Capítulo 2
Capítulo Dois: Palavras não ditas
Por Fernanda
― Fico me perguntando por que isso aconteceu, tentando encontrar uma só razão. Mas quanto mais penso sobre isso, menos aceito ― falei, olhando pela janela.
― Ficar se perguntando o porquê ou tentar encontrar razões onde elas não existem, não vai ajudar. ― Voltei minha atenção para a Laís.
Depois de receber a mensagem do Rafa e de me despedir do Lucas, que ficou de me manter informada sobre o quadro da Gabi, liguei para a Laís e contei o que tinha acontecido. Em menos de vinte minutos ela, a Lay e a Mel estavam no HDC.
Procurei pela Kaline e expliquei tudo o que tinha acontecido, falei toda a verdade e não escondi nada. Pedi desculpas e depois que ela me ouviu, segurou minhas mãos entre as suas e disse que eu podia tirar umas semanas de licença para resolver meus problemas familiares. Agora eu estava na lanchonete, sentada com a Laís, tentando encontrar um sentido ou uma razão para minha vida ter mais uma vez virado de cabeça para baixo.
― Sei que você tem razão, mas acho que essa vai ser uma pergunta que eu nunca vou deixar de me fazer. O Rômulo está morto agora e admitir isso em voz alta torna tudo mais real. Como vou contar para a Gabi quando ela acordar? E, pior ainda, como vou contar para a May? ― Vi quando a Mel entra na lanchonete.
― Estaremos do seu lado para fazer tudo isso, nós te ajudaremos a contar pra elas ― disse ela, segurando minha mão, a qual apertei levemente, concordando.
― Estava tentando falar com o Rafa ― falou a Mel assim que se sentou conosco. ― Ele não atende minhas ligações e nem responde minhas mensagens, estou começando a ficar realmente preocupada. Ele te mandou aquela mensagem mais cedo e não deu mais sinal de vida.
― Ele precisa de tempo para processar tudo o que aconteceu, talvez só queira ficar sozinho ― Laís falou, tentando tranquilizar a Mel.
― Concordo com a La ― Lay disse, colocando os nossos cafés em cima da mesa. ― Conhecemos bem o Rafa, sempre foi impulsivo quando éramos mais jovens, agora, pelo que nos disse, foi bem maduro com tudo. Ele só precisa de tempo.
― Mesmo assim, não posso deixar de me preocupar, ele é meu irmão e acabou de descobrir que tem uma filha de dez anos que não o reconhece como pai por não saber da sua existência e achar que é a filha de outras pessoas. ― Senti a mágoa em sua voz enquanto ela me olhava.
― Não precisa me olhar com toda essa hostilidade. Pode acreditar em mim quando digo que nesse momento ninguém se culpa mais do que eu ― falei, tentando evitar o clima tenso entre nós.
― Desculpa! Você não tem culpa Nanda, ninguém tem. Estou apenas preocupada com tudo, o Rafa deve estar sofrendo muito com tudo isso, principalmente se considerarmos que vinte e quatro horas atrás vocês dois estavam juntos. ― Não sabia bem se seu comentário era uma crítica ou apenas uma observação, e para ser bem sincera, isso não estava me importando muito. ― E agora a Luísa perdeu o bebê e ele descobriu da pior forma possível que é pai de uma menina linda e... ― A Lay não deixou que a Mel terminasse.
― Mel! Sua sinceridade é admirável, mas você não está ajudando.
― Só estou falando os fatos Lay, verbalizando o que está na cabeça de todas nós.
― E precisa ser tão aberta nos seus relatos?
― Parem vocês duas! ― a Laís interrompeu o debate acalorado das meninas. Nesse momento estou mais preocupada com a Gabi do que com meus sentimentos. — O Rafael precisa de tempo e nós precisamos ajudar a Nanda. Temos que encontrar a melhor forma de contar os últimos acontecimentos para toda a família. ― Voltei minha atenção para a Laís.
― Como assim, La? ― Ela realmente achava que eu tinha cabeça para pensar nisso agora?
― Nanda, você precisa contar para a Estela e para o Theo. Pelo menos para eles, por enquanto, ou pretende aparecer do nada com uma garotinha de dez anos dizendo que ela é sua afilhada? Acho que já passou da hora de contar a verdade. ― Sabia que ela tinha razão, mas eu apenas não me sentia em condições de tomar nenhuma decisão naquele momento. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a Olivia, mãe da Laís, se aproximou da nossa mesa e se sentou conosco.
― Quer que eu pegue um café, Olivia?
― Obrigada Lay, eu aceito sim querida. ― Ela parecia cansada e estava refletida nela a mesma tristeza que tomava conta do meu coração.
― E então, mãe... Vocês conseguiram? ― Laís parecia ansiosa.
― Sim, seu pai falou com o advogado do Rômulo e com o advogado do hospital também. Seu ele já reconheceu o corpo e o advogado deles está a caminho com toda a papelada ― Olivia falou com a voz exausta.
Quando liguei para a Laís contando o que havia acontecido, ela ligou imediatamente para a Olivia e o Abraão, depois ligou para as meninas. A Mel estava saindo do trabalho e veio direto para o hospital, já a Lay estava no apartamento do Alam, que ficou confuso e sem entender nada do que estava acontecendo, mas, mesmo assim, ela não abriu a boca para explicar nada, o que agradeci imensamente.
Assim que a Olivia e o Abraão chegaram, tomaram todas as providências necessárias. O que não foi nada fácil, por eles não serem considerados como familiares das vítimas, mas o Abraão era amigo íntimo do advogado do Rômulo e isso facilitou bastante as coisas, pelo que a Olivia tinha acabado de falar.
― E a May já acordou? ― Mel perguntou com uma esperança velada na voz.
― Ainda não Mel ― falei simplesmente, dando um meio sorriso para ela. ― Ainda é cedo, os sedativos que foram administrados nela vão fazer com que acorde apenas amanhã.
― Mais tarde, você quer dizer. Já passou de uma da manhã ― Laís falou, olhando para o relógio em seu pulso. Olivia olhou para mim e segurou minha mão sobre a mesa.
― Nanda... É melhor você ir para casa, não tem mais nada que possa fazer por enquanto. O quadro da Gabi, mesmo sendo grave, está estável e a May só vai despertar bem mais tarde. Você precisa descansar, as garotas podem te levar em casa.
― Não! Quero estar aqui quando elas acordarem e mesmo que eu quisesse, não conseguiria me desligar, meus pensamentos iam estar aqui. ― O que eu faria em casa, olhando para as paredes?
― Querida, já transferiram a May para um dos quartos da pediatria. Todos no setor foram informados pela sua chefe que ela é sua afilhada, assim que ela acordar, eles entrarão em contato ― falou, apertando minhas mãos. ― Nanda, você precisa descansar, café não é alimento, tem que comer alguma coisa e dormir um pouco, ficar forte para elas. ― As lágrimas voltaram aos meus olhos. Consegui contê-las nas últimas horas, mas sempre insistiam em voltar.
― Nanda, minha mãe tem razão. A Mel e a Lay podem ir com você, assim que eu falar com meu pai, eu vou também. Você precisa descansar.
― Não conseguiria descansar, mesmo que eu quisesse. ― Olivia largou minha mão, pegou em sua bolsa um pequeno frasco com um líquido dentro e me entregou. Não queria tomar nada e ela pareceu ter notado pela minha cara.
― É feito de compostos naturais, é apenas para desacelerar. Qualquer pessoa pode tomar, você precisa descansar. ― Repousei o frasquinho sobre a mesa, a Mel fez uma careta e o pegou, colocando-o dentro da sua bolsa.
― Melhor irmos, preciso tomar um banho, comer alguma coisa e dormir um pouco. Você também. ― A segurança na voz da Mel me disse claramente que eu não devia contestá-la.
― Sério que vão me obrigar a ir para casa?
― Não estamos te obrigando, você tem que comer e descansar ― Lay falou com a mesma firmeza da Mel. Eram quatro contra uma, batalha perdida. Só me restava a resignação.
― Tudo bem, vou pra casa então. Mas assim que a May acordar, você promete que vai ligar para mim? ― pedi à Laís, porque sabia que não negaria.
― Eu prometo! Se quando eu for embora ela ainda não tiver acordado, peço a uma das enfermeiras para entrar em contato assim que despertar. Vou deixar nossos números de celulares com elas. Aqui no hospital eles têm o seu, não se preocupe. ― Fiz que sim, concordando.
Despedi-me da Olivia e da Laís, em seguida fui com as meninas até a saída. Meu pesadelo tinha começado há cinco horas e estava longe de acabar. Tudo o que desejava era que isso não passasse de um sonho ruim, porém eu estava bem acordada. Chegamos ao estacionamento, entramos no carro e seguimos para o apartamento. Podia estar fisicamente naquele carro, mas meus pensamentos estavam divididos entre aquele hospital, onde a Gabi e a minha filha se encontravam, e o Rafa, onde quer que ele estivesse.
Não demoramos muito para chegar até o prédio. Assim que coloquei os pés em casa, senti o cansaço daquele dia se abater sobre mim, o peso de tudo pelo que passei nas últimas horas. Arrastei-me até meu quarto, enquanto as meninas preparavam algo para que pudéssemos comer, e me joguei debaixo da ducha, deixando que a água lavasse toda aquela fadiga, mas meu esgotamento emocional era muito maior. Por mais que eu tentasse, não conseguia parar de pensar nesse encontro que o Rafa havia marcado. Faltavam algumas horas para acontecer, se ele me ouvisse pelo menos e me desse o benefício da dúvida, já ia ser um começo.
Terminei de me arrumar, vesti apenas um vestido solto de ficar em casa e fui até a cozinha, encontro a Mel terminando de fazer uns sanduíches.
― Oi! ― Sentei em uma das cadeiras do balcão.
― Oi! Se sente melhor? ― perguntou, desviando sua atenção dos sanduíches para me olhar.
― Não sei bem, ainda parece que uma avalanche passou por cima de mim, mas pelo menos agora estou me sentindo limpa.
― Isso é bom. ― Dizendo isso, ela voltou à sua tarefa. Sabia que estava tentando me evitar, conhecia bem a Mel.
― Pode falar Mel, sei que está mordendo a língua pra não despejar o que acha de tudo isso em cima de mim. Não vou te recriminar por ser sincera comigo. ― Ela terminou de fazer o último sanduíche e o colocou em um prato, pegou uma jarra com suco de melancia que elas deviam ter feito agora, colocou em um copo e me entregou os dois.
― É melhor comer logo, só vai poder tomar o remédio depois que comer ― disse, indo até a pia para lavar as mãos.
― Não somos apenas primas, somos como irmãs. Sei que quer me falar alguma coisa, quero que fale. ― Ela pegou um pano, enxugou as mãos e me encarou.
― Somos como irmãs e, mesmo assim, fiquei sabendo da May por acaso. Desculpa, Nanda, mas se você quer realmente saber minha opinião, vou te falar. ― Se aproximou e ficamos bem de frente uma para a outra. ― Se tivesse contado a verdade quando teve oportunidade ou até mesmo quando estiveram em Búzios, nada disso estaria acontecendo dessa forma. Talvez ele estivesse furioso, mas não teria descoberto da forma que descobriu.
― Sei que devia ter contado antes, fui uma covarde, devia ter engolido meu medo e ter contado a verdade. Só que não fiz e não vai adiantar eu me justificar agora, não depois das oportunidades que eu tive de falar tudo pra ele. Nesse momento não existe ninguém que lamente mais do que eu. ― Lay entrou na cozinha assim que falei a última palavra.
― Precisava desse banho. Nossa, estava exausta. ― Ela sentiu o clima entre mim e a Mel e tentou amenizar. ― Nanda, acho melhor você comer e tentar descansar um pouco depois, hoje vai ser um longo dia. ― Mel e eu ainda nos encarávamos, até ela interromper o contato visual e ir pegar seu próprio sanduíche.
Assim que terminei de comer, fui para meu quarto, não tinha disposição nem cabeça para mais uma conversa sobre os últimos acontecimentos do dia. Fiquei deitada olhando para o teto e mesmo tendo tomado o medicamento floral que a Olivia me deu, não conseguia me desligar de tudo o que tinha acontecido e nem parar de imaginar como seria tudo de agora em diante, mas aos poucos fui mergulhando em uma escuridão silenciosa e vazia.
Perdi a noção de tempo e quando despertei, a luz do sol estava queimando meu rosto, devia ter fechado as persianas. Achei que tudo não havia passado de um pesadelo, mas essa sensação não durou mais do que poucos segundos. A minha percepção de que tudo tinha sido real veio forte e meu único desejo foi de voltar a dormir. Tudo o que eu mais desejava, era que cada segundo que vivi ontem tivesse sido um pesadelo. Então meus pensamentos foram automaticamente direcionados para minha filha e como ela precisava de mim. Esse foi o único motivo que me fez sair da cama e tomar um banho para enfrentar tudo o que vinha pela frente.
Dormi duas horas a mais do que pretendia, no fim das contas o remédio que a Olivia me deu foi bem eficiente ou talvez apenas estivesse esgotada. Encontrei a Lay e a Mel na cozinha e a Laís na varanda, falando ao telefone, mas não consegui ouvir com quem ela falava.
― Acho que dormi mais do que devia ― falei, sentando-me em uma das cadeiras do balcão.
― Ao menos descansou, você estava muito abatida, Nanda, seu semblante está muito melhor agora ― Lay disse, me estendendo um copo que parecia ser de suco de melancia com hortelã.
― Não estou com fome Lay.
― Você precisa comer alguma coisa, não vamos te deixar sair desse apartamento para ir até o hospital se não se alimentar direito. ― Acabei pegando o copo e tomando um gole do suco, estava delicioso e refrescante. Lay me deu um sorriso e pegou uma taça de sobremesa com salada de frutas e torrada com geleia, colocando sobre o balcão.
― A May já acordou? Alguém ligou do hospital? ― Mesmo com meu estômago embrulhado, peguei a taça e comi um pouco da salada de frutas.
― Sim, a enfermeira que está de plantão hoje, Brenda, acredito que você deva conhecê-la, ligou para nos avisar que a May acordou. ― Mel parecia mais amena ao falar. O que vi quando olhei em seus olhos era um "sinto muito", nesse momento eu soube que ficaríamos bem.
― Então vou até o hospital, tenho que ver e falar com ela, explicar tudo o que está acontecendo, com certeza ela deve estar confusa e assustada. Faz tempo que acordou? ― Terminei de comer a salada.
― Não faz nem dez minutos que a Brenda ligou, Nanda, ainda temos tempo de comer alguma coisa e como você já tomou banho, é só terminar aí que nós vamos. ― Laís apareceu da porta da varanda.
― Quem era no telefone? ― perguntei curiosa. Podiam ser os pais dela com novidades.
― Era o Bento. ― Quase engasguei com a comida. ― Ele está preocupado, ligou no seu celular e você não atendeu, então ligou aqui pra casa. Não entrei em detalhes sobre os últimos acontecimentos, disse apenas que um casal de amigos nossos sofreu um acidente e que foi bem grave. Ele queria falar com você, mas eu disse que estava dormindo, então ele pediu pra ligar assim que puder.
― Ligo para ele amanhã, hoje ainda tenho que ir ao hospital e depois tenho que encontrar com o Rafael na Praia do Forte. Que horas são?
― Três e quarenta. Vocês conversaram e marcaram isso que horas? ― Mel perguntou como quem não queria nada.
― Nós não conversamos exatamente Mel, ele me mandou uma mensagem e pronto. Como disse no fim da tarde, acredito que seja lá pelas seis. Então ainda tenho tempo de ver a May. ― Terminei de tomar meu suco e me levantei. ― Vou escovar os dentes e pegar minhas coisas para irmos.
Não demorei mais do que dez minutos para ficar pronta, a Laís e a Mel iriam ao hospital comigo, mas antes deixariam a Lay na casa do Alam, já que eles tinham marcado de definirem algumas coisas sobre a volta dela para o apartamento deles. Os dois finalmente estavam se entendo. Por conta disso, resolvi ir no meu carro, já que de lá iria me encontrar com o Rafael, e as meninas foram no carro da Mel.
Quando cheguei ao HDC, encontrei com a Deb, seu sorriso de costume se apagou quando ela me viu e seus olhos ficaram tristes. Lógico que todo o hospital estaria sabendo que eu era próxima ao casal que sofreu o acidente, era algo que não me deixava surpresa. Tentei dar um sorriso para que ela soubesse que estava bem, mas acho que saiu muito forçado. Acenei e passei direto para os elevadores, não estava com disposição para mais do que isso.
Como a May tinha sido transferida para o andar da pediatria, meu acesso era cem por cento livre. Encontrei a Brenda organizando os prontuários dos RNs e ela abriu um sorriso quando me viu.
― Estava esperando por você doutora, liguei assim que a Mayanna acordou.
― Elas me informaram sim, Brenda, muito obrigada por ter nos avisado. E como ela está? ― A ansiedade se refletia em minha voz.
― Um pouco assustada, mas bem, já foi medicada devido às dores. É a doutora Felipa que está de plantão hoje. ― Isso me deixava mais tranquila, não que os outros médicos não fossem competentes, mas por Felipa ser mãe, e sem mencionar que era uma das melhores pediatras do estado do Rio.
― Que bom, posso vê-la?
― Claro! Levo você até o quarto dela.
Caminhamos pelos corredores da ala S e Brenda me contou como os RNs que eu estava acompanhando estavam. Ela disse que sentia muito pelo que houve com os pais da minha afilhada. Nesse hospital as notícias se espalhavam como poeira ao vento. Chegamos ao quarto 345, onde a May estava.
― Tenho que passar o plantão para a Aline, então é melhor eu ir, e também acho que vocês vão querer conversar mais à vontade ― disse, olhando a hora do relógio. ― Faz uns vinte minutos que examinei e mediquei a Mayanna, então provavelmente ela deve estar um pouco sonolenta, a deixei assistindo desenho quando saí.
― Obrigada de novo, Brenda! Por cuidar dela e ter avisado às meninas que ela tinha despertado. ― Dei um abraço nela.
― Que isso doutora, foi um prazer. Além do mais, é meu trabalho ― disse meio sem jeito.
― Mesmo assim, obrigada. ― Me distanciei para ela poder ir.
― Se precisar, é só chamar uma das meninas do plantão.
― Pode deixar! ― Ela se despediu e seguiu pelo corredor.
Abri a porta do quarto lentamente, tentando não fazer muito barulho, o que era meio desnecessário considerando que ela não ouvia. Pedi para que a colocassem em um quarto privado, era mais confortável e menos pitoresco. Esse tinha até cortinas azuis, diferente daquelas brancas e pálidas dos outros quartos. May estava tão centrada olhando para um ponto fixo do lado de fora da janela que nem percebeu minha presença.
A televisão estava ligada, só que ela não prestava a menor atenção. Entrei, fechei a porta atrás de mim e caminhei lentamente até ficar de frete para ela, que arregalou bem os olhinhos.
― "Oi amor!" ― falei sinalizando.
― Dinda! ― Sua voz era menos que um sussurro, seus olhos se encheram de lágrimas e antes que eu me desse conta, ela saiu das cobertas e se jogou em meus braços.
Pressionei-a contra mim, segurando-a bem firme, não sei por quanto tempo ficamos uma nos braços da outra, até que a May se afastou uns centímetros, ficando em pé sobre a cama, e segurou os dois lados do meu rosto com suas mãozinhas, fixando seu olhar no meu em um entendimento silencioso. Seus olhos eram muito parecidos com os do pai. Suas mãozinhas largaram meu rosto e então ela me perguntou:
― "Dinda, você viu o meu papai e a minha mamãe?" ― Meu coração, que já estava trincado pela morte do Rômulo, se quebrou em pedaços.
― "Florzinha, temos que conversar."
― "Vai me falar a verdade, não é?" ― gesticulou, me perguntando. Seu rosto agora era uma máscara de tristeza. ― "Eu vi quando uns homens com roupas azuis colocaram ele dentro de uma coisa preta que parecia um saco, o que aconteceu?"
― "Vou contar a verdade, meu bem, mas você tem que sentar". ― Ela sentou na cama, voltando para debaixo das cobertas.
― "Pode contar agora." ― Como falar para uma criança que o único pai que ela conhecia estava morto, quando nem mesmo eu acreditava?
― "Você tem que ser forte, querida." ― falei antes de começar a relatar da melhor maneira que consegui tudo o que tinha acontecido. Falei do homem que estava embriagado e bateu no carro deles, que o Rômulo e a Gabi se machucaram muito e que ele agora estava com os anjos lá no céu. A confusão no seu rostinho era evidente e esperei alguns minutos até que absorvesse tudo o que despejei sobre ela, então vi a compreensão em seus olhos e as lágrimas que mal tinham saído deles ressurgirem, transbordando todo seu medo e dor.
Ver a minha filha sofrendo dessa forma terminava de destroçar meu coração, só que eu não tinha outra opção além de falar a verdade. Sentei na cama ao seu lado, envolvi meus braços ao seu redor, ela mergulhou seu rosto em meu peito e comecei a acalentá-la da melhor forma que podia. Aos poucos ela foi se acalmando e sua respiração começou a normalizar, então se afastou um pouco novamente.
― "O papai está morto?" ― Não tinha coragem de responder com exatidão, olhando em seus olhos, apenas fiz que sim com a cabeça num movimento fraco. ― "E a mamãe?" ― Vi a angústia em seus gestos.
― "A Gabi está muito machucada, querida" ― falei, tentando disfarçar o medo em minha voz. Medo de perder mais uma das pessoas mais importantes da minha vida.
― "Ela vai morrer?" ― seus olhos estavam vermelhos e inchados.
― "Ela é forte e está lutando, a Gabi não vai desistir e os médicos estão fazendo todo o possível para que se recupere." ― Não queria dizer que sim, que ela ia ou não se recuperar, preferi me manter neutra.
― "Então ela vai ficar bem?" ― percebi em seu rostinho esperança e aflição. Ao menos para minha filha eu tinha que falar a verdade, não podia mentir para ela falando que a Gabi iria viver, sendo que as chances eram pouquíssimas. Estava cansada de omitir e mentir.
― "Meu amor, estão fazendo o possível e o impossível para que ela fique bem. Eu não posso afirmar, porque eu não tenho certeza, mas tenho fé que ela ficará bem, a Gabi é forte. Logo, logo vocês estarão juntas, temos que ter fé." ― Ela me abraçou novamente.
Fiquei assim, com ela em meus braços, até que sua respiração se acalmou e caiu no sono. Só então pude respirar normalmente. Podia ter sido meio dura com ela em não dar uma falsa esperança, mas não podia magoá-la, não ela, minha única razão de viver.
Olhei as horas em meu relógio, vi que já passava das cinco e percebi que a May dormia profundamente, sua respiração era suave, porém profunda. Não queria deixá-la, mas tinha que encontrar o Rafael. Retirei lentamente sua cabeça, que repousava sobre meu braço direito, encostei-a no travesseiro e beijei sua testa.
― Dou minha palavra que vou consertar as coisas, só espero que você me perdoe quando souber a verdade. Mamãe te ama. ― Me levantei e saí do quarto.
O Lucas tinha razão, assim como a Gabi, já tinha passado da hora de esclarecer toda a verdade. Ontem eu podia estar com medo, na verdade, ainda estava meio que apavorada, mas tinha que agir diferente. O que me levou a fazer tudo o que fiz há dez anos foi o medo, a dor, o desespero e minha imaturidade. Só que agora eu não era mais aquela garota de 16 anos. Minhas ações estavam cobrando seu preço e gerou consequências com as quais teria que lidar. Estava na hora de ser uma mulher de verdade, consertar meus erros, deixar meu passado para trás e escrever um futuro diferente para mim e minha filha.
No caminho para a Praia do Forte tentei repassar o que tinha que falar para ele na minha cabeça, mas acabei desistindo de tentar montar um roteiro do que devia falar, conversas desse tipo deviam ser sinceras e não, lidas como um roteiro de novela. Não demorei muito para chegar ao Forte. Estacionei no lugar de sempre, tentando controlar minha respiração. A hora da verdade havia chegado. Saí do carro e segui meu caminho.
Enquanto fui descendo por uma pequena duna de areia para chegar onde sabia que o Rafael estaria, pensei na música que ouvi há pouco dentro do carro.
"Palavras não bastam, não dá pra entender/ E esse medo que cresce não para/ É uma história que se complicou Eu sei bem o porquê...
Qual é o peso da culpa que eu carrego nos braços/ Me entorta as costas me dá um cansaço/ A maldade do tempo, fez eu me afastar de você"
Ela descreve bem como estava me sentindo. De onde estava, já avistei o Rafa, parecia que o peso do mundo estava sobre seus ombros pela forma como estava sentado meio encurvado. Meu coração se apertou por vê-lo assim e mais ainda por saber que era por minha culpa.
Eu sei que ele percebeu minha presença. A distância entre nós dois era pequena agora, o corpo dele ficou tenso e os ombros mais rígidos, porém continuou na mesma posição, sem mover um único músculo. Sentei ao seu lado, tentando pensar por onde começar, como e o que devia falar. Eram muitos anos, muitas escolhas, decisões, mágoas e burrices, todas as palavras não ditas ao longo dos anos agora pesavam sobre mim, assim como pesavam sobre ele também.
Por Rafael
Senti sua presença antes mesmo de ela sentar-se ao meu lado, podia sentir o aroma do seu perfume que me embriagava, resgatando lembranças que pertenciam apenas a nós. Porém, a impressão que eu tinha dessas lembranças neste momento era que não passavam de mentiras. Depois de ter deixado o hospital ontem à noite, fui para meu apartamento, e como não consegui dormir, empacotei todas as minhas coisas. Assim que a Luisa saísse do hospital, iria pedir o divórcio. Hoje pela manhã liguei para um velho conhecido meu que era corretor, vários dos meus projetos passaram pelas suas mãos, pedi para providenciar ainda hoje um loft para mim e não entrei em detalhes.
Ele conseguiu um loft perto da praia e nesse instante minhas coisas estavam sendo levadas para meu novo lar, as únicas coisas que levei comigo foram minhas roupas, livros, projetos, prêmios e as coisas do meu escritório. Bento estava supervisionando tudo para mim.
Depois que terminei com o meu amigo corretor, fui para a casa do Alam, o Bento estava lá e acabamos indo juntos para a praia. Contei tudo aos dois, se eu guardasse mais um segundo tudo o que aconteceu nas últimas horas comigo, acabaria enlouquecendo. Mesmo sendo irmão da Fernanda, ele é meu amigo e primo.
Ficou tão surpreso quanto eu, sem querer acreditar que ela tinha sido capaz de algo do tipo, ele tentou falar com ela, porém não conseguiu, seu celular apenas chamava. Depois do almoço, quando ele ligou para o telefone fixo, quem atendeu foi a Laís e suas respostas foram tão evasivas que acabou desistindo.
Agora eu estava aqui, sentado com ela ao meu lado, o silêncio entre nós, que antes era algo natural e reconfortante, parecia pesar uma tonelada nesse momento. Nas últimas vinte e quatro horas tentei absorver a notícia de que eu era pai. Pensei em tudo o que tinha acontecido há mais de dez anos e um filme passou na minha cabeça. Depois de ver o dia amanhecer sem conseguir pregar os olhos e de refletir, percebi que naquela época não dei a oportunidade para que ela esclarecesse seu lado da história. Dessa vez eu não cometeria o mesmo erro. Alguns minutos já tinham se passado e nenhum de nós falou nada, então resolvi quebrar o silêncio.
― Estou aqui Fernanda, você queria que eu ouvisse, pode falar. ― Mantive minha voz firme e distante. Mesmo sem tirar meus olhos do horizonte, notei quando abaixou a cabeça, ainda não havia olhado para ela diretamente. Minha capacidade de julgamento seria quase nula se a encarasse, apesar de tudo, ela ainda tinha um poder muito forte sobre mim. E infelizmente essa droga toda não funcionava como um controle remoto, onde temos um botão de liga e desliga.
― Não sei por onde começar. ― Sua voz era baixa. Percebi que ela estava com um pouco olheira e um semblante cansado quando levantou a cabeça e encarou o horizonte.
― Por que não tenta pelo começo? Como, por exemplo, de onde surgiu a ideia de você esconder minha filha de mim por mais de dez anos e entregá-la para a adoção. ― Tentei controlar minha voz para não gritar com ela e dizer tudo o que estava entalado na minha garganta desde que descobri a sua mentira. Ela se virou, ficando de frente para mim, mas continuei sem encara-la.
― Você não faz ideia de tudo pelo que passei, estava sozinha, abandonada pelas pessoas que eu mais amava nesse mundo. Todos me julgaram, Rafael, inclusive você, que me conhece desde que éramos crianças, meus pais, as pessoas que deram os princípios que sempre regeram minha vida, ninguém me deu o benefício da dúvida. ― A mágoa na sua voz era evidente.
― Você acha que isso justifica o que fez? ― Por fim, fiz o que estava evitando, me virei em sua direção e ficamos um encarando o outro.
― Não estou aqui para justificar meus atos, tenho consciência do que fiz e agora estou respondendo por minhas escolhas. Estou aqui para fazer algo que devia ter feito quando nos encontramos em São Paulo há seis anos. ― Seu olhar me perfurou, não com raiva ou mágoa, mas com uma angústia evidente. ― Vou contar a verdade, se depois disso você ainda escolher me odiar pelo o que fiz para proteger minha filha, só me resta a resignação, porque não vou implorar pelo seu perdão se você achar que não mereço.
― Estou aqui, Fernanda, e vou ouvir o que você tiver para me falar. ― Ela desviou os olhos dos meus, fechou-os e respirou profundamente.
― Quando descobri que estava grávida, foi como se o mundo desmoronasse sobre minha cabeça ― começou falando. ― Descobrir algo assim no mesmo dia que seu futuro entra pela sua porta, foi um baque. Pensei na decepção dos meus pais, nas vagas para as universidades do Rio e São Paulo que eu tinha passado e no inferno que seria quando sua mãe descobrisse. Fiquei com muito medo, mas sabia que se nós estivéssemos juntos, nada disso importaria. ― Ela voltou a inalar o ar. ― Então eu encontrei você nos braços da Suzana e foi como levar uma tapa da realidade bem na cara.
― Eu estava drogado, aquela cadela manipuladora me drogou e até hoje não entendo o motivo ― falei simplesmente, porque era a verdade. Eu descobri e consegui provar que foi a Suzana que armou tudo aquilo, mas nunca descobri o porquê e com o passar do tempo fui deixando essa história de lado.
― Hoje eu sei disso, naquela época não sabia. Era o amor da minha vida, a pessoa em quem mais confiava, meu porto seguro e melhor amigo, quase transando com a mesma garota que vivia se jogando em cima dele. Foi a única coisa que pensei naquele momento, era o que eu estava vendo. ― Ela olhou para mim. ― Como acha que me senti, Rafael? Eu tinha apenas dezesseis anos e havia acabado de descobrir que estava grávida, no mesmo dia em que recebi o resultado do vestibular para duas das melhores universidades de medicina do país. ― Ela colocando dessa forma, parecia desesperador. ― Como devia me sentir? Foi como se o chão tivesse sumido sob meus pés e se a Laís não estivesse comigo, nem o caminho de casa eu teria encontrado.
― Talvez, se você tivesse me dado uma chance para explicar... Talvez se...
― São muitos "talvez" e "e se...", só que nós nunca iremos saber, pois não temos como voltar no tempo. ― Ela novamente desviou seu olhar do meu e continuou: ― Depois disso, fui dominada pelo desespero, queria resolver o que pra mim se apresentou como um "problema" e, acredite, não me orgulho de admitir que cogitei a possibilidade de tirar a vida da maior benção que Deus podia ter me dado, mas pensei... ― Ela esfregava as mãos uma na outra. A vergonha na sua voz por estar admitindo que pensou em abortar nossa filha não me passou despercebida. ― Mesmo a Laís tendo concordado em ficar ao meu lado. Ela nunca aceitou realmente e em vários momentos tentou me fazer enxergar a monstruosidade que eu iria cometer. Marquei o dia do procedimento e cheguei a ir à clínica, só que quando estava trocando minhas roupas, pensei em tudo que vivemos... ― Ela continuou contando e disse que naquele instante teve um choque de realidade e que pela primeira vez teve real consciência do que estava prestes a fazer. Vi o remorso e a verdade em cada palavra que saía da sua boca. ― Depois de vestir as minhas roupas, fui embora daquele lugar. Foi como se um peso tivesse saído de cima de mim.
― Por que não me procurou assim que saiu de lá?
― Porque estava te odiando naquele momento, Rafa, por isso. ― Até eu estava me odiando naquela época por ter sido tão idiota e ter me deixado enganar pela Suzana. ― Sem mencionar que esperei você vir atrás de mim para que pudéssemos conversar pessoalmente, e quando você finalmente veio, foi para me acusar sem me dar direito de defesa. ― Se existisse uma forma de voltar no tempo e apagar o que tinha acontecido naquele dia, eu voltaria. Fui impulsivo e agi movido pela raiva e hoje percebia isso. ― Eu fiquei com tanta raiva por você acreditar mais naquelas malditas fotos tiradas pela Suzana do que em mim, que deixei você jogar toda a sua raiva e frustração sobre mim. E a cada palavra que você pronunciava, o buraco que tinha em meu coração aumentava cada vez mais. ― A tristeza que notei em sua voz me incomodou mais do que devia.
― Sei bem da porcentagem de culpa que eu tive, Fernanda, não vou anular meus erros por causa dos seus. ― Queria que minha voz tivesse saído menos hostil.
― Não disse que você está fazendo isso ― falou, olhando para mim com as sobrancelhas franzidas.
― Tem razão, você não disse! Pode continuar ― falei para fazer com que prosseguisse com sua narrativa.
― Depois que você saiu de lá, eu não conseguia nem olhar no rosto do meu pai. Era tanta decepção que vi no rosto dele... Eu quase revelei que ainda estava grávida, que ainda estava com meu bebê dentro de mim. ― Ela respirou profundamente antes de continuar: ― A única coisa que me impediu foram suas palavras e sua atitude. Se até você duvidou de mim, se até você foi capaz de falar aquilo tudo pra mim sem ao menos escutar minha versão da história, então que diferença faria tentar contestar, sendo que todos já tinham me acusado e me condenado como um monstro? Logo você, Rafa, o meu melhor amigo, meu namorado, o cara com quem eu queria passar o resto da minha vida junto, meu amor, você escolheu acreditar nas fotos que a vadia da Suzana tirou, preferiu acreditar nela a me perguntar, ainda falou tudo aquilo na frente dos meus pais. Então, quando você saiu, depois de me chamar de monstro, vi no semblante dos meus pais que pensavam o mesmo de mim, minha ingenuidade e imaturidade foram as duas principais protagonistas das escolhas que fiz a partir daquele momento. ― A mágoa era palpável em sua voz.
― Eu sei dos meus erros, Fernanda. ― Dessa vez eu não precisava nem controlar minha hostilidade, não tinha como ser hostil diante dos meus próprios enganos, das minhas próprias escolhas.
― Não, você não sabe! Porque você só está sabendo da verdade agora, tive que conviver com tudo isso, durante todos esses anos, sozinha, mas não estou aqui para apontar os seus erros ou os meus e sim, para contar tudo o que aconteceu, sem censuras, e você mesmo pode concluir o que foi certo ou errado. ― Ela falou com tanta firmeza que o que me restou foi acenar confirmando, enquanto a olhava, voltando a contemplar o horizonte. ― No dia seguinte, foi a vez da sua mãe. Ela veio com tanta fúria, com tanta sede de sangue, que acho que se meu pai não tivesse a impedindo, teria me dado mais de uma tapa no rosto. ― A voz dela agora estava cheia de tristeza e mágoa, creio que até raiva. Mas o que mais me espantou foi saber que minha mãe deu uma tapa nela.
― Minha mãe te bateu? Nunca soube disso, o que ela te disse? ― perguntei, tentando imaginar a gravidade do que a Nanda ouviu. Minha mãe pegava pesado quando queria.
― Não foi o que ela disse que me abateu, as palavras que ela escolheu foram duras e terríveis sim, mais doloridas do que o tapa no rosto. Mas não foram só elas, não foi o que ela falou, foi como falou, tinha tanta raiva e desprezo no que dizia... ― falou de cabeça baixa. ― Eu nunca vou esquecer suas palavras. Ela disse que tinha razão desde o início em ir contra nosso relacionamento, que eu era uma vadia e vagabunda que não tinha noção da vida e que não sabia onde estava com a cabeça em ter tolerar nosso namoro. ― Era difícil imaginar minha mãe dizendo essas coisas para a Nanda. ― Que eu era um monstro por ter tirado a vida do neto dela, mas que ainda bem que tirei, porque com certeza nasceria deficiente ou morto, nisso ela podia até me agradecer, porque poupou despesas e dores de cabeça no futuro. Que eu não merecia você, que se com dezesseis anos fui capaz de fazer isso, imagina o que me tornaria quando fosse adulta? Que bela doutora eu seria, salvando vidas sendo que matei meu filho.
Como minha mãe foi capaz de dizer isso para a própria sobrinha, a mesma que carregou no colo? Nanda respirou a fundo antes de continuar: ― Eu não soube nem como reagir, sabia que era contra nosso namoro, mas não imaginava que fosse capaz de falar tantas coisas cruéis para mim. Então ela me mandou falar algo, já que sempre fui respondona e sem educação. Eu só levantei a cabeça com o rosto molhado de lágrimas, olhei nos olhos dela e disse que não tinha nada para falar. Foi quando me deu o tapa, nessa hora meu pai apareceu e eles começaram a discutir, foi ali, naquele momento, que a família se dividiu.
Ela parou de falar e olhou para mim. O que vi no rosto dela quase me faz puxá-la para os meus braços e falar que tudo ia ficar bem. Estava com tanta raiva da minha mãe agora que nem sei do que seria capaz se a visse na minha frente. Como ela pôde falar esse monte de coisa para a Nanda? Agora estava começando a entender as decisões dela. O que mais será que tinha acontecido? Ela voltou a olhar para o horizonte, onde agora o sol já estava quase completamente escondido, e só depois de uns minutos, retomou sua fala:
― Durante aquela noite, pensei em tudo o que sua mãe me falou, e foi isso que me impulsionou a tomar a decisão de ir embora para o Rio de Janeiro. No outro dia, fui conversar com meus pais, eles concordaram e até acharam melhor. Segundo meu pai, seria um alívio, já que eu tinha dividido a família. Eu estava completamente perdida, sem rumo e sem saber o que fazer, com medo das coisas que a Marta me disse, com medo de contar para meus pais e com raiva e decepcionada com você por ter sido o primeiro a me julgar e condenar sem ao menos me ouvir. Eu não sabia de nada do meu futuro, a única certeza eu que tinha era que não tiraria meu filho. ― Ela virou seu rosto para mim e vi ali o que acreditei ter sido a mesma determinação de mais de dez anos atrás. ― Foi então que a Laís apareceu com uma ideia para que eu pudesse ficar no Rio, na casa dos padrinhos dela, Rômulo e Gabrielli, o casal que sofreu o acidente. Eles já sabiam de toda a situação e ofereceram ajuda, me deram o apoio que devia ter vindo dos meus pais, alívio, conforto, tudo o que eu precisava, compreensão, amor, carinho e, mais tarde, cuidados extremos. Depois que meu pai assinou minha emancipação e fui para o Rio para ficar na casa do Rômulo e da Gabi, afundei na depressão.
Ela fechou os olhos e percebi certa dor em sua expressão, como se tivesse recordando daqueles momentos. Nunca imaginei que tivesse passado por tudo isso, não tinha nem como cogitar essa possibilidade, na minha cabeça ela estava construindo seu futuro em São Paulo.
― Por que você não procurou a Estela? Entendo que você não tenha vindo até mim por todas as coisas que minha mãe e eu dissemos, mas, então, por que não procurou sua mãe? ― Queria apenas entender por que ela se isolou de tudo e de todos. ― Estela te ama mais do que tudo, jamais deixaria de te apoiar e de te ajudar, Nanda. Por que não contou a ela?
― No dia em que conversei com meu pai sobre a emancipação, minha mãe estava conosco. Ela não me apoiou, Rafa, apenas concordou com tudo o que meu pai dizia. Acho que foi a decepção que vi nela nesse dia que me deixou mais triste e magoada ― ela falou, abrindo os olhos e admirando os últimos raios de sol que se puseram completamente. ― O fato de ela acreditar que passei por cima dos princípios que me ensinou, doeu. Entende?
― Entendo. ― A dor nela por cada recordação que vi passar por seus olhos me fez perceber o quanto sofreu. ― E depois?
― Vamos dizer que as coisas não melhoraram. Rômulo, Gabi e Laís tentaram me ajudar de todas as formas possíveis. Minha depressão foi durante todo o período da gestação, eu não comia, não dormia e quase não saía de casa, tive dois princípios de aborto e quase perdi nossa filha, também tive descolamento de placenta. Foi uma gestação muito difícil. ― Tinha muito arrependimento em sua voz. ― Devia ter sido mais forte por ela, só que eu estava tão mergulhada nos meus problemas e na minha dor que nada mais importava. Vivia em um estado permanente de torpor. May nasceu com vinte e oito semanas e teve milhares de complicações, o parto foi complicado e ela nasceu com alguns problemas respiratórios, seus pulmões ainda não estavam maduros o suficiente, teve que ficar na incubadora quase nove semanas e só a vi alguns dias após seu nascimento. ― Queria fazer mais perguntas, ter mais detalhes, mas decidi não interromper sua narrativa novamente.
"Desenvolvi depressão pós parto e não quis ver a May por mais de três semanas. Tive que permanecer no hospital porque ela ficou na UTI neonatal. Acabei tendo acompanhamento profissional e tomei a decisão de entregá-la para adoção, a Gabi não podia ser mãe e como ela e o Rômulo se encantaram pela nossa filha, tive a ideia de entregá-la para eles. ― Tive que usar todo meu controle para segurar minha língua e não falar algo de que viesse a me arrepender depois. A Nanda pareceu ler o que estava se passando na minha mente. ― Sei o que está pensado, mas você tem que entender que naquele momento eu tinha uma visão muito negativa sobre mim mesma, sobre toda aquela situação, culpei nossa filha por tudo o que vinha acontecendo na minha vida. Achava que se ninguém era capaz de me amar, então como eu poderia amar e cuidar de alguém? Na minha cabeça o que eu estava fazendo seria o melhor para ela, ainda não a tinha visto, pois me recusava a chegar perto da UTI. As únicas visitas que ela tinha eram da Gabi, do Rômulo, da Lay e da Laís, que quando estavam no Rio, vinham nos visitar. Rafa, eu estava imersa dentro de mim mesma ― falou, tentando explicar seu estado. Eu estava me esforçando para tentar compreender."
― E o que te fez reagir e sair do estado que você estava? ― A curiosidade em minha voz era palpável.
― A May! Quando eu a vi pela primeira vez, ela era muito pequena e indefesa, precisava de mim por completo. Foi como despertar de um pesadelo, isso me fez reagir e pela primeira vez, desde o dia em que saí de Cabo Frio, percebi que nada do que estava acontecendo era sobre mim, e sim sobre a May. ― Seus olhos brilhavam quando falava sobre nossa filha. ― Percebi como estava sendo egoísta. Na verdade, acho que simplesmente me apaixonei por ela.
― Então, por que você a entregou para a adoção? ― Agora eu tinha ficado realmente confuso, vi a verdade em seus olhos e nas suas palavras, só que ainda não conseguia entender por que ela tinha entregado a May para que outras pessoas a criassem.
― Depois que a vi, eu não queria entregá-la, quis cuidar dela, tinha planos de voltar para Cabo Frio e falar a verdade para meus pais. Só que dois dias depois que me aproximei da May, o pediatra responsável me chamou para conversar. Ainda era menor de idade, mas expliquei a ele que era emancipada, mesmo assim ele insistiu que eu fosse acompanhada por outra pessoa. Pedi que a Gabi e o Rômulo fossem comigo, pois sempre estavam ao meu lado me apoiando e estavam muito felizes por eu ter finalmente reagido e ter aceitado a May, por estar sendo uma mãe para o meu bebê. ― Ela tomou uma respiração profunda, preparando-se para falar mais. ― Nesse dia recebi o diagnóstico da nossa filha, ela sofria de hipoacústico, meu chão sumiu mais uma vez e tudo mudou. Meus planos de ficar com ela evaporaram e fiquei com medo de voltar para casa, não só pelas coisas horríveis que sua mãe me disse, mas também de que todos a rejeitassem. Não teria como bancar o tratamento, era muito caro e ela iria precisar de cuidados extras e assistência médica. E voltar para a casa do meu pai ou da minha mãe estava fora de cogitação. ― Novamente me segurei para deixar que terminasse de falar, ela devia ter me procurado, devia ter me chamado. Ambas eram minha responsabilidade, minha filha precisou de mim desde o momento que respirou pela primeira vez e não estive lá.
"Então voltei a pensar sobre uma possível adoção, falei com o Rômulo e com a Gabi naquele mesmo dia e pedi para que considerassem a ideia de adotá-la, porque eu precisava protegê-la, nem que para isso, tivesse que abrir mão de ser mãe dela. No início eles não concordaram, acharam um absurdo, mas depois de deixar claro para eles que eu tinha plena noção da escolha que estava fazendo e o que ela significava, a Gabi me fez uma proposta. Eles a adotariam e seriam seus pais, portanto que eu fosse presente na vida da May. Concordei de imediato... ― Enquanto ela prosseguia com seu relato, eu tentava desesperadamente manter minha sanidade para não pegá-la pelos ombros e sacudi-la para dizer que ela tinha outra opção, que tinha a mim, mas me contive e a deixei terminar. ― Nos meses seguintes, acompanhei todo o processo de recuperação dela. Com a minha emancipação, eu tinha autonomia legal para assinar a documentação necessária da adoção. De todas as decisões que já tomei na minha vida, essa foi a mais difícil, foi como se uma parte do meu coração tivesse sido entregue a eles naquele dia... ― Continuei ouvindo e fazendo o possível para me conter. — Alguns meses depois que a May foi para casa com Rômulo e com a Gabi, tomei a decisão de ir para São Paulo, por mais que me doesse, não podia ficar, retomar meu sonho de estudar medicina me pareceu o melhor a ser feito. Minha vaga na USP ainda estava disponível, liguei para meu pai, pedi ajuda e acabei inventando uma desculpa qualquer, nem me recordo qual. Rômulo pagou minha passagem e me adiantou um pouco de dinheiro para o aluguel. Durante todos esses anos eu acompanhei o desenvolvimento e as conquistas da May de longe. Nem sempre podia vir ao Rio, e também não seria certo ficar e confundir a cabecinha dela. Demorei um tempo até entender meu papel para poder ser neutra. Fiquei sabendo sobre as armações da Suzana quase um ano depois que estava morando em São Paulo, mas não havia muito a ser feito e mais uma vez escolhi me calar."
― Você simplesmente optou pelo silêncio? ― perguntei assim que ela disse a última palavra. Entendi os seus motivos, mas era difícil aceitar que ela tirou meu direito de ser pai.
― Você não faz ideia de como eu estava, Rafael. Todos os meus sonhos e planos escorreram por entre meus dedos e me perdi pelo caminho. ― O ar frio tomava conta de onde estávamos. A noite já tinha caído e as luzes do Forte foram acesas, iluminando toda a praia. O olhar dela estava perdido nas ondas que quebravam na rebentação. ― Quando você esteve em São Paulo e passamos a noite juntos, pensei em contar. O medo falou mais alto do que meu bom senso e achei melhor lidar com sua raiva do que com seu desprezo.
― Te fiz tanto mal assim, Nanda, que você foi até capaz de achar que eu te desprezaria?
― Não desenvolvi síndrome do pânico do nada, Rafa. ― Nem sequer sabia que ela tinha esse problema. ― Eu nunca te culpei por isso, estava atolada demais nos meus problemas e no meu remorso, não sobrava nada para você. As crises diminuíram, mas ainda luto contra meus ataques de pânico. ― Saber que ela passou por tudo isso me fez perceber como me enganei achando que tinha seguido com sua vida, me apagando dela completamente. ― Tenho que recomeçar meu acompanhamento psicológico, só que nunca encontro tempo para isso. Acho que agora, mais do que nunca, irei precisar. Não paro de pensar que se eu não tivesse cancelado minha ida para ao Rio, nada disso teria acontecido com a Gabi e o Rômulo. ― Tinha tanta dor e culpa na voz dela que até sua postura havia mudado, parecia estar ainda mais esgotada, como se o peso do mundo estivesse sobre ela.
― A culpa não foi sua, acidentes acontecem. Foi uma fatalidade. ― Não gostava de vê-la assim, apesar de tudo.
― Posso não ser culpada diretamente, mas indiretamente foi minha responsabilidade. ― Depois de um tempo sem me encarar, ela finalmente voltou sua atenção para mim. ― É isso, Rafa, espero que um dia você possa me perdoar pelo que fiz e então, quando me perdoar, isso se me perdoar, talvez consiga perdoar a mim mesma. Espero que você entenda, mesmo que de forma errada, a única coisa que eu desejava proteger nossa filha. ― Nossos olhares estavam conectados profundamente.
― Também espero que um dia eu possa te perdoar. ― Ela desviou seu olhar do meu novamente. ― Nanda! ― Chamei sua atenção para que voltasse a me encarar. ― Entendo o que te levou a fazer todas essas escolhas, nós dois éramos jovens e imaturos, sempre passávamos mais tempo defendendo nosso relacionamento do que tendo um, você mesma disse isso pra mim algumas vezes, lembra? ― Ela fez que sim com a cabeça sem desviar seus olhos dos meus. ― Porém, o fato de entender isso não vai fazer com que o tempo volte. Nem os dez anos que perdi da vida de uma filha que eu nem conheço e que também não me reconhece como pai. ― A tristeza e as lágrimas inundaram seus olhos.
― Sei que não, e peço perdão por isso. ― Fiz que sim.
― Quando você pretende contar para os seus pais? A Estela e o Theo precisam saber a verdade, eles também têm uma parcela de culpa nisso tudo. ― Eu podia ter errado no passado em ter pensado na Nanda como um monstro, mas sabia que ela não era isso e a conhecia o suficiente para saber que iria contar a verdade para a família toda. Ela levantou a cabeça.
― Vou falar amanhã, antes vou passar a noite com a May no hospital e depois vou conversar com eles. Já com a May, preciso de tempo, saber o que vai acontecer com a Gabi, o quadro clínico dela ainda é bem delicado, mas ainda tenho fé que ficará bem. ― Essa era a Fernanda que eu conhecia, ela sabia que não tinha como fugir dessa vez. Iria ter paciência e esperar por ela antes de qualquer coisa, pois jamais iria pedir para que jogasse uma bomba como essa no colo de uma garotinha sensível que ainda estava fragilizada com a morte do único pai que conheceu e com a mãe internada entre a vida e a morte.
― Nunca pediria a você que revelasse algo tão delicado para ela nesse momento. Quando te pedi ontem, estava com raiva. Agora, só queria saber uma coisa. ― Na verdade, isso estava martelando na minha cabeça nas últimas horas.
― Pode perguntar.
― May sabe que é adotada?
― Sim! Rômulo e a Gabi nunca esconderam dela esse fato, sempre procuraram ser sinceros. Eles sempre foram ótimos pais e pessoas maravilhosas. ― Não tinha muita certeza disso, mas preferi não verbalizar o que passava pela minha cabeça. ― Sei o que está pensando, Rafa. O único pecado deles foi respeitar minha decisão e omitir a verdade. Tirando isso, tudo o que fizeram foi me ajudar e proteger nossa filha. ― Ela parecia ler minha mente.
― E mesmo assim, aceitaram adotar uma criança que tinha um pai, uma mãe e uma família ― falei, parando de encará-la.
― Não os julgue, eles amam tanto a May que dariam a própria vida por ela. Rômulo e Gabi me acolheram e cuidaram de mim como se eu fosse filha deles, foram meu farol em meio a uma tempestade, graças a eles que encontrei o caminho de volta. Então, não coloque sobre eles uma culpa que é só minha. ― Ouvir isso me fez perceber como ficou sozinha sem o apoio da família, um papel que foi ocupado por completos estranhos. Ela deu um suspiro profundo. ― Bem, tenho que ir, terei que passar a noite no hospital com a May. ― Me voltei para ela novamente.
― Quero muito conhecê-la de verdade.
― Por que não passa no hospital amanhã? Acho que ela iria gostar de te conhecer também, só não posso falar a verdade agora, pois a cabecinha dela ainda está tentando processar a morte do Rômulo e em como vai ser a partir de agora.
― Quero apenas conhecê-la, pelo menos, por enquanto ― falei, porque era a verdade. Não me contentaria apenas com isso, meu objetivo era recuperar o tempo perdido, mas também tinha consciência de que nesse momento não seria possível.
― Te espero amanhã então. ― Se levantou e limpou a calça jeans. Quando estava se virando para ir embora, lembrei-me de uma coisa.
― Nanda! ― Ela voltou sua atenção para mim. ― Deixa minha mãe comigo, tenho umas coisas para esclarecer com a dona Marta. ― Apenas confirmou e seguiu seu caminho.
Por Fernanda
Todo o peso que carreguei durante todos esses anos parecia ter saído de cima dos meus ombros. Contar toda a verdade para o Rafael não foi fácil, mas pensei que seria muito pior do que realmente foi. Ele ainda era o mesmo, só que tinha se tornado um homem maduro, que ouvia antes de julgar e que buscava entender os dois lados da mesma moeda. Isso me surpreendeu, mas também sabia que ter o perdão dele seria complicado, e mesmo se conseguíssemos passar por cima de tudo, ficarmos juntos não seria uma opção. Perceber essa realidade me deixou triste, só que agora tinha sido me dada uma chance de consertar todos os erros que tinha cometido e o primeiro passo era contar a verdade para os meus pais e esperar que me ouvissem, como Rafael fez. Assim que cheguei ao carro, meu celular tocou, olhei para o visor e vi a foto da Laís brilhando, atendi no terceiro toque.
― Oi La! Aconteceu alguma coisa? ― Esperava que não tivesse sido com a May ou com a Gabi.
― Não, elas estão bem. Como foi com o Rafael?
― Nada fácil, porém, muito melhor do que eu esperava. ― Ela tinha ligado por um motivo e algo me dizia que não tinha nada haver com minha conversa com o Rafael.
― Vai me contar o que está acontecendo ou vou ter que adivinhar? ― falei de forma sarcástica. Fazer o quê? Era de família.
― Ok! Não, liguei apenas por isso.
― Disso eu tinha certeza. Então, o que houve? ― ela suspirou e aproveitei esse momento de pausa para pegar minhas chaves e entrar no carro. Quando já estava acomodada dentro dele, a Laís finalmente voltou a falar.
― Duas coisas, a primeira é que a Gabi deu um estabilizada e amanhã irá realizar a tomografia. ― Essa era uma ótima notícia, mas não entendi por que ela protelou tanto para me contar isso.
― Isso é ótimo. E a segunda?
― O advogado do Rômulo e da Gabi acabou de chegar e disse que só vai dar algumas instruções quando você estiver aqui, parece que é uma das cláusulas do testamento do Rômulo. ― Que estranho, pensei que como o Abraão e a Olivia eram a única família deles, tudo seria direcionado aos dois.
― Tudo bem, eu já estou no carro, chego aí em vinte minutos. Até daqui a pouco. ― Desliguei o celular e fui para o hospital. O que será que ele queria comigo?
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