Uma Faísca do Destino, parte um
Martina estava realizando um sonho.
No momento que colocou os pés em solo grego, ainda que no Aeroporto Internacional Elefthérios-Venizélos em Atenas, seu coração bateu mais forte. Uma sensação estranha de conforto e pertencimento lhe diziam que fez a escolha certa. Quem diria que uma garota de São Genésio, a pequena cidade no interior de São Paulo, conseguiria chegar tão longe?
Enquanto aguardava sua mala, próxima à esteira de bagagem, observava ao redor. Se não fosse uma pessoa tão organizada e tivesse chegado com horas de antecedência, agora estaria desesperada. Afinal, não bastava a demora para a mala aparecer, a esteira estava lotada de turistas, normalmente turistas de primeira viagem. Eles faziam tudo com muita calma, eram inseguros e desorganizados.
Ao primeiro sinal de uma briga entre duas senhoras por uma mala, o segurança surgiu para apartá-las. Tina admirou a calma e paciência do segurança, afinal, trabalhar com público não era fácil. Ela sabia.
Quando sua mala vermelha apareceu, abriu caminho gentilmente entre as pessoas. Conferiu a fita amarela que usava para identificação, puxou-a do carrossel e seguiu pelo aeroporto. Assim que saiu, o sol quente de Atenas a atingiu em cheio.
Respirou fundo, tirando os óculos de sol e olhando ao seu redor. Felicidade e sorte se misturavam dentro dela, tornando aquele momento mágico e muito especial.
— Kaliméra, despoinis! (Bom dia, senhorita!)
— Kaliméra! — respondeu Tina, com um sorriso no rosto. — Como você está, senhor? — perguntou, em inglês.
Um senhor, possivelmente na casa dos seus oitenta anos, estava olhando-a. Uma mão na frente dos olhos para protegê-lo do sol, por isso ela não conseguiu distinguir a cor dos olhos ou ver melhor suas feições. Torcia para que ele entendesse inglês.
— Muito bem, jovem senhorita. Estrangeira, não é?
— Sim, senhor.
— Eu sabia! — ele falou como se comemorando e Tina não conseguiu evitar um sorriso. — As moiras trouxeram-na até aqui para que tivesse seu grande destino.
As moiras eram as deusas da mitologia grega responsáveis pelo destino dos deuses e dos humanos. Quando nascem, crescem e morrem. Cloto tecia o fio da vida. Láquesis determinava o tamanho do fio e o enrolava, determinando como cada um viveria. Átropos cortava o fio e colocava o ponto final na vida.
Martina duvidava seriamente que elas tivessem tempo para decidir sobre seu destino, mas...
— Meu grande destino?
— "Metanoia" — disse ele, em inglês, como se estivesse profetizando algo.
— Desculpe, o que o senhor quis dizer?
— Uma jornada que mudará sua mente e seu coração — o senhor sorriu, feliz com sua escolha de palavras. — Abra seus olhos. O desejo profundo do seu coração está aqui.
Antes que pudesse reagir, o senhor se virou e atravessou a rua, seguindo pela calçada do outro lado, e ela ficou parada no mesmo lugar sob o sol escaldante. Tina queria correr atrás dele e perguntar o que ele queria dizer, mas na pior das hipóteses o senhor estava certo.
Desde muito pequena ela sabia que Grécia seria seu destino. Queria Grécia, queria estudar aqui. Queria tanto que jogou sua matrícula na Universidade de São Genésio para o alto quando recebeu a confirmação da Cruzeiros Avedis.
E agora, Grécia estava na sua frente. O sentimento positivo que ela tinha, somado ao que o senhor falou, tinha que ser um sinal de um começo maravilhoso.
O Uber chegou e Tina se atirou para dentro do carro, sem nenhuma elegância, enquanto jogava a pequena mala no banco ao seu lado.
— Porto de Piraeus, certo? — perguntou o motorista.
Confirmou e se recostou no banco para aproveitar a vista incrível. Atenas misturava história, glória e modernidade. Enquanto o carro passava tranquilamente pelas ruas, Martina criava uma lista no celular com os lugares que visitaria quando tivesse um tempo. Um barzinho que parecia aconchegante, um parque com flores coloridas... Decidiu que alugaria uma bicicleta e rodaria por algumas das ruelas encantadoras que viu.
No topo de sua lista com certeza estavam as ruínas da Acrópole de Atenas. Lá longe, à sua esquerda, enquanto o carro passava rapidamente por elas. E mais ao fundo, ela sabia, estava o Templo de Zeus.
Isso é o que ela chamava de sonhos se tornando realidade. Dez dias, seis ilhas gregas diferentes, e depois onde mais a empresa a enviasse. O que mais ela poderia pedir?
Assim que chegou ao porto, entregou o dinheiro ao motorista e pegou sua pequena mala. Inalou profundamente o cheiro do mar e sorriu. À sua frente estava o enorme navio que seria sua casa pelos próximos meses. Precisou esticar seu pescoço para conseguir enxergá-lo, e parecia ter o comprimento de umas duas quadras de futebol. Na sua lateral, em azul, ela lia "Artemis" em uma caligrafia muito bonita.
O porto estava lotado, uma mistura caótica de pessoas, bagagens, caixas e caminhões de entrega. Dirigiu-se para a entrada dos funcionários e puxou os papéis da sua bolsa.
— Martina Fernandes — se apresentou para o senhor que estava atrás da mesa.
Ele marcou seu nome em uma lista, separou diversos documentos e colocou em um envelope, lhe estendendo junto com um crachá.
— Seja bem-vinda, senhorita Fernandes — disse, em inglês. — Aqui estão suas atribuições, manual, chave do seu quarto e também seus horários de trabalho. Apresente-se em 30 minutos no convés.
— Obrigada — disse, pegando o grosso envelope e o crachá. Subiu a rampa e entrou no navio.
*
— Alexei!
Pelo tom de voz que seu pai usou para gritar seu nome, ele sabia que não deveria ser coisa boa. Na terceira vez que gritou seu nome, ajeitou-se melhor na espreguiçadeira, cruzou os braços atrás da cabeça e preparou-se para a fúria.
— O que aconteceu ontem? — indagou seu pai, atirando uma revista de fofocas no seu colo.
Pétro Avedis era um homem de negócios. Muito antes de ser pai ou marido, tarefas nas quais poderia dizer que era mediano, ele era um homem de negócios. Cresceu ouvindo que um Avedis não era fraco, um Avedis fazia escolhas inteligentes e umas quantas outras frases similares que tinham objetivo de prepará-lo para o futuro. E quanto mais duro seu pai se tornava, mais o oposto Alexei fazia.
Calmamente, porque sabia que isso irritaria seu pai ainda mais, sentou-se e tirou os óculos. Analisou a capa da revista e sorriu.
— Conheci diversas modelos — respondeu, apontando para a capa que mostrava uma foto dele de braços dados com duas modelos após um desfile.
Seu pai bufou e apontou para a garagem.
— O que é aquela carcaça de metal na garagem no lugar do seu carro?
Ops.
— Aquilo, bem, aquilo é meu carro depois da corrida.
— Você correu com seu carro? — berrou seu pai.
— Eu jamais colocaria minha vida em risco. Um Avedis não faz escolhas estúpidas, certo? — sorriu falsamente, citando um dos lemas que tanto ouviu.
— Então como ele ficou assim? — perguntou. Sabia que a paciência do pai estava no limite pela maneira que sua testa suava.
— Emprestei para um amigo. Apostei que meu carro seria mais veloz na corrida de rua e deixei ele pilotar. Ele venceu, mas o Porsche saiu um pouco amassado — disse, dando de ombros.
— Amassado?! Ele ficou destruído e você jogou milhares de euros no lixo.
— É apenas um carro — respondeu.
— É um Porsche. Aquele carro custou mais do que uma graduação em uma universidade.
— O importante é que realmente não me aconteceu nada, não é? — o sorriso de escárnio deixou seu pai ainda mais furioso.
— Chega! Kólasi — bufou. (Inferno)
— A sua farra acaba aqui, Alexei. Você vai se tornar adulto e deixar de ser um moleque mimado com meu dinheiro. — Pétro exclamou, apontando para ele mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou sua mãe, possivelmente sendo atraída pelos gritos, e juntando-se aos dois na beira da piscina.
— Seu filho está estampando as revistas de fofocas de novo. Não bastava isso, emprestou o carro para uma corrida de rua e está destruído. Mais um carro que vai para o ferro-velho.
"Seu filho". Quando ele fazia besteira, era culpa de sua mãe. Quando tirava notas boas, era premiado ou falava sobre herdeiro, era "meu filho". Alexei precisou segurar a vontade de rolar os olhos.
— Pelo menos meu competidor saiu vitorioso — disse, sorrindo para sua mãe e ajeitando uma mecha dos cabelos pretos que caíram na testa.
Seu pai bufou de novo.
— Não vou arrumar mais um carro dele — disse, indignado. — Esse moleque tem 22 anos e não sabe o que é trabalhar, o que é ganhar dinheiro. Já passou da hora de saber.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou sua mãe, alarmada com a briga.
— Ele vai fazer igual eu fiz, igual seu avô fez. Vai trabalhar para a empresa que um dia vai herdar.
— Não vejo propósito — disse Alexei, olhando as próprias unhas e usando sua melhor expressão entediada.
— Você vai mudar, vai mudar bastante — sentenciou seu pai, ignorando totalmente sua recusa. — Porque, Deus me livre, prefiro ver a empresa falir do que nas mãos dele!
— Então, você vai entrar, se vestir de maneira decente e procurar o Costas na empresa. Vai escolher qualquer cruzeiro e vai trabalhar — continuou ele, jamais levantando a voz. Apenas gesticulava fortemente para dar veemência para cada uma de suas palavras. — E não pense que vai trabalhar no escritório, não mesmo. Vai trabalhar na cozinha, no bar, na faxina... em todos os postos do navio, até entender o real valor da Cruzeiros Avedis e do dinheiro que entra nessa casa.
— Agradeço, mas passo a vez — respondeu Alexei, sorrindo. — Não tenho vontade de trabalhar. Nem com você e nem na empresa.
— Vou ignorar o que você disse. Porque ou você trabalha ou corto todo seu dinheiro e cartões. — Quando Alexei não respondeu, seu pai sorriu, vitorioso. — Ótimo, temos um acordo. Você parte amanhã mesmo!
Quando seu pai saiu, Alexei virou para sua mãe em busca de apoio. Selene Avedis era uma mulher linda e uma mãe incrível. Puxou a ela os cabelos pretos e olhos verdes. E, se tivesse sorte, não teria puxado literalmente nada de seu pai.
— Mãe... — começou, apelando para uma expressão inocente.
Sua mãe estava lendo a matéria na revista de fofoca.
— Você realmente saiu com essas modelos ontem? — perguntou, ainda folheando a revista.
— Sim — admitiu ele, um sorriso presunçoso no rosto.
— Hm, então acho que você realmente precisa desse intensivo no navio.
— A senhora também acha que eu não dou valor ao dinheiro? — pediu ele, com uma carranca.
— Acho que você não dá valor ao amor — disse sua mãe, finalmente levantando os olhos azuis da revista para encará-lo.
Selena fechou a revista e largou em cima da mesa, pegou a garrafa com água de seu filho e tomou um gole. Tudo isso enquanto o analisava.
— E se você fez o que seu pai disse que fez com seu carro, então você também precisa aprender o valor do dinheiro. — Aproximou-se e deu um beijo em sua bochecha. — Trabalho nunca matou ninguém, querido — e piscou para ele, enquanto retornava para a casa.
A última coisa que Alexei queria era trabalhar. Agora não tinha mais escolha.
Para alguém que nunca trabalhou na vida, Alexei até estava se virando bem. Bem mal.
Depois de quase colocar fogo na cozinha e jogar o detergente — totalmente sem querer — na panela com sopa recém-pronta, foi expulso da cozinha. Não conseguiu nem terminar de lavar os pratos do almoço. No ritmo que estava indo, terminaria somente na janta do próximo dia.
Costas, o supervisor do navio designado para ajudá-lo, estava realmente decepcionado.
— Nem duas horas em uma vaga! Deve ser o recorde da Avedis. Como vou explicar ao seu pai o seu fracasso?
Alexei disse que tentaria, não que sabia o que estava fazendo. Sua meta era, até o fim do cruzeiro de 10 dias, passar por diversas tarefas e setores, de forma que conhecesse o básico sobre o funcionamento do navio. Ninguém disse que precisava executar muito bem todas as tarefas.
Enquanto ouvia a explicação da chefe da equipe de limpeza sobre a mistura de produtos e como a limpeza do chão deveria ser feita, repensou em sua escolha de estar ali. Não foi exatamente uma escolha, mas Costas estava disposto a fazê-lo trabalhar o dobro do que qualquer outro funcionário. Tudo isso para provar que dinheiro não vinha fácil. Ou para ajudá-lo a se sair bem no "Artemis".
Isto é, se ele sobrevivesse até o final daquele cruzeiro.
*
— Quarto 1122 feito — disse baixinho Tina, enquanto marcava um check na planilha de controle de quartos que tinha.
Quando trabalhou no seu primeiro navio, dois anos atrás, não imaginava que pudesse ser tão emocionante ficar à deriva no mar por tantos dias. O seu primeiro contrato foi um roteiro de 15 dias pela costa brasileira, e ela ficou seis meses naquele navio. Conheceu pessoas incríveis e, melhor do que tudo, conheceu a costa brasileira de ponta a ponta.
E quando se inscreveu para o trabalho no navio, não acreditou na sua sorte ao passar por cada uma das etapas do processo seletivo. A companhia Avedis de embarcações era uma das maiores da Europa, ainda que a companhia se especializasse nas viagens dentro da própria Grécia.
Em um navio, o mais difícil era lidar com a saudade da família e dos amigos.
Apesar de amar seu pai, seu irmão mais novo e seus amigos, Tina não queria retornar para São Genésio. Cresceu muito feliz lá, mas sentia, de alguma forma, que estava destinada a algo mais. Às vezes o mundo parecia tão pequeno lá...
Seu pai era professor de cálculo avançado nos cursos de engenharia na Universidade de São Genésio. E seu irmão mais novo mal completou 12 anos e já tinha a mesma aptidão do pai para matemática.
Já ela, bem... sua habilidade parecia estar muito mais em história do que no resto. Empurrou o carrinho de camareira para o próximo quarto enquanto pensava na sorte que teve por conhecer a tia Lisandra. Ela cresceu com Apolo, seu melhor amigo desde a infância, e eles ouviram muitas histórias da mãe dele sobre mitologia grega.
Afinal, quando uma mãe coloca os nomes de Atenas e Apolo nos filhos, você já sabe que ela é realmente uma entusiasta do assunto. Na primeira história sobre a batalha de titãs ela se apaixonou. E foi ali mesmo, no escritório da tia Lisandra, que ela decidiu que seria historiadora e se especializaria na mitologia grega.
Muito longe de história ou de mitologia, trabalhar em navios surgiu como uma forma de ganhar dinheiro e viajar um pouco. Precisaria de todo dinheiro possível para realizar seu sonho de estudar história no país em que deu origem a sociedade como conhece hoje. E apesar da rotina repetitiva e exaustiva, ela gostava do trabalho no cruzeiro.
Distraída em pensamentos, não olhou com mais atenção onde pisava. O chão, absurdamente encharcado, fez seu carrinho escorregar e ela bateu contra uma parede, caindo no chão e espalhando toalhas sujas, pequenos sabonetes e frascos de shampoo para todos os lados.
— Droga! — xingou em português, ciente de que apenas ela falava essa língua a bordo e poderia xingar o quanto quisesse que ninguém saberia o que estava falando.
Nem se deu ao trabalho de se erguer, permaneceu abaixada recolhendo tudo que derrubou. Quando terminou, levantou e passou a mão pelo uniforme que era obrigada a usar, constatando que sua saia azul-claro tinha agora um tom de azul-escuro misturado com sujeira. Eca.
O incompetente responsável pelo chão nem limpou direito aquele lugar. Deu sorte que foi ela quem caiu e não um dos hóspedes das cabines de luxo.
— Martina! — berrou o senhor Gordon do outro lado do corredor. Não sabia como a Grécia inteira não tinha ouvido.
Ele começou a caminhar na sua direção e, assim como ela, escorregou no chão e caiu de bunda. Segurando a risada da melhor forma que pôde, caminhou com cuidado até o senhor, oferecendo a mão para ajudá-lo a se levantar.
Ele se ergueu e ajeitou a peruca horrorosa que usava para esconder os poucos fios de cabelo que restavam depois dos seus quarenta anos e muito estresse.
— Quem foi o incompetente responsável pela limpeza desse chão? — perguntou ele, enquanto usava uma das toalhas (sujas, por sinal) do carrinho para limpar a calça também suja.
— Me perguntava o mesmo quando caí no chão, poucos minutos antes do senhor cair também — respondeu, mostrando a enorme mancha na lateral do uniforme.
O senhor Gordon, segundo na cadeia de comando do "Artemis", balançou a cabeça em negativa enquanto apertava sua boca em uma careta de desgosto. Alguém se daria muito mal. Ele puxou o rádio que usava e relatou algo em grego que ela não conseguiu entender, depois se voltou novamente para ela.
— Não se atrase no cronograma — ordenou e virou de costas, com o nariz empinado. Mas a saída digna foi frustrada pela força com que ele segurava nas barras de apoio laterais do corredor até sumir de sua vista.
Foi a vez de Martina balançar a cabeça de desgosto. Tudo bem que o tempo era cronometrado corretamente, mas se ela não tivesse caído estaria até mesmo adiantada. Rolou os olhos e bateu com força na porta do quarto 1123, gritando a plenos pulmões:
— Serviço de limpeza!
Aguardou um minuto e bateu de novo. Ninguém respondeu, então enfiou a chave-mestra na porta e entrou. Ei... já tinha um carrinho ali. E era um carrinho de limpeza!
Parada na porta, tentou localizar o dono pelo corredor mas não viu ninguém. Quem era esse ser humano que além de não limpar bem o chão ainda largou o carrinho dentro de um quarto de luxo? Alguém de muita sorte, aparentemente. Porque juízo não estava nessa conta.
— Martina, eu falei agora! — gritou o chefe, quando viu que ela estava parada na porta de entrada do quarto, analisando como faria para colocar dois carrinhos para dentro daquele espaço.
Acenou para o chefe com um sorriso e soltou um palavrão em português entre os dentes. Um que faria sua mãe se revirar no túmulo. Respirou fundo e entrou no quarto para retirar o outro carrinho quando se deparou com... ele.
— Você só pode estar de brincadeira! — resmungou ela, ainda em português, quando reparou que ele usava um uniforme da limpeza. Ali estava o ser humano que limpou o chão igual à cara dele.
Tudo bem, muito pior do que a cara dele.
Olhos tão verdes quanto duas esmeraldas brilhavam em um rosto lindamente esculpido que faria inveja àquelas estátuas gregas. Ou poderia ser uma dessas estátuas que ganhou vida por acidente. Era injusto alguém ser tão bonito assim, só provava que o universo tinha suas pessoas preferidas.
Se recompõe, Martina!, chamou atenção da sua própria mente que já tinha se desviado do bom caminho.
— O que você está fazendo aqui dentro deste quarto? — perguntou, em inglês, colocando as mãos na cintura em uma pose que tentava transmitir um pouco de seriedade.
— Esse não é meu tipo favorito de brincadeira — respondeu ele, em português, para seu espanto.
A mulher na sua frente deveria ser a primeira naquele navio que não parecia realmente ridícula naquele uniforme de camareira. Ela tinha cabelos castanhos e enormes olhos azuis que estavam arregalados de surpresa e a deixavam com uma expressão... adorável.
— Você fala... português?! — perguntou ela, incrédula.
Ele apenas sorriu e deu de ombros. O sorriso debochado dele fez com que Martina fechasse sua expressão. Não confiava em expressões inocentes.
— Você que limpou o chão lá fora? — perguntou, direta.
O sorriso dele aumentou mais, se é que isso era possível. Ele realmente esperava que um sorriso bonito e uma expressão inocente fossem o livrar de todas as broncas e advertências do mundo? Talvez o livrassem mesmo, aff.
— Não foi meu melhor trabalho — admitiu.
— Você está sendo otimista.
Ele a recompensou com uma gargalhada e deu de ombros novamente.
— Como o chão não secou rápido e tinha uma chave mestra comigo, decidi sentar aqui nesse quarto e esperar. Foi você quem caiu no chão?
Tina queria rir do absurdo da situação. Mas engoliu qualquer piada e apenas disse:
— Sim. Sabe, uma placa como essa — e apontou para uma enorme placa amarela de "Cuidado! Chão molhado" que estava no carrinho de limpeza dele —, já teria dado conta do recado e evitado problemas.
— Possivelmente — concordou, displicente.
— O senhor Gordon não ficou muito feliz com a situação que encontrou no corredor. Acho, só acho — enfatizou — que sua limpeza não o agradou. Ele gritou no rádio algumas palavras em grego que não me pareceram muito amigáveis.
— Por acaso você não entendeu o que ele quis dizer, entendeu?
Ela apenas negou com a cabeça.
— Não entendo grego. E eu preciso limpar este quarto.
Se afastou para o lado da cabine esperando que ele pegasse seu carrinho e saísse. No entanto, ele continuou parado olhando-a, os maravilhosos olhos verdes fitando-a.
Tina respirou fundo audivelmente. Sabia que, de todas as qualidades que tinha, sua capacidade de se relacionar com as pessoas era sua melhor característica. Afinal, ela era considerada simpática por todos e fazia amigos com facilidade. Foi o que a ajudou a ganhar esta vaga que estava hoje e a sua vaga no cruzeiro anterior.
Mas quando falavam de características não muito boas... Ah, o que não daria para dizer algo fofo como "sou um pouco desastrada" ou "fico vermelha quando estou com vergonha"! Infelizmente, herdou de seu pai uma enorme falta de paciência. E todos seus esforços de recuperá-la ao longo dos seus vinte anos não deram certo.
Ela já estava miseravelmente atrasada no cronograma, só queria terminar logo e tirar um cochilo para se recuperar da troca de fuso horário.
— Você não...? — Impaciente, fez um gesto apontando para porta com a mão e ele continuou olhando-a, sem se mover. Repetiu o gesto na esperança de que ele entendesse.
Eram os gestos? Seu sotaque? Não estava sendo fácil.
— Martina! — gritou uma voz no seu ouvido, interrompendo aquele momento e fazendo-a dar um pulo, colocando a mão no coração.
Era Gordon novamente chamando-a no rádio comunicador. Fez uma careta e se recriminou mentalmente por deixar o volume alto demais. Mais dois gritos desses e ficaria surda em breve, droga de fone de ouvido.
— Sim, senhor?
— Você é a única da sua escala que não terminou.
— Termino em 15 minutos — mentiu.
— Logo — sentenciou ele, e o rádio ficou mudo na sequência.
Respirou fundo novamente. Tudo bem, precisava apenas finalizar aquele quarto.
— Estou atrasada no meu cronograma — explicou para o garoto parado no quarto, na esperança de fazê-lo sair dali com rapidez. — Já deveria ter encerrado meu turno.
— Entendo — respondeu ele, olhando-a de forma intensa.
Ele falou alguma coisa em grego naquela voz rouca e sorriu sedutoramente para ela. Se deu conta de que ele agia como se soubesse que era charmoso e encantador. E ele realmente era, socorro.
Tentou empurrar para o lado essas sensações e se ater ao lado profissional. Estava ali para juntar dinheiro para estudar na Grécia e não se envolver em um relacionamento.
— Por favor, realmente preciso arrumar esse quarto.
Ele sorriu como se soubesse exatamente o que passava na sua cabeça e deu de ombros, levando seu carrinho para fora. Os movimentos eram tão relaxados que ela achava difícil ele realmente ser parte da equipe de limpeza, que era sempre muito precisa em seus passos.
Ele virou para fechar a porta do quarto, fitou-a por um segundo e perguntou:
— Alguém mais caiu no corredor aquela hora ou foi impressão minha?
— O senhor Gordon — respondeu secamente.
— Não me diga que a peruca dele também caiu.
A sua expressão era séria, mas existia um brilho travesso naqueles olhos verdes. Martina bem que tentou segurar a risada, mas primeiro saiu uma tosse, depois uma risada que ela tentou encobrir de novo com um ataque de tosse.
— Sinto lhe dizer, mas sim.
Queria ficar brava com ele, mas já estava rindo. Que droga. Tentou fechar a porta mas ele segurou-a:
— Algum conselho antes que eu vá? Para melhorar minha vida no cruzeiro.
— Esprema mais o pano no balde antes de passar no chão.
E bateu a porta do quarto na cara dele. Ouviu uma risada alta do lado de fora do quarto e sorriu, rolando os olhos.
De volta ao trabalho.
Depois de falhar novamente no trabalho de limpeza, Alexei foi despachado para o bar. A linda garota brasileira realmente não estava mentindo, o senhor Gordon reclamou um pouco sobre o trabalho dele para Costas. O problema todo foi a peruca. Ah, a velha peruca.
Gordon era o responsável por toda a limpeza desde que ele se lembrava. Comparecia em todas as festas de final de ano da Avedis com sua fiel peruca que mais parecia um castor. Quando criança, terrível como se podia imaginar, ele e os amigos se juntavam para roubar a peruca e escondê-la.
Arrumou mais um pedido na bandeja de uma das garçonetes do convés enquanto refletia que não era ruim estar ali. Era seu segundo dia ali, e a vista do convés cheio de turistas e do incrível mar azul do seu país lhe traziam muita paz.
Deu baixa em mais um pedido do bar adicionando a conta em um dos quartos. Observou uma morena que passou na sua frente pelo que deveria ser a terceira vez naquela tarde. Ela olhou-o e sorriu descaradamente. Na verdade, o bar era um ótimo lugar.
Ajustou mais algumas demandas no sistema quando ouviu uma voz:
— Kalispéra.
Alexei ergueu os olhos do computador e contemplou a garota sentada em um dos bancos altos do bar. O sorriso gentil, olhos doces e o cabelo pintado de rosa a tornavam, ele tinha certeza, umas daquelas pessoas tão alegres que faziam o mundo sorrir ao seu redor.
Por isso mesmo não resistiu e sorriu de volta.
— Kalispéra.
— Por favor, pode me servir um daqueles drinks? — pediu ela, em inglês.
Prontamente atendeu o pedido, finalizando o drink com um guarda-chuvinha — típico de um drink no cruzeiro — que era da exata cor dos cabelos dela.
Ela olhou para o enfeite e riu, criando uma atmosfera de amizade instantânea entre eles. Conversaram um pouco e descobriu que ela se chamava Lu, e morava na Espanha.
Assim que ela saiu, prometendo retornar depois, o banco foi rapidamente ocupado pela morena que viu antes, lhe sorrindo em um convite.
Com certeza amava o bar.
*
Os horários no navio não eram brincadeira, refletiu Martina, enquanto ajustava um grampo no coque que tinha se desprendido e levado com ele uma grossa mecha do cabelo castanho claro. Estavam no quarto dia a bordo e ela já perdera a conta de quantos quartos tinha aspirado ou banheiros que tinha limpado. Isso porque ela nem contou a quantidade imensa de lençóis sujos e toalhas molhadas que juntou até ali.
Pelos dias de viagem, sabia que chegariam em breve a Mykonos e ela esperava que conseguisse trocar com alguma colega para desembarcar e conhecer rapidamente a ilha. Qualquer duas horinhas já valiam.
Perdida em pensamentos, olhou para o relógio que usava e já era hora do intervalo. Finalmente. Resolveu caminhar pelas laterais do convés para fugir da população e apreciar a beleza das ilhas que deixavam para trás. Quando fez uma curva, deparou-se com o bar. Pegaria uma água com gás ou uma limonada e retornaria animada para seu segundo round.
Chegando mais perto, apertou os olhos para garantir que enxergava corretamente. Ali estava o garoto da limpeza. Quantas funções ele fazia no navio?
A curiosidade foi maior, então sentou-se em uma das altas banquetas no cantinho, longe de todas as pessoas e dos seguranças, principalmente. Ela não deveria estar no convés com os passageiros, mas sentia-se um pouquinho mal por ser rude com ele.
Além disso, tinha tão poucas oportunidades de falar em português que não desperdiçaria. Mesmo com o forte — e fofo — sotaque grego.
— Você parece meio perdido — apontou ela, quando ele olhava de um pedaço de papel para os itens que tinha no balcão na sua frente. — Quer uma ajuda?
Ele negou com a cabeça, ainda tentando desvendar o conteúdo do papel como se fosse um quebra cabeça.
— Já trabalhou em algum cruzeiro antes?
— Um pouco.
— Isso quer dizer sim? — insistiu.
— Quer dizer um pouco — respondeu ele, ainda sem olhar para ela. — Posso te servir algo?
Martina aceitou e ele preparou sua bebida. Largou em sua frente um copo alto com um canudo extremamente espalhafatoso, cheio de glitter. Tomou um gole e se surpreendeu com o gosto de uma ótima soda italiana de limão siciliano.
Como não tinha desistido do assunto anterior, perguntou:
— Então, o que você faz aqui no navio? — a voz casual e leve, tentando disfarçar a enorme curiosidade que sentia.
— Um pouco disso e daquilo.
Martina ergueu a sobrancelha direita, um claro sinal de quem não acreditava nem um pouco no que ele falava.
— E você é daqui mesmo?
— Grécia?
— Isso — respondeu ela. Pelo amor, ele se fazia de sonso? Ou talvez não entendia o que ela falava, por isso falou pausadamente e fez um gesto que abrangia tudo ao redor deles: — De. Algum. Lugar. Da. Grécia.
— Sou grego.
Então ele entendia, só não queria responder as suas tentativas de uma conversa leve depois da situação anterior.
— Você é cheio de informações mesmo, hein?
— Obrigado — respondeu, com um meio sorriso.
Martina rolou os olhos. Ele podia entender português, mas não entendia sarcasmo. Dando os ombros, resolveu largar ele ali e ocupar sua vida. Não dava para dizer que não tentou.
Estava pronta para sair quando ele perguntou:
— Vejo você na festa mais tarde?
— Provavelmente não.
— Não é do tipo que gosta de quebrar as regras? — insinuou, erguendo uma sobrancelha de modo desafiador.
Como era possível que qualquer expressão o tornasse bonito? Martina cruzou os braços, esperando que parecesse um pouco mais intimidadora.
— O que você acha? — devolveu ela.
— Acho que verei você na festa.
E abandonou-a, dirigindo sua atenção para uma moça lindíssima de cabelos rosa. Parecia tão simpática que lhe dava vontade de se afogar no copo de soda que segurava.
Deveria voltar ao trabalho, mas não sabia porquê ainda mais irritada depois da conversa. Algumas pessoas simplesmente arrancavam o pior uma da outra. E aparentemente ela encontrou alguém assim.
Que azar.
— Vai para a festa, Martina? — perguntou uma das suas colegas de quarto, Samantha.
As suas duas colegas de quarto estavam disputando um espaço na frente do espelho para se arrumarem. Não as conhecia muito bem, mas quem conhecia todos seus colegas em um cruzeiro onde pessoas diferentes iam e vinham toda hora?
O turno das camareiras finalizou e grande parte da tripulação subiria para o convés para uma pequena confraternização. Um cruzeiro poderia ser solitário, por isso encontravam formas para se divertir. Era proibido, mas isso não impedia ninguém. E Martina sempre se orgulhou de ser correta e ética.
— Não, meninas. Ficarei por aqui.
— Hoje tem uma lua cheia maravilhosa e uma brisa fresca. Você deveria aproveitar a Grécia — disse Zoe, a outra colega, enquanto escovava o cabelo. — Não era esse seu objetivo?
Dividida entre o correto e conhecer um pouco mais do navio do que as sala das camareiras ou suas escapadas permitiam, a curiosidade e a vontade de saber como era Grécia à noite venceram.
Assim que saíram do elevador e entraram no convés, viu uma pequena e animada festa. A música tocava baixinho e o som das risadas e conversas preenchiam o ar. Havia grupos jogando pingue-pongue, carteado e até rodas de dança. Outro grupo jogava vôlei na piscina, e parecia o mais divertido de todos.
Sentou-se com um grupo que jogava poker e uma hora depois já acumulava metade das fichas do seu lado da mesa. Com muita sorte, largou mais uma trinca* na mesa e pegou as fichas restantes.
— Você limpou todos os participantes da mesa com essas cartas?
Virou-se ao som da voz e deparou-se com um par de olhos esmeraldas que brilhavam de divertimento e admiração. O garoto da limpeza (ou seria do bar?) estivera observando-a durante as últimas rodadas.
— O que dizer se sou muito convincente? — gabou-se Tina.
— Ela roubou todos nós! — disse Samantha, entrando na conversa e rindo muito.
— Fala isso só porque ganhei seu turno amanhã e vou visitar Mykonos enquanto você limpa meu andar — devolveu ela, ainda mais feliz do que já estava pelas vitórias.
— Aff. — Os castanhos olhos de Samantha rolaram e seu sorriso murchou, afirmando com convicção: — Nunca mais jogo com você.
— Podemos apostar seu turno na ilha de Santorini na sexta— sugeriu Tina, ostentando as fichas e piscando os olhos repetidas vezes para acentuar seu ar inocente.
— E arriscar perder mais uma ilha mágica? Nem pensar! Fique feliz com meu passeio em Mykonos amanhã e me traga uma bugiganga qualquer para me animar.
Sam se levantou e se despediu do grupo, seguida por mais dois participantes.
— Joga mais uma rodada? — perguntou Carlo, um dos seguranças que estava ali na roda.
— Acredito que já tive minha cota de vitórias por hoje, Carlos.
— Eu a desafio — disse o garoto da limpeza-bar, sentando na cadeira que era da Samantha.
A súbita agitação atraiu algumas pessoas que estavam ali ao redor. Mais dois participantes sentaram na mesa, prontos para o jogo que recomeçaria.
— E o que você quer apostar? — perguntou Carlo enquanto embaralhava as cartas e arrumava as fichas.
— Se eu ganhar, levarei você para um encontro em Mykonos — disse o garoto, apontando para ela.
Ele estava louco? Ela nem sabia o nome dele!
— Não — recusou ela.
— Está com medo de perder?
Ai como odiava essas provocações! Ela ouviu um sonoro "Uuuuh" ao redor. Os olhares iam de um para o outro e o dinheiro começou a correr de mão em mão, indicando apostas, não tinha como recusar agora.
— E se eu ganhar?
— Você escolhe o lugar e eu serei seu guia na Grécia, turista.
— Se eu ganhar ou perder passo tempo com você?
— Você perdendo, ainda sai ganhando — devolveu ele, aquele sorriso debochado e encantador pairando em seu rosto.
— Não.
— Tudo bem — tentou ele.— Sirvo de guia e pago as entradas dos museus ou passeios que você quiser visitar.
Martina ficou admirada pela generosidade dele. Pagaria tudo isso pela companhia dela? Mas nem se conheciam! Pensando melhor, escolheria seu prêmio. Fez rápidos cálculos mentais sobre o valor que ele estava falando.
— Obrigada, mas não — negou. — Se eu perder, você me leva para um encontro. Mas se eu ganhar, você me deve 200 euros. É o que você gastaria custeando minhas entradas de qualquer jeito.
Foi a vez dele olhá-la admirado.
— Vou aumentar minha aposta — disse ele, expondo sua contraproposta: — Se você ganhar, leva 500 euros meus.
Todos na mesa e na pequena plateia olhavam de um para o outro sentindo a tensão que existia ali. Gritos de incentivo começaram a aparecer, e todos na mesa se levantaram, deixando apenas os dois.
Tina arregalou os olhos. Estavam falando de pelo menos um terço do salário dele!
— Não posso aceitar — recusou prontamente. Era errado e muito dinheiro.
— Pode. Porque se eu ganhar, vou levar você para dois encontros.
— Você está superestimando a minha companhia — riu ela.
Estava ficando nervosa com a agitação das pessoas ao redor, que pareciam extremamente empolgadas com o acontecimento. Estava mais nervosa ainda com a aposta que ele estava criando. Mas tudo bem, ganharia e levaria 500 euros dele.
— Aposta aceita — disse, estendendo a mão para apertar a dele e selar a aposta.
Mas ele pegou sua mão e levou para um beijo. Martina não pôde deixar de rir do gesto.
— Serão os melhores encontros da sua vida — avisou ele, arrogante.
— Serão os melhores 500 euros da minha vida — corrigiu ela.
Estava confiante que aumentaria sua poupança para a faculdade.
— Dê as cartas, Carlos — pediu Martina, ajeitando-se na cadeira e esfregando as mãos em antecipação. — Tenho um jogo para ganhar e agora é pessoal.
* trinca no poker: acontece quando o jogador possui três cartas do mesmo valor, e duas outras cartas não relacionadas. Exemplo: 8♠️, 8♣ e 8♥️, além de duas cartas aleatórias.
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