4 - Cor de tempestade

Vinte anos atrás


Mesmo com o rádio ligado ao som de Legião Urbana, a menina de dez anos conseguia escutar os gritos abafados que vinham da casa vizinha, e sabia que algo muito ruim estava acontecendo.

Silenciosamente, Laísa abriu a janela do quarto e passou por cima do parapeito, agarrando-se às vigas enquanto subia até o telhado. Se sua mãe a visse fazendo aquilo, tomaria uma bela bronca. Controlou as respirações, torcendo para que a voz de Renato Russo camuflasse o som dos seus movimentos.


"Todos os dias quando acordo

Não tenho mais o tempo que passou

Mas tenho muito tempo

Temos todo o tempo do mundo"


A noite se matizava feito um manto cobalto, e o cheiro tipicamente urbano e precário daquela parte da cidade incomodava seu nariz.

Laísa se ajeitou sobre as telhas, espiando a casa vizinha. Ali, os gritos ficavam mais altos. A impressão era de que alguém estava derrubando os móveis e quebrando pratos. Ela se inclinou um pouco mais; ao virar o rosto, deparou-se com um par de olhos a fitando através da janela.

Um garoto de óculos, que deveria ser apenas um pouco mais velho do que ela. O semblante dele era aflito, como se quisesse fugir do inferno que acontecia do lado de dentro.

Meio receosa, Laísa acenou para ele. Ele acenou de volta.

Decidiu arriscar um pouco mais, e gesticulou para que ele abrisse o vidro.

Ele pareceu relutar por um momento, mas então soltou a trava e arrastou o vidro para o lado.

Inundada por um misto de ansiedade e animação, Laísa convidou para se juntar a ela. Achou que o garoto recusaria, e quase soltou um suspiro de frustração; mas então, ele pulou a janela, se pendurou no muro que unia suas casas e caminhou pelas telhas, sentando-se ao lado dela.

— Oi.

— Oi.

Ele era bonito. Muito mais bonito do que os meninos chatos da sua classe.

— Me chamo Laísa. Qual é o seu nome?

— Marcos.

— Está tudo bem na sua casa, Marcos?

O garoto bufou, abraçando os joelhos, tirando os óculos e encarando o céu.


"Veja o sol dessa manhã tão cinza

A tempestade que chega é da cor dos teus olhos

Castanhos"


Com seus meros dez anos, Laísa não fazia ideia do significado da palavra sincronicidade, mas achou que a letra da canção se encaixou perfeitamente com a fúria selvagem que enchia as íris dele.

— Eu... Eu só queria que existisse um lugar que fosse... Um paraíso. — Marcos virou o rosto, e ela quase prendeu o ar. — Será que existe um lugar assim?

Laísa mordeu o lábio inferior. O vento balançava seus cabelos. Pensou em citar o céu que o padre sempre mencionava nas pregações de domingo, mas algo em seu âmago sussurrava que não era sobre aquilo que Marcos estava falando ou buscando.

Por fim, encolheu os ombros, acompanhando o olhar de Marcos na direção do céu encoberto; nuvens encobriam a luz das estrelas.


"Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo"


— Se este lugar existir, acho que uma hora a gente o encontra, não é?

Marcos não respondeu, e Laísa optou por se aquietar também. Apenas a música escalava a janela do quarto dela e os alcançava no telhado.


"Não tenho medo do escuro

Mas deixe as luzes

Acesas agora"


Dentro da casa dele, os gritos infernais continuaram.

E não cessaram durante as horas seguintes da noite e da madrugada.


****************


Atualmente


Era mais de meia-noite quando Laísa perdeu o sono. Ela rolou na cama, tentando adormeceu outra vez. Havia tido sonhos confusos; com Iago, com o trabalho na Síria, com sua infância em um bairro pobre.

Ela se pegou encarando o teto, se perguntando outra vez se podia ter feito algo pelo noivo, remoendo a angústia por ter aceitado a distância dele nas últimas semanas antes de sua morte, mesmo com os planos do casamento. Soltou o ar. Havia tanta coisa que ainda queria falar para ele. Tantos planos. Tantos sonhos interrompidos.

Laísa soltou o ar outra vez, o peito pesando como chumbo.

Empurrou as cobertas para o lado, decidida a ir até a cozinha. Um copo de leite quente com achocolatado talvez a ajudasse a relaxar. Desceu as escadas com cuidado, temendo acordar tia Marta ou empregados. 

Agitou a cabeça, ansiando por mudar o rumo dos pensamentos sobre Iago. Porque doía demais saber que não podia mudar o que tinha acontecido. Laísa olhou em volta, inspirando fundo. Será que Marcos já havia voltado? Sabia que era uma hóspede na casa dele e que não deveria se intrometer em sua rotina corrida, mas aquele sumiço a deixava inquieta.

A escuridão parcial, interrompida apenas pela luz do luar que vencia as barreiras das persianas tortas, deixava o caminho até a cozinha mais comprido, como se uma aura estranha pairasse pelo local.

Laísa agitou a cabeça e afastou aqueles pensamentos. Tomou um copo de leite, surrupiou alguns biscoitos do armário e, sentindo-se satisfeita, decidiu voltar para a cama e caçar pelo sono perdido.

Estava prestes a virar o corredor quando uma figura alta e masculina surgiu diante dela. Seu coração quase saiu pela boca. O luar que atravessava as persianas iluminava o rosto de Marcos, contornando seus cabelos escuros, bagunçados e desalinhados; uma oposição à imagem do empresário que sempre usava gel e se mantinha impecável.

— Sinto muito — ele disse. — Te assustei?

— Um pouco. Não te ouvi.

— Acabei de chegar. Não sabia que você ainda estava acordada.

Laísa piscou, agitada de um jeito estranho e silencioso; o peito de Marcos se revelava na camisa aberta, o abdômen definido, a pele salpicada de suor. Ela se pegou contando cada respiração à medida que ele se aproximava. Olhando-o melhor agora, poderia confirmar que ele realmente não se parecia mais com o menino das suas memórias.

Exceto pelos olhos; uma tempestade castanha escura, furiosa, implacável e, ao mesmo tempo, acolhedora.

Como a canção que escutavam juntos.

— Desculpa por não ter jantado com você. O dia foi insano. — Havia cansaço em sua voz, e havia algo ainda mais profundo e criptografado. Marcos deu mais um passo para perto dela. Sob o brilho do luar que salientava a barba por fazer, Laísa pôde ver como o rosto dele ganhara contornos másculos ao longo dos anos. — Sei que estou sendo um péssimo anfitrião e que não estou valorizando a ajuda que você me ofereceu.

— Ora, não se preocupe com isso, Marcos. Foi você quem abriu as portas da sua casa para mim. — Laísa balançou a mão no ar; céus, por que seu sangue parecia correr tão veloz nas veias? — Não deixe que minha presença aqui atrapalhe sua rotina e seus planos.

De súbito, os dedos dele envolveram o pulso dela, as mãos pairando no espaço entre eles.

— Não diga isso. Você não me atrapalha.

Ela ergueu o rosto, esperando por uma piadinha, mas se viu surpresa, aprisionada pelo olhar carregado de Marcos.

— Você sempre foi uma luz na merda da minha vida. Antes, agora, sempre. Então não diga isso.

Laísa não estava preparada para a onda voraz que o toque dele em sua pele lhe causou, e estava menos preparada ainda para o tom daquelas palavras, para a tempestade que crescia outra vez nos olhos dele.

Os dedos de Marcos se afrouxaram, mas a mão dela continuou suspensa no ar, tocando a marca avermelhada em sua bochecha.

Ela piscou.

— Ei, o que é isso? Você está machucado? Marcos, o que aconteceu? Onde você estava?

— Fique tranquila. — Com gentileza, ele afastou a mão dela.

— Marcos...

— É sério, Laly. Pode ficar tranquila.

Ouvi-lo chamá-la pelo apelido da infância, como se os anos passados e presentes houvessem se fundido em uma canção sobre um tempo perdido, como se ainda fossem duas crianças em cima de um telhado, sob um céu escuro, a pegou com o impacto de uma onda brusca. Seu coração martelou alto, inesperado; Laísa tinha quase certeza a batida reverberou por todas as paredes da casa.

Os anos voltaram a correr entre eles, e ela recolheu a mão, camuflando as memórias nostálgicas atrás de um riso divertido.

— Se você estiver escondendo alguma coisa de mim, Quatro-Olhos, eu vou descobrir. Fui jornalista investigativa por um bom tempo.

— Ei. — Ele abriu os braços. — Eu não uso mais óculos. Esse apelido não vale mais.

Laísa arqueou as sobrancelhas.

Marcos bufou.

— Tá bom. Uso quando tenho que ler algum contrato enorme com letras muito miúdas.

— Viu só? Sempre descubro as coisas.

— Ok, Laly. Você venceu essa. — A mão dele pousou em suas costas, quente, firme. — Vamos dormir um pouco, já está tarde. Prometo que amanhã tomaremos o café da manhã juntos.

Subiram juntos as escadas, seus passos ecoando em harmonia.

— Cobrarei essa promessa, Quatro-Olhos. E não se esqueça de que você está em dívida comigo por causa da história do aeroporto. Você merecia um chute na bunda por ter me esquecido.

O riso abafado dele foi a última coisa que ela escutou antes de entrar no quarto e fechar a porta. Riu sozinha, apoiando as costas na parede.

E então parou, tocando o próprio rosto.

Fazia muito tempo que não ria.

Desde Iago. Desde o trabalho na Síria.

Aquilo era bom. Ela sentia falta daquela leveza, daquela não preocupação, de deixar as pálpebras caírem e ouvir outra coisa que não fossem bombas explodindo e vozinhas implorando por socorro.

E, ao mesmo tempo, aquilo a cutucava, como se estivesse traindo a dor e a morte de Iago, junto de toda a história que haviam compartilhado, ao tentar se sentir bem.

Um dia de cada vez. Tenho que viver um dia de cada vez.

Voltando para a cama, Laísa se deitou e puxou as cobertas para cima. Fechou os olhos, o peito subindo e descendo embaixo do pijama.

Ainda podia escutar o murmúrio da noite, um estalar suave, misterioso, feito uma carícia efêmera; e ao som de uma canção antiga, embalada pela cor da tempestade, adormeceu.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top