64. O inferno de Giuseppe

QUANDO A NOITE já adentrava, por insistência de Giuseppe, Emeline já havia comido o suficiente para um dia, ambos se sentaram em frente à lareira no escritório dele, nada falaram, apenas continuaram em silêncio observando o fogo consumir a lenha. Os estalos baixos das toras de madeira eram os únicos sons que preenchiam o ambiente.

Emeline andara inquieta desde que acordara pela tarde, parecia ansiosa com algo e somente naquele momento parecia serena demais, em seu estado contemplativo, como se refletisse consigo mesma a questão que tanto parecia a atormentar.

Giuseppe não se atreveu a questionar, sabia que se fosse necessário ela lhe diria e, na verdade, ele nem mesmo sabia se queria ouvir sobre o que ela pensava. Eram tantos acontecimentos que temia que algo mais acontecesse.

Foi então que Emeline puxou as pernas para cima da poltrona e voltou o corpo levemente na direção de Giuseppe, a camisola de seda que ela usava estava coberta apenas por um simples roupão também de seda. A posição que Emeline assumiu fez o tecido leve ceder brevemente e consequentemente um pouco dos seios, agora mais fartos, ficarem expostos. A luz da lareira tremeluzindo sobre a pele fez parecer que eles cintilavam convidativos.

Os olhos de Giuseppe foram rapidamente atraídos para eles e ali permaneceram, sequer prestou atenção quando Emeline disse:

- Eu preciso te entregar algo.

- Seu buquê de noiva? - Questionou, ainda parecendo hipnotizado.

Percebendo o olhar dele, Emeline fechou rapidamente o roupão e ergueu o queixo, o desafiando a olhar em seus olhos. Franzindo as sobrancelhas, visivelmente contrariado, Giuseppe ergueu os olhos e encarou o sorrisinho cínico que Emeline lhe lançava.

- É algo melhor. - Disse ela, tirando uma pequena caixa de suas costas.

- Eu duvido que essa caixa seja melhor.

- Por que não tenta abri-la para ver?

Ainda receoso, Giuseppe estendeu o braço e com cautela pegou a caixa, a deixou descansando sobre o colo, enquanto os olhos se fixavam nela, denunciando sua expectativa e ao mesmo tempo sua confusão.

- De onde ela é?

- É de seu pai.

Rapidamente ele ergueu os olhos, permanecendo ainda alguns minutos encarando Emeline, voltou-se novamente para a caixa e de repente se sentiu mais ansioso ainda em abri-la, porém, o temor se sobressaía.

Voltando-se lentamente para a caixa, Giuseppe começou a abri-la, os dedos trêmulos dificultavam um pouco seu trabalho, mas por fim a tampa se desprendeu. Precisou de alguns segundos, que permaneceu encarando o conteúdo, para enfim tomar um pequeno envelope nas mãos. O girou entre os dedos por alguns segundos, não havia selo, apenas o endereço do palácio, o papel estava amarelado, com claros sinais de envelhecimento, a carta dentro dele já estava gasta e rasgada nas extremidades. Com cautela a desdobrou e começou a ler, sem reconhecer a letra de grafia suave sobre o papel. Mesmo que já soubesse sobre a possível existência de um tio, Giuseppe se sentia cada vez mais sufocado ao ter a hipótese confirmada, o coração batia ensandecido no peito e de repente se sentiu um pouco zonzo.

Aquela carta era endereçada a seu avô, contando sobre a existência de um menino. Um bastardo. Era por isso que seu pai havia escondido aquela caixa, provavelmente não confiava em ninguém para guarda-la, não queria de maneira alguma que soubessem que ele tinha um irmão.

Giuseppe desistiu de ler toda a carta, apenas correu os olhos por ela e ao fim notou as iniciais I.C. Ieda Collalto, como já esperava. Coçou os olhos, parecendo exausto de ter tantos segredos descobertos daquela maneira, havia tanta coisa que não sabia sobre a própria família que se questionava se também fazia parte dela. A seu lado, Emeline não dizia nada, apenas observava os movimentos cautelosos dele, quando deixou a carta que estava em suas mãos de lado e pegou outra dentro da caixa. Ela não queria se intrometer, tinha que confessar que estava curiosa demais sobre que havia escrito ali, e até admitia que mais tarde provavelmente tentaria descobrir, mas aquele momento era apenas de Giuseppe, ele precisava descobrir tudo sozinho primeiro.

O segundo envelope que ele tomou nas mãos parecia um pouco mais novo que o primeiro, o papel estava gasto, porém, não a ponto de se desfazer. Giuseppe demorou um pouco mais para abrir aquele, parecendo deliberar consigo mesmo se deveria ou não continuar com aquilo, quem sabe o que poderia descobrir lendo aquela carta. Haviam escondido tantas coisas dele que já nem sabia mais o que pensar.

Resolveu pôr um fim àquela agonia, não poderia protelar mais, abriu o envelope com cuidado e daquela vez a letra impressa na carta era mais bem marcada. Era endereçada a seu pai, escrita por seu tio, se tratando de algum tipo de chantagem, a data marcava vinte anos antes. Enquanto lia o que estava escrito, aquela letra pareceu estranhamente familiar a Giuseppe, ele tentava se lembrar onde a havia visto, mas se encontrava tão ansioso que sequer conseguia pensar direito. Quando chegou ao final da carta as iniciais assinadas mostraram que ele não conhecia ninguém que as tivesse. Nunca havia encontrado um M. C. em sua vida.

Depois que terminou de ler, voltou a percorrer os olhos pelo papel, dessa vez determinado a se lembrar onde havia visto aquela grafia, passou alguns segundos parado, encarando fixamente o papel e quando finalmente conseguiu se lembrar sentiu o ar se esvair completamente de seus pulmões. O coração já ansioso pareceu bater mais forte ainda, causando uma pressão no peito e fazendo Giuseppe ter que abrir os primeiros botões da camisa para tentar respirar melhor.

As mãos haviam voltado a tremer e quando ele se levantou em um salto e começou a vagar de um lado para o outro ainda olhando a carta, Emeline se sentiu mais preocupada. Acabou se levantando também e parando em frente a Giuseppe, segurando seus braços para detê-lo, enquanto questionava:

- O que houve? Está sentindo algo?

- Não pode ser, não pode ser! - Balbuciava ele, ainda com os olhos arregalados e presos na carta - Isso não está acontecendo, tudo menos isso.

Se desprendeu das mãos de Emeline e soltando a carta no chão, voltou a vagar pela sala, até parar atrás da escrivaninha e começar a abrir as gavetas, vasculhando uma por uma, atirando papeis para todos os lados, ainda murmurando consigo mesmo:

- Onde está? Onde eu coloquei?

- Giuseppe, está me preocupando. O que aconteceu?

- Eu conheço aquela letra, eu já a vi. Onde está?

- Onde está o quê? O que está procurando?

- Uma carta, Emeline, uma carta que me enviaram há alguns meses.

Contornando a escrivaninha, Emeline segurou novamente os braços de Giuseppe, o forçando a se voltar para ela e recobrar a consciência, porque naquele momento ele parecia estar completamente fora de si. O que quer que fosse que havia naquela carta, o deixara perturbado daquela forma.

- Primeiro de tudo, se acalme. - Pediu ela - Não conseguirá encontrar, tampouco resolver algo nervoso dessa forma. Em segundo lugar, me diga o que está procurando para que eu possa ajudá-lo. A qual carta se refere?

Giuseppe ainda demorou alguns segundos para responder, os olhos ainda permaneciam um pouco arregalados e perturbados e quando finalmente ele expirou e pareceu se tranquilizar, se voltou novamente para a escrivaninha e com mais calma recomeçou a vasculhar as gavetas.

- Denis. - Respondeu simplesmente - Estou procurando uma carta de Denis.

Emeline estanhou que Giuseppe quisesse procurar justamente uma carta de Denis e no fundo já imaginava o motivo, mas estava receosa demais e intimamente desejava fervorosamente que estivesse errada. Sem dizer mais nenhuma palavra, ela também começou a vasculhar as gavetas e até alguns livros que ali estavam misturados junto aos papéis.

Ainda demoraram alguns minutos procurando, Emeline procurava ter o maior cuidado possível, para não tirar os documentos de ordem, enquanto Giuseppe não tinha qualquer tipo de zelo, atirava os papéis para cima, sem se preocupar com a desordem que fazia ou com o caos que se encontrava o escritório.

- Por que está procurando uma carta de Denis justamente agora? - Questionou Emeline, sem se conter.

Giuseppe parou de revirar uma gaveta e endireitou a postura, analisando um pedaço de papel que tinha nas mãos, enquanto respondia:

- Por causa disso.

Ele virou a carta para que Emeline pudesse ver a letra bem marcada de Denis. Com cuidado, ela tomou a carta nas mãos e leu rapidamente o que havia ali, não passava de assuntos corriqueiros do parlamento, porém, quando ela voltou para o meio do escritório e recuperou a outra carta que Giuseppe havia deixado no chão, ela percebeu a semelhança das letras e entendeu o motivo de ele parecer tão apavorado.

- São muito parecidas. - Sussurrou.

- Idênticas. - Soou a voz de Giuseppe atrás dela. Tomando as duas cartas das mãos de Emeline, ele as colocou lado a lado, alternando os olhos entre uma e outra - O problema, é que uma foi escrita por esse M. C. há vinte anos, e outra foi escrita por Denis, há apenas alguns meses.

- Bom... talvez possa ser apenas uma coincidência as letras serem parecidas...

- Elas são idênticas, Emeline! Não é uma coincidência.

O lugar recaiu em completo silêncio, os únicos sons ouvidos eram o crepitar das toras na lareira e a respiração pesada de Giuseppe. Ele não havia tirado os olhos das cartas, ainda alternava o olhar entre elas, parecendo esperar que por algum milagre as letras mudassem de forma e ficassem totalmente diferente uma da outra.

Quanto a Emeline, ela não sabia o que dizer, não havia muito a ser pensado sobre aquilo, era tudo claro como cristal, embora fosse difícil de aceitar. Quando se fixou no rosto perturbado de Giuseppe soube porque sempre achara os olhos de Denis tão familiares, eram tão escuros quanto os de seu noivo, a diferença, porém, era que os olhos do primeiro ministro faziam um arrepio percorrer toda a coluna de Emeline, dando a impressão de que mergulhava em um abismo escuro. Sentia que ele poderia engoli-la. Giuseppe era diferente, o escuro dos olhos dele era acolhedor.

Embora pudesse ser apenas uma coincidência, ou quem sabe uma característica das pessoas daquele país. No tempo em que estava ali, conseguiu notar como a maioria das pessoas que conheceu possuía olhos escuros.

No entanto, não poderia mais uma vez deixar se deixar abalar, tampouco continuar com divagações ou teorias, o mais perturbado naquela sala era Giuseppe, era ele que precisava de apoio, e mesmo sabendo que as evidências não negariam a verdade, Emeline se surpreendeu quando aquela frase saiu de sua boca:

- E se for mais um dos planos dele?

Aquilo pareceu ter capturado a atenção de Giuseppe, desprendendo os olhos das cartas, ele deixou os braços penderem para o lado e inconscientemente seus ombros relaxaram, os olhos pareciam carregar certa esperança de que aquilo fosse verdade.

- Como assim? Uma dessas cartas foi escrita há vinte anos, não haveria como ele conseguir envelhecer um papel a esse ponto e muito menos conseguir planta-la no meio das coisas do meu pai. Ninguém nem mesmo sabia da existência dessa caixa!

- Talvez não seja mesmo algo recente, mas há quanto tempo conhece Denis?

- Há anos... não sei. Desde garoto o vejo acompanhar meu pai.

Alisando o queixo e parecendo tramar alguma ideia, Emeline correu os olhos pelo escritório todo até enfim os fixar novamente em Giuseppe e se aproximar sugerindo:

- Então podemos dizer que ele está perto da sua família tempo suficiente para saber do que acontece e escrever essa carta como um blefe na época.

- Um blefe?

- Exato. Denis é astuto, ele usa tudo o que está ao seu alcance para ter tudo o que quer.

- Como assim? Onde quer chegar com isso?

- E se por ventura ele tenha tomado conhecimento da história de Ieda Collalto? Talvez se aproveitou disso e enviou uma carta para seu pai como se fosse o verdadeiro M. C a fim de perturba-lo. Se ele conseguisse se aproximar e aconselhar seu pai sobre o que ele deveria fazer...

- Ele ganharia confiança porque meu pai estaria desestabilizado e se sentindo ameaçado.

- Exato! Assim quanto mais confiança ganhasse, mais se aproximaria e então seria apenas um passo para que seu pai o tornasse primeiro ministro.

- Acha mesmo que pode ter sido isso? - Perguntou ele, parecendo mais esperançoso.

- Não posso afirmar, é apenas uma possibilidade, assim como...

- Como a possibilidade de ele realmente ser meu... meu tio.

Giuseppe exalou pesadamente e voltou a caminhar pelo lugar, deixando as cartas simplesmente jogadas em cima da escrivaninha. As mãos foram parar em sua cabeça, fazendo os dedos embrenharem pelos fios e torna-los bagunçados e rebeldes. Ele bufava várias e várias vezes, procurando se acalmar, mas aquilo apenas servia para deixa-lo mais irritado e nervoso. Emeline queria poder abraça-lo, oferecer seus braços, mas sabia que ele precisava de um momento, Giuseppe precisava de espaço para se acalmar, não de alguém o pressionando.

Acabou se sobressaltando quando o punho dele se chocou irado contra a madeira da escrivaninha e os papéis em cima dela saltaram agitados com o impacto. Ele ainda socou a madeira outras três vezes antes de gritar enfurecido. Sem dúvida alguma quem passasse pelo corredor conseguiria ouvir perfeitamente.

- Inferno! Isso é um inferno! - Esbravejou - Aquele calhorda morre e é isso o que ele me deixa. Problemas. Problemas e mais problemas. Ele já infernizou minha vida quando estava vivo e agora mesmo depois da morte ele continua me infernizando. - Voltou a caminhar agitado, sorria, porém não era felicidade, era um sorriso indignado - Ele deve estar muito feliz, deve estar gargalhando em seu túmulo ao saber que me contorço em agonia.

Cautelosamente, Emeline se aproximou e novamente teve de detê-lo, segurando seus braços para que seu olhar se voltasse para ela. Esperou pacientemente que Giuseppe se acalmasse um pouco e finalmente prestasse atenção nela.

- Eu sei que nunca teve um bom relacionamento com seu pai e que ele lhe causou um grande mal. - Começou ela - Mas dessa vez não creio que seja culpa dele. Não tudo. Duvido muito que ele soubesse que Denis talvez fosse seu irmão, foi tão manipulado quanto você, Giuseppe.

Ele ainda permaneceu com o semblante carregado, duvidoso sobre o que ela acabara de lhe dizer. Sabia que era verdade, que Emeline estava certa, mas relutava em admitir, a maior parte das coisas ruins que haviam acontecido na vida de Giuseppe foram causadas por seu pai, inconscientemente acabou concluindo que todo o resto deveria ser culpa dele também. Porém, daquela vez era diferente. Giuseppe não poderia agir como um garoto amargurado para o resto da vida, não poderia se debater e gritar como uma criancinha contrariada, e Emeline o fez ver isso. Daquele momento em diante as coisas dependiam unicamente dele, a situação estava em suas mãos. E ele poderia fazer diferente e melhor do que seus antecessores.

Suspirou, deixando os ombros caírem em rendição, abaixou a cabeça e a encostou no ombro de Emeline, enquanto sentia os braços dela o envolverem em um abraço confortante. Ela não disse nada, sabia que ele não precisava de conselhos naquele momento, precisava de amparo, precisava de ajuda para lidar com mais aquilo.

- Eu não sei mais o que faço. Denis parece estar em tudo, na minha vida toda, me atormentando em todos os lugares. - Com a voz consideravelmente baixa confessou - Estou com medo, Emeline.

- Ei! - Chamou ela, o afastando ligeiramente para segurar o rosto dele entre as mãos e olhar no fundo de seus olhos, enquanto dizia firmemente - Antes você não conhecia o inimigo e ainda assim o enfrentou. Não será agora que o conhece que deverá temer. Ele só terá poder se você assim o permitir, ele está em desvantagem agora, não tem mais o poder e a influência a favor dele.

Balançando a cabeça concordando, Giuseppe respirou fundo mais uma vez e encostou a testa na de Emeline, fechou os olhos deixando as lágrimas presas nos olhos escorrerem silenciosamente, só se permitia chorar na frente dela.

- Eu prometo que vou acabar com isso. Prometo que vou.

Ainda o observando e com as mãos amparando o rosto de Giuseppe, Emeline secou as lágrimas dele com os dois polegares, para depois permanecerem fazendo uma delicada carícia. Depois de um beijo rápido nos lábios dele, ela respondeu:

- Eu sei que vai, não duvido disso, mas não precisa fazer isso sozinho também.

- Obrigado.

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