Enitensída
Enitensída (adj.)
termo utilizado para designar pessoas que não precisam de muito tempo para se apaixonar, nem tem medo de sentir demais
O que aconteceu depois foi o mais puro sentimento de rejeição possível. Neteyam não tinha dito que odiava o jeito como ela agia, ou que simplesmente a odiava. Apenas tinha, pela primeira vez, discordado dela. E isso não seria um problema se ele não estivesse errado. E se as pessoas que ele diz estar protegendo, não estivessem sofrendo tanto.
Era trágico. Cruel.
Mas Ronal também estava certa sobre algo. Ont'ari estava confusa sobre suas decisões, a única certeza era que almejava estar ao lado daquele garoto Sully. Mas estava brava agora. E queria ter outro lugar para ir.
Mas o único lugar em que podia estar no final do dia era na tenda da família Sully. E quando o sol estava prestes a se pôr, lá estava Ont'ari voltando para aquele lugar.
Mas uma movimentação estranha chamou sua atenção.
一 Lo'ak! Lo'ak! 一 Os membros do clã gritavam para lá e para cá.
一 Lo'ak está bem? 一 Ont'ari parou um nativo qualquer.
一 Não sabemos. Ele saiu do Recife. Estão todos atrás dele.
Ele não sairia do Recife. Após horas de buscas, Lo'ak finalmente voltou. Os nativos o encontraram se aproximando do Recife e trouxeram para casa. O clã se reuniu para recebê-lo. Ont'ari estava possessa. Sabia que esse sumiço não podia ser coincidência.
A primeira atitude de Lo'ak foi uma tentativa falha de se aproximar de Aonung. Jake se colocou na frente do filho e o avaliou, como se procurasse algum problema ou arranhão novo.
As unhas de Ont'ari estavam prontas para um pedaço de pele bem azul, como a cor do oceano.
Mas tão logo: Neytiri chegou. Neteyam estava com ela e parou ao lado de Ont'ari. Ele não disse uma palavra, mas os dedos dele roçaram os dela. A garota se afastou. Não podia ceder. Estava brava.
一 Eu rezo por forças para não arrancar os olhos do meu filho mais novo. 一 Neytiri rosnou para Lo'ak.
一 Não. 一 Tonowari tomou a frente. 一 Meu filho sabe que não deveria sair com ele do Recife. 一 O líder colocou seu filho de joelhos. 一 A culpa é dele.
Ont'ari estava com raiva, além da conta. Sentia sua veias pulsando como canhões disparando.
一 Não, o Aonung não tem culpa. 一 Lo'ak falou. 一 A idéia foi minha.
一 Isso é mentira. 一 Ont'ari rosnou.
Ronal olhou para a garota. Jake também. Os dois sabiam que Ont'ari não gostava de se ver no meio de guerras de outras pessoas, mesmo assim assim estava se colocando em risco. E colocando tudo em risco.
Mas ela não ia ceder de novo.
Ont'ari simplesmente virou as costas e foi embora dali. Não soube o desfecho. Também não queria saber. Ela só queria se entender, antes que fizesse alguma estupidez.
Estava agindo como uma louca, como uma idiota. Colocando tudo pelo qual estavam lutando em risco, apenas para ter razão. Apenas para estar certa. Tinha cuspido suas insatisfações sobre Neteyam e estava comprando brigas que não eram suas.
Por que?
Não sabia essa resposta. Ou não queria aceitá-la. Precisava ficar longe. Estava se sufocando com suas próprias ideias e pensamentos. A família Sully não era a sua família. Quando colocou Neteyam no topo da sua vida, esqueceu-se que ainda precisava lidar com ela própria. Não podia deixar que outra pessoa tomasse seu rumo e guiasse seus passos. Estava deixando toda a responsabilidade de suas ações, nas costas de outros.
E tomando a frente de batalhas já perdidas.
Não podia lutar essa guerra. Não enquanto não entendesse porque estava fazendo isso.
Então ela mergulhou no mar.
Não sabia onde iria, embora soubesse que não chegaria em casa assim. Nunca poderia voltar. Não sabia nem onde estava.
E tinha esquecido completamente quem era. Como era. Por que lutava antes? E o porque de todas as suas lutas terem perdido o valor. Os filhos de Jake Sully por mais cabeça dura que fossem, entendiam isso. Entendiam seu lugar e entendiam o motivo de suas próprias lutas.
Ont'ari não sabia nada disso.
Não sabia por quanto tempo tinha nadado, nem quão fundo tinha ido. Mas começou a ver as cores vibrantes no fundo do mar, e foi até lá. Seus braços doíam. Ela estava exausta. Mas conseguiu sorrir quando notou o que a esperava.
一 Eywa...
Era a árvore.
A árvore das almas, do clã metkayina.
Diferente da árvore dos Omaticayas, e mais parecida com a que encontrou na caverna antes de partir, ela sentiu uma imensa conexão. E quando se aproximou, sentiu leveza e paz.
一 Eu senti tanto a sua falta.
Era como se pudesse ouvi-las sussurrar de volta: que nunca tinham ido há lugar algum.
Ont'ari puxou a trança para frente e se conectou com seu passado, presente e futuro. Foi como ser jogada de um penhasco e cair em queda livre para sempre.
"A grama debaixo dos pés de Ont'ari era tão real, como se aquele lugar fosse a realidade e aquela imensidão de mar lá fora, fosse um sonho muito longo. Ela ajoelhou e colocou os dedos na terra, podia sentir o cheiro das árvores e o som da floresta. Casa. Lar. Vida de verdade. E um pouco de felicidade. Era disso que precisava.
Ela deitou-se com as costas na grama, barriga pra cima, olhos voltados para o céu. Céu azul, pássaros e uma vasta folhagem sobre sua cabeça. Sempre se sentiu parte daquilo. Toda a sua vida. Sem guerra, e agora tendo que fugir de casa e viver sobre as regras de outras pessoas.
Ainda não entendia porque se submetia a isso.
Tudo estava tão confuso e a impressão que tinha era que não existiam palavras para descrever aquele sentimento de paz, quando o lugar todo era uma paisagem solista. Mesmo que não houvesse ninguém por perto, ainda sentia cheiro de casa quando se esforçava.
Mas não demorou a perceber que aquela paisagem não era tão solo assim. Ouviu o barulho das asas pesadas batendo forte e logo ele apareceu em sua frente. O Ikram de seu irmão pousou, tão azul quanto a cor mais forte do mundo. Ont'ari se animou. Sentia falta de montá-lo. Ela se agitou para ir até ele, mas de repente, ele não estava tão sozinho assim.
Ont'ari se afastou.
Um nativo alto saltou para o chão.
Ele era alto demais, até para um Nativo. Ont'ari parecia um brinquedinho perto dele. Ele era azul, como ela. O cordão de grãos que ele usava no pescoço era tão familiar. Ele passou a mão no ikram, ele se agitou como um bicho de estimação.
Ont'ari piscou assustada.
Deu dois passos na direção dele, mas de repente travou. Não conseguiu mais se mexer.
Ele... ele...
一 Tsu-Tey... 一 Ele virou para olhá-la, e não deu nenhum sorriso.
一 Olá, Ont'ari.
一 Como você...
一 As conexões criadas por Eywa viajam por todos os cantos de Pandora. Em todas a direções, em todos os seres vivos e não vivos do nosso mundo. Você sabe como funciona. Esqueceu a história do seu clã?
一 Jamais.
Ele encostou a testa no ikram, e estendeu a mão para Ont'ari.
一 Venha.
Ela se moveu automaticamente na direção deles. Quando ele segurou sua mão, Ont'ari sentiu lágrimas caindo e molhando seu rosto. Ele a guiou até que tocasse no ikram. Ont'ari o tocou com certo estranhamento. Sentia que estava invadido aquela conexão que os dois possuíam.
一 Sabe por que nunca foi escolhida por um ikram, todas as vezes em que tentou?
一 Ouvi dizer que é raro, mas acontece. Eu devia ter escolhido outro parceiro, mas fiquei rancorosa pela rejeição.
一 Você nunca foi rejeitada, Ont'ari. No momento em que morri, ele se tornou seu. 一 Ont'ari tentou se afastar, mas Tsu-Tey a manteve colada ao animal. 一 Ele a protegeu e guiou, mas nunca pode ser conectado a você, porque você o rejeitou. Você o impediu de fazer a ligação entre parceiro e parceira. Apenas montou nele como um passatempo.
一 Ele é seu. Como pode ser meu?
一 Você também é minha. Minha irmã caçula, minha vida, metade da minha alma. Daria tudo nessa vida e na próxima para conhecer você. Não pude, mas Lutei por um mundo onde pudesse crescer e ser uma guerreira leal. E você é isso. Se tornou isso. Agora é hora de voltar pra casa e descobrir o que você é, além disso.
一 Não posso deixar Neteyam.
一 Partir não é sinal de desistir de nada ou de ninguém. Você é forte, mas ainda está perdida. Se ficar, vai sacrificar ele também.
一 Ele cuida de mim.
一 E você precisa cuidar dele agora.
O ikram sacudiu, Ont'ari foi obrigada a se afastar. Ela sentiu a água caindo sobre a sua cabeça. A floresta agora parecia está debaixo d'água. Nada ali parecia realmente estar certo. Ela tentou segurar na mão de Tsu-Tey, mas ele estava longe. A água que caia na cabeça dela, agora entrava pela boca e seu peito estava sendo esmagado. O ar faltou. Ont'ari se debateu, como se aquilo fizesse alguma diferença. Ela estava sufocando.
Sufocando. Sufocando. Sufocando."
Ont'ari abriu os olhos e botou para fora mais água do que podia se lembrar de ter consumido. Ela estava deitada na areia agora, e o céu escuro do clã do Recife estava lá no alto. Era noite ainda. E ela estava mesmo na areia.
Empalada como um frango frito.
Mas também não estava sozinha.
一 Você está bem? 一 Neteyam a segurou pelo ombro. Ele também estava molhado e empalado de areia em todo lugar. 一 Pensei que você fosse morrer. Enlouqueceu?
一 Eu...
一 O que estava pensando? 一 Jake estava ali também. E Neytiri. E Kiri. E Lo'ak. E Tuki. 一 Você podia ter morrido, garota maluca.
一 Pai, ela não está bem. Não precisa gritar. 一 Lo'ak falou.
一 Já temos problemas demais, você não acha? Não dá pra se preocupar o tempo todo com a garota imatura que quer começar uma guerra a cada esbarrão que tomar. 一 Ont'ari sentia sua cabeça vibrar como um choque. 一 Neteyam, não vou tolerar nada assim novamente.
一 PAI! 一 Neteyam gritou com seu pai. Ont'ari se encolheu. 一 Você não precisa ficar aqui agora. Ont'ari não precisa de você.
一 Resolva isso. 一 Jake mandou e saiu andando. Neytiri foi atrás do marido.
一 Se precisa de alguma coisa, irmão... 一 Lo'ak falou e saiu também. Kiri e Tuki foram juntos.
Neteyam e Ont'ari ficaram sozinhos na praia.
Ser um grande exagero em relação a seus próprios sentimentos, talvez não fosse matá-la. Mas isso não garantia que não fosse matar outras pessoas. Ela se colocava em posição de ataque, toda vez que se sentia injustiçada. A vida não podia ser assim. As pessoas precisavam agir com maturidade para que nem todo pico do mundo, virasse uma avalanche gigante e engolisse todo mudo.
Diariamente, as pessoas estavam morrendo. Os nativos estavam morrendo. E essa guerra estava acontecendo. E Ont'ari sabia lutar, sabia manusear uma arma, sabia se defender e defender outras pessoas. Mas ela não sabia se esconder e esperar que outras pessoas lutassem por ela. E é por isso que estava agindo assim.
Ela caçava brigas, para não se apegar ao fato de que estava fugindo de outra briga. Ela seguiu Neteyam porque sentiu a necessidade extrema de ficar ao lado dele, depois que ele demonstrou que era a única pessoa que entendia e valorizava quem ela era e como era. Sem pedir que ela mudasse.
Neteyam não só aceitou o jeito e a personalidade dela, ele a amou. Mesmo com todos os defeitos gritantes a respeito daquela garota.
Ont'ari sabia que era uma bomba relógio.
Estava prestes a explodir. Talvez fizesse Jake e sua família serem expulsos. E com isso, teriam que voltar pra casa e encontrar aquela guerra que estava atrás deles. E isso podia matá-los. Matar Neteyam. Tirar a vida da única pessoa que mexeu com aquele coração frio, que Ont'ari gostava de pintar. Ela descobriu com Neteyam, que o coração dela não era tão frio. Ela é que estava com medo.
— Me desculpe. Eu não devia ter gritado. — Neteyam colocou a mão no joelho dela. Ont'ari estava se abraçando sozinha. — Eu só fiquei preocupado. Você se afogou, Ont'ari. Podia ter morrido.
— Eu vi meu irmão. Pela primeira vez, eu o vi. Ele me disse que estou perdida. Não sei quem sou, Neteyam.
— Você é minha Ont'ari.
— Gosto disso. — Ela sorriu, colocou a mão no rosto dele e sentiu o peso das pálpebras se enchendo. — Mas acho que tenho que ser algo além disso. Eu não sou feliz, só quando tô com você. Isso não é vida. Antes, me contentei em não ser ninguém. Não sei se consigo fazer isso de novo.
— Gostaria que você sempre se lembrasse de que ser feliz não é ter um céu sem tempestades, caminhos sem acidentes, e relacionamentos sem decepções. Vamos nos desentender as vezes. E discordar.
— Eu sou uma bomba relógio. Estou prestes a colocar todos em perigo.
— Estamos em guerra, Ont'ari. O perigo já existe. Ele já está aqui. É o estar juntos que torna a existência tão valiosa.
— Para. Para, por favor. Você não tá entendendo. Eu tô dizendo que pra mim já deu. Estou saturada, sufocando antes mesmo de você me tirar daquele mar. Eu preciso descobrir quem eu sou, pra ficar com você.
— Ont'ari... O que você tá dizendo? Eu não entendo.
— Eu preciso partir, Neteyam.
— Não. Não precisa.
— Eu... — Ela tentou tocar nele, mas Neteyam se ergueu e se afastou. — Por favor... felicidade não é obra do acaso. É um treinamento. Eu não posso me permitir ser apenas a sua Ont'ari. Eu preciso somar com o que você é pra mim. Eu espero que me perdoe.
O som de asas batendo fez Ont'ari olhar para o céu. Lá estava o Ikram do Tsu-Tey... ou melhor, o seu ikram. O agora seu ikram. Ele pousou a alguns metros de distância. Ont'ari suspirou. Neteyam olhou para o bicho e pareceu entender.
— Eu espero que me perdoe, Neteyamur...
— É a sua decisão. Eu não tenho escolha.
— Por favor....
— Você decidiu, Ont'ari. Boa sorte.
Era evidente a mágoa dele. Mas Ont'ari não podia fugir disso. Precisava se encontrar. Não podia dar a ele, algo que não sabia se existia.
Ont'ari caminhou até ele, Neteyam estava de costas para ela e não se virou. A garota o segurou e beijou seu ombro. Sentia a tensão do corpo dele debaixo das mãos dela. As lágrimas dela pesavam seu olhar. Queria olhar nos olhos dele, mas não podia forçá-lo a passar por isso.
— Eu vejo você, Neteyamur. Para sempre e além disso.
Ont'ari caminhou até o ikram. Ele se abaixou, e ela montou. Conectou sua trança e sentiu o impacto do seu coração batendo, contra o pulso firme do animal. Neteyam continuava sem olhar para ela.
— Eu preciso encontrar. E eu espero que me perdoe.
Neteyam não olhou.
O ikram levantou voo. E Ont'ari partiu de volta para sua casa. Para a floresta e para os Omaticayas.
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