Parte I - Capítulo 02 - MARE ACIDALIUM
Sedna estava com medo.
Ela se agarrava com todas as suas forças à sua mãe que aflita a abraçava de volta enquanto segurava com a outra mão a pequena Éris no colo. Elas corriam desesperadas galpão adentro e iguais a elas centenas de outras famílias faziam o mesmo. Houve aglomeração, pânico, pessoas pisoteadas, gritos, choros, crianças perdidas clamando pelos pais, pais desesperados chamando pelos filhos. E neste ínterim, tiros, soldados, mais gritos e bombas davam a ideia de que ali era uma sucursal do inferno.
A adolescente sentia cheiro de sangue, gosto de ferrugem na boca e estava bastante difícil respirar. Ela buscava o ar com sofreguidão, mas infelizmente não conseguia. A jovem não tinha mais fôlego. Antes que fossem pisoteadas, com o que lhe sobrou de forças, ela puxou sua mãe para junto da parede e viu a massa de desesperados caírem uns sobre os outros como peças derrubadas de um jogo de dominó enfileiradas. A cena era aterradora. Ela buscou avidamente informações visuais, alguma coisa que lhe permitisse tomar decisões rápidas. Não havia nada de familiar naquele lugar até que ela viu pelos cartazes de propaganda militar nas paredes e pela bandeira que teimosamente permanecia hasteada em uma quina do lugar que elas ainda estavam na colônia de Ophyr em Ophir Chasma. Eram refugiadas de guerra e passariam pela triagem, e por questões alheias às suas vontades, seus destinos seriam traçados em definitivo em poucos minutos. Seu coração parecia querer sair pela boca, já que ela sabia o que estaria por vir.
Já era de conhecimento de todos que mais da metade daqueles desesperados e famintos que se acotovelavam junto delas por um espaço naquele bunker estariam mortos até o fim do dia.
A triagem iria começar. A vida ou a morte seria definida pela fila em que elas fossem colocadas.
Aquele poderia ser o último dia de vida dela, mas antes de temer pela própria vida ela temia pela vida de sua irmãzinha de colo chamada Éris. Sua mãe fingia estar calma, ela segurava o choro e o próprio desespero para não contaminar a filha mais velha. Ela queria tentar passar a ideia de segurança e de que tudo estava sob controle. De que logo elas estariam a salvo.
Mas a mãe falhou miseravelmente nesse intento. Elas se abraçaram e decidiram deixar que as lágrimas rolassem.
— Eu te amo mãe, quero que saiba que... — Começou a se despedir Sedna.
— Não fale nada Sedna, minha querida... não vamos nos despedir, isso não é o fim. — A mulher censurou a jovem garota. — Vamos conseguir, continue acreditando. Não desista. Promete?
A garota se resumiu a concordar balançando a cabeça para cima e para baixo.
Um novo soldado entrou no recinto depois da algazarra e trazia consigo formulários para serem preenchidos em uma espécie de programa de computador projetado em realidade ampliada. Ele era apenas um burocrata.
O pobre coitado tentou chamar a atenção de todos, mas sem sucesso, até que decidiu subir em uma velha cadeira dobrável de metal e com um megafone fazer perguntas para a massa afoita de maltrapilhos.
— Atenção, quero a atenção de todos. — Ele falou ao megafone.
Sem sucesso, a balbúrdia continuava.
Ele fez um sinal com a cabeça para que outro soldado fizesse algo a respeito.
Sem pensar duas vezes o soldado atirou para cima pedindo ordem.
Dessa vez o silêncio foi conquistado. Todos olharam preocupados para o homem sob a cadeira.
— Agora respondam todos vocês: levantem as mãos quem teve a casa, agrupamento ou seu assentamento destruído nos bombardeios? — Gritou o burocrata.
Foram unânimes, todos os aflitos levantaram as mãos. O soldado olhou para a sua janela de software flutuando um pouco acima de suas vistas e desanimado desistiu dela. Ele não iria catalogar a multidão, era perda absoluta de tempo.
Antes que ele pudesse fazer alguma coisa outra trupe de soldados entraram no local de armas em punho, usando máscaras e com muita raiva.
— Maldição! Façam a triagem, AGORA! — Ordenou o provável líder aos seus subordinados. — Somente os saudáveis! Façam com que subam nos comboios! Temos 10 minutos para abandonar o local! ANDEM!
Protestos, mais pânico, violência, empurrões, brigas e até que houvesse uma mínima ordem foram necessários mais alguns tiros para o alto!
— Todos que estiverem em condições de lutar serão alistados imediatamente! — Gritou um dos responsáveis por organizar as filas.
As pessoas foram sendo separadas. Primeiro por idade, depois mães e filhos e depois os homens. Velhos e doentes eram postos de lado.
Sedna ficou todo o tempo junto de sua mãe até que uma mão a pegou pelo braço com força.
— Veja só Cabo, está aqui é bem bonitinha. — Falou com gracejos um soldado raso para seu superior mais próximo enquanto apertava o braço de Sedna tão forte que lhe fazia hematomas.
— Parece forte. Ela serve! Separem-na! — Disse o Cabo tratando-a como se a mesma fosse um produto exposto em uma prateleira.
— NÃOOO! MINHA MÃE! — Sedna entrou em desespero. — Deixem-me com minha mãe!
— O que foi soldado, não aguenta puxar uma menina? — O insolente Cabo zombou do soldado que tinha dificuldades em puxar a jovem para longe da família.
— NÃO! NÃO! Deixem minha filha! — Gritou a mãe de Sedna!
Imediatamente a mulher levou um chute e caiu com sua filha de colo ainda em seus braços de costa no chão.
Ela se levantou de sobressalto. Lutaria pela filha, mas parou abruptamente. O Cabo colou uma pistola na fronte da pequena Éris.
— Afasta! Senão mato ela! — Ele ordenou de arma em punho. — ANDA!
Sedna parou de lutar, a mãe deu dois passos para trás e por instinto tapou os olhos da pequena no colo com a mão.
— Depois que nós nos divertimos com ela até que essa gostosinha pode nos render muitos litros de água, não é Cabo? — Disse o soldado lambendo os lábios enquanto olhava para Sedna.
Um terceiro homem deu um soco no soldado afastando-o.
— Deixa de ser idiota! — O corpulento homem falou. — Deixe isso para as mulheres dos inimigos. Essa aqui não, coloque-a na fila certa, ela vai ser recrutada. Se encostar um dedo nela eu mato você. Estamos entendidos?
— Sim Sargento. — Surpreso o Cabo obedeceu. — Soldado, leve-a.
— Não me importo! Não me importo com o que fizerem de mim, mas, por favor, salvem minha mãe! — Aos prantos suplicou Sedna. — Eu vou, eu vou com vocês! EU JURO!
O Cabo olhou para a família dela com desdém.
— Certo... você — ele apontou para a mãe — vá para aquela fila. Vocês vão embarcar no caminhão.
O Cabo tomou a garota das mãos do soldado raso. Ele a puxa para junto de si.
— Eu vou te cobrar por isso mais tarde gatinha, não vai ficar barato! — Ele falou ao pé do ouvido dela.
O Sargento e líder da operação ralhou com seus dois subordinados à distância.
— Vocês dois! ANDEM! Andem logo com essa fila!
— SIM SENHOR! — Responderam os dois em uníssono, o soldado estava com a mão ainda no queixo se recuperando do soco.
Eles empurram com truculência as três, cada qual para sua fila indiana.
— Mãe? Mãe? MÃE? — Sedna gritou pela mãe tentando sem sucesso tocar em sua mão, nem que fosse por uma fagulha de instante.
Sedna estava apavorada, mas sabia que no fim o objetivo mais importante tinha sido alcançado. Sua mãe viveria, ela não sabia como, mas ela e sua irmã teriam uma chance. Já ela própria... quem sabe? Seu futuro era incerto.
A vida no espaço era difícil e cruel, permitir que um refugiado — mesmo uma criança — sobrevivesse ocupando o lugar que possivelmente seria de outro pessoa mais saudável e útil estava fora de cogitação. Em um ambiente hostil viver não era privilégio de todos. Por sorte Éris e sua mãe seriam poupadas e jogadas de uma colônia para outra até conseguir abrigo humanitário.
— Filha! Filha! FILHA! — Gritava a mãe sendo separada a força da sua cria.
Sedna não conseguiu se despedir, inúmeras mãos a empurravam para outra fila.
•••
Sedna foi jogada em um caminhão e no fim daquele dia desembarcou em outro hangar. Foi despida, enfileirada em uma parede com vários outros refugiados de ambos os sexos com a mesma idade que ela. Se já não bastasse essa humilhação ela foi examinada sem nenhuma gentileza por dois médicos truculentos que aparentavam ser desprovidos de emoções. Passou por uma nova triagem e então teve todo o seu cabelo cortado.
Ao final de todo o processo de recrutamento ela teve apenas 60 segundos para se lavar em uma bacia compartilhada com todos os demais que estavam na mesma situação que ela.
Ela olhou nos olhos de todos ali que como ela estavam na mesma condição e só percebeu o medo emanando deles.
Medo. A mais bestial e irracional emoção.
Naquele mesmo dia Sedna foi classificada pelos médicos como um desperdício. Foi dito que ela só possuía chances mínimas de sobreviver ao treinamento. Por causa disso ficou determinado que ela teria menos recursos e alimentação que os demais. Tida como descarte ninguém iria se incomodar se os crápulas que a recrutaram a força fossem tentar cumprir a promessa que fizeram de se divertir com ela.
Ela quase foi abusada, mas antes que isso acontecesse ela foi transferida para o próprio inferno gelado, era como se tivesse adentrado no próprio Cócito, o último circulo infernal.
Aos recrutas foram dadas as missões mais insalubres. A ela coube trabalhar pelas cavernas adentro de Valles Marineris como mineradora de gelo.
Deram-lhe um escafandro própria para isso e lá foi ela se embrenhar em rincões com temperaturas muito abaixo de zero. Em locais que a luz jamais ousara aparecer.
Sua roupa especial não dava conta de protegê-la todo o tempo, a rotina extasiante e a alimentação precária quase lhe mataram. A priori Sedna foi posta para morrer à míngua durante o treinamento, mas contrariando tudo e a todos ela decidiu viver. Enquanto ela sobrevivia muitos em condições físicas bem melhores do que a dela padeciam.
Graça a isso ela foi "promovida". Deixou o inferno gelado das cavernas mais profundas e foi para a mineração de metal. Pouco tempo depois foi realocada na superfície. Seu talento ao usar os escafandros não passou despercebido.
Como motivação Sedna jurou nunca esquecer o rosto de sua mãe e de sua pequena irmã. Ela chorou muito no começo. Nessas ocasiões ao final dos dias, em dormitórios apinhados de gente, ela levava as mãos ao rosto e rompia em prantos e as lágrimas lhe banhavam a face. Só que ninguém escutava, ou fingia não ouvir.
Sua fama lhe precedia e ser mais uma vez transferida, só que desta vez para o esquadrão de escafandros blindados foi algo natural.
Já não era surpresa para ninguém que ela conseguia usar um escafandro como uma extensão do seu próprio corpo, treiná-la na arte da luta só veio corroborar isso.
Ela sobreviveu graças a tenra esperança de reencontrar sua amada família. Sedna em sua inocência sonhava que se fosse um bom soldado devolveriam aquilo que lhe haviam tomado.
Leso engano. Anos depois veio sem cerimônia nenhuma, ou tampouco tato, a triste notícia que sua mãe e irmã haviam sido mortas em um atentado covarde que nunca fora elucidado. Ela tinha cultivado aquele reencontro em vão durante anos.
Lhe faltou o chão sob seus pés. A jovem tinha perdido seu propósito, mas ela não teve tempo para o luto, afinal, era uma combatente.
Ela precisou encontrar uma nova razão para existir. Depositou sua força na raiva. Ela descobriu que era boa em lutar.
Muito boa.
Depois de um tempo tudo isso ficou no passado. Ela fechou seu coração, suas emoções e trancou tudo lá dentro. Passou a chave e a jogou fora.
Ela estava morta por dentro.
Mas o coração dela batia, movido apenas pelo prazer de destruir o que tivesse pela frente. Seu passado, seus sentimentos pareciam coisas que pertenciam a outra pessoa, como se aquilo tudo houvesse acontecido em outra existência. Outra vida.
Ela não chorava mais. Estava conformada e com muita raiva.
Muita raiva mesmo.
•••
O veículo militar não parava de chacoalhar no terreno acidentado e Sedna acordou de sobressalto. Ela estava revisitando suas memórias como se tudo aquilo fosse um pesadelo.
E o seu tenente já estava a gritar as instruções.
Seus lábios estavam secos. Um cheiro forte de suor no ar, um gosto de ferro na boca. Dentro do transporte estava quente, muito quente. Ela suava em bicas.
Sedna tinha voltado de suas lembranças, um misto de memórias tristes e sonhos surreais. Desde o dia que fora recrutada até aquele momento. Com dificuldade abriu os olhos e viu que estava de volta ao seu esquadrão.
Quatro anos haviam se passado desde seu rapto pelo exército.
E aquela garota assustada se tornou uma poderosa combatente. A melhor de todos usando um Escafandro.
O Escafandro originalmente era uma espécie de armadura espacial para que os colonos pudessem sobreviver e trabalhar nas usinas de água e plantações hidropônicas sem sofrerem maiores consequências da radiação na nociva superfície de Marte. Era bem prática e permitia livres movimentos dos trabalhadores. Porém, em meio às guerras sofreram adaptações: Ganharam blindagens, propulsores, escudos, metralhadoras, mísseis... se transformaram em tanques de guerra humanoides.
E nenhum marmanjo se dava bem contra Sedna numa luta justa mano a mano dentro de um.
— ATENÇÃO SOLDADOS! — Gritou o tenente.
Sedna estava sentada lado a lado de seus demais companheiros e de costas para a parede lateral dentro do grandioso veículo militar que os levariam para o campo de batalha. Ao fundo do mesmo veículo estavam os poderosos escafandros, prontos para serem pilotados.
Ela olhou para os lados e observou a expressão de medo nos olhos dos novatos, os mesmos olhos que ela viu em seus companheiros quando foi recrutada à força.
Ela olhou para seus companheiros que estavam sentados defronte dela e de costas para a outra parede lateral do carro e alguns sorriram de volta, já outros engoliam o choro.
Os que sorriram de volta para ela eram os que, como a própria, já tinham visto face da morte muitas vezes, mas ao invés de fecharem os olhos os mesmos sorriram de volta para ceifadora em vez de esperarem a foice dela cair sobre eles.
Entre os que estavam sorrindo de volta para Sedna estava Antares, um moleque cheirando ainda a leite, mas um dos mais habilidosos do esquadrão. Ele lhe deu uma piscada galanteadora.
— Se enxerga garoto. — Sedna achou graça e riu com desdém.
Ele deu de ombros sorrindo para ela.
E o tenente continuou:
— Hoje, vamos começar a nossa ofensiva para retomar a usina de água daqueles cretinos de Chryse! Nossas plantações hidropônicas estão ameaçadas, se não conseguimos recuperar nossas usinas que os desgraçados roubaram vamos todos morrer! Lembrem-se: lutem com todas as suas forças porque não há para onde fugir! Se falharmos não temos para onde voltar, suas famílias na colônia cedo ou tarde morrerão de sede. Não há retorno!
— A LANÇA DE ARES! — Gritou Sedna para o seu pelotão enquanto colocava o seu capacete.
Ela foi logo seguida por seus companheiros que entoaram o mesmo brado.
Esta guerra começou quando as colônias de Marte desistiram de tentar criar um governo unido para o planeta e cada uma seguiu seu próprio caminho à revelia das outras. Por conta disso o projeto de 300 anos de terraformação falhou e o planeta voltar a se resfriar. Os rasos oceanos e lagos conseguidos artificialmente logo secaram e a novíssima vegetação começou a morrer. Essas mesmas colônias começaram a se matar umas às outras e a meta era literalmente roubar as usinas de água, surrupiar as plantações hidropônicas e todos os recursos possíveis do adversário.
E, se surgisse a oportunidade, escravizar os colonos derrotados, colocá-los em insalubres trabalhos forçados e por fim comercializar o resto do espólio com as outras colônias supostamente aliadas.
Enfim, esses países estavam fazendo o que já se fazia na Terra desde a mais tenra antiguidade. Tudinho igual, do mesmo jeito.
Guerra. O homem era movido a guerra. O progresso nascia da guerra.
Ophyr, a terra natal de Sedna, era a menor colônia entre todas as demais no planeta. Era meramente uma cidade-estado com alguma autonomia incrustada nas cavernas subterrâneas dos cânions de Ophir Chasma no grande complexo maior de cânions de Valles Marineris. Um dia Ophyr já fora independente, mas hoje era um mero estado-satélite de Tharsis.
Tharsis tinha uma meta ousada de unificar todo o planeta, sobre seu manto é claro, para desse modo retomar a terraformação e salvar Marte. Só que isso levava a uma carnificina sem fim. Na ocasião aquele mundo vivia um racha entre ocidente e oriente, norte contra o sul. A ditatorial Tharsis, uma nação bélica, contra sua nêmesis Hellas, uma democracia corrupta ao sul.
Além do conflito entre essas duas grandes potências havia diversos conflitos menores entre as colônias que giravam sob a esfera de influência delas.
No caso Sedna vivenciava uma luta sem trégua por recursos entre sua colônia contra Chryse, uma colônia de origem germânica localizada a nordeste e que tinha Tharsis como um inimigo natural, apesar de não estar plenamente alinhada com Hellas.
A guerra entre Tharsis e Hellas não se resumia apenas ao planeta Marte, suas lutas se estendiam também espaço sideral afora pelo cinturão de asteroides na disputa pelos recursos escondidos por lá.
Essa guerra não era uma coisa unicamente marciana. O sistema solar inteiro era hostil.
A terceira guerra mundial nunca teve fim e se estendeu por séculos a fio.
A corrida espacial entre as potências da Terra abriu novas portas para exploração de minérios e recursos nos demais planetas e satélites do sistema solar.
Diversas vezes a humanidade esteve diante da própria extinção com essa guerra, por conta disso nasceu uma trégua não oficial entre as nações, uma espécie de acordo de cavalheiros, que limitava os conflitos armados unicamente ao espaço, justamente nas disputadas zonas de exploração, de modo a salvaguardar o frágil planeta azul e berço do homem da destruição.
Os EUA, pioneiros na corrida espacial, ficaram com a Lua e fundaram a base Armstrong.
Os russos que ultrapassaram os americanos ainda durante o século XXI fundaram uma república em Marte como parte oficial da Federação Russa. Uma vez instalados começaram com o maior intento da humanidade, a terraformação do planeta.
Os Alemães conseguiram desenvolver uma tecnologia capaz de resistir às altas temperaturas de Vênus, iniciando a exploração do planeta unicamente com robôs.
O maior campo de batalha entre as potências era justamente o cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter e suas milhares de rochas ricas em minérios.
Quando o conhecimento para se angariar os céus se popularizou outras nações entraram na disputa e foram além, como China e Índia, conseguindo explorar os satélites de Júpiter e Saturno, inclusive criando colônias e as povoando.
Os EUA com o tempo deixaram de ser os protagonistas no espaço, principalmente quando perderam a base Armstrong da Lua após um pesado cerco dos japoneses. Hoje sobre controle da terra do sol nascente a base se chama Kaguya Hime. Muitos Selenitas partiram para o exílio após a queda dos EUA se refugiando nas colônias de Ceres, Palas, Vesta, Encelados e Europa.
A colonização humana havia conseguido atingir até mesmo o extremado Netuno.
Com a falta de uma regulamentação e acordos, e o número de países na disputa se expandido, fez com que a situação da guerra se tornasse insustentável, restringindo a expansão da colonização.
Até o presente momento o homem não conseguiu ultrapassar os limites de seu sistema solar.
Hoje a região entre Marte e Júpiter vive o terror da nova arma de guerra alemã, o temível canhão Schwerer Gustav com poder de fogo suficiente para destruir a superfície de Marte.
Mas ainda que houvesse uma guerra gigantesca lá fora Sedna tinha que se preocupar com os embates dali mesmo. O sistema solar estava todo banhado em sangue, não havia um único lugar onde a humanidade não tivesse colocado os pés que não houvesse uma peleja.
Era a sina de todos.
E ali a história não seria diferente.
— ATENÇÃO, 30 segundos! — Alertou o tenente.
Sedna se desvencilhou de suas cintas de segurança e correu para sua unidade de Escafandro. Imediatamente sua armadura se ajustou a seu corpo e ela se posicionou na fila de salto. A porta traseira do veículo que a transportava, e ao seu pelotão, se abriu. Um a um os combatentes saltaram do carro em movimento.
Ela odiava essa parte, pois quando ela saltava sempre precisava rolar com seu escafandro pesando toneladas pelo chão seguidas vezes para se estabilizar.
— Unidade Flegetonte pronta para o combate. — Gritou Sedna pelo comunicador.
— Unidade Lete pronta. — Ela escutou seus companheiros reportarem pelo comunicador.
— Unidade Cócito pronta! — Respondeu outro time.
— Unidades Aqueronte e Estige prontas!
— Perfeito senhoras e senhores, vamos levar todos eles para o barqueiro. Caronte terá muito trabalho hoje. — Gritou o líder da operação. — Vamos!
Aquele lugar se chamava Mare Acidalium, próximo de Achillis no hemisfério norte. Para Sedna seria o lugar de sua redenção ou seria sua cova. E pensar que aquele lugar, quando a terraformação estava dando certo, chegou a ter um mar com água de até 11 metros de profundidade. Esse fato hoje chega a ser uma piada pois logo em seguida o lugar tornou a ser um vasto deserto, como quase tudo naquele planeta.
Imediatamente ela ligou os propulsores e passou a deslizar como se patinasse sobre o árido terreno de terra vermelha daquele ermo. Era um terreno vasto e plano, sem esconderijos, sem trincheiras, sem nada para se esconder. Era combate corpo a corpo, mira contra mira. Um batalhão contra o outro.
Era a especialidade de Sedna.
— Unidades, Pelotão Ares, impacto com tropas inimigas em 5, 4, 3, 2... — Alertou o tenente pelo comunicador.
Aquilo tudo parecia uma reprise de Gaugamela, épica batalha travada entre o conquistador Alexandre o Grande da Macedônia e os exércitos do império Persa comandados por Dário III. As coincidências eram gritantes, o perfil do terreno onde se desenrolaria a batalha e até os números de cada lado contribuíam com a comparação.
No longínquo, e quase mítico, ano de 331 A.C. Alexandre marchou contra os persas com um exército em menor número, mas ainda assim, se valendo de sua perspicácia como estrategista virou a mesa e levou a vitória na peleja e de quebra o domínio do império inimigo. Ele passou a ser senhor de todo o mundo conhecido até então.
A coisa havia rolado mais ou menos assim: Segundo as lendas Alexandre tinha 40 mil combatentes, Dario contava com 250 mil, ou seja, o segundo tinha uma boa vantagem. O número real nós nunca saberemos e parece que a coisa toda sofreu uma glamorização para o lado do Alexandre, mas de qualquer forma é consenso com os arautos da história que o Macedônio tinha a desvantagem numérica.
Alexandre contava com a formidável Cavalaria Companheira e Dario com a Bactriana
Alexandre tinha como seu maior trunfo a eficácia da técnica da falange que consistia de soldados armados com longas lanças que se moviam em uma formação em bloco intransponível, já que as lanças eram dispostas em diferentes ângulos de ataque obedecendo uma lógica regida mediante a posição dos soldados que as seguravam, formando assim, um verdadeiro mar de espetos que extirpavam qualquer grupo de ataque. Era a melhor combinação de ataque e defesa que existia na época. Dario por sua vez estava com a tecnologia de guerra mais avançada e letal daquele tempo que eram as bigas com sabres nas rodas, sabres que podiam partir as pernas de cavalos, quiçá um pobre soldado em terra.
O confronto se desenrolou em um terreno plano e reto de terra vermelha batida. Igualzinho o confronto que Sedna iria vivenciar. Numa analogia bem simplista Sedna estava no que seria a versão marciana da cavalaria companheira e as bigas de sabres eram os colossos humanoides, os tanques de batalha de Chryse, robôs de quase 4 metros e dotados de forte artilharia e lanças energizadas saindo de seus corpos por todos os cantos. O trunfo dos colossos era que eles podiam se sentar, abraças os próprios joelhos e sair rolando em disparada contra as tropas inimigas retalhando tudo. Era bem bizarro e engenhoso.
Mas Ophyr não foi para a guerra de forma suicida, alguém pensou em uma estratégia e por mais simples que fosse... era bom ela funcionar. Sedna iria seguir seu papel nessa encenação à risca.
A priori nem tudo sai do jeitinho que foi planejado, alguns segundos depois os dois exércitos de soldados de armaduras se chocaram. Parecia que independente da tecnologia a luta não era muito diferente dos embates medievais. Era aço contra aço e por mais estranho que parecesse quanto mais tecnologia envolvida mais os combates regrediam aos modos dos antigos.
Espaço muito curto. Lutar com espadas era a solução.
Durante a peleja a mente de Sedna se esvaziava, mas recentemente, mesmo em meio ao embate, as lembranças dela não a deixavam em paz.
A batalha se estendeu por quase 30 minutos que pareciam uma eternidade.
Sedna havia acabado de partir um adversário ao meio com seu cutelo gigante energizado.
Ela gritou, urrou de ódio, estava entregue a batalha como uma berserker, perdida entre o tempo e o espaço. Com o instinto assassino no automático e vagando entre memórias e a carnificina diante de suas vistas.
Foram inimigos iguais a esse que ela está dilacerando agora que roubaram a usina hidropônica de sua colônia, que invadiram suas terras e que a obrigara a se separar de sua família.
Ela jurou ficar forte.
E acabar com todos esses malditos.
A batalha seguiu e aconteceu o que foi previsto. As tropas ao centro de Ophyr fizeram uma formação idêntica a falange macedônica e acabou com a linha de frente de Chryse. Diante da catástrofe os colossos entraram na luta em um ataque frontal. Vindos da retaguarda eles correram contra a formação da falange.
Aparentemente ia ser um massacre, mas se naqueles tempos antigos as batalhas se desenrolavam com arcos e flechas agora tudo ia ser resolvido na bala e no fogo.
O movimento foi milimétrico. No que a falange esteve para ser pisoteada pelos robôs rapidamente ela saiu de formação e abriu para os lados fazendo os inimigos passarem por duas formações sem acertar ninguém. Os robôs foram cercados.
As unidades munidas de canhões entraram na jogada. Ocultas em meio a falange elas saíram da tocaia entre o mar de lanças e começaram a atirar à vontade contra os colossos pelas laterais. Perfeito, o embuste havia funcionado.
O mesmo havia acontecido com as bigas de Dario. No último momento a falange de Alexandre abriu e as bigas se viram cercadas pelas laterais por arqueiros que não precisavam nem ter boa mira, bastava acertar um dos cavalos da carruagem para comprometer e fazer tombar todo o conjunto. Foi uma carnificina.
Tudo ia bem e Sedna havia acabado de decepar um braço inimigo, ela não podia ouvir o grito do adversário, mas ela imaginava bem como devia estar doendo... E isso a deixava feliz.
Era hora de avançar pelos flancos. Armas brancas na bainha, hora de usar os projéteis.
O tenente deu as ordens.
— Preparar acoplagem de metralhadoras, unidades de apoio, abasteçam, unidades de retaguarda, acoplem os morteiros. — Gritou ele pelo autofalante para todas as unidades.
— Ataquem pelos flancos, impeçam os vermes de se dissiparem, afunilem eles para nossa infantaria, VAMOS! — Ele ordenou e tomou a frente.
O batalhão de Sedna começou a desenhar um círculo pela lateral esquerda da batalha, como se cercasse o inimigo impedindo-o de se espalhar, a meta era furar o bloqueio maciço de adversários e encurralar os combatentes de linha de frente.
Ela patinava sobre a areia, conseguia se esquivar com maestria, sua mira era certeira, seus disparos cortavam os inimigos como se fossem papel.
— Atenção! Cubram-me! — Ela solicitou. — CARREGANDO!
As unidades de apoio em meio ao banho de sangue achavam brechas para andar junto das unidades de frente recarregando-as, separando os feridos e abrindo caminho para as unidades médicas. Era uma batalha em campo aberto, nenhum obstáculo e com todos atirando contra todos. Talvez sobrevivência estivesse mais ligada a sorte nesta loteria de disparos para todos os lados do que necessariamente habilidade.
— Sedna, cuidado com sua retaguarda! — Gritou com a lutadora pelo comunicador seu colega de unidade.
Sedna instantaneamente pousou os olhos nas câmeras periféricas de sua retaguarda e freou com destreza se voltando ao inimigo ao se deslizar no deserto e volver em 180°.
Ambos trocaram tiros de metralhadoras e alguns projéteis trespassaram a blindagem do escafandro dela, mas não a ponto de comprometer seu suporte a sobrevivência em sua máquina.
Já o oponente não teve a mesma sorte, ela viu o escafandro dele tombar e rolar pelo chão.
— Obrigada pelo aviso Antares. — Agradeceu Sedna ao companheiro.
Antares era companheiro de batalha de Sedna há pouco tempo. Mas, ainda assim, eles já enfrentaram algumas situações bem difíceis e ela confiava nele, acreditava que aquele rapazote era uma jóia não lapidada, um talento bruto.
Se ele não fosse tão antipático e indisciplinado ele tinha algum futuro.
Mas o que ele tinha de talento lhe faltava em prudência.
Era um gênio perdido, um talento desperdiçado.
Tudo bem, ele podia até ter todos os defeitos do mundo, mas se Sedna tivesse que escolher alguém para lutar ao seu lado ela escolheria ele, sem hesitar.
Conforme a luta se desenrolava o montante de combatentes passou a se resumir a alguns poucos, a elite da elite, que se digladiavam em verdadeiras disputas. Alguns eram famosos combatentes, ostentavam insígnias, pareciam ou se sentiam como cavaleiros medievais. Nesta parte da batalha, um duelo tinha lá sua honra. Era mano a mano sem interferências.
Rendição ou morte. Mas rendição era cair em desgraça.
Para Sedna em caso de derrota era só a morte.
Nos duelos é sem morteiros, sem metralhadoras e espadas energizadas. Era hora das foices e dos martelos. Aço contra aço.
A jovem combatente gostava mesmo era de um enorme cutelo, personalizado, que ela mesma mandou fazer. Essa era sua arma. E ela não apenas cortava, estraçalhava o aço da armadura de quem quer que fosse.
Ela olhou em volta, queria saber onde ele estava, o desgraçado que fugiu dela na última vez. O bastardo da armadura negra. Ah sim... lá estava ele. Ela ergueu o cutelo e o apontou para ele.
Era o sinal do duelo, ele respondeu.
Duelo aceito.
Eles então dispararam um contra o outro, o impacto das armas de ambos brandindo uma contra a outra era ensurdecedor.
O barulho ensurdecedor do impacto das duas armas brancas erguidas por colossos. Faíscas surgiam quando as lâminas se encontravam.
Sedna estava perturbada neste dia, ela parecia outra pessoa, uma expectadora de suas próprias ações e começou perdendo, já que o seu adversário esmagou sua lataria pelas costas, acertou seu abdômen com o cabo de sua arma e quase decepou seu braço, mas ela em um giro milimétrico conseguiu desarmá-lo.
Ele tentou se recompor pegando a arma caída, mas a guerreira jogou o peso de seu monstro de metal contra o do inimigo fazendo-o tombar.
Sedna colocou o fio do cutelo sobre o pescoço dele no pequeno trecho aberto entre a armadura e o capacete.
Mas ela não puxou, esperou que ele erguesse dois dedos pedindo misericórdia.
Ela nunca era misericordiosa, mas... naquele dia não, ela não estava bem, chegava de fantasmas por enquanto. Ela fez sinal para ele baixar a arma e o mesmo se rendeu.
Com a pesada mão de sua armadura robô ela puxou as unidades de energia do inimigo tombado deixando-o imóvel. Ela o largou ali a própria sorte.
O lugar que até poucos minutos atrás era uma sucursal do inferno rompeu em um silêncio ainda mais tenebroso que as explosões e impactos que ensurdecia a todos.
Não havia mais com o que, e porque, lutar.
A batalha acabou, as baixas foram tantas, para ambos os lados, que na prática ninguém venceu, apesar de ambos os lados saírem da peleja contando vitórias. Foi uma vitória de Pirro por assim dizer.
Ainda existia uma terra de ninguém nesta imensidão de deserto. Uma fronteira imaginária. Ninguém tinha progresso e a guerra havia estacionado, apesar das batalhas perdidas os usurpadores ainda estavam em vantagem, afinal, ainda tomavam conta das usinas de Ophyr. A trupe de Sedna voltou de mãos abanando já que não tinham mais contingente para fazer um cerco contra as mesmas usinas.
— Recuar soldados. Não há mais o que fazer aqui. Vamos voltar para casa, ou o que sobrou dela. — Disse Sedna a seu time.
•••
Ela desembarcou do caminhão, se soltou de seu escafandro e seguiu caminhando para seu setor se desvencilhando das roupas suadas pelo caminho.
A vida numa colônia em Marte não era fácil. Não existia conforto, privacidade e na maioria dos casos sequer higiene... salvo raras exceções não havia luxo algum. Tudo era escuro, claustrofóbico e sujo. Parecia que havia graxa e ferrugem por todo canto. Normalmente as pessoas se acotovelam por qualquer metro quadrado, disputavam água, oxigênio, ração... em tempos de guerra então era um salve-se quem puder.
Ela perdeu muitos aliados, alguns amigos, pessoas próximas, um monte de rostos desconhecidos. Principalmente os novatos haviam morrido como moscas. Era muito difícil alguém sair vivo do primeiro embate.
Sedna tentou se lembrar dos nomes ou rostos de todos que tombaram, mas se perdeu na metade.
Um menino fardado estava ao lado dela, com um documento sendo exibido em realidade ampliada e a olhando com admiração.
— Sargento Sedna. O Capitão Vega exige sua presença. — Disse o garoto de recados.
— Obrigada soldado. — Ela respondeu. — Irei imediatamente.
Ele bateu continência e se afastou.
•••
Sedna entrou na sala do Capitão e bateu continência.
— Senhor! — Disse ela.
— Fique à vontade Sargento. — Disse o capitão sentado em sua cadeira, ele colocou os cotovelos na mesa e apoiou a cabeça entre os dedos entrelaçados.
— Pois não senhor, no que posso ser útil? — Ela afastou os pés e levou as mãos às costas.
— Parabéns Sedna, você foi promovida a Tenente. — Disse ele. — E aqui está a sua baixa do exército.
— Perdão? — Disse ela confusa. — Sou promovida e dispensada no mesmo instante?
— A partir de meia-noite de hoje, hora local, oficialmente Tharsis irá administrar essa colônia. Irá prover alimentos e água para nossa população. Em troca abrimos mão totalmente de nossa soberania e nos submetemos às suas leis. — Ele explicou visivelmente irritado. — A anexação agora é oficial.
— Quando isso foi decidido? — Ela perguntou visivelmente abalada.
— Tem pouco menos de uma hora, por conta do fiasco da batalha. — Ele cruzou os braços diante de si. — E acabei de receber nossas novas ordens.
— E por que vão nos ajudar só agora? Por que não antes? — Ela falou irritada. — Se eram nossos aliados antes deviam ter enviado tropas a nosso favor.
— Óbvio que eles sabiam que nos negar ajuda naquele exato momento nos enfraqueceria, depois eles viriam até nós solidários. Como não podemos mais caminhar com nossas próprias pernas teremos que nos submeter. — Disse o capitão contrariado. — Isso é política Sedna.
— Mas custou centenas de vidas. — Ela protestou mais uma vez.
— Penso que eles acharam isso uma perda aceitável, afinal eram vidas de Ophyr, se bem me lembro não houve uma única baixa de Tharsis. — Falou o Capitão conformado. — Enfim, não cabe a nós decidirmos. Cumprimos ordens.
— E quanto a guerra? — Ela perguntou.
— Os inimigos de Tharsis agora são nossos inimigos. — Ele se escorou no espelho da poltrona. — Eu vou para o front, mas agora lutando pela bandeira deles. Se cumprimos com nossos papéis eles continuam a prover a colônia de Ophyr de recursos.
— Parece que foi muito conveniente para eles que Chryse tenha nos atacados e roubado nossas usinas. — Sedna falou irritada.
— Sim, foi bem conveniente para eles. Desconfio que eles fizeram vista grossa, imagino que sabiam de antemão o que Chryse ia fazer. — Explicou o Capitão. — Bom, agora não haverá objeção à anexação.
— Vai lutar por Tharsis senhor? — Disse Sedna indignada.
— Sim, mas na verdade eu luto por Ophyr, se isso mantê-la segura então tudo bem lutar por Tharsis também. — Ele riu com cinismo. — A maior parte de nós receberá baixa e será realocado em tarefas civis. Já outros, como eu, seremos absorvidos pelas tropas de Tharsis.
— E por que está me comunicando isso em particular senhor? — Ela falou desconfiada.
— Você será dispensada do exército e, como a maior parte do pessoal, terá que ingressar na vida civil.
— Mas eu não sei fazer outra coisa além de lutar dentro de um escafandro. — Ela lamentou.
— Justamente. Eu sei disso. Por isso quero lhe propor uma coisa. — Disse ele abrindo um documento em realidade ampliada e o exibindo para ela.
— E o que seria? — Os olhos dela se arregalaram.
— O espaço. Lutar lá em cima. — Disse o militar apontando com o dedo indicador para o teto.
— Tharsis está recrutado pilotos habilidosos de Escafandro para testar seus novos protótipos.
— Protótipos?
— Sim, novos modelos que podem se movimentar e combater livremente no vácuo do espaço, pelo menos é isso que ouvi.
— Justamente por ser um protótipo imagino que haja riscos envolvidos, não?
— Exatamente, há um longo histórico de falhas dessas máquinas, por isso querem recrutas de estados-satélites e não cidadãos de Tharsis.
— Entendo, querem buchas de canhão, certo? — Fala falou com cinismo.
— Se houverem mais baixas de Tharsianos a opinião publica da capital pode ficar contra essas novas empreitadas do exército no espaço.
— Entendo perfeitamente. Ou seja, ou é isso, ou ingresso na vida civil sob julgo das leis deles, certo?
— Acho que não preciso te lembrar as implicações que lhe cairão se você tiver baixa, preciso?
— Não, eu sei bem o que vai me acontecer. Graças às leis de colonização e de natalidade eu, como mulher que sou, devo ter filhos saudáveis e fortes dentro do intervalo de um ano a contar do dia que eu me tornar uma civil.
— Exatamente, a mortalidade infantil é muito alta nas colônias e a população do planeta vem envelhecendo rápido. Com a guerra e a terraformação falhando a vida humana em Marte está com seus dias contados. Tharsis teme que em uma geração, ou duas, não hajam mais trabalhadores para as minas de gelo e minério nas cavernas subterrâneas do planeta.
— E "pelo bem maior" eu perco até mesmo a jurisdição sobre meu próprio corpo, é isso?
— É, você entendeu como eles funcionam.
— Onde assino a papelada? — Disse Sedna decidida.
— Procure a tenente Procyon.
Sedna bateu continência, deu meia volta e saiu da sala.
•••
Enquanto isso em Hadriaca Patera uma menina de mais de 10 anos, assustada, presa a sua cama, monitorada por uma imensidão de fios e dispositivos começava a se debater. A torturante sessão ia dar início.
Era sempre a mesma coisa. A enfermeira vinha, dava a ela uma injeção, ela ficava sonolenta, as dores de cabeça apareciam e então a "valsa" começava.
A moça de branco entrou no quarto. A dolorosa injeção a cada dia ficava mais difícil, afinal o braço da menina estava cheio de hematomas e feridas e suas veias cada vez mais difíceis de achar.
A garotinha logo aquietou apenas para começar a se debater com tamanha força que chegava a quebrar braços e pernas na maioria das vezes. Aquele dia não era diferente.
Logo ela parava e ficava olhando para o nada, sabe-se lá aonde seus pensamentos se perdiam.
Começava a dança. Pontos negros, como se fossem como grãos de areia, surgiam do nada. E essa "areia" dançava como se fosse um enxame de abelhas, seguindo uma ordem. É como se fossem uma valsa surreal.
Logo a nuvem de "areia" tomava forma, diversas formas. Começava a parecer com símbolos, objetos, constelações, revelando uma infinidade de saber e conhecimento.
Dados que dia a dia eram catalogados. A tecnologia humana iria dar saltos de séculos no futuro com aquele saber. Saltos! Se para o bem, ou para o mal. O tempo ia dizer.
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