15. Um beijo fortuito
QUANDO SE LEVANTOU mais tarde, se deparou com o palácio em repleto caos... Pelo menos para ele. Pessoas circulavam por todo lado dos corredores, tirando e acrescentando enfeites, subindo e descendo escadas. No jardim, carruagens e mais carruagens chegavam carregadas de comida e bebida, na cozinha empregados corriam de um lado para o outro, enquanto Valerie dava algumas ordens.
Andando por um dos corredores, Giuseppe se viu perdido no meio das pessoas passando por ali, o cumprimentando e fazendo reverência, mas sem parar seu serviço. Eram tantas pessoas que ele não sabia para quem olhar primeiro.
Andou meio desnorteado pelo corredor, olhando para todos os lados e só conseguindo imaginar a dimensão do baile que sua mãe tinha organizado. Deu de frente com um corpo pequeno e esguio, que por muito pouco não foi ao chão em meio aquele caos.
Ainda segurando os braços da moça, Giuseppe mirou bem o rosto de Emeline, que também parecia meio confusa com o que estava acontecendo ali.
- Majestade. - Cumprimentou ela, se afastando e fazendo uma reverência.
Apesar do cumprimento formal, era óbvio o sarcasmo na voz dela. Emeline sem dúvida alguma ainda estava chateada e usava o comportamento apenas para afastá-lo.
- Emeline, por favor, já pedi que me chamasse de Giuseppe.
- Creio que não temos intimidade para tal.
Ele bufou frustrado e passando a mão pelos cabelos, sussurrou:
- Ainda está chateada por ontem à noite?
- Não sei a que está se referindo. Com licença.
Ela se desviou dele e já ia se distanciando, quando ele segurou seu braço e abriu uma das portas no corredor e entrou a arrastando para dentro, e trancando a porta posteriormente.
Emeline arfou ofendida e arregalou os olhos quando o viu se aproximar e parar a poucos passos de si.
- Vamos conversar. - Disse ele.
- Conversar? - Repetiu ela, lentamente, semicerrando os olhos e balançando a cabeça - Não há o que conversar, depois do que fez ontem...
- Me desculpe! - Interrompeu ele, elevando a voz - Tudo bem, eu fui ridículo, mas eu só temi pelo que pudesse acontecer.
Ela se calou por alguns segundos e abaixou a cabeça, abriu a boca algumas vezes, mas nenhum som saiu. Por fim, suspirou e elevou a cabeça, dizendo brandamente:
- Obrigada mesmo pela preocupação, mas não quero que se sinta responsável por mim. E eu nem mesmo deveria estar nessa sala sozinha com o senhor. Consegue imaginar o que fariam se nos flagrassem aqui, simplesmente conversando?
- Consigo imaginar as possibilidades.
- Pois bem, já tem sua resposta. Então concentre-se em Olivia.
- Não dá... Emeline, não dá. Olivia é maravilhosa, uma excelente moça, mas não posso fazer isso com ela. Não é justo.
- Então diga a ela. Tire-a para dançar hoje e terá oportunidade de dizer. Com licença.
Emeline lhe deu as costas e já se dirigia para a porta novamente, quando em um impulso Giuseppe a puxou pelo braço novamente e colou os lábios aos dela. Ele não os moveu, apenas permaneceu ali parado, sentindo a textura macia dos lábios dela contra os seus.
Enquanto ela permanecia encostada contra a parede, imóvel, os olhos arregalados e a respiração presa. Ela simplesmente não sabia o que fazer. E quando Giuseppe se afastou, ficando apenas alguns centímetros distante, com a testa pendendo sobre si, ela instintivamente lhe acertou um tapa, colocando a mão na boca logo em seguida, espantada com a própria reação.
Giuseppe permaneceu com o rosto virado, evitando olha-la, e tentando controlar a respiração pesada. Emeline logo se desvencilhou dele e abrindo a porta, sussurrou:
- Perdoe-me.
Saiu às pressas pelo corredor abarrotado de pessoas, deixando todos ali confusos. Subiu de volta para o quarto e quando enfim conseguiu alcançar o cômodo, se trancou dentro dele, escorando a porta com as costas.
Tentava controlar a respiração pesada e não emitir nenhum ruído, mas era quase impossível lutar contra o soluço que lhe escapava, os olhos estavam quase transbordando com as lágrimas e o coração batia ensandecido no peito. Emeline não queria ter agido por impulso daquela maneira, não queria ter acertado Giuseppe, mas foi quase instintivo.
Nunca havia sido beijada, nunca sentira a textura dos lábios de alguém, e por mais que não fosse muito devota ao decoro, ela sabia o quanto aquilo havia sido inconveniente. E sabia também que Giuseppe só agira daquela forma, puramente por ser alguém tão impudico. No entanto... havia sido tão bom!
Aquele sentimento não lhe era familiar, era algo novo que experimentara. Algo novo, deleitável e pecaminoso. Não poderia se deixar embevecer daquela forma. Não por ele.
Mas não se deixaria abalar por aquilo, não ficaria se lamentando como se fosse sensível a qualquer tipo de contato ou fingiria um desmaio simplesmente pela ameaça da reputação arruinada. Embora, pensasse que muitas moças não se importariam de ter a reputação arruinada, desde que fossem obrigadas a se casar com o rei.
Enfim se recompondo, alisou as saias do vestido e respirou fundo, limpou as lágrimas, ergueu o queixo e se preparou para sair novamente. Ao abrir a porta se deparou com Olívia pronta para bater, sua amiga a encarou por alguns segundos, com estranheza banhando seu rosto, por fim, inclinou a cabeça para o lado e perguntou:
- Você está bem?
- Estou ótima! - Respondeu Emeline, prontamente - E você?
- Estou bem também. Por que seus olhos estão vermelhos? Andou chorando?
- Eu lá choro tão levianamente? Claro que não, eles só estão um pouco irritados hoje. Precisa de algo?
- Hã... não, só vim ver como estava. Não foi ao meu quarto hoje mais cedo.
- Me desculpe, Olívia, perdi o horário de acordar.
Emeline se amaldiçoava mentalmente por mentir para a amiga. Elas nunca tiveram segredos entre si, e agora lá estava ela se enredando em mentiras seguidas de outras.... Tudo por causa daquele rei libertino e arrogante!
Talvez ela estivesse sendo injusta de atirar toda a culpa sobre ele, mas se Giuseppe não tivesse se aproximado tanto, nada daquilo teria acontecido... tampouco teria acontecido se ela não tivesse permitido a aproximação.
Suspirou ruidosamente, enquanto caminhava pelo corredor com sua amiga. Olívia notou o quanto Emeline estava perturbada, sua amiga raras vezes ficava naquele estado taciturno e contemplativa, mas sabia também que ela não responderia quaisquer questionamentos e desviaria do assunto. Emeline nunca foi conhecida por se abrir ou expor seus sentimentos. Sendo assim, se limitou a apenas enroscar o braço ao da amiga e lhe oferecer um sorriso amável. Aquilo pareceu ser o suficiente para Emeline.
Giuseppe não apareceu em nenhum momento durante o café da manhã, apenas avisou que sairia cedo e não as acompanharia no desjejum. O ambiente estava terrivelmente quieto e tenso, Valerie por vezes encarava Emeline diretamente, enquanto Beatrice e Olívia pareciam não entender o que estava acontecendo.
A rainha foi a primeira a se retirar do local sem dizer uma palavra e só então as outras moças relaxaram e conversaram sobre leviandades.
Quando a tarde adentrou, Giuseppe chegou do parlamento e rapidamente se esgueirou para dentro do seu escritório. Aquele ambiente trabalhado todo em madeira entalhada se tornara seu refúgio, pois sabia que ali ninguém entrava sem sua permissão, não que não fosse assim em outros lugares, mas aquele escritório era seu solo sagrado, ninguém sequer punha os pés ali, salvo apenas pela empregada que limpava pelo menos duas vezes na semana.
Ao abrir a porta foi saudado pela escrivaninha preta, que ficava de frente para a porta, e a poltrona de couro, igualmente preta, que ficava de costas para as grandes janelas que davam para o jardim, porém, as cortinas escuras estavam abaixadas, deixando pouca luminosidade entrar.
As paredes esquerda e direita da sala eram revestidas com grandes estantes repletas de livros, porém, a parede direita possuía uma lareira ao lado da estante, onde a lenha já estava crepitando. Provavelmente Aria havia limpado ali mais cedo, e Giuseppe agradeceu a boa intuição da moça. Fechou a porta e se encaminhou para o aparador, onde algumas bebidas descansavam, ao lado esquerdo da porta, se serviu de uísque e tirou o fraque escuro, antes de se sentar na poltrona, que ficava perto da lareira, e ficou assistindo a lenha queimar. Suspirou uma ou duas vezes antes de ouvir uma batida discreta na porta. Não era preciso ir longe para saber a quem pertencia aquela batida.
- Pode entrar, mamãe.
Silenciosamente a porta de abriu, para logo em seguida se fechar, Giuseppe não parou de encarar o fogo, mas conseguiu sentir a presença da mulher se sentando na poltrona ao lado de onde estava. Valerie ainda permaneceu alguns segundos muda, encarando o fogo também, até dizer:
- Vim lhe pedir um favor.
- Pode falar.
- Peço que vigie Beatrice hoje. Já que a decisão tomada foi de esperar até o próximo ano para o debute, então não deverá ser cortejada. Se pudesse sequer a deixaria ir, mas você deixou o tempo de luto ser tão pouco...
- Ela precisa se distrair. - Cortou ele. Voltando o olhar para a mãe, completou - Vocês duas precisam. A senhora deveria ir também, assim poderia fazer companhia a ela. As convidadas. Afinal o baile é em homenagem a elas, não?
- De fato, mas sei o meu lugar, Giuseppe.
- Seu lugar é onde a senhora deseja estar, mamãe. Se quiser posso até mesmo espalhar que eu decretei sua presença. O escândalo de não permitir que a senhora cumpra com o tempo de luto recairia sobre mim. Mas sabe que serei facilmente "perdoado" pela afronta aos bons costumes.
Sua voz soou extremamente sarcástica na última frase, ao mesmo tempo em que os olhos escuros revelavam irritabilidade. Valerie sabia que ele estava tentando a fazer se sentir melhor, Giuseppe queria que sua mãe tivesse a liberdade de ir onde bem entendesse.
Sorrindo afetuosamente, Valerie tocou o rosto do filho e respondeu:
- Sempre tão doce, Giuseppe.
- Isso que usou na frase foi sarcasmo? - Inquiriu ele, elevando uma sobrancelha escura.
Ela se afastou devagar e voltou a encarar a lareira, antes de responder:
- Talvez tenha sido.
- Bravo! Valerie Lambertini abriu mão das boas regras de convivência e troçou do próprio filho!
Pela primeira vez em muito tempo eles riram. Na verdade, a risada tomou proporções mais altas até evoluir para uma gargalhada. Quando se acalmaram, Valerie encarou o filho novamente e disse:
- Senti sua falta.
Giuseppe não respondeu. Aquilo o atingiu em cheio de forma a fazê-lo se sentir miserável, sabia que desde que tudo aconteceu ele havia mudado de forma extrema. Pouco sorria, tomou distância da família e se tornara um resmungão. Não era sua intenção parecer um amargurado, era quase impensado suas atitudes com as pessoas.
Ele lutava todos os dias para ser alguém melhor... e perdia todos os dias.
Simplesmente não conseguia encontrar alegria em seus dias. Era sufocado não somente por todas as responsabilidades que caíram sobre si, mas pela falta que o som daquela voz tão doce lhe fazia. Ah, aquela moça! Ela fora por meses a razão de Giuseppe se levantar.
Só se sentiu vivo de verdade depois que a conheceu, e quando ela partiu, levou consigo a vida que despertara em Giuseppe. Precisava seguir em frente, sabia disso, e provavelmente Cassandra o condenaria por parecer um fraco, mas ele só não sabia como se levantar depois daquele golpe tão grande em sua vida.
Se não tivesse se afastado tanto de sua família, talvez elas o tivessem ajudado.
Não.
Elas, sem dúvida alguma, o teriam ajudado.
Afastando os pensamentos ele suspirou novamente e se levantou, foi em direção ao aparador e serviu mais um pouco de uísque, dessa vez colocando o líquido em um segundo copo. Voltou para perto da lareira e ainda de pé, estendeu um copo para Valerie.
Ela encarou o líquido com olhar desejoso, porém, apenas balançou a cabeça em negativa, dizendo:
- Não posso, Giuseppe.
- Ora, deixe disso, mamãe. Ninguém saberá se não contar, sabe que não direi a ninguém.
Ela ainda hesitou alguns segundos antes de pegar o copo e o girar nas mãos, observando o líquido âmbar se agitar ali dentro.
- Por quê? - Questionou, sem olhar para o filho - Por que é tão gentil? Por que me dá tanta liberdade?
Giuseppe parou a meio caminho de se sentar e a encarou confuso, logo depois se acomodou na poltrona e devolveu a pergunta:
- Por que não deveria ser assim?
- Ah, sabe como são as coisas Giuseppe. Seu pai jamais permitiria algo assim.
- Eu não sou meu pai, e graças a Deus estou longe de ser. - Se inclinando para frente, ele tomou a mão de Valerie na sua e com voz mais baixa completou - Só quero que seja feliz, mamãe. Já passou metade da vida atada àquele tirano, sendo proibida de fazer tantas coisas que chega a ser ridículo.
- Mas... são convenções e costumes...
- Os costumes que vão para o inferno! Não é porque sou homem que devo ser melhor que aquela que me gerou, criou e cuidou... ou qualquer outra mulher. Não somos diferentes porque sou homem.... Quero ser diferente do que meu pai foi. Me recuso a repetir as mesmas ações dele.
Ela sorriu e com diversão respondeu:
- Não deixe que outros homens descubram que você pensa assim, ou te acusarão de frouxo.
- Eles que vão para o inferno com suas mentes de ervilha também.
- Você precisa parar com essa mania de mandar as pessoas para o inferno, o diabo já está sobrecarregado de pessoas ruins.
- É bem capaz de se entenderem.
Mais uma vez Valerie apenas sorriu e não respondeu mais nada. Virou o uísque na boca e se deliciou com o líquido descendo queimando pela garganta, respirou fundo e jogou a cabeça para trás, se encostando na poltrona. Fechou os olhos por alguns segundos e com um sorriso no rosto, disse:
- Céus, como isso é libertador! Fazia muito tempo que não provava algo tão bom.
- Sempre que quiser é só dizer.
Depositando o copo na pequena mesa redonda à sua frente, Valerie se levantou e encarando o filho, respondeu:
- Espero que aproveitem o baile essa noite.
Começou a se dirigir para fora do escritório, mas quando sua mão pousou na maçaneta, a voz de Giuseppe reverberou, chamando sua atenção:
- Mamãe...
- Sim?
- Se mudar de ideia quanto ao baile, saiba que estarei disposto a ajudá-la.
- Obrigada, querido.
Saindo, ela o deixou sozinho, novamente encarando a lenha crepitar na lareira e perdido em mais pensamentos do que antes.
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