Seoulmate, parte um
Tento me convencer de que nada mais pode dar errado ao repetir para mim mesma que me sentiria muito pior se não tivesse saído do hotel para cumprir toda a lista de desejos de Gabriela. Isso acaba por ser o combustível para me manter caminhando sozinha, quase sem me abalar, por entre uma multidão de pessoas que não falam a mesma língua que eu e que não parecem nada propensas a ajudar uma turista perdida.
A verdade é que, se a minha mãe realmente enxergasse o quanto ter vindo para cá é importante para mim depois de ter perdido a Gabi, ela jamais teria me dito coisas tão ruins só por causa do maldito cruzeiro no rio Han e eu não estaria nessa situação, sozinha e com medo. Não era como se a viagem estivesse sendo ruim ou merecesse acabar mais cedo porque eu enjoei no navio e vomitei no rio! É claro que eu também preferiria, por questão de praticidade, estar em algum outro lugar em que eu conseguisse reconhecer o que me dizem ou mesmo o que está escrito nas fachadas dos restaurantes e lojas, mas Seoul, a capital da Coreia do Sul, tem o seu charme. Não é à toa que o sonho da minha melhor amiga era poder me trazer para cá, a cidade de origem da sua família.
Só que a vida tem as suas reviravoltas inesperadas.
Há um ano, Gabriela e eu estávamos em São Genésio, cidade pequena do interior do estado de São Paulo, montando planos sobre a nova etapa de nossas vidas, que começaria com o final do ensino médio e o início da faculdade. Naquela época, nós duas estávamos convictas de que teríamos para sempre uma a outra. Gabi estudaria arquitetura e urbanismo, enquanto eu ingressaria no curso de ciência e tecnologia. Partindo disso, os nossos sonhos começaram a se realizar, tecnicamente, após o resultado do ENEM, mas Gabriela já não estava mais no mesmo plano que eu. Bastou um mero descuido de um motorista em uma via movimentada e então minha melhor amiga não estava mais no mundo, o que foi como perder uma parte de mim também.
Eu havia tido Gabriela ao meu lado em vários momentos da minha vida e, de uma hora para a outra, tinha que me conformar a andar só. Isso foi e ainda é difícil, pois tudo me lembra a Gabi. Livros, filmes, séries, música... As pessoas dizem que a saudade diminui com o tempo e que você aprende a conviver com ela, mas comigo não parece ser assim. A saudade criou raízes em meu coração e fez dele morada. A cada dia que passa eu desejo mais e mais voltar no tempo e tê-la comigo. Foi por isso que minha mãe resolveu intervir e me colocar na terapia com a minha psicóloga, a Cíntia. E foi por isso que ela aceitou, mesmo que a contragosto, que nós mudássemos a nossa rota de viagem da Londres de todas as férias anuais, onde meu pai mora, para Seoul.
Há dois meses atrás, eu criei coragem e fui visitar a mãe da Gabi. Já haviam se passado cerca de seis meses que eu evitava vê-los, desde o velório da minha amiga, mas cogitei a possibilidade em uma das sessões com Cíntia e minha psicóloga me encorajou. Com o corpo todo tremendo e lágrimas surgindo por antecipação em meus olhos, entrei na casa que sempre foi um segundo lar para mim e conversei com a tia Mirae, mãe da Gabi, apenas sobre momentos bons, mas que ainda nos fizeram chorar nos braços uma da outra.
Durante o encontro, após falar sobre ter sentido minha falta nos meses em que sumi, tia Mirae me falou que doaria algumas coisas da Gabriela e me pediu para dar uma olhada em seu quarto, para ver se havia algo que eu gostaria de manter comigo.
"Pedi o mesmo ao Kai na última visita dele", ela citou um outro amigo de Gabriela, o qual estudava conosco, mas nunca foi particularmente próximo de mim, o que implica dizer que nós não nos falamos desde o ocorrido. "Ele ficou com uma pulseira. Aquela que a Gabi sempre usava".
"Entendi", murmurei, sabendo muito bem que pulseira era aquela, porque eu usava uma igual. Uma pulseira idiota dos desejos.
"E então? Você vai dar uma olhada?", tia Mirae questionou, enfatizando o seu sotaque diferenciado.
Para ser sincera, eu não me sentia pronta para entrar em um lugar com tantas lembranças de Gabriela, mas também sentia que acabaria me arrependendo se não ficasse com algo para recordar dela. Por isso, assenti para a tia Mirae e depois segui rumo à terceira porta do corredor do andar superior, a qual estava entreaberta.
Já no quarto, remexendo em uma das caixas de papelão espalhadas pelo tapete, encontrei o diário da minha melhor amiga com várias páginas dedicadas a seu sonho de viajar comigo para Seoul e me apresentar a sua segunda cultura.
Gabi era descendente de coreanos. Os avós maternos dela migraram para o Brasil quando a tia Mirae tinha nove anos. Os avós não se acostumaram por completo com o país, então voltaram para a Coreia do Sul após vinte anos e desde então Gabi os visitava com a mãe de vez em quando e sempre voltava para São Genésio com muitas histórias para contar.
Antes de morrer, ela planejava viajar para lá de novo, mas comigo. Era sobre isso que escrevia no diário, mantendo-o como um guia dos lugares por onde nós deveríamos passar juntas, e as coisas que ela deveria me fazer experimentar.
Ler as páginas do roteiro de viagem foi doloroso, como tudo ligado a Gabi depois que ela se foi. Chorei durante um bom tempo agarrada ao caderno e só parei quando tia Mirae apareceu e tentou me consolar, mesmo estando tão ou mais destruída do que eu.
Quando nós nos despedimos naquele dia, saí de sua casa com a jaqueta favorita de Gabriela e o caderno repleto de seus últimos planos. Ainda não sabia muito bem o que faria com a segunda peça. Disse a mim mesma que ambos os itens eram somente lembranças, mas li e reli as páginas do caderno até a vontade de fazer a viagem se impregnar em mim, e então, aos poucos, dei início ao complexo plano de tentar convencer minha mãe a mudar a rota de nossa viagem anual de férias.
Não foi fácil.
Dona Cláudia fez de tudo para tentar me fazer mudar de ideia, mas permaneci convicta e acabei ganhando após jogar sujo e lhe informar que os melhores produtos de beleza do mundo estão na Coreia do Sul. Depois disso, ela topou. Ficamos dois meses organizando a viagem e pousamos no país que eu só conhecia dos relatos de Gabi há três dias, junto com um grupo de turistas brasileiros do estado de São Paulo e guiadas por André Kim, um brasileiro com ascendência coreana e guia turístico responsável pelo grupo.
Mamãe e eu havíamos comprado o pacote de viagem de quatro dias, o qual contemplava todos os tópicos de lugares que Gabriela queria me levar e havia escrito em seu diário. Em contrapartida, ele não nos deixava com muito tempo livre para experimentar fazer compras ou comer em lugares populares, como minha mãe fez questão de reclamar após nossa chegada na segunda-feira à noite. Naquele dia, ela já estava em um baita mau-humor, o qual só foi piorando.
Com o guia turístico e os outros membros do nosso grupo de brasileiros em Seoul, no primeiro dia fomos em um passeio pelo complexo de palácios Ch'angdokkgung (cuja pronúncia é algo como Tchen-Dok-Gon, de acordo com André) em um ônibus de dois andares, daqueles cujo segundo andar não tem cobertura. O "Palácio grandemente abençoado pelos céus" (como André informou significar o nome) era magnífico e enorme, com uma arquitetura bem diferente da ocidental. Cheio de alas e pátios, André informou que chegou a ser usado como local de gravações de filmes e novelas.
"Imagino que devia dar um trabalhão para percorrer tanto chão para ir de uma ala a outra", foi o comentário mais relevante que a minha mãe fez após o tour, porque todos os outros eram sobre como ela havia odiado o ônibus por ter bagunçado o seu cabelo.
No dia seguinte, o mais tranquilo, nós fomos de ônibus em um passeio pelos principais monumentos e templos, como a estátua do admiral Yi Sun-Shin na praça Gwanghwamun Square; além do observatório Seoul Sky, onde tirei diversas fotos com minha polaroid e as colei com adesivos nas páginas em branco do diário de Gabi. Infelizmente, no terceiro e último dia de nossas atividades turísticas antes de nos prepararmos para voltar ao Brasil na tarde seguinte - também conhecido como dia de hoje - tudo deu errado.
Ironicamente, a manhã começou bem. Mamãe parecia ter gostado do passeio de ontem, apesar das suas constantes reclamações, então pensei que nada poderia dar errado quando tudo o que faríamos seria visitar a ponte do rio Han e depois seguiríamos em um cruzeiro pelo rio. Só que eu fui ingênua. Não contava com a possibilidade de enjoar no navio e tampouco de cometer o vexame de vomitar na água, o que, obviamente, acabou com o restante do humor da minha mãe, deixando-a brava, e a fez decretar que nosso passeio havia acabado. Ainda faltava um lugar para visitar no pacote turístico e na lista de Gabriela, mas dona Cláudia nem quis ouvir. Enquanto o resto do grupo seguiu para a torre Namsan, próximo ao badalado bairro de Itaewon, fiquei trancada no hotel contra minha vontade.
"Eu entendo que tenha vindo para cá por causa da Gabriela, Malu, mas você precisa admitir que Londres teria sido muito melhor. Já faz meses que você não vê o seu pai", Cláudia tentou me convencer já à noite, enquanto se aprontava para ir ao restaurante do hotel encontrar os demais membros do grupo de turistas para o jantar.
"Será que entende mesmo?", eu retruquei, amarga. "A senhora detestou a ideia de vir desde o início e sequer deu a chance de aproveitar o lugar. Ficou esperando qualquer motivo bobo para reclamar o tempo todo".
"Maria Luísa!".
"O quê?!", eu rebati, quase a desafiando a negar. "A senhora sabe que é verdade".
"Não fale como se eu estivesse sendo egoísta. Eu vim até aqui, não vim? Mesmo não querendo".
"Porque a senhora não entende!", afirmei. "Não tem nem ideia do quanto tudo ficou bagunçado desde que a Gabriela se foi. Ela era como uma bússola para mim, sempre me indicando a direção certa, mas agora que essa bússola quebrou eu não reconheço mais o norte. Todos me dizem para apenas seguir em frente, mas como posso fazer isso? Ela era parte de mim. Minha irmã. Minha alma-gêmea. Mas tudo o que sobrou dela foram as lembranças e as palavras escritas neste caderno, as quais me deram uma direção pela última vez, mas o caminho está sendo uma droga por sua causa", à essa altura, eu já havia perdido as estribeiras e lágrimas escorriam por meu rosto enquanto eu cerrava os punhos.
Mamãe ficou sem palavras. Dava para notar o seu óbvio atordoamento e o fato de que ela não sabia o que fazer comigo, mas eu não disse nada até me acalmar e Cláudia também não.
"A gente conversa quando nem uma de nós duas estiver com a cabeça quente", foi o que ela falou após o meu choro ser contido.
Depois disso, mamãe saiu do quarto que compartilhamos no hotel e me deixou sozinha. Entretanto, ao invés de refletir sobre as minhas palavras e me preparar para a conversa que teríamos quando ela voltasse, coloquei a jaqueta que peguei das coisas de Gabriela e peguei uma bolsa em que pus minha polaroid, meu celular, documentos e três notas de 50000 Wones (que a moça do banco garantiu ser a nota de maior valor na moeda coreana quando fomos trocar nosso dinheiro antes da viagem, mas não me lembro quanto exatamente cada nota vale em conversão com o real), além do diário de Gabriela como guia para me levar até a torre Namsan e cumprir todos os tópicos da viagem.
Um lado meu, o cauteloso, ficou o tempo todo me mandando abandonar a ideia, mas não lhe dei ouvidos. Saí do meu quarto, peguei o elevador até o térreo e pedi em inglês na recepção que me chamassem um táxi. Depois disso, esperei pelo veículo na entrada movimentada e disse apenas uma palavra para o motorista quando entrei:
"Itaewon".
Felizmente, ele entendeu. Ou acho que ele entendeu. O táxi seguiu por algumas ruas e então o motorista me fez perguntas das quais não entendi nada com nada, mas que tenho quase certeza de que devia ser algo sobre a rota. Venhamos e convenhamos que Itaewon foi uma direção bem vaga, agora que paro para pensar. Devia ter dito logo a Namsan Tower e talvez isso significasse já ter subido a torre e estar voltando para o hotel agora, não ficar perdida no meio da rua. Porém, fiquei nervosa e não soube me comunicar. Resultado: o taxista parou em uma rua extremamente movimentada e praticamente me enxotou para fora do táxi após eu ter lhe dado uma das notas de 50000 Wones.
Agora, estou perdida.
Na droga de uma cidade 99,9% desconhecida e onde, pelo menos, metade das pessoas ao meu redor não fala inglês (e muito menos português) e a outra metade (formada por possíveis coreanos bilíngues e estrangeiros como eu) não parece nada propensa a me ajudar, andando em bando ou sozinhos, mas de caras fechadas ou embriagadas. Em parte (a maior dela), admito que a culpa é minha, que não me sinto nada propensa a arriscar falar com nenhum deles e agarro minha bolsa como se ela fosse a minha única garantia de concluir esta noite viva, o que provavelmente é verdade.
De acordo com o Google, porque Gabi só veio à Itaewon uma única vez nas suas viagens de visita aos avós e não escreveu quase nada a respeito do bairro em seu diário, Itaewon é o lugar favorito dos estrangeiros em Seoul, contando com vários restaurantes, bares e casas noturnas similares aos de países ocidentais. Certamente, não é o tipo de lugar no qual você espera encontrar pessoas solícitas a ajudar. Certamente. Todos ao meu redor parecem se divertir ou estar apenas de passagem. Todos destoam completamente de mim, a garota olhando ao redor como quem se sente encurralada e busca uma saída.
Tecnicamente, a torre de Namsan não fica neste bairro, mas uma das maneiras de chegar lá é passando por aqui e dá para ver a estrutura ao longe, iluminada com luzes verde e cor-de-rosa. Eu não tenho a menor ideia se basta seguir em frente e vou conseguir chegar lá, porque, quanto mais caminho, mais longe a torre parece estar e a sensação de derrota começa a me tomar conforme meu corpo vai cansando de se manter em movimento.
A quem eu quero enganar?
Estou ferrada e a percepção disso é grande, certeira e fatal.
Em um momento estou caminhando apressada e no outro estou parada e os transeuntes me engolem enquanto respirar se torna uma tarefa difícil. Que belo momento para se ter uma crise de pânico, é o meu pensamento amargo enquanto minha garganta parece fechar mais e mais e me curvo em busca de ar, minha visão se tornando um borrão pincelado de pontos pretos. Mas que droga, Malu. Que droga!
Se ainda estivesse no meu estado de um minuto antes, teria ouvido o grito e me esquivado a tempo. Se não tivesse me deixado abalar pelos meus pensamentos automáticos e buscado por uma resposta diferente para o problema, como Cíntia costuma me instruir nas nossas sessões de terapia, o desastre não teria acontecido. A bicicleta não teria atingido meu braço e eu não teria soltado a bolsa. No entanto, é isso o que acontece.
Enquanto congelo na rua, um sujeito que, definitivamente, não deveria ter permissão para guiar sequer um velocípede ou um carrinho de supermercado, surge em alta velocidade numa bicicleta, gritando para todo mundo abrir caminho. Aqueles dotados de controle sobre o próprio corpo se afastam conforme ele passa, mas não é o meu caso e ele não consegue frear a tempo. Por isso, no instante seguinte estou no chão e meus sentidos amortecidos ganham vida de uma única vez. Há muita gente ao meu redor, olhando-me de cima e falando uns com os outros em muitas línguas diferentes.
Um deles se dirige a mim, mas é em coreano e não entendo o que ele diz, o que deve ficar evidente pela minha expressão. Por isso, um homem me pergunta se estou bem em inglês. Ele deve ter a idade do meu pai e tem um perfil europeu que o denuncia como estrangeiro como eu.
Abro a boca para responder que sim, pois não sinto nada demais, além de confusão, mas somos interrompidos por um terremoto.
Ou a personificação de um terremoto.
"Ya!", um sujeito grita, chamando toda a atenção para si e fazendo meu coração disparar pelo susto. Ele fala algo em coreano em seguida, o que, aos meus ouvidos, soa como Xugulê. E, como não o respondo, dispara feito metralhadora a falar mil e uma coisas que sequer consigo distinguir.
Por isso, quando ele termina, visivelmente cansado de tanto falar e respirando como quem fez muito esforço, tudo o que falo é:
"O quê?".
E ele me olha com uma indignação que se transforma em ainda mais raiva e o faz respirar fundo, talvez para se controlar, e soltar uma risada para lá de caricata de vilão da Disney.
"POR QUE VOCÊ NÃO ME DEU PASSAGEM?", ele questiona em inglês.
E agora que consigo entender o que diz, é como se sua voz tivesse ficado ainda mais alta. Mas também é quando consigo entender o que aconteceu e reconheço o culpado. Olho na direção da qual o sujeito veio e percebo a arma do crime, uma bicicleta, largada na calçada. Depois, olho para ele outra vez, o qual ainda se acha no direito de ficar com raiva de mim, e fico de pé, mesmo que tal movimento faça a dor que não sentia antes vir à superfície.
"Por que você não desviou, se me viu? Ou freou?", minha voz não soa tão potente quanto a dele, mas é suficiente para o sujeito voltar a rir, como se me achasse cômica por rebatê-lo.
"Eu gritei para as pessoas se afastarem", ele diz. "Você não parece ter qualquer problema auditivo, então por que não saiu?".
Sinto todo o meu medo e confusão sendo substituídos pela mais pura raiva enquanto encaro este indivíduo. O meu corpo todo está tenso; meu rosto quente e meus punhos cerrados. Que babaca, filho da...
"Sunbae!", salvo pelo gongo, um outro rapaz surge e olha do babaca para mim e depois para a bicicleta antes de se aproximar do babaca (que ele chamou de sambê, e eu me pergunto que tipo de nome é esse) para falar algo com ele.
Enquanto os dois trocam algumas palavras, é nesse momento que dou por falta da minha bolsa e o pânico volta a se apoderar de mim enquanto olho ao redor à procura dela. Aparentemente, por terem comprovado que eu estava bem, a pequena multidão se dispersou e tudo o que restou foram resquícios do desastre, os quais ficam ainda mais evidentes quando encontro todos os meus pertences espalhados em uma poça de água suja. A pancada da bicicleta simplesmente rasgou minha bolsa e agora o meu dinheiro está molhado, meu celular com a tela trincada e o diário de Gabi extremamente ensopado.
Recolho tudo o mais rápido que posso. Guardo o celular e as notas nos bolsos da minha jaqueta e confiro o diário de Gabriela, com todas as instruções sobre a torre de Namsan e todas as memórias dela e da minha viagem. As páginas estão coladas umas nas outras e tintas coloridas de canetas escorrem por elas, borrando as palavras e tornando tudo ilegível.
Diante disso, as lágrimas surgem sem que eu sequer me dê conta. E quando percebo o sujeito que causou tudo simplesmente arrastando sua bicicleta para longe, fico ainda mais enraivecida e vou atrás dele.
"Ei!".
Dessa vez, a minha voz soa tão potente quanto a dele anteriormente e é o sujeito quem se assusta. Ele para de andar e me olha por cima do ombro, seus olhos pequenos se arregalando enquanto me aproximo. Eu muito provavelmente pareço com uma maníaca, alguém prestes a cometer um crime de assassinato. Ou pelo menos é assim como me sinto e o que me faz deduzir um motivo para o amigo dele se colocar entre nós.
"Ei", diz o amigo. "Calma".
Com toda minha raiva, eu o ignoro. Foco no sujeito atrás dele.
"Sambê, não é?".
"Hã?", ele pergunta, aparentemente confuso por um momento, somente para depois rir. Muito.
"É esse o seu nome?", esclareço. "Sambê?".
"Não!", o babaca continua rindo, como se eu tivesse lhe contado uma piada e estivéssemos em um clima bom. "Sou Jacob", ele diz, para minha completa surpresa de quem achava que todo coreano tinha um nome diferente. "Ou Jisoo".
"Hã?", agora sou eu quem está confusa. "Jacob ou Jisoo?".
Ele dá de ombros.
"Por que quer saber o meu nome? Quer que eu te indenize? Porque, sinto informar, mas não tenho dinheiro para isso e você parece muito melhor do que a minha bicicleta".
Esse é o momento em que registro mais uma vez o quanto odeio o modo como esse sujeito age. E o modo como ele me olha, como se estivesse debochando de mim.
"Não preciso do seu dinheiro", retruco. "Mas você, Jacob ou Jisoo, me fez perder algo pelo qual gostava muito e quero alguma coisa em troca".
Eu devo parecer enraivecida o suficiente para ele me levar a sério de novo. O Jacob ou Jisoo se empertiga e melhora a postura para falar comigo, o que evidencia a sua altura. Ele é enorme. Ou enorme o suficiente para me tornar baixa com os meus 1,68m, o que é algo a se levar em conta.
"O que eu te fiz perder?".
"Isso!", ergo o diário ensopado, colocando-o bem na sua cara.
"Um caderno?", ele desdenha.
"Não importa. Foi um dano", retruco.
"Mas se não quer dinheiro, então quer... Um caderno novo?".
Informações para chegar até a torre de Namsan.
Mas como garantir que ele me dará informações confiáveis?
"Um guia".
"Guia?".
"Preciso chegar até a torre de Namsan hoje".
"É só pegar o metrô".
"Não. Eu quero que você me leve até lá".
"E por que eu faria isso? A gente nem se conhece".
"Você me atropelou!", recordo-o.
"Mas você está bem", ele aponta para mim de cima para baixo, como que para evidenciar isso. "E eu tenho coisas mais importantes para fazer do que subir até a torre de Namsan só porque você não desviou da minha bicicleta".
"Como o quê?".
"Trabalhar".
"Até que horas?".
"Não importa. Eu não vou te levar até a torre", ele bate no ombro do seu amigo, em silêncio até então, e faz menção de ir embora de novo.
Por isso, ignorando o quanto meu corpo inteiro dói por cada movimento, apresso-me a me colocar na frente dos dois para impedir que eles continuem.
"Aish...", o Jacob ou Jisoo resmunga, revirando os olhos com impaciência.
"Eu preciso chegar até aquela torre", coloco em minhas palavras cada gota do desespero que sinto. "Minha única forma de chegar lá estava escrita nesse caderno, mas tudo foi perdido porque você me atropelou".
"Já disse. É só pegar o metrô".
"Ou um táxi", o amigo dele arrisca dizer, com um inglês carregado de sotaque.
Os dois não parecem nada propensos a ceder. E por mais que uma vozinha na minha cabeça me diga que, talvez, tudo se resolva se eu só fizer como eles dizem e que é extremamente insensato querer um desconhecido (que até me atropelou!) como guia, não cedo a nenhum dos dois e nem à vozinha. Recorro ao meu último recurso e começo a chorar.
"Ei", o Jacob ou Jisoo fala quando percebe minhas lágrimas. Sua expressão muda completamente de séria para desesperada. "Ei, o que você... Você... Aish. Por que quer tanto ir até à torre?".
Teatralmente, seco minhas lágrimas, que, apesar de tudo, são verdadeiras.
"Você vai me levar até lá?".
"Eu não disse isso".
Sua resposta me faz chorar ainda mais e mais alto, o que aumenta a sua angústia.
"Pelo amor de Deus!", ele exclama. "Pare com isso. Está chamando atenção".
Ignoro-o e deixo o choro ainda mais teatral.
"Mas que porra. Está bem! Está bem, ouviu? Eu te levo até a torre!".
De súbito, fico séria.
"Não pode voltar atrás com isso", aviso.
Ele balança a cabeça em negação, descrente. Parece estar com raiva de novo.
"Você...", ele para, respira fundo e me olha com intensidade antes de continuar: "eu posso ao menos saber o seu nome?".
"Maria Luísa", sua expressão confusa é semelhante a que eu devo fazer ao ouvir os nomes coreanos. "Mas pode me chamar de Malu".
"Malu?", ele arrisca, e eu assinto.
"Você é Jacob ou Jisoo?".
Ele revira os olhos ante a minha pergunta.
"Chame do que quiser", diz.
E então passa por mim com sua bicicleta e começa a andar outra vez. O seu amigo o segue, mas fico parada sem entender, o que faz Jacob ou Jisoo olhar por cima do ombro de novo e me fitar:
"Você não vem?".
"Mas a torre é para lá", aponto para a direção atrás de mim com o polegar.
"Não vou te levar lá agora", ele retruca. "Disse que tenho que trabalhar, esqueceu? Se não quiser esperar, é só ir procurar outro azarado para guia-la", ele soa quase esperançoso ao falar isso.
"Eu posso esperar", retruco.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top