Capítulo 1
Capítulo Um: Nossos erros
Por Rafael
Nunca entendi por que quartos de hospitais tinham que ser tão pavorosos, as paredes pálidas e gélidas davam uma impressão de ambiente impessoal e frio. Se a intenção deles era passar paz e tranquilidade, não deu muito certo, pelo menos, não para mim. Ela estava pálida e dormia profundamente enquanto eu velava seu sono.
E mesmo estando aqui, minha mente estava com a Nanda. A única coisa que me dava um pouco de conforto eram as lembranças dos momentos que compartilhamos e a esperança de podermos construir algo nosso, livre de todas as mágoas do passado. Meu amor por ela parecia nunca ter sumido de dentro de mim, apenas havia ficado adormecido e vivê-lo era algo que fazia parte dos meus planos, não importava o que acontecesse. Não permitiria que nada e nem ninguém destruísse essa segunda oportunidade que a vida estava nos dando. Tudo a partir desse momento só dependeria de nós.
Quando Catarina ligou para mim há uma hora, informando que Luísa havia passado mal e que tinha sido levada para o HDC, vim o mais rápido que pude. Encontrá-la naquele estado foi um pouco chocante, mesmo sabendo o que ela havia feito e que estava apenas colhendo o que plantou, ainda assim, era triste. Era o segundo filho que eu não havia chegado a conhecer. Podia estar sendo sentimental, mas nesse momento me dei o direito de ter esses sentimentos. Uma das enfermeiras da emergência entrou e abriu um sorriso que entendi como sendo de apoio.
― O senhor parece estar abatido, por que não vai comer alguma coisa ou vai para casa? Ela não vai acordar agora, a medicação administrada foi um pouco forte ― disse-me com uma voz serena enquanto trocava o soro intravenoso. ― Ela estava descontrolada e com uma grave hemorragia quando chegou, foi preciso sedá-la por completo para poderem realizar os exames e, em seguida, a curetagem.
Sua resposta respondia a uma pergunta silenciosa que rondava minha cabeça. Catarina não havia me dado muitas informações. Quando cheguei há pouco mais de duas horas, ela foi falar com os médicos e a única coisa que me disse foi: "minha filha está nessa cama de hospital sem o filho por sua causa". Fiz o possível para segurar minha língua e não dizer na sua cara que a única culpada por tudo isso era a própria Luísa.
― Estou bem. Tenho que esperar a mãe da Luísa antes de ir ― falei simplesmente. ― Você tem notícias daquele casal que sofreu o acidente na interestadual?
Assim que cheguei à urgência e emergência do HDC, um casal e sua filha de dez anos chegaram de ambulância. Um caminhão de pequeno porte perdeu o controle na estrada e destruiu o carro em que a família estava.
― Infelizmente o pai não resistiu e morreu no local. Até tentaram reanimá-lo, porém não tiveram sucesso. A mãe ainda está na sala de cirurgia e o estado dela é bem grave.
― E quanto à menina? A filha deles?
― Está em estado de choque. Então, emocionalmente não está nada bem, mas fisicamente teve apenas leves escoriações e quebrou o braço. ― Pobre menina, devia estar passando por um momento muito difícil, perdeu o pai e a mãe estava correndo risco de vida. ― Ela é uma menina muito doce, quietinha, e também é uma criança com limitações especiais. Pobrezinha, não merecia passar por isso ― falou aparentemente emocionada.
― Acho que ninguém merece passar por algo assim, principalmente uma criança. ― Fiquei imaginando como seria ficar órfã de pai e mãe dessa forma, sendo ainda tão novinha. ― Você disse que ela é especial? ― Fiquei curioso, será que ela tinha alguma síndrome ou doença genética?
― Sim, ela é surda, mas aparentemente é uma criança muito esperta e ativa ― disse, parecendo encantada com a pequena. ― Espero que a mãe dela fique bem e que saia dessa cirurgia sem grandes sequelas. ― Mesmo tentando passar otimismo em sua voz, pude perceber certa insegurança quando falou sobre a mãe da menina, o caso dela devia ser realmente delicado.
― Pronto, senhor Andrade, já troquei o soro e já mediquei sua esposa, ela não acordará pelas próximas horas. Se me permite sugerir, acho que o senhor deveria comer alguma coisa e ir para casa descansar um pouco.
― Assim que a mãe da Luísa chegar, irei até a cantina comer algo. ― Ela pareceu surpresa por eu ter me referido pela segunda vez à Catarina como a "mãe da Luísa" e não a "mãe da minha esposa" ou "minha sogra" e nesse momento eu também não ia parar para esclarecer. Ela fez que sim com a cabeça e retirou-se.
Alguns minutos depois, Catarina chegou, e como eu não estava com disposição, muito menos com humor para discussões, assim que ela adentrou o quarto, retirei-me. Achei melhor ir atrás do doutor João e perguntar diretamente a ele o que tinha acontecido exatamente em relação ao aborto. Como uma das enfermeiras havia me falado que ele ainda se encontrava no hospital, fui a sua procura antes de comer alguma coisa. Fui até o andar do obstetra na esperança de encontrar o doutor em sua sala, porém, não tinha certeza se estaria lá, mesmo assim, arisquei. Bati na porta, esperando que ele não tivesse ido embora.
― Pode entrar! ― Ouvi a voz do doutor. Era um homem de meia idade, sério em seu ofício e muito centrado. Não me parecia um médico mercenário, pelo menos, não aparentemente, mas como sabemos, as aparências enganam e já tive provas mais que suficientes desse fato. Esperava que ele me contasse ao menos o estado clínico real em que a Luísa se encontrava, pois já não aguentava mais tanta mentira.
― Senhor Andrade! Em que posso ajudá-lo? ― Seu tom me pareceu de curiosidade por eu estar ali. Entrei, fechei a porta e ele me indicou uma das cadeiras para que eu pudesse me sentar.
― Peço desculpas pelo incômodo, mas como a Catarina se recusa a me dizer de fato o que aconteceu com a Luísa, resolvi perguntar diretamente à fonte. Claro, se o senhor tiver tempo! ― Ele apenas me escutou atentamente, parecendo refletir sobre meu pedido. ― Afinal de contas, ainda sou marido dela e o filho que ela carregava era meu, então acredito ter o direito de saber o que aconteceu com ambos. ― Doutor João não falou de imediato, era como se ponderasse antes de começar a falar.
― Senhor Andrade...
― Rafael, por favor ― pedi, para que parasse com a formalidade.
― Rafael! Também acho que você tem direito de saber de todo o quadro clínico da sua esposa, então serei o mais direto e claro possível. Desde o início, quando os exames foram apresentados e descobri o estado delicado da gravidez que sua esposa apresentava... ― Ele fez uma pausa e continuou: ― Fui muito claro com ela, as chances dessa gravidez ir adiante, mesmo com o tratamento, eram quase nulas. Não que ela seja incapaz de ser mãe futuramente, ela pode, só que para isso, o tratamento tem que ser realizado antes e durante a gestação, e não da forma que foi, Luísa sabia disso. Esclareci todos os pontos e deixei bem claros os riscos. Então, o aborto sempre foi uma realidade eminente, pois o corpo dela lutou contra o feto desde o início. ― O silêncio se instalou por uns instantes.
― Entendo. ― Falei, despertando das minhas reflexões. Doutor João me explicou mais uma vez sobre o quadro clínico da Luísa e tudo o que ele me descreveu em detalhes, eu já tinha ouvido dos médicos que a atenderam em Bento Gonçalves. Nossa conversa não durou muito mais que isso. Despedi-me, agradecendo por sua atenção e por ter me esclarecido tudo o que havia acontecido, e em seguida fui embora com a certeza de que aquele casamento já estava condenado ao fim muito antes do começo.
Entrei no elevador que estava indo em direção ao primeiro andar, onde ficava a internação do setor de urgência e emergência. Sentia-me como se estivesse em modo automático, a única certeza que eu tinha era de que, quando Luísa saísse desse hospital, não haveria mais nada entre nós dois. Tudo o que eu havia idealizado nunca passou de uma mentira. Hoje mesmo eu iria tirar todas as minhas coisas do apartamento. No meio dos meus devaneios, não percebi que o elevador tinha passado direto do primeiro andar para o térreo, devia ter me esquecido de apertar o botão indicando o andar. Pensando agora, talvez fosse melhor ir para o apartamento e fazer o que já devia ter sido feito há muito tempo, depois voltaria para conversar com ela.
Saí do elevador indo em direção à saída. Já fora da ala de urgência e emergência, senti um impacto nas minhas costas, algo ou alguém havia esbarrado em mim violentamente. Quando me virei, dei de cara com a Nanda e o desespero estampado em seu rosto me assustou, nunca a tinha visto nesse estado. Agarrei sua cintura para estabilizá-la e ela não cair.
― Fernanda, você está bem? ― perguntei preocupado.
― Me solta, Rafael. Preciso saber se é ela, me larga... ― Ela estava trêmula e visivelmente desesperada. Tentou se desvencilhar dos meus braços.
― De quem você está falando, Nanda? Por favor, você está muito nervosa, se sair assim, pode se machucar. De quem está falando? ― Ela tentou se soltar mais uma vez, sem muito sucesso. Estreitei ainda mais meus braços a sua volta e, então, ela desmoronou.
― May... Preciso saber se é ela... Tenho que saber... Por favor, me ajuda a descobrir se é ela. ― Não fazia ideia sobre quem ela estava falando, mas essa menina, moça, jovem, ou seja lá quem fosse, devia ser muito importante para ela.
― Calma Nanda, quem é May? ― perguntei, tentando entender seu estado de desespero.
— Meu bebê... Deus, não permita que seja ela... Tenho que saber se é ela, Rafa! Nunca vou me perdoar se acontecer alguma coisa com ela. ― Bebê? Então May era uma criança, a pergunta a ser esclarecida agora era: quem era ela?
― Depois você me explica melhor quem é essa May, agora vamos atrás dela. ― Coloquei-a de pé, pegando sua mão, e saí puxando.
Não demorou muito até chegarmos à recepção da urgência e emergência, onde estive há algumas horas. Uma moça loira, de olhos claros, muito jovem e simpática, que tinha me atendido há mais ou menos umas três horas, abriu um sorriso quando viu a Nanda, só que esse sorriso morreu ao perceber que ela não estava bem.
― Doutora? Aconteceu alguma coisa? A Senhorita está pálida ― disse a jovem. Nesse momento, Nanda pareceu despertar do estado de torpor que se encontrava.
― Ágata, quero que olhe nos registros das últimas três horas e veja a entrada de uma menina de dez anos, cabelos castanhos escuros, olhos também castanhos escuros, 1,10m de altura, branca. Ela deu entrada com a mãe depois de um acidente de carro, a mãe ainda deve estar passando por procedimentos cirúrgicos. ― Não fazia ideia de onde essa firmeza repentina vinha. ― Ágata! Por favor, agora! Verifique para mim.
― Tudo bem doutora, acho que sei de quem está falando. Poderia apenas me dar o nome das pessoas para que eu possa confirmar?
― Mayanna Munis Galvão e Gabrielli Munis Galvão. Onde a Mayanna está? ― O desespero estava de volta à sua voz, com menos força do que há segundos, mas ainda estava lá. Essa menina devia ser realmente muito importante para ela.
― Primeiro andar, ala C, em observação. ― Nanda nem esperou a Ágata terminar e saiu em disparada para os elevadores. Murmurei um obrigado para a recepcionista e saí em seu encalço.
Enquanto o elevador subia, indo em direção ao primeiro andar, Nanda não tirava os olhos do pequeno painel digital que mudou do T para o primeiro andar. Assim que ele alarmou e abriu as portas, ela saiu rapidamente até a cabine da enfermaria. Vi-a falar apressadamente com uma das enfermeiras e ao sair da cabine, seguiu por um corredor oposto, fui atrás dela. Aquele andar era o mesmo em que a Luísa estava internada, só que em uma ala diferente.
A cada quarto pelo qual passávamos, Nanda olhava a numeração na porta. Só queria entender o que estava acontecendo e quem era essa menina que, seja lá quem fosse, era muito importante para ela. Continuamos andando pelo corredor e finalmente chegamos à ala C. Nanda parou por um segundo em frente a uma porta com a numeração 652, respirou fundo, enxugou as lágrimas e entrou. Pensei se devia segui-la ou não, mas acabei entrando.
Era um quarto de tamanho médio com três camas. Nanda estava ajoelhada em uma delas, segurando as mãos de uma menina pequena demais para ter dez anos, ela era linda, seus cabelos escuros estavam espalhados pelo travesseiro e me lembrava alguém, talvez a Nanda quando criança. Mesmo com os machucados e escoriações, também tinha o braço esquerdo quase todo imobilizado, tinha algo familiar nela, mas não sabia explicar o quê.
― Me desculpa meu bem, devia ter cuidado melhor de você, devia ter feito mais... ― Não foi apenas o que ela disse e sim, como ela disse, era um amor puro que ouvi em sua voz, quase uma devoção. As lágrimas voltaram aos seus olhos. ― Vou cuidar de você, não vou te deixar nunca mais. A Gabi vai ficar bem, tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem... ― Nanda ficou repetindo aquelas palavras mais para si mesma do que para a menina inerte deitada sobre a cama. Seu choro se intensificou, aproximei-me e coloquei minhas mãos em seu ombro.
― Nanda, calma, ela está bem! Olhe... Logo ela vai se recuperar ― falei, tentando acalmá-la.
― Foi tudo culpa minha, se eu tivesse ido até o Rio... ― Ela ficou de pé, com seus olhos inundados pelas lágrimas, nunca a tinha visto tão abalada, e continuou: ― como havia combinado. Se eu não tivesse posto meu trabalho em primeiro lugar, eles não teriam viajado até aqui e nada disso teria acontecido... ― Chorou compulsivamente. Ela estava se culpando por algo que não estava ao seu alcance e de repente se jogou aos meus braços, fiquei um pouco surpreso, mas retribuí, segurando-a firme, e decidi deixá-la desabafar. ― Meu Deus, o Rômulo está morto e a Gabi está correndo risco de vida, tudo por minha culpa. Minha filha perdeu o pai e corre o risco de perder a mãe, nunca vou me perdoar por isso.
Só depois que a última palavra saiu de sua boca, que percebi o que tinha acabado de falar, ela disse "minha filha" com todas as letras. Eu a afastei.
― Como assim, sua filha, Fernanda? ― A encarei, perguntando-me como isso era possível, sendo que aquela menina tinha dez anos. Isso era impossível. Então me lembrei da conversa que tivemos no dia anterior, todas as coisas que ela havia me dito.
― Essa menina tem dez anos! Quando foi que você teve essa criança? ― Tentei manter meu tom de voz, pois tinha mais duas crianças no quarto que ainda dormiam, fora a menina. Eu a observei mais uma vez, seus cabelos longos e cílios espessos. Será? Mas como isso era possível? Ela tinha abortado, vi-a saindo da clínica, eu a confrontei e ela nunca negou o que tinha feito. Direcionei minha atenção novamente para a Fernanda. ― Anda, Fernanda, estou esperando uma resposta. Como assim, sua filha?
Ela respirou profundamente e sua postura desabou por completo, como se tivesse acabado de perder uma batalha.
― May é minha filha. ― Seu tom foi quase inaudível quando pronunciou aquelas palavras. Vi resignação em um rosto já banhado por lágrimas e angústia. ― Minha e sua. Mesmo tendo ido até aquela clínica, não tive coragem de ir até o fim. Quando percebi o que estava prestes a fazer, saí daquele lugar e... ― Não deixei que terminasse, porque simplesmente não queria acreditar no que tinha acabado de ouvir. Coloquei mais força do que devia enquanto a segurava.
― Está me dizendo que tenho uma filha de dez anos que você escondeu de mim e que eu sou pai? ― Então vieram em minha cabeça suas palavras de agora há pouco, "minha filha perdeu o pai e corre o risco de perder a mãe" ― Pior! Que você a entregou para adoção? — O silêncio entre nós naquele momento foi sepulcral, até que não suportei mais. ― Me responde, Fernanda.
― Você está me machucando. ― Acabei colocando ainda mais pressão sobre o aperto em seu braço, então a soltei bruscamente. ― Não é como você está pensando, Rafael. Posso explicar. ― Me perguntei como ela seria capaz de explicar algo assim.
― Apenas quero que responda minhas perguntas. ― Foi tudo o que fui capaz de falar. Estava tentando me controlar ao máximo para não fazer ou falar nada de que eu viesse a me arrepender.
― Sim! Mas eu juro para você que não é da forma que está pensando. Não entreguei a May para adoção assim, simplesmente. Se me deixar contar tudo... ― Suas lágrimas continuavam caindo, rolando por sua face sem parar.
Mesmo com toda a raiva que eu estava sentindo naquele momento, mesmo com vontade de falar tudo o que pensava sobre ela, consegui frear meu impulso. Não por causa da Fernanda e sim, por ela, pela minha filha. Fernanda continuava falando sem interrupções, mas eu simplesmente não escutei nada, nenhuma única palavra, só conseguia olhar para minha filha. Seu rosto sereno transmitia uma paz e inocência que só as crianças podem exteriorizar e a cada minuto que se passava, meu único pensamento era que eu tinha perdido muita coisa, seus primeiros passos, sua primeira ida à escola, suas primeiras conquistas... E quanto mais eu refletia sobre isso, mais indignado e furioso ficava.
Por Fernanda
Parei de falar no minuto em que notei que o Rafa não estava ouvindo uma única palavra do que eu dizia. Sua atenção estava total e completamente voltada para a May, que estava ressonando profundamente sem se dar conta de que sua vida estava mudando por completo naquele exato momento.
― Sabe o que eu estou fazendo aqui? Em um hospital em pleno sábado, tarde da noite? ― me perguntou, quebrando o silêncio, porém, sem tirar seus olhos da nossa filha. Eu parecia incapaz de verbalizar uma única palavra, então apenas neguei com um aceno de cabeça, esfregando meu braço no local em que ele havia apertado com força. ― Luísa teve uma hemorragia devido a complicações, o organismo dela não aceitou o bebê e ela está internada se recuperando do aborto. ― Ele continuava olhando para a May. ― Sabe qual foi meu único pensamento durante todo tempo, desde o momento que me ligaram para me contar até o momento em que cheguei aqui? ― Parecia perguntar mais para si mesmo do que para mim. ― Pensei "Deus, mais uma vez eu perdi a chance de ser pai", porque, apesar de tudo o que a Luísa tinha feito, meu filho não tinha culpa de nada. ― Seu tom de voz estava ameno e foi exatamente isso que fez com que minha espinha gelasse, causando-me calafrios. Se ele tivesse me arrastado para fora do quarto gritando e me acusando, seria melhor e menos doloroso do que essa calma e frieza que estava demonstrando. Sua atenção ainda estava voltada para nossa filha. ― Agora, ironicamente, descubro que já sou pai, porém eu não passo de um estranho para minha própria filha. ― O que vi em seu olhar quando ele me encarou, ao voltar sua atenção para mim, fez cada pelo do meu corpo se arrepiar.
― Sei que isso não tem justificativa, mas eu posso explicar. Rafael, por favor, me deixa explicar. ― Ainda me restava um fio de esperança. Se ele pelo menos me ouvisse...
― Não tenho condições, muito menos equilíbrio emocional para ouvir qualquer palavra que venha de você nesse momento. ― Sua voz era cortante, parecia ter lâminas. ― O que você fez, não apenas comigo, mas também com sua própria filha, realmente não tem justificativa. ― Seu tom não se alterava e isso realmente me assustava.
― Tem razão, não tem, mas tudo o que fiz foi para protegê-la, foi por amá-la demais. Mesmo que tenha sido errado, foi a única forma que encontrei de mantê-la segura.
― Continua repetindo essa merda para si mesma, talvez um dia você consiga acreditar, porque eu não vou acreditar nunca. ― Cada palavra sua parecia me perfurar.
― Pelo menos ouve o que eu tenho a dizer, depois você pode me crucificar, como achar melhor. ― Meu tom era puro e unicamente de súplica, já o Rafael continuou a me encarar com a mesma raiva fria e controlada. Daria qualquer coisa para saber o que se passava em sua mente.
― Encontre uma forma de contar a verdade para ela, não me interessa como você vai fazer isso, mas vai contar tudo, não só à minha filha, mas a toda a família. ― Ele respirou fundo e olhou para a May. ― Logicamente, esse não é o melhor momento, afinal, ela ainda está debilitada, então aproveite esse tempo em que ela está aqui para pensar em como vai fazer isso. Porque quando ela sair desse hospital, vai saber que eu sou o pai dela. Se você não contar, eu conto, a escolha é sua. ― Ele voltou a olhar em minha direção. ― Sobre eu ouvir as suas "justificativas", não se preocupe, irei ouvir. Vou escutar cada palavra que você tiver para me dizer, mas agora não, nesse momento quero apenas absorver tudo isso, tentar colocar minha cabeça no lugar para não fazer uma besteira e ficar longe de você. Não pense que faço isso por ser nobre, estou fazendo isso pela minha filha, apenas por ela. ― Assim que terminou de falar, caminhou até a cama, onde a May ainda dormia profundamente, mergulhada em um mundo de sonhos, e se inclinou para beijar sua testa. Ao se distanciar um pouco, acariciou sua face. ― Você é tão linda, não vejo a hora de te conhecer. ― Sussurrou próximo ao seu rosto, levantou-se e me encarou. ― Te mando uma mensagem para que possamos conversar. ― Saiu do quarto sem dizer mais nada.
Finalmente soltei minha respiração, nem tinha notado que a tinha prendido. Desabei em uma cadeira ao lado da cama onde May se encontrava, com minhas mãos trêmulas. Ele não podia ter descoberto de uma forma pior. O que eu faria agora? Um filme passou por minha cabeça, fazendo-me lembrar de todas as coisas pelas quais passei, todo medo, angústia e as decisões erradas que tomei. Sabia o que precisava ser feito, apenas não sabia como fazer. Aproximei minhas mãos da May, tocando em seu rosto sereno.
― Farei o possível para fazer a coisa certa dessa vez, eu te amo. ― Beijei seu rosto, levantei-me e saí do quarto. Precisava saber como a Gabi estava e se já tinha saído da cirurgia.
Ao chegar à recepção, encontrei Ágata organizando suas coisas para ir embora e esperei um pouco até que terminasse de se aprontar. Assim que ela terminou e percebeu que eu estava a esperando, veio ao meu encontro.
― Como a Mayanna está? ― Seu tom era preocupado.
― Ela ficará bem. Teve mais alguma notícia da mãe dela?
― Você conhece a família?
― Eu sou madrinha da May, conheço a Gabrielli e o Rômulo há muito tempo. ― Precisava saber como a Gabi estava.
― A última notícia que eu tive, foi que a cirurgia tinha acabado, que o procedimento tinha sido delicado e que um dos médicos da equipe que realizou a operação foi o doutor Ferraz. ― Lucas, é claro. Que bom. ― Ele era o único cirurgião ortopedista de plantão, foi quem atendeu tanto a senhora Galvão, como sua filha.
― Muito obrigada Ágata, de verdade, me desculpa por ter atrapalhado você.
― Não atrapalhou, espero que as duas fiquem bem. Elas são fortes, vai dar tudo certo. ― Agradeci por seu apoio e saí à procura do Lucas.
Procurei Lucas por todo o andar da ortopedia e fratura e não o encontrei em parte alguma. Perguntei-me se ele não tinha ido para casa ou se estava atendendo outra urgência, então decidi descer até a urgência e emergência novamente para tentar encontrá-lo. No meio desse vendaval, acabei esquecendo meu plantão, mas assim que encontrasse Lucas, iria falar com minha chefe.
Teria que explicar à Kaline tudo isso e pedir a ela umas semanas para colocar minha vida no lugar, sem mencionar as ligações que ainda tinha que fazer, precisava ligar para a Laís e contar o que tinha acontecido, ela e seus pais eram o mais próximo que Gabi e Rômulo tinham de uma família. Mel, tinha que contar pra ela tudo isso, meus pais... Que Deus me desse forças para suportar tudo o que estava por vir.
Já no corredor dos quartos da emergência, esbarrei exatamente com quem andava procurando. Encarei Lucas, que se encontrava a alguns passos de onde eu estava, ambos paramos quando nos vimos e um alívio descomunal me dominou. Lucas pareceu sentir o mesmo, como se estivesse resignado, e diminuiu a distância entre nós dois.
― Encontrei a Ágata, ela me falou que você é madrinha da filha do casal que deu entrada na urgência e emergência há algumas horas. ― Seu tom era de pesar, ele parecia cansado e preocupado.
― Sim, os conheço há muitos anos. Como ela está, Lucas? ― Minha voz era quase um sussurro.
― Podemos conversar na minha sala? Essa conversa não é conversa para corredores. Venha, vamos! ― Segurou em minha mão, um ato que me deixou surpresa e, ao mesmo tempo, que acalmou meu coração.
Como o Lucas tinha uma sala ali mesmo no andar, não foi preciso subir até a ortopedia e fraturas. Assim que chegamos, sentei-me em uma cadeira de frente para a mesa e ele fechou a porta, pegou um copo com água e me deu.
― Obrigada! ― Ele deu um meio sorriso em resposta. Bebi um pouco e pousei o copo sobre a mesa. Olhei em volta da sala enquanto ele pegava um prontuário em uma de suas gavetas. Assim como todas as salas daquele hospital, tinha paredes pálidas e estéreis e poucos móveis, tudo era extremamente impessoal. Lucas pegou uma cadeira que estava ao meu lado e sentou-se de frente para mim.
― Você é médica, Fernanda, então irei direto ao ponto ― falou com um tom firme, adotando uma postura profissional.
― Pode falar ― falei, tentando transmitir segurança e demonstrar a mesma firmeza que estava vendo nele. Essa máscara estava me custando o resto de controle emocional que eu tinha.
― Acredito que saiba sobre o que aconteceu ao marido da senhora Galvão. ― Fiz que sim com a cabeça. Fiquei com medo de confirmar com palavras e tornar aquele fato mais real do que já era. ― Infelizmente ele veio a óbito. Os paramédicos tentaram reanimá-lo, porém não tiveram êxito, ele sofreu hemorragia interna.
― Recebi a informação assim que cheguei ― falei simplesmente, baixando minha cabeça e encarando minhas mãos, que repousavam sobre meu colo.
― A garotinha Mayanna está fora de perigo, teve apenas leves escoriações, bateu com a cabeça e quebrou o pulso esquerdo, mas não é nada grave e logo ficará bem, foi sedada porque chegou aqui quase em estado de choque. Ela presenciou os paramédicos realizando os primeiros atendimentos nos pais, então pode imaginar como ficou emocionalmente! ― Fez uma pausa antes de continuar. ― E quanto à senhora Galvão, seu quadro clínico é muito grave, Nanda. Fizemos o possível, mas você é médica e sabe como o ser humano é imprevisível. Enquanto ela estiver viva, há esperança, só que a situação não é nada simples. ― Parecia que meus pulmões não conseguiam inspirar e expirar, estavam travados.
― Apenas me fale qual é seu prognóstico.
― Ela está em coma induzido por causa de um edema cerebral, teve o pulmão perfurado e uma grave hemorragia interna, um de seus rins teve que ser retirado. ― Soltei a respiração. Quando minhas lágrimas rolaram pela minha face, senti um nó tentando subir pela minha garganta. Lucas continuou: ― As ferragens esmagaram sua perna direita. Como ela e o marido estavam na frente, onde o carro recebeu todo o impacto do acidente, ambos ficaram prensados nas ferragens, mas consegui evitar a amputação de sua perna. ― Não conseguia mais parar de chorar, minhas mãos estavam trêmulas novamente e a única coisa que não parava de se repetir em minha mente era que tudo aquilo foi causado por mim.
― Quais as chances dela?
― Como eu disse, ela está viva e enquanto houver vida, existe esperança. Fizemos tudo ao nosso alcance, agora é com ela, infelizmente não podemos fazer muito mais. Após as 24horas da cirurgia, faremos uma nova ressonância. Se o edema cerebral tiver regredido, poderemos começar a acordá-la, assim teremos uma noção mais clara das sequelas. ― Tentei controlar minha respiração com o objetivo de me acalmar, porém minhas lágrimas ainda eram constantes.
Coloquei minhas mãos em meu rosto, tentando absorver tudo o que Lucas disse. Tudo parecia um pesadelo, minha filha internada, a morte do Rômulo, a Gabi correndo risco de morte e como se não fosse o bastante, Rafael descobriu da pior forma possível sobre a May, agora ele iria me odiar para sempre. As coisas não poderiam ficar piores do que estavam. Inclinei-me para frente, encostando meu tronco em minhas pernas e tentei conter o pânico que tentava se abater sobre mim. Percebi as mãos do Lucas esfregando minhas costas, tentando me ajudar a respirar.
― Sei que não está bem e que são muitas coisas para digerir, só que eu preciso do contato de algum familiar deles. Temos que comunicar à família.
― Eles não têm família aqui, Rômulo tem uma tia que mora no interior do Rio Grande do Sul e Gabi não tem ninguém, apenas a família da Laís, eles são padrinhos dela ― falei com um fio de voz, erguendo um pouco meu tronco. Precisava ligar e avisá-los, isso tudo parecia um pesadelo e era tudo por minha culpa.
― Fernanda! Não é sua culpa, nada disso é. O único culpado foi um motorista bêbado que dirigia aquele caminhão, se massacrar por algo que está além do seu poder não vai adiantar. Nesse momento o que você deve fazer é entrar em contado com os pais da Laís, se eles são a única família deles, providências devem ser tomadas referentes ao reconhecimento do corpo e entrar em contato com o advogado da família. Você não está em condições de fazer isso. Acredite em mim, se culpar por algo que não foi responsabilidade sua não vai adiantar ― falou como se fosse simples. Ele não entendia.
― Você não entende. ― Olhei bem em seus olhos ao me erguer e falei: ― Aquela garotinha dormindo é minha filha e do Rafael, aquele homem que morreu é pai adotivo dela e a Gabi é mãe adotiva.
― Como é? ― Lucas parecia confuso, mas eu precisava desabafar com alguém sobre tudo o que tinha acontecido nas últimas três horas e meia, senão eu explodiria.
Contei da forma mais resumida possível toda a minha história. Quando terminei, o silêncio se abateu entre nós.
― Não deve ter sido fácil passar por tudo isso, não consigo nem imaginar. Só que as escolhas que você fez... ― Não deixei que ele terminasse a frase.
― Eu sei, foram elas que me trouxeram até aqui. Não me arrependo de ter mantido a May segura, só me arrependo das escolhas erradas que fiz para que isso fosse possível. ― Tudo dentro de mim parecia conflitante, era como estar nadando contra a correnteza. ― Devia ter aprendido com meus erros, pensei que tinha aprendido com eles, mas acho que me enganei, ainda continuo magoando as pessoas ao meu redor, magoei até mesmo você.
― Não vou mentir para você, fiquei decepcionado, acho que essa é a palavra, só que você nunca mentiu para mim, Nanda, sempre foi sincera em relação a seus sentimentos por mim. ― Sua respiração foi profunda e ele segurou minha mão que repousava sobre minha perna. ― Criei expectativas demais sobre algo que sequer chegou a existir. O que sentia por você era paixão, o que ainda sinto, na verdade, já que ainda não tenho o poder de ligar e desligar meus sentimentos quando quero. ― Deu um sorriso sem brilho.
― Não queria que fosse dessa forma, às vezes a impressão que tenho é que todas as decisões que já tomei na minha vida foram erradas. ― Tentei me controlar para que as lágrimas não voltassem.
― Sou um homem, Nanda, não uma criança, sabia muito bem onde estava me metendo. Tem que parar de se culpar por todo o mal do mundo. Paixão e amor são sentimentos muito diferentes, eu sou o único responsável por mim. Pare de se culpar por isso também. ― Ele apertou minha mão e abriu seu sorriso para mim. ― Conte comigo no que precisar, estarei aqui. ― Não suportei e voltei a chorar, as lágrimas que tinham me dado uma trégua retornaram, simplesmente não consegui contê-las.
Não sei exatamente quanto tempo fiquei chorando e segurando as mãos do Lucas, mas finalmente consegui respirar e erguer minha cabeça sem derramar novas lágrimas.
― Respire, vai ficar tudo bem.
― Não sei por onde começar ou se realmente vai acabar tudo bem. ― Limpei minha face. ― Não sei como vou contar para minha filha que o pai dela morreu, não sei como fazer o Rafael me ouvir, não tenho ideia de como irei contar à minha família que tenho uma filha de dez anos e, definitivamente, não sei de que forma vou contar a ela que sou sua verdadeira mãe.
― O que você acha de começar pelo começo? Tem que contar à Laís o que aconteceu e depois contar à Melissa e à Layannara, você vai precisar das suas primas e melhor amiga do seu lado nesse momento. Depois tem que falar com a Kaline e pedir umas semanas para organizar sua vida. ― Ele tinha razão, precisava chamar as meninas e contar o que havia acontecido.
― Obrigada Lucas, por tudo, não sei nem como te agradecer. ― Apertei sua mão.
― Não precisa agradecer, você é uma mulher extraordinária, muitas pessoas não suportariam metade do que você suportou sem surtar. ― Era até irônico ouvi-lo dizer isso.
― E quem disse que eu não surtei? ― Lucas soltou uma gargalhada tão gostosa que me contagiou também. Nós dois começamos a sorrir sem parar como dois idiotas. Quando dei por mim, minhas gargalhadas se tornaram lágrimas e eu estava chorando novamente, Lucas percebeu e me abraçou. ― Tenho medo que ela me despreze quando souber a verdade, meu único medo é perdê-la. ― Estreitei ainda mais nosso abraço, ainda com lágrimas nos olhos. Separamos-nos, ele enxugou meu rosto e sustentou meu olhar.
― Quero que ouça com atenção. Seu prazo para esclarecer toda essa confusão está esgotado há muito tempo, você precisa respirar fundo e tentar limpar essa bagunça da melhor maneira que puder. ― Seu semblante era sério e centrado. ― Enquanto à Mayanna, ela é sua filha e ama você, e pelo que me disse, vocês têm uma ligação que não pode ser rompida facilmente. É óbvio que ela ficará magoada e confusa com tudo isso, mas irá te perdoar, tenho certeza. — Queria ter metade da certeza dele.
― Obrigada Lucas! Nunca conheci alguém tão especial como você ― falei, ainda em meio às lágrimas. ― Você merece alguém muito melhor que eu, alguém que te ame incondicionalmente. ― Ele fez que sim. Chorei em poucas horas o que não chorei nos últimos anos.
― Você também é muito especial, Nanda. Amigos? ― perguntou com seus olhos em mim.
― Amigos, com toda certeza. ― Tentei sorrir, mas devia ter saído uma quase careta. Nos abraçamos de novo. Senti meu celular vibrando no bolso dentro do casaco, puxei-o de dentro e fiquei encarando o visor, sem compreender muito bem por que o Rafael tinha me enviado uma mensagem, já que fazia apenas algumas horas que ele tinha ido embora. ― É do Rafa!
― Não vai abrir?
Abri sua mensagem sem esperar Lucas perguntar de novo.
Amanhã na Praia do Forte no fim da tarde.
Rafael.
Isso era tudo o que havia escrito.
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