23. Persuasão
DESPERTANDO DO TRANSE, ela recolheu a mãos e desviou o olhar, dizendo:
— De onde exatamente tirou esse frasco? Que dizer... é seguro passar isso no meu tornozelo?
Giuseppe piscou aturdido com a repentina mudança de assunto e demorou alguns segundos para absorver a fala de Emeline. Balançou a cabeça, desanuviando os pensamentos e rapidamente tirou as mãos dela, se levantando e parando a alguns passos de distância.
— Eu pratico esgrima com Giacomo, então às vezes me machuco. Sempre tenho uma pasta dessas para emergências em meu quarto.
— Obrigada. – Disse ela, com voz baixa e as bochechas coradas.
Ele apenas sorriu e voltou a se concentrar no tornozelo de Emeline, pegou a faixa que trouxera consigo e envolveu o local onde tinha aplicado o cataplasma, logo depois prendendo a faixa firmemente e fazendo o local machucado começar a se aquecer.
Por mais que tentassem dispersar a sensação constrangedora que tomou ambos, nada foi bem-sucedido. Permaneceram calados até Giuseppe se sentir extremamente incomodado com o silêncio e dizer:
— Peço que perdoe o comportamento de minha mãe mais cedo. Por vezes ela passa alguns limites.
— Não há problema algum. Eu entendo.
Ele respondeu apenas com um sorriso singelo e se despediu já se encaminhando para a porta.
— Desejo melhoras para seu tornozelo, senhorita Black.
— Emeline. – Corrigiu ela. E quando ele se virou para encara-la, completou – Acho que já ultrapassamos todos os limites da cordialidade, não?
— Só aceitarei se me chamar pelo nome também.
Ela apenas acenou com a cabeça, concordando, e assim que Giuseppe fez menção de sair, o chamou novamente, o fazendo parar por alguns segundos e permanecer de costas para ele.
— Acha mesmo que ele fez aquilo? – Perguntou.
— Está se referindo ao cavaleiro? – Rebateu ele, a olhando por cima do ombro.
— Nox.
Se voltando lentamente para Emeline, Giuseppe semicerrou os olhos e fechou a porta novamente, se aproximando e a olhando de cima. Os ombros tensos por algum motivo oculto.
— Então realmente saiu ontem pela madrugada.
Aquela última frase não fora uma pergunta, soara mais como uma afirmação repreensiva da parte dele. Emeline sabia que tudo o que dissesse acabaria da mesma forma, ambos discordariam, e o resultado era sempre uma briga, mas daquela vez, apenas daquela vez, ela tentaria uma conversa civilizada. Tentaria ajudar Nox, por algum motivo que ainda lhe era desconhecido, mas que em algum recôndito de seu coração parecia certo.
— Como o senhor bem o disse, tenho sérios problemas em permanecer parada.
— Então sai pela madrugada, caçando um homem fantasiado que sequer conhece e sequer sabe o que ele pode lhe fazer?
— Nox não me faria mal, ele nunca fez.
— O conhece bem então... pela forma a que se refere a ele, me parece que já são íntimos.
— Não somos íntimos. – Respondeu Emeline, se levantando e parando a pouca distância de Giuseppe – Apenas acho injusto o que estão fazendo.
— Injusto? Injusto é ele atacar dois homens que só estavam fazendo seu trabalho.
— Ele não atacou, tem que acreditar!
— Emeline, por favor! Realmente acredita nisso?
— Ele me disse.
— Disse?
— Não exatamente... ele não fala.
— Não fala? Então como ele lhe disse que era inocente? – Perguntou ele, erguendo uma sobrancelha e cruzando os braços.
— Existe mais de uma maneira de se negar algo, Giuseppe. Ele balançou a cabeça.
— Balançou a cabeça?
Giuseppe parecia perplexo e ao mesmo tempo inconformado com aquilo. Olhava boquiaberto para Emeline, como se tentasse entender a lógica da afirmação dela. Por fim, apenas piscou demoradamente e tomando uma grande quantidade de ar, descruzou os braços, apoiou uma mão na cintura e com a outra gesticulava, enquanto proferia:
— Tudo bem. Vamos supor, apenas supor, que ele não tenha atacado os guardas. Então quem foi?
— Pode ser alguém querendo incriminá-lo.
— Incrimina-lo por que, Emeline? Ele mesmo que já está se incriminando há tempos.
— Mas ele jamais fez o que dizem que ele fez, não é?
Ele parou confuso mais uma vez para enfim responder:
— Não. Quer dizer... e-eu acho que não.
— Pois bem. E se ele estiver atrapalhando alguém e resolveram incriminá-lo por algo mais grave?
— Ele, sem dúvidas, está atrapalhando alguém.
— Então temos a solução do nosso mistério!
— Não temos a solução do mistério, temos uma hipótese.
— Como pode ser tão teimoso!
Irritada, Emeline se pôs a caminhar, ou mancar, por todo o quarto, tagarelando mais uma vez, ela não parecia responder o pessimismo de Giuseppe, mas sim conversar consigo mesma. Talvez formulando argumentos que pudessem contrapor, talvez pensando em outras hipóteses. Ela sequer parecia se importar com seu ferimento.
— Não deve forçar o tornozelo.
— O meu tornozelo que vá para o inferno! Eu preciso desvendar isso. É instigante demais para que eu pare agora.
Naquele momento Giuseppe percebeu que Emeline sempre o surpreenderia. Era a primeira vez que ele a ouvia xingar tão absurdamente, a primeira vez que ouvia uma dama, xingar dessa forma. Ficou contente em saber que não era o único que mandava pessoas e coisas para o inferno, aquele pensamento acabou arrancando um sorriso dele.
— Está rindo? – Retomou Emeline, o encarando.
— Apenas pensando em algumas coisas. Se as pessoas estão incriminando esse... – Ele fez um gestou com a mão, procurando as palavras certas – Nox, como você o chama. Então tudo o que temos que fazer é um levantamento de quem ele já atrapalhou. A polícia deve ter alguns dados.
— Isso é estupendo! – Bradou ela, vindo na direção de Giuseppe, rápido demais.
Emeline estava tão empolgada com a notícia, que sequer se lembrou de seu tornozelo, pisou forte demais no chão e a dor latejou por toda a perna, a enfraquecendo e fazendo perder a estabilidade. Teria ido ao chão se Giuseppe não fosse tão rápido e a amparasse, circundando seu corpo com os braços.
Lentamente ela levantou a cabeça e encarou o rosto sério e ao mesmo tempo preocupado dele, estava perto o suficiente para que o nariz de Emeline praticamente tocasse o queixo dele.
Giuseppe elevou a mão e tirou uma mecha do cabelo escuro dela, que havia caído sobre a testa.
— É muito desastrada, senhorita.
— Faz parte do encanto. – Respondeu ela rindo.
Giuseppe arqueou as sobrancelhas e abrindo um sorriso também, inquiriu:
— Está tentando me encantar?
— O quê?! Não! Entendeu errado, eu não...
— Por que me pareceu a intenção quando me tocou.
— Não chegaria nem a cogitar isso. – Disse ela, se afastando, com as bochechas ruborizadas.
— Então não lhe agrado?
— Não. Quer dizer, sim. Não... não no sentido em que pensa. Essa foi uma pergunta capciosa?
Dessa vez, Giuseppe gargalhou, se divertindo com o embaraço de Emeline, enquanto ela franzia o cenho, visivelmente contrariada com a petulância dele. Teria formulado um argumento bom o suficiente para aquela pergunta dela, se não fosse por alguém bater à porta e em seguida a voz de Olívia ser ouvida:
— Emie, está tudo bem aí dentro?
Ambos olharam alarmados para a porta, sem ação naquele momento. O primeiro a recobrar a compostura foi Giuseppe, que encarando Emeline, disse:
— Responda algo.
— Hã... estou bem, Olívia, não se preocupe.
— Precisa de algo?
— Não. Está tudo bem!
— Então por que não abre a porta? Há alguém com você?
Emeline arregalou os olhos e buscou o amparado de Giuseppe, que apenas balançou a cabeça negativamente e permanecia paralisado no meio do quarto, como se procurasse evitar fazer qualquer ruído.
— Não há ninguém comigo, Olívia, que ideia!
— Então irei entrar.
— Não! – Gritou Emeline, se dando conta tarde demais, que sua voz tinha soado tão aguda e urgente.
— Não? Você está estranha, Emeline. Eu vou entrar.
— Eu estou sem meias!
— Sem meias? E por quê?
— Estavam me apertando demais, apenas espere que eu as coloque novamente, já irei abrir.
— Tudo bem.
Se voltando para Giuseppe, Emeline apontou para a cama e sussurrou apenas para que ele ouvisse:
— Rápido, entre embaixo da cama.
— Embaixo da cama? – Rebateu ele, indignado.
— Quer que ela o flagre aqui?
— Não.
— Então vá para debaixo da cama!
Ele bufou, mas acabou acatando o pedido dela, se abaixou e rastejou para debaixo da cama, permanecendo com o rosto virado em direção a porta, para que visse toda a movimentação. Não foi nada agradável se espremer naquele espaço tão pequeno, principalmente quando poderia ser facilmente visto por alguém mais atento.
Assistiu Emeline vestir as meias rapidamente e ouviu o farfalhar da saia, enquanto ela a ajeitava. Caminhando devagar até a porta, ela a abriu, revelando Olívia com um olhar extremamente desconfiado e os olhos semicerrados.
— Está aprontando algo? – Questionou a ruiva, adentrando o quarto e vasculhando tudo com os olhos – Que cheiro é esse?
— Cheiro de quê? – Perguntou Emeline, alarmada.
Será que o cheiro de Giuseppe ficara impregnado no quarto? Ou Olívia tinha o visto embaixo da cama?
— Cheiro de... alguma medicina.
Emeline expirou soltando o ar, que até o momento não havia percebido que segurava, e colocando um sorriso no rosto, tentou disfarçar sua preocupação e apreensão. Andou pelo quarto e com a voz mais branda que pôde, respondeu:
— Ah, é apenas uma pasta que passei no tornozelo, por isso estava sem as meias.
— E onde arrumou essa pasta?
— Trouxe comigo na bagagem.
— Na bagagem?
— Sim, hã... ela deve estar por aí. Acho que já guardei.
Giuseppe percebeu a apreensão de Emeline e rapidamente tirou o frasco, que havia guardado no bolso, e o fez rolar pelo chão, colidindo levemente com o pé da moça.
— Ah, veja está aqui! – Disse Emeline se abaixando e o pegando – Que desastrada eu sou!
— Emie, está acontecendo alguma coisa? – Perguntou Olívia, parecendo realmente preocupada – Quer conversar?
— Não está acontecendo nada, te juro.
— É que está tão estranha! Se foi pelo que a rainha disse, tente esquecer. Eu entendo que tenha ficado chateada, mas não vale a pena ficar ponderando sobre isso.
— Não, não é nada disso, Oli, é só... – Emeline suspirou mais pesadamente, e com voz sincera completou – saudade de casa. Sabe que nunca passei tanto tempo assim longe.
Olívia abriu um sorriso complacente para a amiga e suspirou, se jogando sentada sobre a cama, o movimento fez o colchão ceder e a estrutura da cama se abaixar ligeiramente, espremendo Giuseppe contra o chão. Ele tentou abafar com a mão a lamúria que soltou, amaldiçoando a si mesmo pelo descuido. Enquanto isso, Emeline arregalou os olhos e levou a mão à boca, desviando o olhar ligeiramente para baixo da cama, onde viu Giuseppe fazer um gesto para que ela se concentrasse em Olívia.
— Eu também sinto falta de casa, minha amiga. – Continuou a ruiva, sem notar nada do que estava acontecendo – Acho que deveríamos voltar, foi bom estar aqui, mas creio que já está na hora.
— O quê?! Mas justo agora?
— Bom, o senhor Lambertini já deixou claro que não possuí nenhuma intenção, e o senhor Thorn... bem, talvez tenha sido um erro.
Emeline caminhou rapidamente na direção da amiga e também se sentou na cama, ao seu lado, se esquecendo totalmente que Giuseppe estava ali e estava praticamente sendo esmagado pelas duas.
Por que a cama tinha de ser tão baixa?
— Olívia, não pode desistir agora. Talvez ele seja apenas um pouco tímido.
— Não creio que seja isso. Decerto ele estava apenas sendo gentil e tenhamos nos enganado, as pessoas podem ser corteses sem segundas intenções.
— Ao menos dê mais uma chance, Olívia, imploro! – Pediu Emeline, segurando as mãos da amiga.
— Você quer ficar apenas por causa desse cavalheiro, não é mesmo, Emeline?
— Também.
— Deixe isso para as autoridades! Ouviu sobre o que aconteceu ontem, não é seguro que fique se metendo nisso.
Emeline se levantou, inquieta, e balançou as mãos no ar, esbravejando:
— Eu não irei discutir sobre isso agora. Mas deve pensar melhor sobre isso, pense no quadro que encomendou, seria um desrespeito não estar aqui para presentear pessoalmente a rainha.
Emeline era ótima em usar sua persuasão, tirar argumentos que só Deus sabia de onde vinham e convencer as pessoas as deixando imaginar que a ideia partira delas. Alguns chamariam isso de manipulação, mas ela nomeava de estratégia. Nunca usara esse "dom" de forma temerária, apenas para ter pequenas vantagens e não ser forçada a fazer o que não lhe agradava. Não desejava ser uma pessoa ruim, apenas não era condescendente.
— Pensando bem, pode ter razão. Esperarei até que o quadro do senhor Baron chegue, e depois partiremos.
— Como quiser, Olívia.
— Só espero que ele não demore, caso contrário teremos que partir antes. – Disse Olívia, se levantando – Bom, de qualquer forma é melhor que não me iluda quanto ao que acontecerá.
— Ainda acho que se surpreenderá. E penso que deveria aproveitar a desculpa de que sua dama de companhia não poderá estar junto de si, e o pediria para acompanha-la a um passeio. – Sugeriu Emeline, com um sorriso matreiro.
— Você é impossível, senhorita Black! – Olívia queria transparecer indignação, mas o sorriso que cortava seus lábios denunciava o quanto havia gostado daquela ideia – Tem certeza que não precisa de mim?
— Claro! Estarei bem aqui, não poderei sair de qualquer forma.
— Não gosto da ideia de deixa-la aqui, enquanto estou livre para ir onde quero.
— Já disse que não precisa se preocupar. E de qualquer forma não poderíamos permanecer tanto tempo fora, o rei decretou que só saíssemos em emergência.
— É justamente por isso que a princesa quer sair agora. Para aproveitar que ele não está em casa.
Enquanto Giuseppe, embaixo da cama, xingava mentalmente Beatrice, Emeline não procurava esconder o quanto aquilo a divertia. Soltando uma gargalhada, respondeu:
— A princesa é bem mais astuta do que pensávamos.
— E mais corajosa também! – Atalhou Olívia, também rindo.
— Mas já que irão sair, pode me fazer um favor?
— Claro! Do que precisa?
— Preciso de uma tela em branco, pincéis, tintas e cavalete. – Diante do franzir de sobrancelhas de Olívia, Emeline logo completou – É para dar de presente a minha prima. Sabe que ela ama tudo relacionado a pintura, então creio que ficará exultante com um presente.
— De fato, lembro-me bem que Mary faz quadros belíssimos. Sendo assim, posso trazer sim, pedirei ajuda da princesa e escolherei os melhores materiais.
— Obrigada, Oli!
Ela abraçou a amiga em gratidão e Olívia, se dando por satisfeita, logo partiu desejando melhoras a Emeline, que esperou até se certificar que de fato estava sozinha, para se abaixar e avisar Giuseppe que já podia sair.
Novamente ele se arrastou pelo chão, e quando se levantou não pôde evitar fazer uma careta desgostosa com o estado que estavam suas roupas, que estavam praticamente todas amarrotadas. Batendo a poeira que se acumulara em si, resmungou:
— Nunca mais farei isso, essa cama é baixa demais.
— Ora, então onde pretende se esconder? – Perguntou Emeline, plantando as mãos na cintura.
Com certa surpresa ele se voltou para ela e elevando as sobrancelhas, inclinou a cabeça para o lado e com um sorriso cortando os lábios, inquiriu:
— Então pretende que isso aconteça mais vezes?
Emeline arregalou os olhos e pela segunda vez naquele dia, ficou sem resposta para a pergunta dele. Giuseppe parecia formular perguntas astuciosas de propósito, apenas para vê-la constrangida. Tinha certeza que sua face estava corada, sentia-a queimar de pura vergonha. Nunca ficara tão vulnerável assim na frente de qualquer cavalheiro.
— Não foi isso que pretendi dizer. – Disse por fim.
— Entendo.... Pois bem, irei cuidar de minhas coisas e ter uma boa conversa com Beatrice.
— Elas não correm riscos agora de dia. Nox não aparece nesse horário e mesmo que aparecesse, ele não faria mal a ninguém.
— Acho impressionante a fé que tem nele.
— Se o conhecesse saberia o que estou dizendo.
— Muito bem. Mandarei investigar toda essa história com mais afinco.
Giuseppe passou por Emeline, indo em direção à porta, mas foi detido quando em um impulso ela o segurou pela mão. Surpreso, ele encarou os dedos de Emeline em volta dos seus e subiu o olhar até seu rosto, onde ela mantinha uma expressão esperançosa.
Soltando a mão dele, ela disse, um pouco acanhada:
— Obrigada. Por me ajudar e por... acreditar em mim.
Giuseppe tomou a mão de Emeline de volta e depositando um beijo nos dedos, respondeu:
— É sempre um prazer. – Antes de sair, porém, se voltou para ela e completou – Hoje pela noite haverá um concerto. Na verdade, uma apresentação de uma cantora bem famosa. Minha mãe e minha irmã não irão, por motivos óbvios, mas acontece que a cantora é uma antiga amiga e gostaria de prestigiá-la. Por isso, quero que você e a senhorita Denkworth me acompanhem.
— Ah... claro! Tenho certeza que Olívia adorará a ideia.
Giuseppe apenas abriu um sorriso tímido e dessa vez saiu do quarto, tomando cuidado ao olhar para os lados, para que não fosse pego.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top