Epílogo II
OS PÉS ÁGEIS de Cassandra andavam agitados pelos corredores, havia conseguido despistar os guardas e precisava ser rápida se quisesse alcançar o quarto secreto antes que eles lhe achassem novamente. Passara três semanas arquitetando seu plano e observando os hábitos de seu pai, aproveitando-se sempre que Giuseppe estava alheio ao olhar da filha. Ninguém nunca desconfiaria que a doce menina de doze anos pudesse ser tão abelhuda daquela forma. Quando finalmente alcançou a porta desejada, encaixou a chave na fechadura e girou, assistindo com satisfação a tranca se abrir. Entrou rapidamente e deixou a porta encostada.
Por alguns segundos se perdeu na imensidão daquele quarto, admirando o tanto de objetos que ele guardava. As cortinas vermelhas deixavam o ambiente escuro, mas havia luz solar o suficiente para que pudesse enxergar todas as peças que ali haviam. Desde candelabros enormes e antigos, até uma coleção de espadas, vasos dos mais variados tamanhos e desenhos, armários com portas de vidros, exibindo conjuntos de pratarias ou louça.
Em um dos cantos, havia uma enorme estante, a qual era seu alvo, marchou diretamente em sua direção, ignorando até mesmo o objeto alto, parecido com um cavalete, que era coberto por um pano bege. Começou a vasculhar a estante, à procura de um título em questão e seu coração quase parou ao falhar a batida quando escutou uma voz atrás de si.
— O que está fazendo, irmã?
Rapidamente se voltou na direção da porta, notando Oliver em pé sob o batente, trazendo o pequeno cavalo de madeira nas mãos. Os olhos dourados do menino estudavam as feições da irmã mais velha e os cabelos escuros, peculiaridade que partilhavam, estavam espetados novamente. Cassandra tinha a ligeira impressão de que a babá havia arrumado aqueles fios há menos de meia hora.
Deixando os pensamentos de lado, ela correu na direção do garoto de nove anos e o puxou para dentro, fechando a porta antes que alguém os visse.
— O que faz aqui, Oliver?
— Eu perguntei primeiro.
— Não é de seu interesse.
— É sim, você prometeu que não me esconderia mais nada. E o papai deixou bem claro que não era para entrarmos aqui, é a sala secreta.
— Não é secreta se ele nos diz que é secreta. – Respondeu ela, empinando o nariz – De toda forma, já que está aqui, me ajude a achar um livro.
— Como conseguiu entrar?
— O papai guarda a chave desse quarto no escritório dele. Esperei que saísse.
— Você roubou o papai? – Questionou o menino arregalando os olhos.
— Peguei emprestado.
— E se ele descobrir?
— Ele não irá descobrir se devolvermos a chave antes que perceba. Para isso, precisa me ajudar a achar o que quero, assim saímos mais rapidamente daqui.
Oliver pareceu pensar por alguns segundos, coçou a cabeça e desviou os olhos, ainda indeciso. Por fim, ao notar a impaciência de Cassandra, que batia o pé no chão e o olhava esperando por uma resposta, ele acenou positivamente com a cabeça e disse:
— Tudo bem. O que está procurando?
— Um livro. Sobre Nox Nocture.
— Não há diversos livros sobre ele na biblioteca?
— Você faz muitos questionamentos, Oliver. Já te disseram isso?
— Já. – Respondeu ele, decepcionado.
Observando bem o mais novo, Cassandra notou o quanto ele ficava abatido quando o assunto eram seus questionamentos, mas não permitiria que o irmão se entristecesse por aquilo, passou o braço pelos ombros do menino e voltou a dizer para animá-lo:
— Isso é muito bom, você é muito esperto! Mas preciso dessa esperteza para me ajudar achar o livro em questão. O papai disse que esse livro é especial porque foi um amigo dele que escreveu e tenho quase certeza de que ele está aqui.
— Tudo bem. Onde quer que eu procure?
— Eu cuido da estante, você vasculha os outros armários e cômodas.
— Certo.
Oliver logo correu para o outro lado e começou a abrir as gavetas dos armários e cômodas que encontrava, enquanto Cassandra analisava livro por livro da estante, os minutos que se passaram não lhe renderam nada. Tudo o que Oliver encontrava eram tecidos velhos e Cassandra não obteve nenhum sucesso com os livros também, ainda assim, a menina continuou ali, enquanto seu irmão se aproximava devagar do cavalete que estava no canto, coberto pelo pano. O menino analisou o objeto por alguns segundos, com a cabeça inclinada para o lado e as sobrancelhas franzidas em confusão, por fim, se voltou para Cassandra e perguntou:
— O que é isso?
— Não sei, deve ser alguma pintura antiga.
Sem conter a curiosidade, Oliver puxou o pano, fazendo uma pequena quantidade de poeira levantar e causar uma crise de espirros. Quando finalmente se acalmou, se voltou para a pintura, analisando bem a figura ali retratada. A única parte do corpo visível eram os olhos escuros e estranhamente familiares, a cabeça era coberta por um capuz e metade do rosto estava tampado com um pano escuro, formando uma máscara. Apenas o busto era retratado, mas quase nada revelava além de suas vestes escuras.
Oliver ainda ficou longos segundos observando a pintura, admirado com os traços até ouvir a voz de Cassandra dizer empolgada:
— É o Nox Nocture! É uma pintura dele!
— Parece com o papai!
— Mas é claro que não, Oliver, que ideia!
— Parece sim!
— O rosto está inteiramente coberto, não tem como parecer com o papai. Além disso, o papai jamais usaria roupas assim.
— Mas os olhos dele são iguais!
Cassandra se aproximou da pintura, apertando os olhos e analisando bem, em partes tinha que concordar com seu irmão, os olhos pareciam idênticos aos de Giuseppe, mas não fazia o menor sentido. Balançando a cabeça e dando as costas para a pintura, respondeu:
— Pode ser apenas uma coincidência, Oli! Vamos continuar procurando, temos pouco tempo.
— Está bem.
Fazendo o que a irmã pediu, Oliver continuou vasculhando as gavetas baixas e sem ter nenhum resultado satisfatório, resolveu bisbilhotar a grande caixa que estava em cima de uma prateleira. Pegou um pequeno banco e o arrastou até estar bem próximo a estante, subiu rapidamente esperando alcançar a caixa, mas com certo desgosto notou que seus braços não alcançavam o objeto. Resolveu então, ficar na ponta dos pés e só assim seus pequenos dedos conseguiram roçar na caixa. Ainda com dificuldade continuou tentando arrastar o objeto para perto, e estava quase conseguindo pegá-la quando o pequeno banco vacilou sob seus pés, alarmado, ele olhou para baixo, percebendo tarde demais que um dos pés do banco havia se levantado e agora pairava sobre o chão. Não conseguiu pedir ajuda a tempo, o banco se inclinou mais e tombou. Em uma tentativa desesperada de se salvar, Oliver se agarrou na caixa a levando junto consigo para o chão.
O barulho foi alto o suficiente para ecoar no corredor. Cassandra correu desesperada na direção do irmão e se abaixou em sua frente, analisando o menino, que esfregava o braço sem esconder sua careta de dor.
— Se machucou muito, Oli?
— Eu estou bem. – Resmungou ele. Se voltando para a caixa, a notou entreaberta, revelando alguns tecidos escuros dentro – O que é isso?
Com a ajuda de Cassandra, abriu a caixa completamente e de lá retirou uma casaca escura e puída, na gola havia um capuz costurado. Mais ao fundo da caixa, havia também uma calça do mesmo tecido que a casaca, que Cassandra segurava e analisava, confusa.
— Olha, tem um lenço também. – Disse Oliver, puxando outro tecido escuro.
Cassandra continuou analisando aquelas roupas estranhas, até um entendimento cair sobre si. Arregalando os olhos, ela se levantou e voltou para perto da pintura recém descoberta, intercalou seu olhar entre a roupa em sua mão e o quadro diversas vezes até se voltar para Oliver e ainda estarrecida dizer:
— Oli, eu acho que você tinha razão. É o papai!
Se levantando rapidamente, o menino arregalou os olhos e com a voz consideravelmente alta, bradou:
— Nox Nocture era o papai?
— Shiu! Fale baixo ou irão nos descobrir aqui!
Cassandra mal terminou de alertar o irmão e a voz de Giuseppe ecoou pelo corredor:
— Cassandra, Oliver. Onde estão?
— É o papai, e agora? – Se agitou Oliver, balançando os braços e fazendo a casaca em suas mãos soltar uma camada de poeira.
— Rápido, cubra o quadro e eu irei guardar a caixa novamente.
Sem perder tempo, Cassandra tomou a roupa da mão do irmão e a atirou dentro da caixa junto das outras, fechou a tampa e pegou o banquinho caído o utilizando como degrau para alcançar a estante e devolver a caixa a seu devido lugar. Enquanto isso, a voz de Giuseppe continuava se aproximando:
— Crianças, onde estão? Não podemos brincar de pique esconde agora, a avó de vocês está quase chegando. Vamos, estão todos procurando vocês.
Eles ainda tentavam esconder seus rastros de investigação sobre o lugar quando a porta se abriu lentamente e revelou Giuseppe parado sob ela e com a expressão preocupada. Quando viu os filhos parados dentro do quarto, seus ombros caíram relaxados e um sentimento de alívio o invadiu. Adentrando o quarto, se aproximou das crianças e forçando uma expressão austera, questionou:
— O que fazem aqui?
— Nós não vimos nada! – Bradou Oliver, sem conseguir esconder sua agitação.
Cassandra lhe dirigiu um olhar repreensivo e em seguida se voltou na direção do pai e com um sorriso forçado, respondeu:
— Só estávamos curiosos, papai! Queríamos ver o que essa sala guardava.
— São apenas coisas velhas, Cassandra.
— Coisas velhas muito interessantes.
Um olhar de diversão cruzou o rosto de Giuseppe e um sorriso involuntário surgiu em seus lábios, se abaixou na frente dos filhos e com os olhos fixos em sua mais velha, voltou a inquirir:
— E como a senhorita conseguiu entrar aqui e arrastar seu irmão junto?
— Eu? Bem... eu... eu...
— Você roubou minha chave, não é mesmo?
— Peguei emprestado.
— Não é emprestado quando o dono não sabe que você pegou. E no lugar de vocês, se não quisesse sofrer um ataque de cócegas, sairia daqui em três... dois...
Ele não precisou terminar a contagem, os pequenos saíram correndo, sem lhe dar chances para chegar ao número um. Uma gargalhada escapou dos lábios de Giuseppe, enquanto ele se levantava e analisava se tudo ao redor estava na mais perfeita ordem. Aparentemente nada havia sido tirado do lugar e ele poderia ficar tranquilo, começou a caminhar em direção à porta até que algo chamou sua atenção. Lentamente se voltou para uma estante, notando que a caixa em cima dela estava entreaberta. E ele tinha a certeza de que quando guardou ela estava devidamente fechada.
— Santos Deus! – Resmungou para si mesmo ao notar o que aquilo significava.
— Pode me dizer porque as crianças apareceram ofegantes e apavoradas no quarto? – Ecoou a voz de Emeline, que estava parada na porta com os braços cruzados.
Lentamente, Giuseppe se voltou na direção dela e ainda incrédulo, respondeu:
— Eles descobriram!
— Descobriram o quê?
— Sobre Nox.
Emeline arregalou os olhos e caminhou rapidamente para dentro, até parar em frente ao marido e observar a mesma caixa em que os olhos dele voltaram a se fixar.
— É impossível.
— A caixa não estava assim, Emeline. Eles mexeram.
— Minha pintura! – Bradou ela, ao notar o pano jogado desleixadamente sobre o quadro – Oh, Deus, eles são mais astutos do que pensamos.
— O que faremos agora?
Retomando a postura séria, Emeline forçou uma expressão neutra e se voltou levemente na direção de Giuseppe, respondendo:
— Nada. Nós não faremos nada.
— Como assim nada? Precisamos conversar com eles.
— Não. Ele sequer tem provas.
— Emeline, há um quadro meu que você pintou e as mesmas roupas estão guardadas nessa caixa. Isso é mais do que uma prova.
— Não prova que você foi Nox Nocture. Eles são crianças, vamos desacreditá-los.
Cruzando os braços, indignado com a passividade da esposa, Giuseppe disse:
— Não foi você que me advertiu que não devemos estragar as fantasias deles?
— Mas isso aqui não é fantasia, é realidade e eles não precisam saber da realidade.
Como se nada tivesse acontecido, Emeline marchou para fora do quarto, parando apenas para depositar um beijo em Giuseppe, na tentativa de acalmá-lo. E funcionou.
Deixando um riso escapar, ele se preparou para sair também, não sem antes parar alguns segundos para observar novamente a caixa sobre a estante. Embora sentisse falta, sabia que aquela roupa não lhe servia mais, não fisicamente, mas pessoalmente. Há muito tempo ele havia deixado de ser Nox Nocture, e como um dia prometeu a Emeline, ele jamais seria visto novamente.
Agora seria apenas lembrança e história.
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