46. O que os olhos dizem

PENSOU QUE talvez saísse como das outras vezes poderia encontrá-lo e alerta-lo. E era justamente aquilo que faria. Se levantou rapidamente e enxugou as lágrimas, precisava tomar uma atitude, assim sendo, esperou até que Denise viesse preparar seu banho e pediu que avisasse que não desceria para jantar. Havia perdido a fome, aquela situação toda havia tirado seu apetite.

Esperou que toda a casa fosse dormir e rezou para Giuseppe não a procurar naquela noite para tirar satisfações. Quando pensou que todos já estavam devidamente acomodados em seus leitos, se adiantou para a porta e a abriu vagarosamente, espiando o corredor e esperando o encontrar vazio, porém, avistou um guarda parado bem em frente, a encarando fixamente.

- Precisa de alguma coisa, madame? - Questionou, a encarando seriamente.

- Não. - Respondeu ela, lentamente - Não deveria estar fazendo a ronda?

- Não. Minhas ordens são de permanecer aqui guardando sua porta.

Emeline abriu a boca, pronta para dar uma resposta, porém, o sutil erguer de sobrancelha do guarda a fez parar e apenas o encarar, ofendida. A respiração voltou a ficar pesada e ainda segurando a porta, respondeu rispidamente:

- Não preciso que guardem minha porta, muito menos que me vigiem.

- Com todo respeito, senhorita, recebo ordens de outra pessoa. Então ficarei exatamente aqui, enquanto tiver de ficar, assim como meu colega de baixo de sua sacada vigiando a janela.

- Estão me prendendo?

- De modo algum, madame, são apenas ordens.

Ela soltou a respiração pesada e rapidamente fechou a porta com força, sem se importar com o guarda que estava do lado de fora. Caminhou de um lado para o outro, agitada e resmungando coisas sem sentido, se sentindo como um animal enjaulado, se sentindo extremamente irritada. Só poderiam ser ordens do primeiro ministro, ele sem dúvidas previra que Emeline tentaria avisar Nox. Mas quanta burrice!

Deveria ter tentado sair antes, sem que ninguém a notasse. Se sentou na cama novamente e colocou o rosto entre as mãos, suspirando e tentando encontrar outra saída, qualquer que fosse.

Passou a noite toda agoniada, perambulando pelo quarto, vez ou outra checava a porta e a sacada, mas os guardas sempre estavam lá, parados a encarando como se fosse culpada do pior crime do mundo. Tentou se deitar, mas não conseguia ficar parada por muito tempo. Quando notou o sol já nascia e seus primeiros raios cruzavam o céu, atravessando as cortinas de seu quarto e o iluminando. E de repente aquele quarto tão bem arrumado e aconchegante, se tornara sufocante, seus tons claros a deixavam melancólica e nem mesmo o arranjo de flores que havia ganhado parecia tão encantador mais.

Acabou se sobressaltando ao ouvir uma batida na porta, mas foi com certo alívio que viu Denise abrir a porta cautelosamente e pedir permissão para entrar. Emeline não tinha ânimo para sair do quarto, mas sabia que ficar ali também não ajudaria em nada, sendo assim aceitou a ajuda da empregada e se arrumou o melhor que pôde, se esforçou em colocar uma expressão neutra em seu rosto quando cruzou a porta. Um pouco irritada, constatou que aquele guarda já não estava mais ali e que agora tudo parecia ter voltado ao normal, até pensou que teria um pouco de paz naquela manhã, quando pouco antes de entrar na sala onde o desjejum era servido, encontrou Denis escorado em uma pilastra. Ele parecia estar esperando por ela.

- Bom dia, senhorita Black. - Cumprimentou, saindo de sua pose e se aproximando lentamente - É um prazer revê-la.

- Não posso dizer o mesmo.

Ele elevou as sobrancelhas e sorriu um pouco, parecendo encontrar algo cômico naquela situação toda, umedeceu os lábios e por alguns segundos pareceu que não iria responder, mas infelizmente, tudo o que ele fez foi pegar a mão de Emeline e pousar em seu braço, começando a caminhar pelo corredor, em direção a sala que ela já se encaminhava antes.

- Não sei porque eu esperava outra recepção da senhorita.

- Tampouco eu sei. - Respondeu ela, se retesando ao lado dele e tentando puxar o braço de volta.

- Para que a pressa, senhorita Black? Eu a acompanharei até a sala, não se preocupe. Enquanto isso vamos conversando.

- Eu quero distância do senhor.

- Ah, não se preocupe com isso, minha queria, não ficarei por perto o tempo todo, eu só estou aqui agora para avisar que sei que tentou sair ontem pela noite.

- Ora, não me diga. - Proferiu ela, usando todo seu sarcasmo, enquanto continha a ânsia por caminhar ao lado daquele homem.

- É claro que a senhorita já deveria saber também. Mas me sinto na obrigação de avisar que não tenho a intenção de deixá-la sair pela madrugada para a avisar Nox Nocture. Ele já deve saber que corre algum risco, mas ainda assim ele continua com essa sandice... ontem mesmo o vi.

- O que fez...?

- Acalme-se não fiz nada com ele. Ainda não. Ele sabe ser rápido quando quer, mas quando se trata da senhorita ele sempre volta. Estou errado?

- Ele não quer mais qualquer tipo de proximidade comigo, deixou isso bem claro.

- Porque quer protegê-la, tolinha.

Denis deu leves tapinhas na mão de Emeline, como se aquela conversa não passasse de um assunto corriqueiro e sem importância entre amigos. Emeline deu de ombros, tentando parecer indiferente e curvou os cantos dos lábios para baixo, para em seguida responder:

- Se é assim que o senhor pensa...

- Não tente me desacreditar. Não sou enganado facilmente. - Chegando às portas da sala, ele parou em frente a ela e completou - Não se engane achando que conseguirá me atrapalhar novamente. Manterei vigia constante sobre a senhorita e tenho olhos em todos os lugares, então se cometer um só deslize, sabe o que acontece. Espero que tenha entendido dessa vez.

Emeline não respondeu, apenas tomou as saias nas mãos e adentrou a sala rapidamente, evitando contato visual com Giuseppe, Beatrice e Valerie, que já estavam na sala.

Fez todo seu desjejum em silêncio, evitando até mesmo as perguntas que Olívia lhe dirigia sutilmente, involuntariamente acabara se afastando um pouco de sua amiga também, não queria e nem permitiria que ela se envolvesse naquela situação e corresse algum perigo. Mesmo sem muito apetite, se forçou a comer e permaneceu com a cabeça baixa quando terminou, principalmente porque Valerie havia convidado Denis para se juntar a eles e agora aquele homem fazia questão de se demorar.

Ela rezou para que Giuseppe não notasse seu temor, mas no fundo sabia que ele detectaria algo estranho nela. Por sorte, assim que terminou de comer, ele pediu licença a todos e se levantou, partindo para fora dali junto do primeiro ministro, só então Emeline notou o quanto tinha a respiração contida.

Permaneceu sentada por mais um tempo, até notar que estava sozinha, se levantou e quando cruzou a porta, sentiu as mãos firmes de Giuseppe agarrarem seu cotovelo e a deterem. Um arrepio percorreu todo o corpo dela e naquele momento percebeu que mesmo com tão pouco tempo longe, ela sentira falta de seu toque, o coração bateu apertado dentro do peito quando se voltou para ele e encarou os olhos escuros, repletos de preocupação.

- Aconteceu algo? - Perguntou ele.

- Não, não há nada. - Respondeu ela, desviando o olhar.

- Pois seus olhos me dizem o contrário. Me diga o que houve.

- Não é nada, eu só não dormi muito bem, estou indisposta.

- Não precisa mentir para mim, Emeline. Sabe que se aconteceu algo pode me contar.

Ele se aproximou, tocando gentilmente o rosto de Emeline, mas ela desviou rapidamente, como se sentisse sua pele queimar em contato com os dedos dele. O gesto evasivo dela fez certa decepção ser estampada no semblante de Giuseppe, e seus olhos perderem um pouco do brilho, transparecendo certo ressentimento. Ela não suportaria encará-lo e ver que o estava magoando.

- Giuseppe, ... - Começou com voz baixa - eu preciso ir.

Não lhe deu chances para mais questionamentos, abaixou a cabeça e passou rapidamente por ele, como se fosse uma fugitiva. E Giuseppe até tentaria ir atrás dela, mas o afastamento dela lhe doeu tanto, que tudo o que conseguiu fazer foi ficar parado no corredor, encarando as costas dela, enquanto se afastava.

- Majestade. - Chamou Denis atrás dele, sem obter nenhuma resposta. Giuseppe continuava parado na mesma posição, com a respiração pesada - Majestade!

- Eu ouvi. - Respondeu ele, de modo um pouco ríspido, encarando Denis por cima do ombro. Depois se voltou para ele totalmente e continuou - Quer dizer algo?

- O senhor parece nervoso.

- Estou um pouco. São apenas questões internas.

- Isso não o fará bem. Precisa de ajuda com alguma dessas questões? Algo que eu possa fazer?

- Não.... Na verdade, acho que pode me ajudar sim.

- Com todo prazer.

- Vamos para o escritório, não quero conversar sobre isso aqui.

- Claro.

Rapidamente os dois avançaram pelos corredores, até alcançarem a privacidade do escritório, Giuseppe permitiu que Denis adentrasse primeiro para depois segui-lo e propositalmente deixar a porta entreaberta. Se acomodou na poltrona atrás da escrivaninha e não se importou nem um pouco com sua postura desleixada, ou com sua pergunta direta que dirigiu ao primeiro ministro.

- Serei objetivo, Denis, e quero que seja sincero comigo.

- Se eu souber responder às suas questões pode ter certeza que serei franco com o senhor.

- Então me responda, Ieda Collalto era a amante de meu pai?

Denis pareceu chocado por alguns segundos, as sobrancelhas se ergueram, enquanto ele buscava por uma poltrona também e lentamente se sentava. Suspirou e ajeitou a postura antes de responder:

- É uma pergunta bem inusitada, devo admitir.

- É ou não é ela?

- Ora, e como eu saberia, majestade...?

- O senhor era amigo íntimo dele, é obvio que saberia. - Esbravejou Giuseppe, se inclinando sobre a escrivaninha.

- Sim. Tem toda razão. A questão é que não entendo porquê o senhor quer saber disso justo agora, tantos anos depois.

- Porque quero. Não preciso de uma justificativa.

- Não. Claro que não. - Romano desviou os olhos para o chão, enquanto cruzava os dedos sobre o colo e fixava seus olhos ali, como se estivesse se lembrando de algo - Mas se quer realmente saber a verdade, majestade, sinto em lhe dizer que nunca ouvi esse nome.

- Denis, por favor...

- Acalme-se, por favor. O que quero dizer é que não é esse o nome da amante de seu pai. Era outro.

- Qual?

- Bom, ele não me dizia muitas coisas sobre ela, mas o que posso dizer é que seu nome começa com D... como era mesmo?... - Ele franziu a sobrancelha e mordeu os lábios, parecendo pensativo. Quando por fim pareceu ter se lembrado, levantou a cabeça rapidamente e completou - Demétria. Lady Demétria.

- Qual o sobrenome?

- Sinto lhe dizer que isso já não posso ser útil, majestade, seu pai jamais mencionou o sobrenome dela para mim.

Em um acesso de raiva, Giuseppe socou a mesa com força, fazendo os papéis e os enfeites ali chacoalharem. Se recostou na poltrona novamente e passou a mão pelos lábios, desviando o olhar.

- Inferno!

- O senhor quer que eu mande investigar quem é essa mulher?

Giuseppe encarou Denis por alguns segundos, sentindo uma súbita e inexplicável raiva tomar conta de si. O sorriso estampado no rosto do homem, a forma como seus dedos se cruzavam sobre o colo, a postura ereta a confiante e até mesmo os olhos escuros e argutos lhe irritavam. Só conseguia se lembrar de Emeline e do pavor que via nos olhos dela sempre que encarava aquele homem que agora estava à sua frente.

Alguma coisa errada havia.

- Não. - Respondeu secamente - Talvez seja uma pergunta sem resposta.

- Minha intenção não foi desencorajá-lo, majestade. Fui o mais sincero que pude.

- Tenho certeza que sim.

Giuseppe pôs seu melhor sorriso de escárnio no rosto, intimamente se perguntando se Denis havia percebido, pois a expressão pétrea ainda estava ali, ou talvez houvesse percebido e era tão bom ator que sabia esconder com perfeição tudo o que sentia.

Inspirando profundamente, Romano se apoiou nos próprios joelhos e se levantou, dizendo:

- Bom, o senhor irá ao parlamento agora?

- Não, mais tarde apenas.

- Como desejar, então nos vemos em breve, majestade. Com licença.

O homem fez uma reverência e partiu rapidamente, mas Giuseppe sequer se prestou a responder, continuou na mesma posição que estava, sentado de lado e com um cotovelo apoiado na escrivaninha, a cabeça estava um pouco baixa, enquanto os olhos permaneciam cravados em um enfeite que seus dedos brincavam, só os levantou brevemente para olhar Denis atravessando a porta e o deixando sozinho.

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