Capítulo IX


Cardinham, Millpool

Quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Manhã, 09h03

Dewnans Lee Sallow era um corajoso menininho de dez anos. Ah, sim, coragem não lhe faltava para enfrentar aquelas poças lamacentas com suas galochas amarelas, tão velhas que o tom se tornou opaco, tal qual seu cabelo, fino e loiro como milho seco, os olhos vorazes encarando a próxima vítima, a uma passada de distância. Ele se preparou, dobrando os joelhos, tomando impulso e sentindo o corpo leve sobre o ar antes de cair sobre a água, pingos respingando sobre ele por entre uma risada antes dele gritar: você nada pode contra a fúria do temível Dewans!

Era divertido se arremessar sobre as poças. Era divertido pescar com seu tio. E ele estava animado por estar ali, correndo pela terra irregular, molhada pela chuva que havia acabado de cair e que, agora, havia se transformado em uma garoa pesada.

Árvores e mais árvores cercavam o lago. Ele já conhecia o caminho. Quantas vezes já viera ali? Três? Quatro? Seu pai o levara uma vez, disso ele tinha certeza, mas George Sallow não era do tipo paciente. Ele não esperaria o peixe vir até seu anzol; caçaria o peixe até pegá-lo com as próprias mãos. Era esse imediatismo e desejo por controle que fazia o garoto, ainda que não soubesse exatamente disso, se sentir mais confortável ao lado do tio.

Porém, naquela manhã, o homem não estava tão relaxado quanto gostaria. Aquele dia era importante, e ele tinha medo de que algo estragasse isso.

Apesar das raízes de Josh Sallow serem da Cornualha, Cardinham era seu lugar favorito. Não que fosse longe. Na verdade, era perto até demais, e ele tinha medo de que aquela vadia pudesse sentir seu cheiro e segui-lo até ali. Sim. Jannet Morgan era uma vadia, das grandes. Que tipo de mulher comprometida se deita com seu melhor amigo? Inferno! Ninguém deveria fazer isso! E agora ela ficava vindo atrás dele!? Não. Isso ele não iria aceitar e iria deixar que Jannet, a vaca, se arrastasse até ele para então lhe dizer o tão sonoro "não voltarei, Jannet", que ressoava em sua mente a cada maldita noite.

Mas agora o que ressoava em seus ouvidos eram os gritos excitados de seu sobrinho.

Sim, foi uma boa ideia eles terem ido ali, pensou, e agradeceu o irmão, George, por tê-los deixado ir. A chuva veio para varrer todos os males, para varrer Jannet de sua vida e para que o sorriso de Dewnans ficasse ainda maior, pulando e estalando as galochas contra as poças de água chafurdadas na grama em uma mistura de lama e tufos verdes. Porém, talvez, seu ânimo para aquele dia, sua necessidade pelo chorar refrescante das nuvens, fosse porque a vida de Josh estava na merda.

O homem de trinta e sete anos ia de duas a três vezes tomar cerveja em algum pub, nunca no mesmo, para que não gravassem seu rosto, mas a verdade é que isso seria difícil de não acontecer, pois Josh tinha uma cicatriz que descia desde sua testa até a metade da bochecha direita, vítima de um acidente de carro que, segundo ele, foi o marco para a desgraça de sua vida acontecer.

Jannet Morgan foi a enfermeira que cuidou de sua recuperação naquela semana infernal que passou na enfermaria do hospital público e, se o perguntasse naquela época quais eram suas expectativas a respeito da mulher, ele lhe diria: nenhuma. Josh não era um homem de sofrer por antecedência, de planejar, de pensar tanto assim no futuro. Ele tinha uma meta? Talvez, mas ela não estava clara em sua mente, só sabia que queria estar o mais longe do trabalho possível antes de fazer quarenta anos.

E ali estava ele, com seu sobrinho, indo pescar em Millpool, ainda que as memórias do último dia do trabalho fisgassem sua mente a todo instante. Tudo bem, talvez Josh Sallow achasse todos ao seu arredor babacas funcionais, imprestáveis, mas a verdade é que Howard Ward era, realmente, um bosta. Um bosta com o cargo de CEO da companhia televisiva em que ele trabalhava. Televisiva? Por que não chamar de putaria desmedida? Ontem, Howard chamou-o para conversar sobre os cortes que seriam feitos na empresa.

Ah, sim, Josh queria que houvesse todo tipo de corte naquele homem.

Ele era seu melhor amigo. Seu parceiro, que lhe subiu de cargo mesmo quando estava desfigurado pelo acidente — agora, entre goladas de cerveja nos pubs, ele pensaria que o amigo só havia feito isso por peso na consciência. Será que ele já a comia antes do acidente? Ou o estado depressivo que ele ficou durante a recuperação foi o que lançou Jannet em seus braços? Será que ele metia nela na mesa do escritório?

Os pensamentos de Josh Sallow eram tantos e tão corrosivos de se analisar que seria possível escrever um capítulo inteiro com eles, no entanto o homem não é o principal personagem dessa história, ainda assim é preciso que você saiba que, irrevogavelmente, ele precisava de um dia bom. Um dia bom como aquele, ainda que com nuvens cinzentas e um céu em paletas frias, que fazia seu sobrinho sobressair naqueles tons de neon de sua capa-de-chuva verde.

Josh só não sabia, ainda, que o dia seria péssimo, e que todo o horror estava para começar quando pegasse a primeira vara de pesca no porta malas de seu furgão.

— Não vá para tão longe, Dew, vou pagar a taxa e já vamos para o lago, está bem? — Sua voz soou carregada do sotaque córnico, arrastado, profundo.

— Aham! — concordou sem olhar na direção do tio, preocupado demais com a próxima poça d'água, mais distante que as outras e que desafiava o comprimento de suas perninhas curtas.

Dewans caiu antes dela, escorregando, o calcanhar arrastando um tufo de lama para frente e sua cabeça batendo contra a grama por entre um gemido.

— Droga! — resmungou esfregando a nuca, decepcionado, apertando os olhos por entre o chuvisco.

O lago estava mais perto, agora, e o menino não sabia como. Em sua mente, não parecia ter ido longe... afinal, quantas poças pulara desde que seu tio dissera que ia pagar algo?

O menino olhou para trás. Aparentemente, havia se empolgado demais e a mente parou de contar. Droga! Ele não queria que seu tio ficasse zangado...

Os olhos voltaram-se para frente, fitando o lago, o modo como os pingos caíam sobre sua superfície e criavam uma profusão de ondulações que chegavam até a borda quase sem força, sem sinal de existência, apenas na memória do garoto.

O dia estava calmo, muito calmo, e o som da garoa era reconfortante..., mas uma sensação estranha no peito de Dewnans, tão novo e tão inocente, dizia que havia algo errado.

Então ele olhou para trás novamente. Por que seu tio estava demorando tanto? Mas sua mente descartou a pergunta quando os olhos repousaram sobre algo que não havia visto antes; algo fundo na grama... a marca de um solado, uma pegada.

Dewnans sentiu o coração bater mais rápido e respirou fundo.

As pegadas vinham até sua direção, mas paravam um pouco antes. Pegadas fundas, pesadas, que não poderiam ser dele, eram muito maiores, de adulto.

De um homem adulto.

O ar pareceu pesar sobre o garoto, que sentiu os olhos marejados, nervosos de ansiedade e um medo primitivo.

As pegadas formavam uma trilha de ida até o garoto.

Mas não havia uma trilha de volta.

Então, a pessoa estava ali com ele.

— DEWANS!

O garoto gritou ao ouvir a voz e sentir as mãos agarrando-o pelo ombro, erguendo-o, dando pequenos tapas em sua capa e tirando as marcas de terra.

— Eu disse para não ir longe! — Os olhos de seu tio estavam preocupados, encarando-o com seriedade. — Está louco!? Sabe o que sua mãe faria comigo se você sumisse!?

Porém o menino estava nervoso demais para responder, apavorado, e apenas abraçou o tio, agachado à sua frente, sentindo-se seguro. Sentindo-se em casa. Por um momento, ele podia realmente estar perdido, e aquele garoto não queria ter aquela sensação novamente.

...

— Lembra-se de como passar a isca pelo anzol? — perguntou Josh segurando sua vara, ambos sentados na margem do lago, mais cheio devido às precipitações pesadas.

— Aham — respondeu com menos alegria do que antes, apanhando uma minhoca de dentro da lata de iscas, encaixando-a por entre o anzol, assistindo a como sua carne foi perfurada e como ela se contorceu de imediato.

— Ei, olhe para mim — pediu o tio, mas o menino não se moveu. — Dewnans, olhe para mim! — repetiu com firmeza e o menino obedeceu.

Ele tinha o mesmo pavor que Josh exposto em seus olhos, ainda que eles tivessem sentido o medo de formas diferentes.

— Desculpe por ter gritado com você — disse o homem respirando fundo, passando as mãos nos cabelos. — Não queria te assustar, eu só... estava preocupado.

O menino baixou os ombros. Parecia triste.

— O que houve, Dew? Fale comigo.

— Eu só... — Dewnans engoliu em seco. — Fiquei com medo.

O tio uniu os lábios em um sorriso torto e puxou o sobrinho para um abraço, beijando-lhe a cabeça e bagunçando seus cabelos com a mão.

— Estamos juntos, vai ficar tudo bem.

Mas o menino não parecia tão certo disso, de tal forma que Josh percebeu que precisava animá-lo de alguma forma, nem que para isso tivesse de provocá-lo.

— Quem sabe dessa vez você consegue pegar um peixe maior que o meu!

Dwnans arregalou os olhos.

— Eu vou pegar o maior peixe que você já viu!

— Ah, é? Duvido muito!

— Eu vou!

— Disse isso da última vez também — relembrou com uma careta, fazendo o garotinho segurar sua vara com mais força. — Não pegou nem um peixe médio...

— Eu vou pegar o maior, você vai ver! — Ele pareceu confiante, a mente distraindo-se do susto. — Dessa vez eu pego!

Bem, talvez o sobrinho realmente pegasse, pensou Josh. A vara que tinha, dessa vez, permitiria isso.

O homem sabia que, para uma boa pesca, é preciso da vara certa.

E para um bom assassino, é preciso conhecer a vítima.

Dewnans soltou a linha até uns vinte centímetros mais ou menos, o pequeno polegar repousado sobre o carretel, apontando a carretilha para cima antes de usar seu pulso para arremessar, apertando o botão do carretel permitindo um arremesso mais longo na linha de seu olhar, os pés tomando cuidado para não acompanharem a inércia do movimento e escorregarem para dentro do lado.

— Caramba, viu como foi longe!? — cantou o menino, animado, endireitando-se, assistindo ao tio fazendo o mesmo, mais atrás, franzindo o cenho pela distância entre eles.

— Mas será que os peixes estão lá? Às vezes, o mais perto é o mais prová...

— PEGUEI!

Os olhos de Josh se arregalaram, surpresos, vendo como o menino fazia força para puxar sua presa.

— Pegou!?

— Sim! — afirmou por entre um suspiro. — E é dos grandes! Pesado...

O anzol cravou-se perfeitamente na carne, a minhoca desnecessária. Sim, a presa que o pequeno Dewnans apanhou não se importou em comer.

— Me ajude! — pediu o menino e o tio baixou sua vara, aproximando-se dele, segurando junto a suas mãos a vara, sentindo como, de fato, era um peixe pesado, robusto, no mínimo, as veias de seu pulso saltando.

— Puxa vida, mas que peixe é esse!?

— UM PEIXÃO! — clamou o menino em júbilo, não conseguindo conter o sorriso, rindo, vendo a água se movendo mais perto deles, agora, a forma de sua presa começando a aparecer. — É UM PEI...

Mas então algo arrebentou e tio e sobrinho caíram para trás por entre um grunhido.

Não foi a linha.

Não foi a isca.

Foi a cartilagem.

A cartilagem de uma bochecha onde o anzol havia se cravado.

— Não podemos perdê-lo! — gritou o menino ansioso, se erguendo aos tropeços, correndo para a margem do lago onde a figura de sua pesca se aproximava aos poucos, branca, fria.

— Dew... — chamou o tio, aturdido, encarando a isca, a minhoca ainda viva, se contorcendo, porém o medo apavorou seus ossos quando o anzol virou em sua direção e o canto de uma boca apareceu, preso ao rasgo de uma bochecha. O horror adentrou suas veias.

Não, aquele não era um dia bom.

— DEWNANS! — gritou Josh quando viu o sobrinho debruçando-se sobre o lago, encarando furtivamente sua presa imóvel.

Então Dewnans deu um berro.

O peixe que pescou tomou a forma de um menino nu, diante de seus olhos, amarrado, sem um pedaço da bochecha, como se ele fosse feito de porcelana e ela estivesse quebrada, sem sangue, que repousava na isca na mão de Josh, os olhos encarando o céu apático sem realmente vê-lo, os cabelos já apodrecendo pela umidade do lago, emaranhados, com folhas amontoadas e terra, as escamas imaginarias dando lugar à pele pálida, mais branca que cera, mais gélida que mármore, as nadadeiras assumindo o desenho de dedos arroxeados, unhas quebradas.

O peixe se tornou menino.

Que se tornou Ursel.

E Ursel estava morto.



*Eu absolutamente AMO esse capítulo e não sei explicar o motivo sem parecer metido, mas aqui vai aaahhaha eu acho que a minha escrita nele foi uma das melhores que já fiz e creio que tenha passado todo o acinzentar da cena conforme a situação se desenvolvia até seu desfecho cruel. Espero, de todo o coração, que tenham gostado!

*P.S: Voces são lindos e o livro está quase com 500 leituraaas!! Vamos espalhar a palavra de Harley por aí ahahaah

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