22. Volúpia
NO DIA SEGUINTE, acordou com uma dor latejante no tornozelo. Logo ao se levantar analisou bem o local, que parecia mais inchado e roxo. Suspirou cansada, não sabia se eram as poucas horas do sono ou apenas desgaste da situação que vivera durante a madrugada. Seu tornozelo seria um tormento naquele dia e nos próximos que viriam, sem dúvidas.
Tomando coragem se levantou e se arrumou, terminando o penteado com a ajuda de uma empregada que se oferecera para auxilia-la.
Foi a última a entrar na sala de café, onde todos já faziam o seu desjejum, o que acabou chamando a atenção dos demais. Tentou disfarçar o mancar, mas foi em vão, se encaminhando para perto da mesa, ainda sob o olhar atento de todos, assumiu seu lugar e com voz baixa, disse:
- Perdoem-me pela demora. Eu tive um pequeno imprevisto.
- Algo errado com a perna, senhorita Black? - Inquiriu Valerie, dirigindo um olhar enviesado a moça.
Era claro que a rainha desaprovava Emeline, o que não se limitava a apenas o comportamento duvidoso dela, mas também pelo fato de estar claro para aquela mulher que seu filho havia despertado certo interesse na moça. Talvez não o suficiente para ir adiante com um cortejo, mas o bastante para desviar sua atenção de Olívia.
- Apenas torci o pé ao descer a escada, majestade. Foi apenas uma atitude desastrada minha.
- Eu não ouvi nenhum barulho, torcer o pé em uma escada desse tamanho certamente geraria uma queda.
- Foi durante a madrugada. Eu senti sede e percebi que no meu quarto não havia água, então resolvi descer, mas acabei me desequilibrando. - Respondeu Emeline, procurando não fraquejar em sua resposta.
- E por que não pensou em pedir a algum empregado?
Valerie mantinha o olhar fixo na moça, procurando qualquer sinal de hesitação, esperando qualquer brecha para atacar mais fortemente, ou repreendê-la por descer sozinha, as escadas escuras, enquanto guardas vagavam por ali.
Giuseppe percebeu a intenção da mãe e tentou intervir, mas recebeu um olhar de repreensão que há muito não notava no rosto de sua mãe.
- Eu não quis incomodar. - Respondeu Emeline, parecendo entender a intimidação.
- Pois da próxima peça a alguém.
- Se quiser peça a algum empregado para que deixe um jarro com água em seu quarto, senhorita Black. Assim poderá evitar transtornos. - Atalhou Giuseppe, brandamente, para tentar acalmar a situação.
Emeline apenas balançou a cabeça em concordância e voltou o olhar para a xícara e os bolinhos que lhe haviam sido servidos. Sentiu a mão de Olívia em cima da sua e o olhar preocupado da amiga percorrer seu semblante.
- Você está bem? - Sussurrou a ruiva.
- Estou sim. - Respondeu apertando a mão da amiga e abrindo um sorriso - Não se preocupe.
Se contentando com isso, ambas voltaram a tomar o desjejum e pelo resto daquela breve refeição, todos permaneceram em silêncio. Emeline não se atreveu a erguer o olhar, sabia que Valerie certamente a estaria analisando e que Giuseppe também estaria atento ao que acontecia.
Rezou para que aquilo terminasse logo, e assim que teve oportunidade se retirou da mesa. Tentou caminhar de volta para o quarto, iria passar aquele dia deitada, forçar o tornozelo só iria piorar. Foi detida no meio do corredor pela voz grave de Giuseppe atrás de si:
- Andou se aventurando novamente, senhorita Black?
Lentamente ela se virou e abriu um sorriso cínico, respondendo:
- Não. Como eu já esclareci, torci meu pé enquanto descia a escada.
- Estranho. - Respondeu ele, se aproximando, com as mãos enfiadas nos bolsos - Recebi a informação que durante a madrugada viram alguém franzino habilmente pular as grades, saindo da propriedade.
- Mesmo? Pois então seus guardas deveriam se manter mais atentos.
Giuseppe fez alguns segundos de silêncio, a encarando com intensidade, querendo demonstrar seriedade, mas os lábios insistiam em se esticar levemente para os lados.
- Se encontrou com ele novamente, não é mesmo?
- Não sei de quem o senhor fala. Agora se me dá licença, eu preciso ir para meu quarto descansar. Afinal, como dizem, sou uma criatura frágil e não deveria me esforçar assim.
Ele gargalhou diante da ironia que Emeline usava. Frágil era um atributo que não se aplicava a ela, sem dúvidas.
- Deixe-me ajudá-la. Sei de algo que pode aliviar a dor.
- Não é necessário...
- Eu insisto.
Giuseppe gesticulou com a mão em direção a uma porta e Emeline, meio hesitante, caminhou para o local apontando, ainda sustentando o olhar de escárnio que ele lhe dirigia. Quando adentrou a sala feita inteiramente de madeira, percebeu tarde demais de que se tratava da sala particular de Giuseppe. Se virou rapidamente para sair dali, mas colidiu com o tórax grande e firme dele, que já fechava a porta atrás de si.
- Essa é sua sala particular. - Constatou ela.
- Sim, por isso ninguém nos incomodará.
- Não posso ficar aqui.
- Está com medo de algo?
- De que me ataque. Se bem me lembro, da última vez que ficamos sozinhos e fechados em uma sala, o senhor me beijou.
- Eu já me desculpei por isso e prometo que não acontecerá novamente. Só quero ajudá-la.
Ele apontou para uma poltrona ali perto, feita inteiramente de couro. Emeline demorou um pouco para reagir, Giuseppe estava perto demais e seu cheiro de sabonete e loção de barbear a entorpeciam. Ultimamente ela andava "perdendo os sentidos" demais ao seu ver. Recobrando a compostura, ela pigarreou e mancou até a poltrona, se afundando no móvel.
Se aproximando, Giuseppe se abaixou em sua frente e apoiou um joelho no chão, com o cotovelo apoiado na perna, ergueu os olhos e disse:
- Então... qual é o tornozelo machucado?
- O esquerdo.
- Muito bem. Com licença.
Ele levou as mãos à barra do vestido e começou a ergue-la, quando Emeline o impediu, bradando:
- O que está fazendo?
- Tentando analisar o que aconteceu.
- O senhor disse que conhecia uma maneira de aliviar a dor, mas está me parecendo apenas uma maneira de espiar embaixo das minhas saias.
- Não posso ajudá-la se eu não ver o que aconteceu.
Por alguns segundos travaram uma batalha silenciosa, sem desviar os olhos um do outro. Emeline ponderava se deveria se levantar e ir embora ou se deveria deixá-lo ajudar. Por fim, foi vencida pela dor latejante no tornozelo e acabou permitindo que ele a tocasse. Já estava em uma sala particular trancada sozinha com ele, deixá-lo ver seu pé não poderia ser pior.
Lentamente ele ergueu o tecido e observou bem as meias brancas que cobriam o local, puxou o tecido com delicadeza, até que a pele arroxeada perto do pé fosse revelada. Com os dedos leves e gélidos, ele envolveu o tornozelo fino, ao que Emeline reagiu com um arfar de dor e se remexeu desconfortável na poltrona.
- Eu devo ter um cataplasma no meu quarto, pode ser que ajude. - Disse por fim - Não saia daqui, já retorno.
Sem dar chances para questionamentos, Giuseppe se levantou e saiu da sala, deixando Emeline sozinha e com as meias abaixadas até o tornozelo. Ela esperou minutos e mais minutos, mas ele nunca retornava, não era possível que o quarto fosse tão longe assim, ele só poderia estar troçando dela. Era só o que faltava, ser feita de boba.
Não esperaria mais um minuto sequer, arrumando a meia novamente, se levantou e antes de sair espiou o corredor para se certificar de que ninguém a veria saindo da sala, e se pôs a caminhar para o quarto. Ao que parecia a dor não cederia tão facilmente, cada passo era uma fisgada na perna, necessitava urgentemente do conforto de sua cama. O mancar a atrapalhava andar rapidamente, dessa forma, apenas lhe restava praticamente se rastejar até o cômodo desejado, ainda estava longe de chegar onde desejava, quando a voz grave soou novamente atrás de si:
- A senhorita tem sérios problemas em permanecer parada.
Se virando e encarando a sobrancelha arqueada de Giuseppe, Emeline rebateu:
- E o senhor tem sérios problemas em cumprir com o que diz.
- Eu?
- O senhor. Me deixou plantada naquela sala, correndo o risco de ser pega lá dentro. Que explicações eu daria?
- Em primeiro lugar, aquela é minha sala particular, como bem sabe, ninguém tem a permissão de entrar lá sem minha autorização. Em segundo lugar, eu de fato fui buscar o cataplasma. - Respondeu ele, se aproximando e erguendo um pequeno frasco, juntamente com uma faixa branca.
- E demorou tanto assim para pegar um mísero frasco?
- Se não se lembra, sou uma pessoa ocupada. Me pararam várias vezes no corredor.
- Pois então não precisa se preocupar comigo.
Giuseppe encarava Emeline, que tinha os braços cruzados, e se perguntava porque estava parado naquele corredor se justificando para uma moça que mal conhecia. No pouco tempo que ela estivera ali, ela o fizera se abrir mais do que ele já fizera em anos. Esse pensamento fez um sorriso zombeteiro surgir em seus lábios, enquanto constatava:
- Uma pessoa selvagem e orgulhosa é o que temos aqui.
- Eu orgulhosa? - Perguntou ofendida.
- Sim. Pois nem mesmo ferida permite que alguém a ajude.
- Não é questão de orgulho, eu apenas não posso admitir um rei se abaixando à minha frente. Nenhum monarca jamais se prestaria a isso.
- Mas eu quero.
- Ouça, eu não sou devota ao decoro e já está mais do que claro de que não me importo com o que pensam de mim, mas o senhor se ajoelhar, levantar minhas saias e abaixar minha meia já ultrapassa todos os limites. Não é uma atitude nem um pouco cavalheiresca...
Emeline ainda continuou tagarelando, enquanto Giuseppe permanecia com uma expressão monótona no rosto. Encarou as próprias unhas, trocou as pernas de lugar, suspirou, analisou a planta no vaso ao seu lado e por fim bocejou, não fazendo questão alguma de esconder o grunhido entediado que escapou de sua garganta.
- O senhor está me ignorando? - Perguntou Emeline indignada, plantando as mãos na cintura.
- Parei de ouvir quando disse decoro.
- Ora, mas..., mas...
Ela continuou balbuciando palavras desconexas, que mais pareciam resmungos do que xingamentos. Giuseppe se voltou para um guarda que ali estava e com voz firme, disse:
- Você não viu nada do que irá acontecer aqui, ouviu?
- Sim, senhor.
O rapaz arregalou um pouco os olhos, mas virou o rosto para o lado oposto, a fim de evitar ver qualquer situação que fosse acontecer ali, o que deu privacidade suficiente para Giuseppe agarrar as pernas de Emeline e a jogar em cima de seu ombro, começando a caminhar para o quarto.
- O que está fazendo? - Gritou ela.
- Te levando para o quarto.
- Me coloque no chão! Eu quero descer. Me solte, seu boçal.
- Bravo! Um xingamento dirigido diretamente para mim.
- Eu já disse para me colocar no chão!
- Quanto mais gritar, mais chamará atenção e então as pessoas virão aqui saber o que está havendo. Quer mesmo que isso aconteça?
- Não.
- Então se aquiete, já estamos chegando ao seu quarto.
- Meu quarto?
- Estava indo para lá, não? - Perguntou ele, parando no meio do corredor.
- Estava.
- Bom.
Quando entraram o quarto de Emeline, Giuseppe a colocou sentada sobre a cama e novamente fechou a porta do cômodo, assumiu a mesma postura de minutos atrás, se abaixando na frente dela e pediu:
- O seu pé, por favor, madame.
Por pura petulância ela colocou o pé em cima da perna dele, sujando um pouco o tecido escuro da calça, as sapatilhas dela não estavam tão sujas, mas a pouca poeira que havia no solo do palácio, havia sido suficiente para aderir aos solados.
Giuseppe observou a sujeira na calça por alguns segundos e ergueu os olhos, um pouco irritado, para Emeline que abriu um sorriso cínico. Resolvendo deixar isso de lado, ele suspirou e lentamente tirou a sapatilha, para depois escorregar a meia pela perna, até que o tecido estivesse no chão. Analisou novamente o tornozelo roxo, e abriu o frasco que havia trazido consigo, pegou um pouco da pasta verde que ali ficava e colocou sobre o ferimento.
O gelado daquela pasta reagiu com a pele quente de Emeline, gerando um prazeroso contraste, e por alguns segundos trazendo um pouco de alívio. Os dedos de Giuseppe, que surpreendentemente apresentavam calos, eram quentes e leves, massageavam com cuidado o local para que não gerasse mais dor. Uma mecha do cabelo preto havia caído sobre a testa, enquanto ele parecia concentrado no que fazia.
Quando aplicou um pouco mais de pressão, Emeline chiou de dor e puxou o pé de volta, mas ele segurou firme e ergueu os olhos pretos, a mirando fixamente.
- Calma. Já está acabando.
Ele pegou um pouco mais da pasta e aplicou mais uma camada, dessa vez contornando todo o tornozelo. Parecia tão absorto na tarefa que por alguns segundos parou e ficou analisando a pele delicada da moça, lentamente os dedos subiram pela panturrilha, fazendo um carinho leve, quase imperceptível, o que fez todos os pelos de Emeline se arrepiarem.
A respiração aumentou com aquela carícia tão boa e quando ele ergueu os olhos novamente, mirando aquelas orbes pretas, que pareciam obsidianas frias, ela perdeu o fôlego. A mão cálida dele, permanecia em sua panturrilha, enquanto a outra subia e descia pela perna.
No fundo daqueles olhos escuros ela podia ver muito mais do que ele transparecia, ele não era aquele homem frio e distante que demonstrava. Aqueles olhos revelavam alguém que já havia amado muito, mas estava ferido, ao mesmo tempo revelavam algo tempestuoso e voraz.
A mão dele continuou com as carícias leves, esquentando a pele de Emeline, não somente aquele pequeno recanto, mas agora seu corpo todo parecia queimar. Sem notar o próprio movimento, elevou a mão e tirou a mecha escura da testa de Giuseppe, passando os dedos pelos cabelos sedosos.
Se deu conta de que aquela era a segunda vez, em menos de um dia, que sentia aquela sensação tão boa. No entanto, ali, olhando aqueles olhos escuros, notou que Giuseppe poderia ser comparado a uma tempestade. Forte, impetuoso, por vezes, assustador com tamanha ferocidade que demonstrava ter, mas também necessário.... Necessário porque era preciso que houvesse uma tempestade para que se pudesse florescer agora.
Mas Nox... ele poderia muito bem ser a personificação de escuridão. Soturno, tênue, mas perigoso. Não se sabia o que escondia. Ao mesmo tempo era o tipo de escuridão confortante, na qual se sabia que jamais te encontrariam ou perturbariam.
E Emeline não sabia como poderia ter sido atraída por personalidades tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão iguais. Na verdade, não sabia nem mesmo porque se sentia tão atraída.
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