35. Peculiaridades obscuras
HORAS DEPOIS, Giuseppe voltou para casa e subiu apressado para seu quarto, embora Olívia fosse uma ótima companhia, ele não desejava ver mais ninguém naquele dia. Tudo o que queria era descansar e sequer sabia o motivo de tanta exaustão.
Seu desejo de paz, no entanto, logo foi pelos ares quando escutou a voz de sua mãe atrás de si. Clamando paciência aos céus, Giuseppe suspirou e se voltou para ela, cravando um sorriso forçado no rosto.
— Sim, mamãe?
— O piquenique foi proveitoso? – Perguntou ela, se aproximando.
— Foi sim, uma ótima tarde.
— Fico feliz que tenha apreciado, a senhorita Denkworth é uma boa moça.
Giuseppe sabia onde sua mãe queria chegar com aquilo, sabia que ela tentaria o convencer a permanecer mais tempo com Olívia, ou quem sabe pedi-la em casamento, mas estava tão farto daquela situação que resolveu pôr fim em tudo ali mesmo.
— Mamãe... – Ele tentou.
— Claro que deve conhece-la melhor, mas creio que ainda tenham tempo para isso. – Interrompeu Valerie – E onde está o senhor Thorn? Não o vi.
— Pedi para que fizesse companhia a senhorita Black para que não ficasse sozinha.
— E ficou a sós com Olívia? – Perguntou ela, espantada.
— Não, alguns guardas permaneceram conosco, mas acredito que se tivéssemos permanecido sozinhos e fôssemos flagrados em uma situação constrangedora a senhora não se importaria. Porque aí eu teria que desposá-la e essa é sua intenção, não é mesmo?
Valerie franziu o cenho, parecendo indignada com a resposta grosseira que havia recebido, encarando o filho fixamente respondeu:
— Nunca ousou erguer o tom de voz para mim, Giuseppe. E não é agora que permitirei que faça.
— Basta! Por favor, mamãe, pare com isso. Não se coloque no papel de vítima que sabemos que a senhora não é. Eu não sou obtuso, sei o que está tentando fazer.
— E o que estou tentando fazer, Giuseppe? Diga, já que é tão astuto.
Ele bufou contrariado, passou as mãos pelo rosto procurando se acalmar e não dizer qualquer bravata ou parecer ríspido com a própria mãe. Não sabia como lidar com aquilo, quando se lembrava de como ela o manipulou e tomou atitudes por ele, apenas para satisfazer caprichos próprios, se sentia enfurecido. E irritado principalmente por colocar Emeline à margem e fazer com que ela parecesse dispensável, sem importância. Aquilo já era crueldade demais até mesmo para ele.
— Está me manipulando. Tentando me controlar para eu faça o que a senhora deseja.
— Ah, Giuseppe, por favor, não seja tão pretencioso. Acha que eu teria tempo para cuidar da sua vida?
— Ao que parece sim!
— Você me insulta. Pensei que me apoiasse, que seríamos amparo um para o outro e agora quando tento te ajudar me acusa de coisas absurdas.
— E eu pensei que a senhora não partiria para demagogia.
Diante da última frase Valerie pareceu recuar um pouco, estava boquiaberta, mas os olhos claros revelavam a mágoa que se instaurara sobre si, balançou a cabeça negativamente e analisou Giuseppe mais uma vez, para em seguida lhe dar as costas e partir, o deixando em um silêncio tão desconfortável, que até mesma a própria respiração lhe causava vergonha de sua atitude.
Não desejava se sentir tão culpado daquela forma, mas não conseguia se livrar do peso que estava sobre si, talvez mais tarde pedisse perdão a Valerie, por enquanto deixaria que tudo se acalmasse.
Passou o resto do dia trancado no quarto, em silêncio, Graham também estava ali, mas não fizera nenhuma suposição sobre o estado que o amigo se encontrava, ele sabia a hora certa para questionamentos. Apenas obedeceu quando Giuseppe pediu que ele avisasse aos empregados que comeria no quarto, evitando qualquer interação com outras pessoas. Tomou banho e se deitou cedo, depois que o valete partiu tentou buscar pelo sono, mas ele nunca vinha. Rolava de um lado para o outro na cama, procurando a melhor posição para dormir, mas parecia que algo faltava, estava incomodado naquela enorme cama, os lençóis de repente pareciam mais frios e o colchão mais desconfortável.
Sem sono, se levantou e vestiu uma calça, deixando a grande camisa desleixada por cima. Pegou um castiçal e saiu do quarto, a princípio seu objetivo era se refugiar no escritório, quem sabe beber um copo do uísque... talvez até a garrafa toda, mas acabou mudando de rumo e adentrou a biblioteca, procurando onde uma pífia luz tremeluzia, pouco iluminando o ambiente.
Encontrou Emeline debruçada sobre o que pareciam ser anotações, os olhos se estreitavam, procurando ler com mais clareza as palavras impressas em um livro que estava ao lado.
— Pensei que não viria hoje, passou a tarde toda aqui. – Disse ele, a fazendo se sobressaltar.
Emeline se levantou rapidamente e encarou Giuseppe com certa surpresa, mesmo assim abriu um sorriso genuíno e encarou as anotações atrás de si antes de responder:
— Talvez eu tenha me empolgado um pouco. E seu amigo tirou minha concentração pela tarde.
Giuseppe riu e se aproximou, notando que ela havia recuado um pouco, tentando evitar contato, não deixou de se sentir decepcionado e até mesmo rejeitado por alguns instantes, mas disfarçou o descontentamento e redarguiu:
— Graham costuma ser discreto, me surpreende que ele tenha lhe atrapalhado.
— Não diria que atrapalhou, aliás apreciei muito a companhia dele, obrigada por enviá-lo e por... pela preocupação em não me deixar só. – Quando ele apenas acenou positivamente com a cabeça, Emeline prosseguiu – Mas acabei tendo uma conversa com o senhor Thorn e isso me distraiu um pouco.
— E que tipo de conversa?
— Ele não lhe disse? – Questionou ela, elevando uma sobrancelha.
— Graham é discreto, o que dizem para ele vira um segredo que provavelmente ele carregará para o túmulo. – Respondeu Giuseppe, puxando uma cadeira e se sentando.
Emeline o acompanhou, se sentando também, mas permaneceu de frente para Giuseppe, o encarando diretamente e parecendo tomar cuidado com as palavras que proferia.
— É bom saber que ele é leal a um segredo... ele me disse que Cassandra era sua irmã.
Naquele momento Giuseppe entendeu porque Emeline parecia tão tensa, talvez pensasse que ele reagiria mal ao tocar no nome de Cassandra, ou que talvez se tornasse soturno, mas não. Conseguiu perceber naquele instante que muito de sua personalidade, antes atra, já não tomava mais conta de si e que embora a dor ainda permanecesse ali a sombra angustiante não parecia alcança-lo, e que mesmo com suas peculiaridades obscuras, ele conseguia se controlar melhor, não deixar que isso afetasse outras pessoas como antes.
Não sabia quando isso tinha mudado nele, sequer percebeu, mas nada parecia estar como antes. Tomando uma certa quantidade de ar, ajeitou a postura e respondeu:
— Sim, Cassandra era irmã mais nova de Graham. Por isso, o trouxe para trabalhar para mim. Eu me senti em dívida de alguma forma, não sei, apenas queria compensar, embora saiba que isso nunca bastará. Não há nem como comparar.
— Por que compensar? Não teve qualquer participação no que houve... teve?
Giuseppe desviou os olhos, permanecendo com eles cravados em um canto escuro, lentamente balançou a cabeça e com a voz baixa respondeu:
— Tive. Eu tive sim. Foi minha culpa.
— Como assim?
— Cassandra.... Eu a conheci em uma de minhas escapadelas. Ela era de uma família simples, vendiam hortaliças e algumas frutas em uma feira. Trabalhavam todos juntos, mas Graham e o pai ficavam responsáveis por carregar as caixas e fazer entregas às vezes, ela e a mãe ficavam vendendo.... Eu tinha uma péssima mania de sair do palácio sozinho, vestia as roupas dos empregados, usava casacos maiores para tampar parte do rosto, fazia o que podia para me esconder e me misturar. Um dia, acabei colidindo com ela nessa feira, ela acabou derrubando uma caixa de frutas. – O olhar dele se tornou nostálgico, enquanto um sorriso melancólico esboçava em seus lábios, quando ele falou sobre a lembrança – Ela me chamou de idiota cego.
— Destemida.
Mais uma vez Giuseppe concordou com a cabeça e seu sorriso se alargou, enquanto lágrimas empoçavam os olhos, ainda olhava para o mesmo canto escuro, sem coragem para encarar Emeline.
— Ela era. Mas ela não havia me reconhecido, por isso me xingou. Eu me abaixei para ajudá-la e só então ela soube quem eu era. Embora poucas pessoas soubessem como eu era, pois mal saía de casa, meu pai não nos deixava ter muito contato com as pessoas. Mas ela... ah, ela me olhou e me reconheceu no mesmo momento. Disse que não esqueceria meu rosto jamais. Tinha ido levar algumas frutas para uma viscondessa há algumas semanas para o baile que ela ofereceria, quando Cassandra chegou pela porta dos fundos, me viu agarrado com a filha da viscondessa em uma dispensa que tinha na cozinha.
Emeline lutava para não deixar o riso escapar, mas a expressão contrariada no rosto de Giuseppe indicava que ele próprio não conseguia se conter diante daquela lembrança.
— Por Deus, deve ter sido uma visão pavorosa. – Comentou ela.
Giuseppe deixou escapar uma gargalhada e concordou, enquanto enxugava os olhos úmidos.
— Lembro vagamente desse dia, eu cheguei bem mais cedo justamente para me encontrar em Eleonora, mas Cassandra acabou estragando tudo. Confesso que não me lembrava dela até que ela me contasse depois. Me apelidou de príncipe impudico.
— Ela parecia ser incrível.
— Era mesmo. Não sei te dizer como aconteceu, mas quando eu olhei para aqueles olhos, eu me vi preso neles. Eram... lindos, revelavam força, uma força quase selvagem que me fazia curvar mesmo que ela não dissesse nada. Eu voltava lá toda semana e quando percebemos eu já era dela. Não havia um único pedaço meu que não pertencesse àquela mulher.
— Quantos anos tinha?
— Eu tinha vinte. Ela dezoito. Eu sabia! Eu deveria saber que aquilo poderia acontecer. Meu pai não iria aceitar que eu me casasse com uma mulher que nem sangue nobre tinha. A forma mais fácil de resolver isso seria me casar com ela o mais rápido possível, mas eu tinha medo. Eu não conseguia enfrentar meu pai. Vivemos nos encontrando escondido por um ano. Até que de alguma maneira meu pai descobriu, mandou investigar quem ela era, onde morava, quem era sua família, o que faziam, tudo. – O olhar de Giuseppe ser perdeu novamente em um canto qualquer, os olhos voltaram a transbordar, enquanto revelavam uma dor e culpa que não podiam ser medidas – Ele contratou saqueadores. Mandou que fossem até a casa dela e forjassem um assalto porque a família dela tinha faturado muito naquela semana... então a mataram e quando cheguei... já era tarde.
Ele apoiou os cotovelos na mesa e enterrou a cabeça nas mãos, tentando controlar a respiração e espantar as lembranças daquele dia, mas foi em vão, as imagens ainda eram vívidas em sua mente como se quatro anos não passassem de quatro dias. Hesitante, Emeline se aproximou e o abraçou, o puxando de encontro ao seu peito, onde ele deitou a cabeça.
— Eu sinto muito. Sinto muito mesmo, não deveria tê-lo feito lembrar disso.
Giuseppe se afastou e depois de fungar, limpou as lágrimas e negou com a cabeça, respondendo:
— Não. A culpa não foi sua. Eu... deveria ter feito algo.
— Mas não teve culpa.
— Tive. Tive sim, se eu não tivesse sido covarde, ou tivesse agido, fugido para algum lugar.... Não sei como Graham me perdoou.
— Porque ele também sabe que a culpa jamais foi sua.
A suavidade na voz de Emeline fazia o peito de Giuseppe se acalmar. De alguma forma, aquela voz fazia seu coração bater disparado no peito, mas era uma batida diferente da que sentira minutos antes, não lhe deixava sem ar e angustiado, lhe trazia certa calmaria, conforto e segurança. E apesar de afastada, as mãos dela permaneciam segurando a dele, a embalando como se fossem uma concha que guardava uma preciosa pérola. O olhar apesar de carregar pena, também tentava transparecer fortaleza, mesmo que aqueles olhos dourados permanecessem marejados também.
Ele abaixou a cabeça, um pouco incomodado em desabar na frente dela, e continuou:
— Descobri o que meu pai havia feito no dia seguinte, e foi a primeira vez que o enfrentei. Mas ele mandou me trancar na masmorra.
— Trancar?
— Fiquei três meses preso. Não consegui ir ao enterro de Cassandra e quando retornei, a família dela pensou que eu havia fugido. Graham foi o único que acreditou em mim, que viu que eu não estava bem, estava bem mais magro e pálido. Foi o único que me escutou, então o trouxe para trabalhar aqui. Logo depois os pais dele deixaram a cidade e rumaram para o interior. Não aceitaram qualquer tipo de ajuda, só queriam distância de mim.
— Seu pai sabia que ele era irmão de Cassandra?
— Sabia. Mas nunca deixei Graham ficar muito longe, sempre estive com ele e meu pai sabia que se tentassem algo contra ele, eu iria interferir, então ele achou melhor não arriscar. Deixou de se importar um tempo depois, o pior ele já havia feito. Conseguiu me destruir.
— Que déspota! – Comentou Emeline, com voz baixa.
— Era pior do que isso. Ele era um demônio. – Giuseppe enxugou as lágrimas com a manga da camisa e recolheu a mão que Emeline segurava – Bem... perdoe-me por a apoquentar com isso.
Ela balançou a cabeça e se colocou de pé, andando de um lado para o outro.
— Não. Fui eu que perguntei, não deve se desculpar por isso. Além disso, eu o entendo, agora sei porque parecia sempre tão atormentado.
— Já perdeu alguém?
Emeline abaixou a cabeça e entrelaçou os dedos, enquanto confirmava:
— Adam. Ele foi para a guerra. Não conseguiu voltar para me pedir em casamento.
Foi a vez de Giuseppe se levantar e ir em direção de Emeline, a abraçou apertado e permaneceu ali, sem dizer uma única palavra. Nenhum dos dois poderia imaginar as situações que o outro poderia ter passado e, na verdade, se soubessem antes, muitos julgamentos teriam sido evitados.
— Você merece ser muito feliz. – Soou a voz de Giuseppe, enquanto a mão dele permanecia subindo e descendo nas costas de Emeline.
— Você também. – Respondeu ela, o apertando mais.
Era a primeira vez que se tratavam tão intimamente sem nenhuma outra intenção, eram apenas conforto um para o outro. Buscando não deixar que os pedaços quebrados de seus corações caíssem.
Afastando Emeline com suavidade, Giuseppe mirou os olhos escuros nela e se forçou a abrir um sorriso terno, para dizer:
— Precisa descansar. Já está aqui tempo demais, não precisa se dedicar tanto assim.
— Então porque está aqui se também precisa descansar?
— Touché.
Emeline abriu um largo sorriso, deixando escapar uma risadinha, para depois resmungar, encostando a testa no peito de Giuseppe:
— Acho que nós dois estamos passando um pouco dos limites. Parecemos um pouco obcecados.
— Eu concordo... notou que Nox não tem aparecido por esses dias? Não achou estranho essa inércia?
Ela se afastou um pouco e o encarou com o cenho franzido, parecia formular alguma ideia dentro de sua cabeça, mas acabou não verbalizando o que pensava, balançou a cabeça para dispersar os pensamentos e se desprendeu dos braços de Giuseppe, que até então ela não notara que estavam sobre si.
— Talvez ele tenha aparecido sim, mas como não saí... de qualquer forma pensamos nisso depois. Está tarde, não podemos dar brecha para que nos peguem aqui.
— Não se preocupou com isso ontem.
— Pois me preocupo agora. – Percebendo o semblante decepcionado dele, Emeline completou – Me desculpe, eu não quis magoa-lo.
— Não estou magoado, eu só quero saber porque está se afastando tanto! Já resolvemos nossas diferenças. Ou só eu penso que sim?
— Já, claro que resolvemos...
— Então por que isso agora? – Interrompeu ele, avançando na direção dela e fazendo Emeline recuar, com um olhar assustado – Me desculpe. Não quis te assustar.
Ela permaneceu calada por alguns instantes, ainda o encarando e tentando arranjar qualquer desculpa para sair logo dali, não ter de encará-lo mais, mas os olhos escuros dele tinham o poder de prendê-la de uma forma que era quase impossível escapar. Eram hipnotizantes.
— Melhor sairmos daqui.
Emeline tentou passar por ele, mas Giuseppe segurou seu braço, perguntando:
— Minha mãe lhe disse alguma coisa, Emeline?
— Não.
— Não minta para mim. Por favor!
"Conte para ele!", sua consciência praticamente gritava. Não conseguia o encarar diretamente, não conseguia mentir para Giuseppe, e essa era a primeira vez que não conseguia manter sua postura confiante, serena. Não achava justo mentir quando ele parecia depositar toda confiança nela, ainda assim abaixou a cabeça e lentamente se desvencilhou de suas mãos, dizendo:
— Boa noite, Giuseppe.
Se apressou a sair dali antes que ele a alcançasse novamente, enxugando as lágrimas que escorriam pelo rosto e condenando a si mesma por sua covardia.
"Adam estaria extremamente decepcionado", pensou pouco antes de alcançar a porta de seu quarto e a trancar depois de entrar.
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