os olhos choravam, socando-os logo em seguida como se para realmente perder a visão, a mente pesada, arrepios de asco percorrendo cada centímetro de seu ser conforme a imagem de um pênis adulto perto do rosto de um menino de dez anos permanecia gravada na tela.

Ela quis esquecer tudo no mesmo instante que assistia. Ela quis ter obedecido sua mente, não seu corpo, e ido embora dali. Mas, agora, não havia outra escolha senão prender Lenny Lover por pedofilia.

Conforme forçava-se a se levantar, as pernas tremeram e a mente pensou em quão terríveis eram os outros vídeos e quantas lembranças macabras o delegado podia ter comprado das crianças que assistia de maneira tão depravada e doentia.

Chegar ao corredor foi fácil, ainda que tivesse de apertar os olhos com força para realmente ver o caminho que fazia, e não só um menino inocente sem saber o que faz.

Assim que alcançou o topo da escada novamente, tudo pareceu mais frio e escuro, ou talvez apenas fosse assim que ela se sentiu, as mãos apoiadas tanto no corredor quanto na parede para não errar um degrau e desabar.

Mas seria isso tão ruim assim?

O vídeo a perturbou tanto que a voz do homem desconhecido ainda soava contra sua nuca, e ela dizia:

"Pule, acabe com tudo isso, poupe-se da culpa..."

Então silêncio.

"Pule..."

Porém, antes que a detetive realmente considerasse cair pelos degraus, um som próximo a fez despertar do transe maldito e seus olhos chorosos e vermelhos focaram em Heartland ao lado da porta, segurando a faca na altura de seu rosto, esperando.

— Eldric?

Então o som de chaves se encaixando na fechadura da frente travou a voz dela contra a garganta.

Ali estava Lenny Lover.

E Eldric o atacou com uma faca. 



*Bom... quase 5.000 palavras. E aí, o que acharam? Se preparem pelo o que vem pela frente!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top