27. O sangue dos vivos

NO DIA SEGUINTE, Emeline encontrou Caleb circulando pela casa. Notou um tom intenso de roxo abaixo do olho direito do rapaz, localizado bem em cima da maçã do rosto, estranhou ainda o fato de ele já estar tão cedo por ali, com a confusão da noite anterior ele, sem dúvida alguma, sequer teria descansado devidamente.

— O senhor deve ter verdadeiro amor por esse trabalho. - Disse ela se aproximando.

Caleb não pôde esconder sua surpresa quando arqueou levemente as sobrancelhas e se voltou rapidamente na direção de Emeline. No entanto, suas feições logo relaxaram e um sorriso envolveu seus lábios, tornando o semblante antes austero em uma máscara de leveza e certa felicidade.

— Não me resta muita coisa para fazer em casa. Além disso, depois do ataque de ontem ordenaram total segurança na casa, em especial no rei.

— E pelo que pude observar o senhor se deparou com o cavaleiro ontem.

— Sim. - Respondeu Caleb tocando levemente o rosto e sorrindo – Ele tem um bom gancho de direta.

— E ainda acha isso engraçado?

— Bom, eu sempre fui fascinado pela lenda e quando disse que já o tinha visto ninguém acreditava. Agora que ele me deixou marcado tenho como provar.

Emeline riu, acompanhando Caleb e balançou a cabeça em concordância, proferindo:

— É um bom argumento. Mas não o vi ontem. Onde esteve?

— Estava fazendo a ronda do lado de fora.

— Todas as rondas que faz são do lado de fora?

— A inconveniência de ser um novato. Nos colocam sempre na linha de frente. - Respondeu ele, elevando os ombros como se o argumento fosse uma boa desculpa.

— Pobre senhor Emor!

Dessa vez Caleb gargalhou, se divertindo com a ironia cômica de Emeline, que também se divertia com a situação. Porém, o momento descontraído rapidamente acabou quando a voz austera de Giuseppe soou autoritária:

— O que está fazendo parado, senhor Emor?

O rapaz rapidamente parou de rir e a cor foi drenada de seu rosto quase instantaneamente, o olhar parecia constrangido e a cabeça permanecia baixa, enquanto dizia:

— Perdão, majestade, eu apenas estava fazendo companhia a senhorita.

— Não é pago para ficar parado pela casa com conversinhas, muito menos para ser dama de companhia.

Emeline dirigiu um olhar extremamente indignado para Giuseppe, ao mesmo tempo em que raiva queimava dentro dela. Aquela situação não era culpa de Caleb, ela que o interpelara pelo caminho e iniciara a conversa. Ela queria repreendê-lo por isso, mas sabia que se o fizesse ficaria evidente a intimidade entre eles, o que geraria abertura para possíveis deduções sobre o envolvimento deles. Sendo assim, ela permaneceu o encarando furiosa, enquanto Giuseppe a ignorava e olhava fixamente para Caleb, que dizia:

— Perdão, senhor, isso não ocorrerá mais. Voltarei para minha função agora mesmo. Com licença.

Caleb se apressou em sair dali em longas passadas, ignorando o olhar de Giuseppe, que ainda queimava sobre ele, acompanhando o rapaz sumir da sala. Quando ele se voltou para Emeline, encontrou sua expressão inconformada e arqueou as sobrancelhas, como se não entendesse o motivo de sua irritação.

— O quê? - Perguntou.

— Ainda pergunta? Não havia necessidade de ser rude!

— Não fui rude, apenas lembrei da função dele aqui. Já disse que ele não é pago para ficar de conversinha.

— E para isso precisava destratá-lo? Fui eu quem iniciou a conversa, ele não teve absolutamente nenhuma relação com isso.

— Mesmo que a senhorita tenha iniciado o assunto, ele permaneceu parado aqui, o que significa que ele teve relação sim. - Respondeu Giuseppe, se encaminhando para o aparador ali perto e se servindo de uma dose de uísque.

Voltou para perto de Emeline e permaneceu a encarando de cima, desconsiderando a presença de outros guardas ali, que o seguiam para todo lado. Já estava ficando farto daquela situação.

Apesar disso, poderia conversar informalmente com Emeline da mesma forma, sabia que eles seriam discretos e sequer fariam menção de qualquer assunto tratado ali.

— Não é justificativa para sua total falta de educação. Apenas estávamos conversando sobre ontem, sobre como ele é sempre marginalizado, sobre como ele encontrou com Nox por causa disso.

— Em primeiro lugar, ele jamais foi marginalizado, ele está na posição que deve estar, Giacomo comanda muito bem a guarda e sabe o que faz. Em segundo lugar, todos os guardas que estavam lá tiveram o infeliz encontro com seu amigo.

A última frase foi proferida com certo desdém e sarcasmo, era notável o quanto ele estava irritado com a simples menção ao nome de Nox.

— Em primeiro lugar, - Rebateu ela, se aproximando - não o cite como se fosse um bandido...

— E não é? Ou vai ignorar a bagunça que ele fez ontem?

— Não foi ele!

— E como pode saber, sequer o conhece! - Bradou Giuseppe, elevando a voz.

— Eu sei que não foi, confio nele. E ele jamais agiria daquela forma, jamais se arriscaria a se expor, ou mesmo expor inocentes em perigo.

— Não foi o que eu vi ontem. Ele iria atacá-la.

— E é justamente por isso que eu sei que não foi ele.

Giuseppe soltou um riso anasalado, não se conformando com a convicção de Emeline, balançou a cabeça negativamente e observou o líquido âmbar por alguns segundos, até virar um pouco de seu conteúdo na boca, deixando apenas uma pequena quantidade dentro do recipiente.

— É impressionante o quanto confia nele. No entanto, ele não parece lhe ser recíproco, porque sequer lhe mostrou seu rosto... ou mostrou?

— Achei que havia prometido que iria ajudar e não o julgar. Parece um cego que não enxerga que ele só quer ajudar!

— Ou a senhorita que é cega e vê algum ato benevolente nessa fantasia de cavaleiro defensor... o beijou também?

Emeline sentiu aquela frase lhe atingir em cheio. De repente a respiração ficou ofegante e o coração acelerou, as mãos se fecharam em punho e os olhos começaram a arder ao tentar conter as lágrimas. Não se ofendia facilmente com o que lhe diziam ou como a julgavam, mas aquilo... aquilo fora como um punhal. Giuseppe se aproveitou de um deslize e banalizou o que ela começara a tomar como algo especial em sua vida. Um momento que fora único.

Sem pensar muito no que fazia, ela tomou o copo da mão de Giuseppe e atirou o restante da bebida em seu rosto, o deixando sem ação. Emeline ainda o encarou por alguns segundos, não fazendo questão alguma de esconder seu ressentimento, devolveu o copo e tomou as saias em suas mãos, dizendo:

— Faça bom proveito de sua bebida cara e a engula junto com sua arrogância.

Não esperou por uma réplica, saiu andando apressada, mesmo mancando, queria se afastar dali o quanto antes.

— Emeline, me perdoe. - Soou a voz de Giuseppe atrás de si.

Ela parou, a poucos passos de iniciar sua subida pela escada, e se voltou para ele, com o semblante austero, disparando:

— Não me chame assim novamente. E por favor, esqueça aquele beijo, foi a maior insensatez que cometi em toda minha vida.

Lhe dando as costas, Emeline continuou subindo as escadas, rezando para que seu tornozelo não a traísse e a ajudasse a chegar o mais rápido possível em seu quarto.

Giuseppe ainda permaneceu parado, sem saber como agir. Não sabia se permanecia ali, ou se corria atrás de Emeline lhe pedindo desculpas. Nunca foi sua intenção ser rude, mas no fim acabara onde sempre acabava. Em mágoa. E ele já a estava magoando mais vezes do que já magoara alguém. Talvez o afastamento fosse mais prudente e sensato. Ele não era bom para ela e jamais seria, sua agressividade naquele momento provara isso, Emeline merecia bem mais do que palavras impensadas e grosseiras.

Foi despertado do devaneio pela voz Marco, seu mordomo que se aproximava, dizendo:

— Majestade, lorde Moretti deseja vê-lo. Devo deixá-lo entrar?

Giuseppe deliberou por alguns segundos, recuperando a compostura. Por fim, suspirou e balançou a cabeça em concordando, respondendo a Marco:

— Claro. Leve-o ao meu escritório, estarei o esperando lá.

— Sim, senhor.

Com uma reverência o mordomo se retirou, enquanto Giuseppe caminhava lentamente para seu escritório. Não se importava em receber Lorde Moretti ali, na verdade, até se sentia confortável com sua presença, o que era raro.

Henry Galaretto era um senhor de idade já avançada, detinha o título de duque de Moretti, e era um dos poucos que Giuseppe confiava de olhos fechados. O homem o ajudara a se adaptar à câmara de lordes quando assumiu o reinado, o orientava e quase sempre suas sugestões o levavam por um bom caminho. Era um dos poucos homens de boa índole naquele meio.

Se sentou confortavelmente em sua poltrona e ali esperou até ver o homem entrar lentamente no escritório, se apoiando em sua bengala e lhe lançando um sorriso sincero. Fechou a porta e a passos lentos caminhou em sua direção até parar em frente à grande mesa e se curvar lentamente.

— É sempre um prazer vê-lo, majestade.

— Sem reverência, lorde Moretti, já conversamos sobre isso. - Respondeu Giuseppe se levantando e o cumprimentando.

— Não deixarei que minha velha coluna me faça faltar com respeito.

— Não se trata de respeito. Mas sente-se. Em que posso ajudá-lo?

Henry se acomodou na poltrona e apoiou a bengala nas pernas, encarou Giuseppe por alguns segundos, mirando os olhos castanhos diretamente no mais novo, demonstrando certa preocupação. Os cabelos já estavam ralos e brancos, as costeletas já não eram tão grandes como antes, mas ainda se faziam presentes em seu rosto. Suspirando, o velho homem começou a dizer:

— Ouvi falar sobre o ataque de ontem à noite.

— Foi apenas uma eventualidade isolada, senhor Galaretto, já estamos cuidando disso. - Respondeu Giuseppe, se acomodando na poltrona novamente.

— Não, não foi algo isolado, isso é apenas o início. - Se inclinando para frente como se fosse contar um segredo, Henry completou – Ele está irritado, majestade.

— Ele quem?

— O cavaleiro! Quem mais?

— Sabemos que é apenas alguém fantasiado querendo espalhar o caos...

— Não espero que acredite em minhas próprias crendices, majestade. Eu já sou velho, sei o que comentam sobre mim na câmara. E não os contesto, mas acredito que um pouco de experiência sempre ajuda.

— Concordo. Por isso faço tanto gosto de tê-lo ao meu lado.

— Então me ouça, por favor. Me permita agora falar de um velho para um jovem. - Quando Giuseppe apenas acenou com a mão, sinalizando para continuar, Henry completou – Pode não compartilhar da mesma fé que eu, meu jovem, mas não podemos negar que essas aparições de Nox Nocture têm afetado e atingido ambas convicções.

— Não posso discordar. Tem sido um transtorno.

— Então ouça o conselho de alguém que já viveu muito e sabe o que pode acontecer. O cavaleiro está irritado, algo o deixou assim profundamente irado. Eu disse ao seu pai que não abrisse as docas, para que não permitisse a entrada de coisas ilícitas, mas ele não me ouviu e veja só o que aconteceu!

Inclinando o corpo na direção do homem, Giuseppe apoiou os cotovelos sobre a mesa e quase uniu as sobrancelhas quando inquiriu:

— Como assim?

Henry suspirou e abaixou a cabeça, a balançando e mantendo silêncio por alguns segundos antes de responder:

— Eu sabia que não estava a par do que acontecia, majestade. Há alguns anos seu pai fez um acordo com homens... de não muito boa índole. Eram mafiosos, criminosos, não sei nomear ao certo o que são. Queriam trazer algumas mercadorias para Norean, mas não conseguiriam isso com carruagem devido à grande vigilância que as estradas têm, então queriam trazer essas mercadorias do litoral para a cá através do rio Euriti.

— Mas o rio não é tão grande para comportar embarcações tão grandes.

— Não usariam embarcações maiores do que as que já circulam por aqui, majestade. Seriam discretos, por isso seu pai permitiu.

— Ele tinha alguma vantagem nisso?

— Sempre há vantagem. - Comentou o homem, com pesar na voz – Pelo que soube seu pai receberia algum lucro disso, além de algumas joias que sempre contrabandeavam a pedido dele.

Aquela última frase despertara certo interesse em Giuseppe, nunca vira sequer vestígio algum de joias. Não joias novas ao menos, as únicas das quais tinha conhecimento já estavam na família há gerações.

Cruzou os dedos e encostou a boca nas mãos, o olhar estava perdido entre os vários documentos na mesa, mas os pensamentos eram tão rápidos que mal conseguia interpretar.

— Para onde iam essas joias, Henry?

— Isso já não sei informar. Tudo o que sei é por meio de outras pessoas que escutaram.

— Minha mãe jamais recebeu joias. Então para quem elas eram?

Henry se calou por alguns segundos, a resposta para essa questão era muito óbvia.

— Eu sinto muito, majestade. Mas a questão é que desde que o senhor assumiu, as atividades desses homens têm diminuído bastante, isso é bom. Mas não creio que ficarão quietos por muito tempo e sem dúvida alguma eles fizeram algo, por isso a fúria de Nox Nocture.

Giuseppe se recostou na poltrona e de repente seu semblante pareceu cansado. Apertou a ponte do nariz e fechou os olhos, os coçando em seguida e soltando o ar com força disse:

— Isso vai ser um problema. Vai ser um grande problema.

— Sem dúvida alguma. Por isso peço que tenha em consideração, ao menos uma vez, os meus conselhos. Feche as docas e ofereça um baile para acalmar os ânimos. Mas não um baile como os que se fazem hoje, estão cheios de leviandade. Perderam todo o sentido de homenagem.

— Henry, não faz sentido. Não posso fechar as docas, muitas pessoas trabalham lá e um baile... seria ainda mais perigoso com esse maluco nas ruas.

— Novamente, não peço que compartilhe de minhas crenças, majestade. Apenas que ouça um conselho de um velho, não há nada a perder.

Henry levava um olhar suplicante, ele realmente estava convicto de que o cavaleiro era real, e de que ele estava ofendido com algo. Era difícil tirar crenças de pessoas mais velhas e, na verdade, Giuseppe não queria isso, queria apenas que Henry fosse mais sensato e que visse o quanto aquilo era uma loucura, mas sabia também que o homem se sentiria ofendido e diminuído, quase ninguém no parlamento lhe dava ouvidos mais e era nítido o quanto ele se sentia afetado por aquilo. Giuseppe sabia que Henry não buscava por pena, mas não poderia deixar de sentir, embora tudo o que o velho homem desejava era compreensão.

— Eu posso atender a apenas um pedido seu, Henry. Porque tenho muita consideração e respeito pelo senhor.

O homem balançou a cabeça em afirmação, se contentando com a resposta.

— Já é algo, majestade, e fico feliz que tenha me ouvido. – Se levantou e apoiou as duas mãos na bengala, fixando o olhar em Giuseppe, completou – Não tome isso como uma ameaça, meu senhor, mas não posso deixar de alertá-lo, quando os espíritos se revoltam... é o sangue dos vivos que começa a escorrer.

Giuseppe permaneceu paralisado na sala, atônito, apenas observando Henry Galaretto sair da sala, apenas um pouco satisfeito por ter um de seus pedidos acatado. 

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