01. vagabundas sem coração
Frederico apertou o volante, ganhando a rua escura enquanto os prédios passavam por sua vista como um borrão indistinto. Dirigia sem pensar, com o pé colado no acelerador e a mandíbula trincada. O aparelho de som estava desligado, e ele desconfiava que o soco que dera no botão pouco depois de entrar no carro havia enterrado de vez as chances de o rádio funcionar, mas Frederico não se importava. Não estava no clima para ouvir música ou a voz de alguém naquele momento. Principalmente ouvir a maldita voz de alguém.
Porto Alegre era uma cidade diferente à noite. Tudo que fervilhava durante o dia parecia morto quando a noite caía, como se a cidade finalmente descansasse após um longo dia de trabalho. Ele seguiu sem rumo pelas avenidas vazias, afastando-se cada vez mais do apartamento deles. Não, pensou Frederico, tomado por um sentimento de asco e revolta. O apartamento nunca foi meu. O apartamento sempre foi da Marina. Só dela.
Frederico sempre odiou aquela porcaria de apartamento de três quartos no bairro Moinhos de Vento. Tudo parecia falso no condomínio. O porteiro sorridente, o sistema de vigilância ultramoderno que funcionava perfeitamente e as sebes bem aparadas não passavam de máscara. O condomínio, que tinha um nome pomposo em francês, combinava com Marina e os pais metidos dela. Todos eles pareciam feitos de cera. Meu Deus, como pude ser tão cego?
Ele pisou no freio, cantando os pneus na avenida vazia. O semáforo estava aberto, mas não havia nenhum motorista enfurecido atrás para pedir que ele se apressasse. Frederico socou o volante até a mão machucada doer, ouvindo as batidas se alastrarem pela avenida solitária. De olhos fechados, respirou fundo e empurrou o volante com as duas mãos.
Marina era uma vagabunda sem coração. Todas as mulheres eram assim. Exceto a mãe dele, Dona Amália, e a irmã, Juliana. As outras não passavam de lixo. Vadias como Marina que fingem e mentem a torto e a direito. Ele afrouxou o aperto no volante, relaxando os ombros.
Jéssica, sua contadora, era uma ótima pessoa. Pâmela, a garçonete do café, era esforçada e inteligente. Laura, sua única e melhor amiga, apesar de irritante e grosseira como um estivador do porto, tinha o seu valor. Talvez nem todas as mulheres fossem vagabundas sem coração e mentirosas profissionais como Marina. Talvez ela fosse apenas o fruto podre que contamina a reputação da árvore, mas não as outras frutas. Calma, cara. Te acalma e para de pensar nessas merdas.
Frederico abriu os olhos e não demorou a perceber que estava longe de casa. Galpões abandonados e revendas de automóveis o encararam de volta, sérios e silenciosos em sua escuridão impenetrável. Luzinhas vermelhas piscaram no céu, e ele acompanhou num silêncio frustrado enquanto outro avião levantava voo. O aeroporto. O que eu não daria pra ir pra bem longe dessa merda toda... Mas Frederico não queria ir embora, não de verdade. Com o peito apertado, pisou no acelerador devagar, como se testasse o carro, e seguiu pela avenida deserta.
As redondezas do aeroporto Salgado Filho eram tomadas por indústrias, galpões, revendas, concessionárias e, quando escurecia, prostitutas. Uma leve ameaça de chuva dificultava o trabalho das moças naquela noite. Dirigindo devagar, ainda com o pensamento fixo em Marina, ele não viu sequer uma moça fazendo ponto na rua.
Frederico não era adepto da prostituição, mas acompanhava os jornais o suficiente para saber que a atividade crescia no bairro São João. Os especialistas mais sensatos culpavam o sistema social, a questão cultural e o crescimento dos índices de pobreza. Os mais escandalosos apontavam o dedo na direção do aeroporto. "O que vocês esperavam?", gritavam os apresentadores de televisão mais sensacionalistas. "Os gringos descem no Brasil querendo bunda! É óbvio que as prostitutas vão aonde os gringos estão!"
Mais calmo, ele dirigiu como se procurasse por um endereço qualquer. De que adiantaria pensar em Marina agora? Respira fundo. Pensa em golfinhos e naquele CD de ioga que a Ju te deu. Ele realmente deveria ouvir a irmã e praticar meditação. Aquela merda toda de relaxamento não podia ser papo furado.
Na esquina de um galpão escuro, três moças dividiam um cigarro. Apesar de o vento anunciar chuva em breve, as três riam. As roupas curtas deixavam à mostra mais do que Frederico gostaria de ter visto e, quando uma delas empurrou a outra em direção ao carro, ele arrancou antes que a moça se aproximasse demais. Os minutos se arrastaram, mas a gargalhada das três ainda ecoava em seus ouvidos.
Frederico não era esse tipo de homem, não sentia prazer em pagar por sexo. Havia algo de errado, pelo menos na concepção dele, no ato de comprar outro ser humano, mesmo que durante algumas horas. Frederico fazia doações mensais à Anistia Internacional e à UNICEF. Era lógico que não apoiava aquilo. Pelo amor de Deus.
Ele deveria ir para casa, colocar um pijama, fazer um café forte e dormir. Ou melhor, deveria fazer um chá de camomila com duas colheres de mel. Se tomasse café no estado em que se encontrava, quebraria alguns pratos e xícaras para se sentir melhor. A Dona Amália, que comprara as porcelanas inglesas quando o filho decidira morar sozinho, morreria se visse tudo em cacos.
O amor que a mãe nutria por porcelanas sempre fora esquisito. A cristaleira na casa deles era o santuário da Dona Amália, que tratava cada prato como se fosse um filho, os irmãos ingleses, chineses e alemães de Frederico e Juliana. A Dona Amália era moderna. Fazia pilates e ioga com a filha, compartilhava posts feministas no Facebook e tratava o marido, o calmo Seu Ernesto, com amor, mas sem facilidade. Entretanto, como todo mundo, a Dona Amália tinha lá seus preconceitos.
"Um casamento sem um bom conjunto de porcelana não vai pra frente, meu filho", costumava dizer ela. Frederico não entendia como pratos e xícaras de boa qualidade influenciavam a vida a dois, mas a mãe não se dava por vencida. Ela simplesmente sorria, piscava um olho e arrematava com outra frase corriqueira: "Quando tu e a Marina se casarem, tu vai saber do que eu tô falando".
Uma pena que a porra do tal casamento não chegara a acontecer.
Ele dirigia devagar. A ventania balançava a copa das árvores, e uma garoa sem graça anunciava que em breve a chuva de verdade começaria. Temporal dos fortes. Porto Alegre adorava um temporal, e a diversão dos porto-alegrenses era comentar os estragos da chuva e das enchentes no outro dia. Telhas arrancadas, árvores caídas que bloqueavam o caminho e relatos de falta de luz ganhavam cores de aventura típicas de qualquer filme do Indiana Jones.
Frederico conhecera Marina durante um desses temporais.
O silêncio no carro era tão opressor que ele abriu a janela. O ar-condicionado roncava do lado de dentro, mas Frederico precisava de ar puro, do cheiro da rua deserta, do vento, da garoa. Pensava em Marina, em sua boca de boneca, nos cabelos castanhos presos em trancinhas atrás da cabeça, no cardigan rosa que colava no corpo dela debaixo daquele temporal.
Marina era fofa, baixinha do sorriso contagiante que usava vestidos floridos, cardigans delicados e sapatilhas coloridas. "É tão fofa que me dá vontade de vomitar", dizia Laura com a boca cheia de pão de queijo, sentada à bancada de madeira envelhecida da cafeteria. A melhor amiga nunca media palavras quando falava de Marina.
Logo nas apresentações, o santo das duas não havia batido. Marina frequentava o jóquei-clube com os pais e Laura vivia nos botecos mais sujos da Cidade Baixa, cantando jazz na noite. Era como juntar a Barbie Quebra-Nozes e a Joan Jett na mesma mesa e esperar uma relação de amizade duradoura.
Os encontros de Laura com Marina eram sempre tensos. As duas não faziam a menor questão de demonstrar educação, de se esforçar para a relação dar certo. Pontuavam cada discordância com um sorrisinho frio aqui, um comentário ácido ali e olhares que arrepiavam os pelos da nuca de Frederico.
Laura abominava Marina. Sua irmã, Juliana, não ligava para a cunhada, mas a Dona Amália via na nora a ressurreição de Jesus Cristo, o último catálogo das porcelanas chinesas, a terceira filha que não teve. Perfeição da cabeça aos pés.
Sem vontade alguma, ele riu. O carro estava parado e gotinhas da chuva fina molhavam o interior da porta. Perfeição. O que a Dona Amália diria se soubesse o que Marina, o ser humano perfeito, andava fazendo?
O celular tocou. Assustado pelo barulho, Frederico pegou o aparelho no bolso traseiro do jeans. No visor, o apelido "Ursinha" foi como um soco na boca. Frederico fez uma careta, com raiva e nojo de si mesmo por tratar aquela maldita da Marina com...
— E aí, amor, o que vai ser pra ti?
Foi tudo muito rápido. Com o celular firme na mão, ele virou o rosto. Preso naquele estado de surpresa e assombro, Frederico viu uma mulher apoiada na janela do carro. Uma prostituta.
Ela não era jovem como as meninas dos vídeos da Anistia Internacional, nem velha para se parecer com a Dona Inês, a avó dele. Era uma moça comum, de feições interessantes e rosto bem maquiado, que mascava chiclete de uva e usava uma peruca chanel cor-de-rosa como a de Natalie Portman naquele filme que Frederico não lembrava o nome. Aquele com Jude Law, a boate de strip tease e a música triste que sempre o deixava meio balançado.
O vento tremulava a peruca dela, que usava um sutiã azul brilhante, jaqueta de couro curta e braceletes no pulso. Frederico não enxergava o que ela vestia para baixo, mas desconfiava. Só podia ser minissaia, botas de cano alto e meia arrastão. Roupa de prostituta.
Juliana teria dado um peteleco em sua testa e dito: "Para de ser cuzão, porra. Não existe isso de roupa de prostituta". Apesar de zen, a irmã não admitia falta de respeito ou pré-julgamentos. Por isso se dava tão bem com Laura.
A moça o encarou de volta com um sorriso relaxado. Tinha olhos escuros e densos, da cor de pinheiros de Natal. Não combinavam com a peruca cor-de-rosa néon, mas Frederico nada disse. Ainda estava chocado com a presença dela em sua janela, com aquele contato que nunca aconteceria se a situação fosse outra.
Qual era a diferença entre Marina, seus cardigans delicados e aquela moça que usava pouquíssimas roupas na garoa gelada e cobrava por sexo? Nenhuma.
Marina ligou outra vez. Do lado de fora, a moça franziu as sobrancelhas castanhas para o celular e riu. Frederico engoliu em seco, enfiando o aparelho no bolso. Com as mãos apoiadas no volante, ele perguntou:
— Qual é o teu nome?
A fala saíra meio adormecida, como a vez em que arrancara o dente siso, como a vez em que ficara bêbado naquele bar medonho que Laura tanto gostava de cantar. A moça riu, ajeitando o cabelo cor-de-rosa para trás da orelha. Usava brincos caídos e prateados com inúmeras pedrinhas falsas que se mexiam por causa do vento. Parecia confortável, nada bêbada ou anestesiada pelo dentista.
— Scarlett. — Ela se inclinou na porta. Além de chiclete de uva, a moça cheirava a chuva e baunilha. — Meu nome é Scarlett, mas pode me chamar do que tu achar melhor.
Ela sussurrou a última parte. Nome de prostituta. Ele assentiu com o peso de outro peteleco imaginário de Juliana na própria testa.
A moça sorriu, deu uma batidinha na porta e fez a volta no carro.
Frederico poderia arrancar se quisesse. Poderia acelerar e deixar a prostituta para trás, ir para casa, enfiar o pijama, tomar o chá de camomila com duas colheres de mel e dormir antes que a ideia de espatifar as porcelanas da Dona Amália parecesse muito interessante. Mas a moça se sentou no banco do carona e fechou a porta com um estalo abafado. Usava minissaia emborrachada, meia arrastão, botas de cano alto e trazia uma bolsinha atravessada no corpo. Uma bolsinha jeans. A caracterização seria cômica se não fosse triste.
Ela sorriu, descansando uma das mãos sobre o joelho dele. Frederico enrijeceu no banco.
— Vamos, amor?
A mão dela era pálida, quente e exercia uma leve pressão em seu joelho. Vamos, amor? Marina sempre dizia aquilo quando eles saíam juntos, enquanto ele se arrumava depois do banho. Déjà-vu do início ao fim.
A ventania ficou mais forte e a chuva, que crescia em ritmo lento, empoçou num buraco do asfalto. Frederico assentiu para a moça e acelerou sem pressa, o calor dos dedos dela queimando em seu joelho.
Aquela noite ficava mais estranha a cada segundo que passava.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top