Romance na Transilvânia, parte dois


Quando acordei na manhã seguinte, meus óculos estavam tortos no rosto e a minha cabeça estava a um centímetro de tombar para fora da poltrona. Devagar, me endireitei, tentando lembrar de onde estava.

Demorou alguns segundos para que as lembranças da outra noite me invadissem, mas assim que me recordei tudo, levantei tão depressa que minha visão escureceu.

Olhei para os lados, mas não havia sinal de Eric ou do gato. Notei o livro que eu tinha começado a ler pousado na mesinha entre as duas poltronas, ao lado do volume gigante de Os Miseráveis.

Santo Deus! Não conseguia acreditar que tinha adormecido ao lado de um cara que não conhecia... Se minha mãe soubesse disso, nunca mais me deixaria sair sozinha na vida! Para ela, minha maioridade não representava lá muita coisa.

Fui tropeçando para fora da saleta, sonolenta e confusa. Precisava chegar até meu quarto e... dormir mais? Eu podia estar errada, mas tinha a impressão de que ainda era bem cedo. A escuridão daquela casa coberta por cortinas pesadas bagunçava meu relógio interno.

Eu estava fechando a porta da sala de livros – o mais devagar possível, com medo de que ela soltasse um rangido que acordasse a casa toda – quando uma voz disse atrás de mim:

"Já de pé?"

Saltei no lugar, quase batendo com a testa na porta. Virei com a velocidade de um raio, prestes a soltar uma longa lista de palavrões. Tampei a boca com as mãos a tempo de me impedir daquela barbaridade ao ver Eric parado perto de mim. Seus olhos me encaravam com divertimento e, em minha opinião, ele parecia estar tentando não sorrir.

"Você gosta de assustar pessoas?!", sibilei, sem me importar de ser educada. Na noite anterior, aquele cara quase tinha me feito sofrer um ataque. Se eu saísse viva daquela casa, estaria no lucro.

"Não regularmente", Eric disse com toda tranquilidade do mundo. "Mas estou gostando de assustar você. É engraçado."

"Também foi engraçado quando eu quase te acertei ontem com um castiçal?"

"Foi", ele respondeu seu hesitar. "Mas isso só porque você não conseguiu me acertar com o castiçal."

Eu abri um meio sorriso para ele.

"Ainda não é tarde demais para reverter o erro."

"Vou me lembrar de ficar longe de você."

Eu balancei a cabeça, mas não consegui ficar brava com ele. Para ser sincera, devia ser mesmo engraçado me assustar. Sempre fui escandalosa.

"Você acabou adormecendo na poltrona", Eric disse então, voltando minha atenção para o meu outro deslize da noite passada. "Não quis acordá-la. Espero que não esteja dolorida. Pela posição em que estava, tive a impressão que acordaria com um torcicolo."

Fiz uma careta. Já era ruim o bastante ser vista dormindo toda torta e bagunçada naturalmente. Mas ser vista por um cara como ele conseguia ser mil vezes pior.

"Ah, isso não aconteceu. A poltrona é confortável. De todo jeito, estava tão cansada da viagem que duvido muito que algo assim atrapalharia meu sono."

"Ainda são só cinco e meia. Seu quarto fica logo ali, se quiser dormir mais um pouco."

Eu olhei para ele, me sentindo subitamente intrigada quando ouvi o horário.

"Desculpe a intromissão, mas como você consegue? Quer dizer, esteve acordado a madrugada inteira e já está de pé? Eu queria ter a sua disposição."

"Bom, a insônia e minha mania de fazer caminhadas matinais são as grandes culpadas. Se pudesse, transferiria os dois hábitos para você."

"Ah, eu estou bem, obrigada."

Coloquei as mãos nos bolsos do meu robe. Eu precisava ir para o quarto, descansar, mas de repente tinha me sentido muito desperta. Talvez o susto de Eric fosse o grande responsável por aquilo.

"Deve ser bom", comentei casualmente, fazendo círculos imaginários no tapete com a ponta do pé. "Caminhar por essa cidadezinha enquanto o sol nasce. Pelo que vi ontem à noite, a rua principal é linda."

"É o nosso cartão postal, junto com o letreiro e a fortaleza na colina."

"Foi o que eu vi na Internet."

Eric ficou em silêncio e eu não disse mais nada. Estava prestes a dar o fora quando ele perguntou:

"Quer vir comigo?"

Ergui os olhos para encará-lo.

"Oi?"

"Perguntei se quer vir comigo."

"Você... não se importo em ter companhia?"

"Depende." Ele trocou o peso do corpo de uma perna para outra, a mão firme na bengala. "Você é o tipo de turista tagarela?"

"Você é um cara mais chegado ao silêncio, né?" Fingi estar decepcionada. "Nesse caso, melhor eu ficar aqui. Não consigo controlar minha boca. Você ia acabar me abandonando no meio da cidade."

"Posso fazer um esforço por você. Minha tia vive dizendo que preciso ser mais sociável." Ele soltou um suspiro dramático. "Conversar com as pessoas é tão cansativo!"

"Você ainda não viu nada. Me dê um pouco de corda e eu prometo te traumatizar de um modo que vai correr da sociedade pelo resto da vida. Não saia daqui, ok? Vou estar pronta em um minuto!"

Corri pelo corredor até meu quarto e revirei minha mala à procura das minhas roupas. Tentei ficar pronta o mais depressa possível, porque não queria deixar Eric esperando. Até ele me chamar para ir com ele, eu nem tinha me dado conta de que queria sair dali. Mas a verdade é que estava doida para escapar daquela casa e ver Râşnov à luz do dia.

Dentro de mim, senti aquela empolgação familiar que sempre surgia quando eu estava prestes a conhecer lugares novos. O sentimento parecia ter sido elevado à décima potência agora que me encontrava do outro lado do mundo. O medo tinha ficado esquecido na noite. Agora que tudo estava claro, pensei em como tinha sido boba por temer tanto a Transilvânia.

Quando fiquei pronta, saí do quarto e voltei pelo caminho de onde tinha vindo. Eric não estava me esperando no mesmo ponto perto da sala de livros, mas foi só ir em direção ao primeiro andar que o encontrei parado na base das escadas. Ele estava massageando o joelho.

"Você desceu sozinho?", não consegui deixar de perguntar. A escadaria era longa e estreita. Não queria nem imaginar a dor que ele poderia estar sentindo devido ao esforço. Já tinha notado que sua perna esquerda era bastante debilitada.

"Não foi muito difícil", Eric respondeu quando cheguei mais perto. "Mas tento evitar a escada ao máximo. Meu quarto fica aqui embaixo. Se não fosse pela biblioteca, eu nem me daria ao trabalho de visitar o segundo andar."

Ele me guiou pelos cômodos escuros da casa até a sala de estar que eu tinha visto na noite anterior. Estava tudo no mais absoluto silêncio, e pensei que Pedro e a tal tia que eu ainda não conhecia estivessem dormindo.

"Você poderia trazer os livros para baixo", falei enquanto Eric destrancava a porta da frente. "Tenho certeza que encontraria um lugar para as estantes."

"Prefiro do jeito que está", ele disse sem olhar diretamente para mim. Os cachos escuros cobriam parte do seu rosto. "Assim posso provar a mim mesmo que não estou tão ruim que não possa enfrentar um lance de escadas."

Estreitei os olhos quando a luz da manhã me acertou em cheio no rosto. Eric me deu passagem para sair e eu respirei fundo o ar fresco. A casa era mesmo muito escura. O contraste com o lado de fora era gritante, mesmo àquela hora.

Eric desceu o pequeno lance de escadas que dava para a calçada com cuidado. Achei que ele estava tentando disfarçar, mas era bastante óbvio que sentia dor ao fazer aquele esforço a mais.

"Ou talvez", comentei, porque minha língua não parava quieta e eu sentia como se precisasse quebrar o gelo, "você só é teimoso como a maioria dos homens. Está em um embate consigo mesmo e quer vencer."

Eric, que andava devagar pela calçada ao meu lado, inclinou a cabeça para mim.

"Você costuma ser tão sincera assim com estranhos?"

"Desculpe se te ofendi."

"Não ofendeu, não." Ele voltou a olhar para frente, uma risada escapando de seus lábios. "Na verdade, acho que está certa. Sou teimoso. Minha tia e Pedro vivem brigando comigo por causa dos malditos degraus. Vai ver eu só quero mostrar para eles, e para mim mesmo, que não estou tão aleijado assim."

"Eric!" Quase parei no lugar ao ouvir aquilo. Olhei para ele. "Isso é uma coisa horrível de se dizer, sabia?"

Ele encolheu os ombros, seu queixo afundado na gola alta do sobretudo.

"Mas é a verdade." E com um sorrisinho que para mim foi quase triste, completou: "Fatos não podem ser mudados."

"Bom, você está errado", falei decidida, ajeitando meus óculos no rosto. "Tudo é uma questão de perspectiva, e acho que você está olhando pelo ângulo errado. Aleijado é uma palavra muito forte. Todas as vezes que a vi por aí, foi dita em tom de xingamento. Inclusive por você mesmo, ao que parece."

Eric continuou andando, o semblante não deixando escapar nada que eu pudesse captar.

"Você é uma garota peculiar, Angelina."

"É o que todos dizem."

E ali estava. Aquela risada peculiar dele.

Sorri, satisfeita comigo mesma. Sentia falta de fazer as pessoas rirem.

Minha vida toda trabalhei em comércios em São Genésio. Sempre adorei o contato com as pessoas, a conversa fora e o sentimento de ser útil para alguém. Tinha sido daquele jeito quando trabalhei na pequena pousada da cidade e fiz amizade com todos os hóspedes e funcionários, em especial Lorenzo, um garoto que sempre me fazia rir, adorava uma boa música e tinha se tornado uma das minhas amizades mais queridas. Fiquei bastante tempo em uma loja de roupas também, e gostava demais daquele emprego.

Acho que, na verdade, sempre gostei das pessoas. Claro que encontrava um ou outro ser desagradável por aí, mas isso nunca me tirou a alegria de lidar com o povo. Para ser sincera, a única coisa que tinha me feito perder a graça em todas as outras coisas que costumava amar, foi o que aconteceu com Fátima. Aquilo sim fez tudo parecer bobo e superficial. Até eu me enxergar como boba e superficial.

Naquele momento Eric dobrou uma esquina. Meus olhos se arregalaram no mesmo instante e a tristeza foi parcialmente esquecida. Olhei admirada para aquelas casas antigas e a igrejinha.

"É tão lindo!", exclamei. Corri na frente e fui andando de costas, até conseguir enxergar com clareza o letreiro de Râşnov e a fortaleza lá em cima. Fiquei meio tonta. Era ainda mais bonito do que eu tinha pensado à noite!

"Quero ir lá em cima", falei mais para mim mesma do que para Eric. "Deve ser incrível!"

"A fortaleza está sempre aberta à visitação. Você pode ir quando quiser", ele respondeu quando se aproximou de mim.

"Você já foi?"

"Umas três vezes, eu acho. Mas isso já faz muitos anos." Seu tom de desinteresse me surpreendeu. Era como se aquela maravilha histórica fosse só mais um ponto comum da cidade não muito digna de nota.

"Se eu vivesse aqui", falei, "olharia admirada para a fortaleza todos os dias, sem nunca cansar."

"Ah, você não ia se cansar. Só se tornaria algo comum. Imagino que é tipo como ter piscina em casa. Antes de ter uma, você pensa que vai nadar todos os dias, sem enjoar. Mas quando finalmente consegue a tal piscina, entra nela uma vez no ano e olhe lá."

Eu ergui uma sobrancelha para ele.

"Você tem piscina em casa?"

"Não. Mas tenho uma fortaleza bem pertinho, e posso dizer que não é nada impressionante para mim como deve ser para você."

Eu ri e balancei a cabeça.

"Seu sem graça."

"Só estou sendo sincero."

Eric começou a se afastar, mas eu não o segui de imediato. Estava olhando para a colina, para o letreiro e para aquela fortaleza que eu não via a hora de dar um google e pesquisar sua história. Era lindo, era medieval, era algo que...

"Você vem?" A voz de Eric me despertou dos devaneios e eu o segui abobada, sem conseguir parar de olhar por cima do ombro.

Fomos caminhando devagar e percebi que Eric me levava para longe do centro de Râşnov. Aos poucos as casas ficaram mais dispersas e a mata verde tomou conta de ambos os lados da rua. O sol já estava alto no céu, deixando tudo com cores vivas.

"O ar é tão fresco aqui", comentei, respirando fundo.

"Outro encanto da cidade", Eric disse. "Râşnov é muito pequena. Não sofremos com a poluição."

"Também é mais ou menos assim de onde eu vim."

De um lado da estradinha que pouco a pouco serpenteava em direção à colina, havia uma pedra grande e achatada. Eric caminhou até ela e se sentou, esticando a perna.

"Tenho que fazer algumas paradas às vezes", ele disse enquanto massageava o joelho.

"Tudo bem. Eu também não sou a pessoa mais atlética do mundo. Acredita que com essa subidinha já fiquei sem ar?"

Me sentei ao lado dele, colocando os pés em cima da pedra. Diante de mim, o monte parecia se estender até o infinito. Ao norte, tudo o que conseguia ver eram montanhas e mais montanhas. Os montes Cárpatos pareceram assustadores para mim durante a noite, mas agora, com o sol iluminando tudo, eram bonitos de se ver.

Olhei para Eric, que estava recuperando o fôlego ao meu lado.

"Então...", comecei, porque o silêncio me deixava um tanto nervosa, "você é brasileiro, né?"

Ele ergueu os olhos para mim, afastando os cachos do rosto.

"Você percebeu, foi?"

Eu revirei os olhos, mas não consegui me impedir de sorrir.

"Ah, por um momento eu até tive minhas dúvidas. Você não é tão caloroso e receptivo quanto o resto de nós."

Eric abriu um meio sorriso.

"Acho que mereci essa."

"Mereceu, sim."

Ele voltou a massagear a perna, o cabelo cobrindo os olhos.

"Minha mãe era brasileira. Ela conheceu meu pai durante um intercâmbio em Bucareste quando era jovem. Meu pai era metade romeno, metade estadunidense, mas nasceu e cresceu na Romênia. Quando eles se casaram, minha mãe veio para cá."

"Então você nunca morou no Brasil?"

"Não, mas costumava passar os verões por lá."

Me senti desconfortável ao perceber que ele havia se referido aos pais no passado, e pensei se ambos já tinham falecido. Era triste pensar naquilo, porque Eric era muito jovem. O que será que tinha acontecido?

"Mas e você?" O tom de voz de Eric mudou subitamente, ele se virou para mim e vi um nítido esforço de sua parte para parecer alegre. "O que a traz à longínqua Transilvânia?"

Eu poderia inventar uma resposta simples para aquela pergunta. Dizer que estava procurando alguém, ou que tinha vindo só para conhecer o lugar como todos os turistas. Não sei o que deu em mim, mas acho que a necessidade de contar a história maluca que tinha me colocado naquela situação acabou vencendo a minha sensatez e a vontade de ser discreta.

"Vim realizar o último desejo de alguém. Um desejo que eu não queria realizar, mas que sou moralmente obrigada a correr atrás."

Eric ergueu uma sobrancelha para mim, claramente intrigado. Expirei com força e escondi o rosto nas mãos. Foi como se de repente o peso de tudo caísse sobre mim outra vez.

"Você está falando da Fátima?", ele perguntou. Por um segundo me assustei e pensei se Eric a conhecia, mas então lembrei que havia mencionado Fátima na noite anterior, na biblioteca.

"É."

"E esse é um último desejo difícil de realizar?"

Tirei as mãos do rosto e olhei para ele, pensando na resposta.

"Para ser sincera, acho que a parte mais difícil foi chegar até aqui."

Eric me encarou de um jeito que me fez sentir que ele entendia o que eu queria dizer, embora nem eu mesma entendesse.

"Você já deve ter ouvido aquele ditado que diz que o mais difícil é começar", ele falou, apoiando-se na bengala e se pondo de pé de novo. "Mas agora que já começou, o resto é fácil. Além do mais, já que você teve todo o trabalho de cruzar o Atlântico até aqui, por que não aproveita a Romênia? Vai te distrair, isso eu garanto."

"Ah, viajar para tão longe sozinha nem tem tanta graça quanto eu pensei que teria", confessei baixinho. "Tantas coisas bonitas para se ver, mas sem ninguém para compartilhar as experiências legais... É meio triste."

Eric franziu as sobrancelhas e colocou a mão sobre o peito.

"Eu sou ninguém?"

Soltei uma risada.

"Pensei que você tivesse dito que não gostava de interagir com pessoas."

"E não gosto mesmo. Mas você invadiu minha casa na calada da noite, quase matou meu gato de susto e por pouco não rachou meu crânio com um castiçal. Dá para ter mais interação que isso?"

"Você está me fazendo sentir mal pelo que aconteceu."

"Já te perdoei por quase tudo. Menos pelo castiçal."

"E o chute?"

"Eu já tinha me esquecido disso. Obrigado por lembrar."

Balancei a cabeça para mim mesma, sorrindo. Não podia acreditar naquele cara.

"Melhor nós voltarmos", ele disse então. "Não te ofereci o café da manhã."

"Não quero abusar mais da sua hospitalidade e da sua família. Eu vou achar um hotel, ou uma pousada." Pensei em ter de pegar um ônibus para Brasov e encontrar o hotel onde mamãe tinha acidentalmente me hospedado. Ficar lá tornaria a tarefa de encontrar Sofia mais difícil, mas eu não tinha muita opção.

"Você pode ficar na minha casa, Angelina."

A voz de Eric me despertou dos pensamentos. A luz do sol estava tão forte agora que precisei semicerrar os olhos para enxergar seu rosto.

"Na sua casa?"

"É."

"Mas..."

"Você tem outro lugar para onde ir?"

"Mais ou menos."

"Essa foi uma resposta bem estranha, sabia?"

"Minha vida toda anda estranha ultimamente."

"Bom, pelo menos agora você tem onde ficar enquanto estiver em Râşnov."

Olhei desconfiada para ele.

"Você está sendo mais legal do que pensei que seria a julgar o que ouvi ao seu respeito."

"Prefere que eu seja grosso e sem educação? Por mim tudo bem. Ser gentil é cansativo."

"Estava só brincando."

"Não estava, não."

Ele me estendeu a mão e eu hesitei por um instante antes de segurá-la e deixar que ele me ajudasse a levantar. De repente, eu estava perto demais de Eric. Perto a ponto de conseguir sentir seu cheiro.

Ele foi o primeiro a se afastar, se desequilibrando um pouco pela rapidez com que fez aquilo. Eric deu as costas para mim e eu o segui, um tanto atordoada.

Então algo me ocorreu.

"Eu disse para você me chamar de Lina, lembra?"

"Angelina é melhor que Lina, não acha?"

"Não", respondi sem nem pensar.

Eu não precisava olhar para Eric naquele instante para saber que estava sorrindo.

"Bem, isso é uma pena, Angelina."

Quis pegar uma das pedrinhas soltas da estrada e jogar na cabeça dele, mas acho que não tínhamos chegado a esse nível de intimidade ainda.

Por um momento, me esqueci do quanto devia a Eric e pensei:

Que cara chato.

De volta a casa, encontramos Pedro esperando nos degraus da frente. Assim que nos viu, ele se levantou de um salto e veio até mim.

"Lina! Pensei que você tinha desaparecido!"

Seu rosto estava todo vermelho e ele olhava de mim para Eric, como se não entendesse muito bem o que estava acontecendo.

"Ah, eu não desaparecia sem tomar café da manhã", disse, tentando tranquilizá-lo. "Sem minha bolsa, eu não conseguiria ir muito longe de barriga vazia."

Eric riu e Pedro se virou para ele com uma expressão irritada.

"Bom, eu é que não pensaria que ela teria saído com você."

"Assim você me ofende, primo."

"Como se você se ofendesse fácil", Pedro disse, mas estava sorrindo. "Tudo bem. Acho que exagerei um pouco. Só fiquei com medo de perdermos nossa única hóspede em anos. A tia está muito animada para conhecê-la. Ninguém fica tão empolgado quando brasileiros aparecem quanto ela."

O garoto começou a subir as escadas e nós o seguimos. Outra vez, pensei em como a alegria e espontaneidade constante de Pedro não combinavam com aquela casa.

Nós tínhamos acabado de atravessar a soleira da porta quando uma voz exclamou:

"Vocês chegaram, que bom! É um prazer conhecê-la, Angelina!"

Ergui o rosto para quem eu supus ser a tia de Pedro e Eric, já abrindo meu melhor sorriso simpático. Mas a expressão ficou congelada no meu rosto assim que a vi, o sorriso lentamente se desfazendo.

Meu coração disparou e a lembrança da fotografia que tinha visto semanas antes no antigo álbum de retratos de Fátima surgiu na minha mente com nitidez.

A mulher diante de mim não era ninguém mais, ninguém menos, que Sofia Motta.

"Angelina? Você está bem?"

Senti uma mão no meu ombro e me sobressaltei, olhando para Pedro como se nunca o tivesse visto antes. Minhas mãos estavam suando e eu tentei enxugá-las na calça jeans.

Observei a mulher por mais um instante. Os cabelos pretos curtos, olhos castanhos e pele enrugada não me deixava ter dúvidas. Era ela a pessoa que eu tinha visto na foto, embora agora parecesse um pouco mais velha.

Sofia me olhava preocupada, obviamente sem entender minha reação ao vê-la. Umedeci os lábios e tentei me recompor e agir menos como se tivesse visto um fantasma. Parte de mim estava naquela sala de estar gótica, a outra estava no quarto do segundo andar, pensando sobre a carta dentro do envelope pardo.

"Angelina?", foi Eric a me chamar daquela vez.

"Estou bem", disse depressa, e precisei pigarrear para limpar a voz. "Só me senti tonta por um instante."

"Vou buscar uma água", a senhora disse de pronto, já caminhando em direção a uma porta lateral.

"Não! Eu estou bem. De verdade."

Sorri para ela e me aproximei, erguendo uma mão.

"Sou Lina. Obrigada por ter me recebido na sua casa. Aposto que ficou chocada quando Pedro disse que tinha aberto a porta para uma estranha."

A mulher apertou minha mão, o rosto todo se iluminando.

"Nós nunca recusaríamos ajuda para alguém que precisa, muito menos uma brasileira. Meu nome é Sofia."

"Prazer, Sofia."

Então era mesmo ela.

Bom Deus, como a vida é estranha...

"Já arrumei a mesa do café da manhã para nós", ela disse, erguendo os olhos para os sobrinhos. "Vamos, crianças, aposto que estão com fome."

Sofia me pegou pelo braço e disse coisas gentis enquanto dava tapinhas leves na minha mão. Ouvi o som pesado da bengala de Eric batendo no chão quando eles nos seguiram.

A cozinha da casa era tão grande quanto todo o resto, com uma mesa de seis lugares que tinha aquelas cadeiras de espaldar alto que vemos em romances históricos. Tudo tinha a mesma aura escura e sombria do restante da casa, mas vi alguns vasos de flores aqui e ali, o que tornava o ambiente mais alegre.

Mas meus olhos não deram muita atenção para o resto quando vi a quantidade de comida deposta na mesa.

"Nu am văzut niciodată un mic dejun ca acesta!"

Levei um susto ao ouvir as palavras desconhecidas. Virei para Eric, que encarava a mesa como se não acreditasse no que estava vendo.

"O que foi que ele disse?", sussurrei para Pedro. O garoto soltou uma risada e sussurrou de volta:

"Que nunca viu um café da manhã tão caprichado." E encarando o primo, disse: "Ei, Eric, nem todo mundo aqui entende romeno, sabia?"

Eric olhou para mim e fez uma pequena mesura com a cabeça.

"Desculpe, Angelina."

"Lina", corrigi.

Sofia me indicou um lugar à mesa e eu me sentei, sem saber o que pegava primeiro. Havia queijo, salame, presunto, azeitonas, omelete e frutas em uma travessa de vidro. Sofia estava me perguntando se eu preferia leite ou chá, já se inclinando para uma das jarras que estavam em cima da mesa.

"O café da manhã da Romênia é sempre assim?", perguntei depois de dizer que gostaria de um pouquinho de leite.

"Assim como? Calórico?", Pedro perguntou com um sorrisinho, esfregando as mãos uma na outra, como se estivesse se preparando para o ataque.

"Nós gostamos de estar bem alimentados de manhã", Eric falou, arrastando uma cadeira e se sentando de frente para mim. "Mas devo dizer que a tia Sofia caprichou hoje. Só porque você está aqui, é claro."

A mulher mais velha olhou feio para o sobrinho.

"Do jeito que você fala, mais parece que te deixo passar fome."

Eric estava ocupado demais comendo um pedaço de queijo para responder.

"E o que é isso?", perguntei fascinada, quando me deparei com um prato que nunca tinha visto antes.

"Slănină cu ceapă", Eric respondeu. "É carne de porco com cebola."

"E é uma delícia." Pedro se inclinou na direção do prato e cortou uma fatia generosa para si mesmo.

Decidi pegar um pouquinho de tudo. Não era do tipo que me empanturrava no café da manhã, mas aquela mesa bonita tinha me aberto o apetite.

"E de onde você é, Angelina?", Sofia perguntou de repente, enquanto se servia um pouco de chá.

Engoli o salame, apreensiva. Eu podia ter falado de cara que era de São Genésio, mas algo me travou. Era como se não pudesse mencionar a cidade enquanto Sofia e eu estivéssemos perto de outras pessoas. Quando eu fosse contar a ela a respeito de Fátima, queria que estivéssemos sozinhas.

"São Paulo", falei, sem me importar em ser vaga. "E a senhora? Eric me contou que nasceu na Romênia, mas enquanto a você e Pedro?"

"Somos de São Genésio, uma cidade do interior de São Paulo. Vim para a Romênia há sete anos. Dois anos atrás, meu sobrinho aqui decidiu me acompanhar."

"Sempre quis viver na Europa", Pedro falou. Ele estava ocupado demais enchendo o prato para olhar para mim. "Achava a coisa mais chique do mundo dizer que alguns parentes moravam aqui."

"Então Pedro apareceu uma manhã", Eric retomou a história. "Foi engraçado quando ele descobriu que na verdade a Romênia é um país um tanto quanto mediano se comparado ao resto dos nossos vizinhos."

"Ah, eu não fiquei tão decepcionado assim. Eu amo a Romênia. Esse lugar tem alma! Tem personalidade!"

"Você só fala isso por causa dos vampiros."

"Vampiros são legais."

"São mesmo, desde que estejam longe de mim", disse, tomando um gole do leite.

Sofia riu.

"Já visitou o castelo do conde Drácula?", ela perguntou.

"Não. E nem quero."

"Você não pode vir à Romênia e não visitar o Castelo de Bran!", Pedro protestou, como se aquilo fosse um ultraje. "É parada obrigatória. Não se preocupe, nós a levamos até lá."

"Eu não quero incomo..."

"Não é incômodo nenhum. Pode achar um espaço na sua agenda de turista. Eric dirigi."

Olhei para Eric, que apenas deu de ombros diante da sugestão.

"Quero ver a fortaleza primeiro", disse. "Amanhã, talvez."

"Eu te levo até lá", Eric falou, tranquilo.

"Tem certeza?", Sofia interveio. "Aquele lugar é cheio de pedras e elevações."

"Não tem problema, tia."

Mas, pela cara que Sofia fez, parecia ter problema sim.

Quando terminamos o café da manhã, ajudei Sofia a tirar a mesa. Ela me fazia perguntas sobre a minha vida e eu tentava responder tudo do melhor jeito possível. Ficamos sozinhas depois que os meninos foram se ocupar com outras coisas, mas assim que abri a boca para mencionar Fátima, travei.

Eu precisava contar a Sofia. Contar a ela que Fátima tinha falecido e que havia lhe deixado uma carta. Contar que ela era o motivo pelo qual eu estava ali. Mas não consegui. Simplesmente não consegui.

Acabei subindo para o meu quarto, dizendo que precisava desfazer as malas agora que Eric tinha dito que eu podia ficar. Arrumei tudo com cuidado e depois liguei para a minha família. Na noite anterior, eu só havia enviado uma mensagem curta avisando que tinha encontrado um lugar para passar a noite.

Depois disso, fiquei lá olhando para a bolsa onde tinha guardado as cartas de Fátima. Eu sabia o que precisava fazer, mas contar tudo a Sofia queria dizer que eu já havia cumprido minha missão e que podia ir embora antes da data marcada para o retorno. Ariana tinha insistido em comprar uma passagem de volta só para daqui três semanas, mas eu tinha certeza que conseguiria adiantar a viagem.

Depois que eu resolvesse aquilo, não tinha mais motivos para ficar na Romênia. Aliás, eu nem queria passar mais tempo naquele país. Precisava voltar para casa. Para a minha vida.

Mas, então, por que não conseguia fazer o que precisava fazer?

No outro dia, quase pulei da cama ao acordar.

Eric tinha me dito que iríamos pegar o ônibus que levava à fortaleza às nove da manhã. Meu sono estava todo desregulado e eu me sentia um pouco estranha pelo fuso horário, por isso, quando vi que já eram oito e meia, quase caí da cama.

No início de outubro, o tempo estava esfriando naquela região da Romênia, por isso tentei me agasalhar, imaginando que na fortaleza estaria ainda mais frio. Ao revirar minhas malas, notei que a maioria das minhas roupas eram marrons ou amarelas. Eu devia mesmo colocar mais um pouco de cor no meu armário...

Saí do quarto e mal tinha dado dois passos quando um miado conhecido me fez parar. Virei para encontrar Vlad me encarando com seus grandes olhos amarelos.

"Oi, gatinho", falei, sem me importar em perder um pouco de tempo ao me abaixar para ficar mais perto dele. "Ainda não gosta de mim?"

Para ser sincera, Vlad parecia um tanto quanto indiferente. Ele me rodeou e miou outra vez, se aproximando o suficiente para que eu pudesse acariciá-lo atrás das orelhas.

"Bom menino", sussurrei, satisfeita. "Sabe, um garoto lindo como você não deveria ter recebido o nome de um cara que empalava pessoas vivas."

Vlad miou.

Acho que ele gostava do seu nome.

Me ergui e fui andando pelo corredor, o gato me seguindo de perto. Estava quase chegando até as escadas que levavam ao primeiro andar quando algo me chamou atenção pelo canto do olho.

Era um quadro pequeno pendurado em um canto escuro da parede, entre duas pinturas enormes. Me aproximei e observei os rostos sorridentes que me encaravam da fotografia. O vidro estava empoeirado, por isso o limpei com a manga do casaco.

Havia um homem e uma mulher de cabelos escuros. Eles olhavam um para o outro, parecendo muito apaixonados. Entre eles estava um menininho de uns dez anos de idade, com cachos abundantes e um sorriso de covinha.

Sem sombra de dúvidas, o garotinho era Eric. E será que aqueles eram seus pais?

"Ele era uma gracinha, não era?"

A voz de Sofia me fez olhar para trás assustada. Ela tinha se aproximado sem que eu percebesse, os olhos fixos no retrato.

"Desculpe, não queria ter sido enxerida", falei depressa, corando até a raiz dos cabelos.

"A foto está aí para quem quiser ver. Não se preocupe, querida."

Sofia se aproximou um pouco mais. Em um gesto que para mim foi mais um reflexo, ela passou o dedo pelo rosto da mulher.

"Ana Lúcia", ela disse baixinho. "Minha sobrinha. Era a mulher mais gentil e engraçada que alguém poderia acontecer." Seus olhos se voltaram para o homem e ela soltou uma risadinha. "E David. Ele era todo sério e composto. Foi só passar tempo o suficiente com a Aninha para se extraviar. Os dois eram muito felizes."

"Eles faleceram há muito tempo?", arrisquei perguntar.

"Nove anos. Eric só tinha doze na época. Seus avós maternos e paternos já haviam morrido também. Minha irmã, a avó dele, partiu um ano antes da Ana Lúcia. Acho que foi melhor assim. Nenhuma mãe devia ter que enterrar um filho."

"É muito triste", falei, encarando aquele menininho sorridente na foto. Não conseguia nem imaginar pelo que ele tinha passado. "A senhora ficou com a guarda dele?"

Sofia assentiu.

"Os únicos parentes que Eric tem são o tio, irmão de sua mãe, a família dele e eu. Gabriel estava passando por muitos problemas financeiros e não tinha condições de criar o sobrinho. A família dele é muito grande, entende? Tem quatro filhos, contando com Pedro. Na época eram todos pequenos. Então fiquei com a guarda de Eric com todo prazer do mundo."

"A senhora não pensou em levá-lo para o Brasil?", perguntei.

"Esse era o plano inicial. Mas depois de viajar para a Romênia e conversar com Eric..." Sofia balançou a cabeça para si mesma. "Ele já tinha perdido tanto! Como poderia tirá-lo também da sua própria casa? Do seu país? Não era justo. Não podia fazer isso com ele. Além do mais, Eric estava passando por uma série de cirurgias e tratamentos na época. Levá-lo para o Brasil naquele momento era uma péssima ideia."

Olhei para Sofia. Acho que ela notou como eu estava curiosa, por isso explicou:

"Foi um incêndio que matou os pais dele. David era um dos homens mais ricos de Râşnov. Sua família possuía três grandes pousadas que recebiam turistas o ano inteiro. Um desses lugares era essa casa, onde a família também vivia." Sofia olhou para a foto outra vez. Seus olhos se perderam, como se ela visse algo além dos rostos sorridentes. "Naquela noite, eles estavam em uma das pousadas, um pouco para lá do centro da cidade. Era um jantar para comemorar a virada do ano e David tinha ido até lá com a família. Um dos aquecedores do primeiro andar teve um curto-circuito e o fogo se espalhou. Todo mundo estava no térreo por conta do jantar, mas Eric..." Ela engoliu em seco. Parecia não saber como continuar. Sem pensar, segurei sua mão na minha. Sofia me olhou, parecendo grata pelo apoio. "Eric estava lá em cima. Ele tinha ido brincar com outra criança pelos corredores quando o fogo começou.

"David e Ana Lúcia correram para buscá-los. A menina já estava perto das escadas, tossindo, mas nada de Eric. Os dois... eles nem pensaram. Avançaram na direção da fumaça e conseguiram encontrar o filho encurralado pelas chamas. Pelo que Eric contou depois, havia fogo para todo lado e eles só conseguiram correr até o banheiro mais próximo. A janela que dava para o telhado era estreita demais para os adultos, mas David passou o filho pela abertura. Ele e Ana Lúcia não conseguiram sair."

"E o que aconteceu depois?", perguntei, nervosa. "Os bombeiros chegaram a tempo de tirar Eric do telhado?"

Sofia fez que não com a cabeça.

"O fogo consumia tudo. Ele precisou pular."

"Meu Deus!"

"Eram quase quatro metros. Ele podia ter morrido, mas Deus o guardou." Sofia levou a mão a uma correntinha no pescoço com um pingente de cruz e começou a mexer nele distraída. "O modo como Eric caiu fez com que quebrasse os dois braços e a perna. Ele ficou no hospital por semanas, se recuperando aos poucos. As fraturas na perna foram muito sérias e apesar das cirurgias de correção, ele continua mancando."

Eu não sabia o que dizer. Aquilo era horrível. Eu não conseguia imaginar como alguém continuaria com a cabeça no lugar depois de ver os pais morrerem daquele jeito.

"Eu mantive o negócio das pousadas por um tempo", Sofia continuou, agora parecendo falar mais para si mesma do que para mim. "Mas quanto Eric fez dezoito anos, decidiu tirar essa casa do ramo. Ele também vendeu o lugar onde os pais morreram. Hoje ele administra só um dos hotéis originais, que não fica muito longe daqui."

Bom, eu entendia os motivos pelos quais ele tinha feito aquilo. Eu nunca mais passaria perto da tal pousada do incêndio. E, se sofresse um trauma como aquele, também não me sentiria à vontade de sempre ter que receber estranhos em casa.

"Por favor, não conte a Eric que eu te disse essas coisas", Sofia pediu, de repente dando às costas ao quadro, tentando se recompor. "Ele é muito reservado e eu... Bem, eu aproveito qualquer minuto que tenho para desabafar. Não é todo mundo que tem paciência para escutar uma velha falar de coisas tão tristes."

Eu abri um sorrisinho para ela.

"Não direi nada."

"Obrigada, querida." Ela apertou minha mão com carinho e aquele sentimento incômodo de que eu a estava enganando me invadiu. Droga, eu precisava dizer logo! Precisava contar sobre Fátima.

Respirei fundo e comecei.

"Sofia, eu..."

"Lina!"

Pedro se aproximava pelo corredor, vindo do primeiro andar.

"Eric está te esperando para irem até a fortaleza. Ele está no jardim dos fundos, mandou te chamar."

"Você não vai vir com a gente?", perguntei. No outro dia, quando Pedro e eu saímos para tomar um sorvete maravilhoso no centro da cidade, ele disse que queria ir até a fortaleza também.

"Ah, não vai dar. Tenho que me encontrar com a minha namorada."

"Namorada?" Sofia franziu as sobrancelhas. "Mas você..."

"Acho melhor você ir logo, Lina", Pedro insistiu, sem dar oportunidade para a tia terminar. "Eric odeia esperar."

"Tudo bem."

Me despedi deles com um sorriso e desci as escadas correndo, rezando para encontrar logo o tal jardim dos fundos. Vlad me acompanhou de perto e eu decidi pegá-lo no colo. Ele não reclamou. Ao invés disso, se aninhou ainda mais no meu peito.

"Seu fofinho!"

Eu tinha visto uma porta fechada na cozinha no dia anterior, fui até lá e a abri devagar, a brisa fresca da manhã atingindo meu rosto.

Era um lugar lindo aquele. Muito menos sombrio do que qualquer outra coisa que eu tinha visto na casa. As paredes de pedra do jardim estavam cobertas por hera, que serpenteava e cobria cada centímetro. Os canteiros eram cobertos por uma variedade impressionante de flores, e vi Eric revirando a terra onde havia rosas vermelhas.

"Oi", eu disse quando ele ergueu os olhos para mim, por um momento parecendo surpreso de me ver ali.

"Ah, oi." ele limpou as mãos em um pano ali por perto e se ergueu com cuidado. Vi que sua bengala estava apoiada na parede perto de mim. A peguei e entreguei a ele. "Obrigado."

"Então você gosta de flores?", não consegui deixar de perguntar. "Dessa eu não sabia."

"Flores são mais fáceis de relacionar do que pessoas", ele respondeu com um sorriso plácido.

"Ah, então é por isso que gosta delas!"

"Isso e..." Ele olhou ao redor. "Bem, elas são bonitas de se ver. Por mais que eu não seja o melhor jardineiro do mundo, até gosto desse lugar."

"Está brincando? São maravilhosas! Aposto que você precisou aprender um monte sobre botânica para conseguir fazer algo assim. Tem o quê? Umas oito espécies de flores aqui?"

"Dez."

"Uau!"

Eric riu e coçou a cabeça, parecendo desconcertado pela primeira vez.

Não consegui deixar de observá-lo. Agora que sabia mais sobre seu passado, era como se tivesse mais afinidade por ele. Eric sabia como era perder alguém, perder alguém que amava mais que tudo. Queria perguntar a ele se tinha se acostumado com a dor.

"Vejo que conquistou meu gato", ele disse, juntando os utensílios que tinha usado nos canteiros em uma malinha de metal. "Vlad não costuma ser tão mole assim. Estou decepcionado."

"Ele não resistiu ao meu charme."

"Estou vendo."

"E também é um bom menino. Não é, pretinho?"

"Pretinho?" Eric se virou para mim com a velocidade de um raio. "Não o chame assim."

"Vlad é um nome muito sombrio para um gatinho como ele."

"É um ótimo nome. Um nome forte."

"O nome de um cara masoquista e assassino do século XV", rebati. "É. Excelente."

"É melhor que Serafina."

"Não é nada."

Eric caminhou até a porta que dava para a cozinha quando terminou de guardar tudo. Eu o segui.

"Vamos fazer um trato", falei. "Você para de me chamar de Angelina e eu chamo seu gato pelo nome certo."

"Mas Angelina é seu nome."

"Ah, pelo amor de Deus, você nunca teve um apelido de que gostasse na vida?!"

Eric olhou por cima do ombro e sorriu para mim.

"Meu nome é curto. Não tem apelidos."

"Que tal Rick, ou Eri?"

"Tá bom, Lina", ele soltou, exasperado. "Feliz agora?"

Eu sorri.

"Muito feliz." Coloquei Vlad no chão e acariciei seu pelo macio. "E agora, nós vamos ver uma fortaleza, ou não?"

Eric e eu pegamos um trenzinho que subia a colina até a cidadela. Era uma quarta-feira de manhã e não havia muitas pessoas por ali, mas fiquei animada ao notar que os grupos que tinham decidido visitar a fortaleza pareciam quase tão animados quanto eu.

Cinco segundos. Foi esse o tempo que levou para eu fazer amizade com um grupo de três garotas britânicas que estavam fazendo uma viagem de um mês pela Romênia. Elas estavam tão empolgadas e eu estava tão empolgada que, quando percebi, nossas vozes soavam daquele jeito fininho e estridente que só garotas são capazes de entender.

Acho que conversei com todo mundo durante a viagem de trem, até com o guia, que foi muito gentil quando respondeu às minhas milhares de perguntas sem a gente nem ter chegado à fortaleza primeiro. Eu estava tão feliz com aquele passeio e o guia era tão legal que minha paranoia de sempre pensar que estava sendo inconveniente nem me incomodou.

Naquele momento, faltando só mais um pouco para chegarmos ao topo da colina, minha atenção se voltou para Eric, que desde que nós tínhamos entrado no trem havia se sentado no banco e mantido a expressão de alguém que era indiferente a tudo e a todos.

Antissocial.

Me joguei no banco ao lado dele. O trenzinho era aberto e podíamos ver todo o percurso percorrido até a fortaleza. Ambos os lados da estrada eram tomados por árvores grandes e mata densa.

"Você não parece muito animado", comentei o óbvio.

Eric olhou para mim e deu de ombros, ambas as mãos apoiadas na bengala.

"Só um pouco entediado."

"Como você pode estar entediado?!"

Ele deu de ombros. De novo.

"Já fiz esse percurso um monte de vezes."

"Ah..." Me remexi, subitamente desconfortável. "Sabe, você não precisava ter vindo comigo se não quisesse. Não quero incomodar."

Eric ergueu uma sobrancelha para mim e abriu um sorrisinho enviesado.

"Você acha mesmo que está incomodando? Lina, só de te ver pular, rir e conversar com estranhos como se fossem seus melhores amigos nessa subida, já fez a visita valer a pena. Mal vejo a hora de chegarmos à fortaleza e ver o que você vai aprontar."

Corei. Não consegui evitar.

"Vou aceitar isso como um elogio", disse. "Mas, de todo jeito, pela sua cara não é como se você estivesse se divertindo a me ver agir como uma fanática."

"Isso é porque eu escondo minhas emoções muito bem."

"Eu queria ter essa habilidade..."

"É mesmo? Então deixa eu te ensinar." Ele se endireitou no banco e virou o rosto para mim. "Primeiro, pare de sorrir."

Parei.

"Agora franza as sobrancelhas e olhe para o nada como se tudo fosse extremamente tedioso."

Tentei fazer aquilo, mas estava eufórica demais para mesmo parecer entediada.

"Tente com mais afinco."

Fiz o que ele pediu e fiquei lá com aquela cara de quem chupou limão.

Antes de perceber que tudo aquilo não passava de uma grande idiotice, Eric caiu na gargalhada.

Minha expressão se desmanchou e eu olhei para ele, irritada.

"Seu bobão."

Eric riu ainda mais.

"Isso era para ser um xingamento?"

"Ainda não me sinto íntima o suficiente de você para usar palavras menos lisonjeiras."

"Tá bom." Eric enxugou os olhos, que tinham começado a lacrimejar. "Mas, só para você saber, sua cara de indiferente ficou mais parecendo uma careta."

"Ah, fica quieto!"

"Desculpe."

Mas ele continuou rindo. Aquele idiota.

O trenzinho finalmente parou e eu desci dele em um salto. Estendi a mão para ajudar Eric a descer, já que o vão entre o chão e o piso de madeira era de alguns centímetros consideráveis. Ele não aceitou, ao invés disso se apoiou no encosto do banco da frente e desceu devagar.

A estrada que levava até o portão da fortaleza era ampla e pavimentada. Ela serpenteava colina acima e, de onde estávamos, podia ver que teríamos mais uma subidinha para percorrer antes de conseguir chegar até as muralhas internas e por fim à cidadela.

Saquei meu celular e comecei a tirar fotos como se não houvesse amanhã. A cada passo que Eric e eu dávamos, meu rolo de câmera se enchia mais e mais. Eu queria mesmo fazer um registro de tudo de interessante que via, mas aquilo também era uma desculpa para andar mais devagar e parar de vez em quando no meio do caminho. Sabia que a subida não estava sendo muito gentil com Eric.

Depois de comprarmos nossos tickets de entrada, iniciamos o caminho sinuoso até as muralhas internas. A fortaleza ficava bem no topo da colina. Nada acima dela. Nos lados sul, oeste e norte, a cidadela era protegida por escarpas enormes, impossíveis de se escalar. Agora que estava ali, conseguia entender o ponto estratégico de ter construído a fortaleza naquele local.

"Isso aqui foi construído no século XIII, sabia?", Eric disse de repente, me fazendo erguer a cabeça da tela do celular. Ele olhava para as muralhas adiante com uma espécie de reverência. "A cidadela já serviu de refúgio para tropas militares e príncipes, mas também para os aldeões que viviam por perto e precisavam se proteger dos diferentes tipos de invasores ao longo da história. A fortaleza só foi tomada uma vez, por volta dos anos 1600, por conta da falta de água. Depois disso, construíram um poço de mais de 100 metros de profundidade para resolver o problema do abastecimento no interior da cidadela. Tem até uma lenda sobre ele que diz..."

"Não, não quero ouvir sobre lenda nenhuma", o interrompi. Estava tão vidrada em suas palavras que quase não o impedi a tempo. "Se quiser continuar falando sobre fatos históricos, eu vou amar, mas não quero saber de lendas."

Eric sorriu.

"Mas é..."

"Tem alguma pessoa morta envolvida na tal história?", perguntei.

Eric coçou a nuca.

"Bem, sim. Mas..."

"Então não quero ouvir."

Ele voltou os olhos para as muralhas. Parecia estar fazendo força para não rir.

"Tudo bem."

Assim que tivemos acesso ao pátio interno, não me segurei. De repente tirar fotos pareceu uma enorme perda de tempo, e eu só queria andar por aí e ver cada detalhe da cidadela. O pátio era pavimentado por pedras um tanto quanto acidentadas, as dezenas de pequenas casas tinham portas e janelas de madeira e telhados de terracota. Enquanto a maioria delas tinha se convertido em lojinhas de suvenires, outras estavam parcialmente em ruínas. Olhei admirada para as torres de guarnição e os canteiros cobertos por pequenas flores vermelhas. Tudo era velho e lindo.

"O mirante é logo ali", Eric disse, apontando para um monte de pedras onde a bandeira da Romênia esvoaçava ao vento. "Dá para ter uma vista bonita de toda a paisagem ao redor."

Não perdi tempo, segui um grupo de outros turistas e observei as ruínas, me equilibrando no corrimão que havia sido posto ali para ajudar na subida. Antes de me afastar mais, me virei para Eric.

"Não quer vir?"

Ele balançou a cabeça.

"Se eu for, quem vai ser seu fotógrafo profissional?"

Eu ri.

"E quem disse que eu quero tirar uma foto no mirante?"

"Você vai querer quando chegar ali em cima. Sabe como é, atualizar o seu feed do Instagram."

Entreguei meu celular a ele. Não queria admitir que planejava mesmo postar algumas fotos do passeio mais tarde.

Subi até o mirante e fiquei fora do caminho enquanto um casal tirava várias selfies. Quando chegou minha vez, segurei com força a barra de ferro onde a bandeira estava hasteada e observei o mundo que se estendia ao meu redor.

Râşnov estava lá embaixo, com seus telhadinhos inclinados e charme de sempre. Avistei a torre da igrejinha e a rua principal. E, como se aquilo não fosse o bastante, os montes Cárpatos se agigantavam em toda a sua beleza nas outras direções.

Sério, aquele país brincava de ser bonito.

"Ei, Lina!"

Olhei para baixo. Eric estava com a câmera do celular apontada para mim.

"Sorria!"

Me segurei na barra e inclinei um pouco o corpo, abrindo o outro braço em um gesto amplo. Precisei fechar os olhos por conta dos raios de sol que batiam bem no meu rosto.

"Ficou boa?", perguntei a Eric.

Ele olhou para a tela do celular.

"Acho que sim."

"Você acha?"

Ele franziu as sobrancelhas.

"Bem, eu acho que você está... boa."

Eu teria zoado com a cara dele se não tivesse percebido, mesmo àquela distância, que ele havia corado. Desci do mirante e nem me dei o trabalho de ver a foto. Havia ainda muitas outras coisas a se explorar.

Eric e eu precisamos andar bastante para ver toda a cidadela. O lugar era grande e sinuoso, cheio de escadas e rampas que nos conduziam ao redor das casinhas de pedra. Não aguentei ficar sem entrar nas lojas, e acabei comprando umas lembrancinhas para levar para a minha família. Perto da praça central da cidadela, havia uma loja de artigos medievais, e eu praticamente arrastei Eric até lá.

Em um momento, quando ele estava ocupado observando algumas armas antigas em miniatura, peguei um capacete de cavaleiro e coloquei nele. Tampei a viseira assim que ele começou a soltar protestos abafados.

Gargalhei enquanto ele tentava tirar o capacete e tirei algumas fotos. A dona da loja, uma senhorinha muito simpática, riu tanto das tentativas fracassadas de Eric de tirar o capacete que quase escorregou do banquinho onde estava sentada.

Assim que Eric conseguiu se livrar daquela coisa eu saí correndo, rindo à toa enquanto ele tentava me perseguir.

Não lembro muito bem o que estávamos fazendo quando parecemos decidir em um acordo tácito que era hora de sentar um pouco. Nos jogamos em um banquinho da praça enquanto dividíamos uma garrafinha de água mineral, ofegantes.

Nós estávamos lá, atirados no banco vendo as pessoas passarem por nós pelos caminhos de pedra. O sol se escondeu parcialmente atrás de uma nuvem, nos abençoando com alguma sombra.

"Fazia muito tempo que eu não ficava tão cansado assim", ouvi Eric dizer ao meu lado. Nós dois respirávamos com dificuldade. "Nem me divertia assim."

Eu olhei para ele, que por sua vez não me encarava. Tinha apoiado a bengala no banco e estava massageando o joelho.

"Isso soou bem triste", disse baixinho. E, porque ele não respondeu de imediato, tomei coragem para dizer também: "Mas, sabe, eu estava pensando a mesma coisa."

Ele ergueu os olhos para mim. Encolhi os ombros e me abracei.

"Desde..." Respirei fundo antes de continuar. O nó na minha garganta me sufocava. "Desde a morte de Fátima, tudo ficou tão sem graça. Nada parecia capaz de me fazer rir como ri hoje. E o irônico é que, se não fosse pela morte dela, eu nem estaria aqui nesse momento."

Olhei para as flores do jardim, que balançavam ao vento. Aquilo me fez ter vontade de chorar. Sei lá por quê.

"Me fala sobre Fátima", Eric pediu de repente, também estava olhando para as flores. "Me conta como ela era."

Ao ouvir aquilo, sorri. Tinha começado a chorar sem perceber, por isso enxuguei as lágrimas do rosto.

"Fátima era a velhinha mais impossível da cidade. Provavelmente a velhinha mais impossível do mundo inteiro. Ela era sempre a pessoa a dar a última palavra. Era espirituosa, teimosa e divertida. Eu podia passar tardes inteiras só ouvindo-a contar sobre seus amores da juventude, as viagens que fez e as loucuras que aprontou. Mas nós também podíamos ficar em silêncio por muito tempo, sem nos incomodar. Lendo juntas, ou assistindo filmes dos anos 60 e 70. Em alguns momentos, ela pegava minha mão na dela e acariciava devagar. Nos últimos meses, vinha dizendo como eu era uma espécie de filha que ela nunca teve." Eu fechei os olhos, o rosto enrugado e sempre enérgico de Fátima surgindo por trás das minhas pálpebras com perfeição. "E ela significava ainda mais para mim. Era uma amiga de verdade. Alguém da minha família. Se eu pelo menos tivesse passado aquele último domingo com ela... Se não tivesse preferido customizar um jeans idiota..."

Senti a mão pesada e quente de Eric no meu ombro. Tentei enxugar meu rosto depressa. Não queria que ele me visse daquele jeito. Nem queria ter sido tão fraca a ponto de despejar todas aquelas coisas, para início de conversa.

"Lina?"

Não queria encará-lo, mas o fiz do mesmo jeito. Senhor, eu me sentia uma idiota!

Mas foi quando vi o pesar em seus olhos que o sentimento de vergonha foi embora. A dor em seu rosto era tão visível como eu suponha que a minha também devia ser. E era triste demais.

"Sinto muito pela sua perda", ele disse, e quando falou não foi como aquelas frases genéricas e prontas que ouvi de todo mundo da cidade no funeral de Fátima. Foi real. Ele sentia de verdade.

"Eu também sinto muito pela sua", falei sem pensar.

A surpresa resplandeceu nos olhos dele, mas foi só por um segundo.

"Pedro te contou? Ou foi a minha tia?"

"Eu acabei fazendo perguntas demais. Desculpa. Não devia ter..."

"Tudo bem", ele falou. "De verdade." Eric suspirou e tentou ajeitar os cachos escuros atrás da orelha quando o vento acertou seu rosto. "Dói como o inferno, não é? Perder as pessoas. Não poder fazer nada para reverter a situação."

"A gente alguma vez se acostuma com a dor?", perguntei, soltando a pergunta que queria ter feito desde o momento em que soube sobre sua família naquela manhã.

"Ela fica mais branda com o tempo. Às vezes volta com tudo quando algo, mesmo uma coisa muita pequena, te lembra do que perdeu. Acho que aprendi a conviver com ela, assim como a saudade. Já a culpa é mais difícil de lidar."

Eu franzi as sobrancelhas para ele.

"Culpa?"

"É. A culpa." Os olhos castanhos esverdeados de Eric eram poços profundos, cheios de mágoas antigas. "No seu caso, a culpa por não ter passado um último dia com Fátima. No meu, a culpa por estar no lugar errado, na hora errada."

"Eric..."

"Você deve ter ouvido essa parte também", ele disse, sem me dar espaço para falar. "Se eu estivesse no jantar junto com todo mundo, meus pais não precisariam ir me buscar. Mas eu nunca consegui parar quieto por mais de cinco minutos. Queria correr, brincar, explorar." Ele balançou a cabeça para si mesmo. "Não acabou bem. Nem para os meus pais, nem para mim."

"Eric, não foi culpa sua! Você não tinha como saber do risco de incêndio."

"Eu sei", ele falou. "Sei mesmo. Tenho consciência que nada que eu pudesse ter feito poderia alterar a ordem dos eventos. Mas são os 'e se' que nos atormentam. E se eu estivesse no jantar? E se tivesse conseguido chegar até as escadas antes das chamas me cercarem e me apavorar?"

"Nada disso importa", falei, e, embora custasse para me admitir, disse: "E também não importa aquele último domingo antes da morte de Fátima. O que vem antes é o que interessa, tudo que vivemos com as pessoas que amávamos antes que elas nos deixassem. Acho que se eu pensar demais no que poderia ter sido, isso vai me transformar para sempre. Vai me atormentar."

"Vai, mesmo", Eric disse, a intensidade em suas palavras fazendo meu coração bater forte. "Eu não gosto do que me tornei depois de tudo o que aconteceu."

Pensei naquela casa escura, sua expressão fechada e o que Sofia tinha me contado a respeito dos hotéis que ele possuía antes.

"Não é tarde demais para reverter isso, Eric", sussurrei. De repente o momento parecera importante demais até para falar alto. "Ou para aprender a lidar melhor com as coisas."

"O mesmo vale para você, então."

"É. Vale."

Me levantei do banco de súbito, como se uma corrente elétrica passasse pelo meu corpo naquele momento.

"Fátima me mandou até a Romênia por uma razão. E, agora que estou aqui, acho que há ainda mais motivos para não ir embora tão cedo. Nessa loucura toda, acabei parando na sua casa. E eu nem acredito que vou dizer uma coisa dessas, mas estou grata por isso."

Eric sorriu de lado, erguendo o rosto para me encarar.

"Quero explorar esse lugar, Eric, e quero ter mais dias felizes como esse, em que a dor por ter perdido Fátima não parece me empurrar para baixo a cada segundo. Eu ficaria muito grata se você fosse meu guia."

"Seu guia para um tour pela Transilvânia, ou seu guia para encontrar outra vez a felicidade?", ele perguntou, cheio de sarcasmo.

Eu sorri para ele, em forma de desafio.

"Talvez os dois. Isso se você me deixar tornar sua vida um pouco mais alegre também."

"Boa sorte com isso."

"Seu dramático."

Estendi a mão para ele, para ajudá-lo a se levantar.

Por um momento, achei que ele não aceitaria, mas daquela vez sua mão envolveu a minha e eu o puxei para cima. O aperto mais parecia um trato firmado entre nós naquele instante.

"Certo."

"Certo o quê?", perguntei, meio abobada pela proximidade dele.

"Certo, vamos tentar ser menos melancólicos juntos." Eric sorriu para mim. Um sorriso de tirar o fôlego. Já mencionei o quão bonito ele é? "Tenho uma ideia da próxima parada."

"É uma péssima ideia", falei alguns dias depois, quando Eric praticamente me arrastou até seu carro. "Uma péssima, odiosa e horripilante ideia."

O observei enquanto ele se colocava atrás do volante e ligava o carro. Da calçada, Sofia e Pedro acenaram para nós. Eric estava com um sorriso convencido no rosto. Odiava aquele sorriso.

"Não quero ir até o castelo do Drácula!", disse pelo que devia ser – pelas minhas contas – a trigésima sétima vez. "Há outros lugares muito melhores para visitar, Eric. Não quero conhecer um lugar onde pessoas foram torturadas até a morte."

"Isso foi há séculos, Angelina! Pode ter certeza que os espíritos de todos esses mortos já estão descansando em paz."

"E quem é que falou de espíritos?!"

Ele riu, uma risada que sacudiu seu peito e o fez dar um tapinha no volante.

"Você é mesmo muito medrosa."

Decidi não levar o comentário para o lado pessoal.

"Sabia que a primeira vez que te vi pela janela do meu quarto, pensei que era um espírito? Um espírito raivoso todo vestido de preto."

"Um espírito de bengala?"

"O que a bengala tem a ver com isso?"

"Bem, seria engraçado um espírito usando uma bengala."

"Na verdade, seria mais perigoso. Ele poderia te acertar na cabeça com ela."

"Jesus Cristo!"

Eric começou a rir de novo. Que bom que ele estava se divertindo. Enquanto ele ria, eu considerava a hipótese de me jogar para fora do carro em movimento e fugir daquele passeio tenebroso.

"Bran fica só a quinze minutos daqui", Eric disse quando passamos pela área periférica de Râşnov. "O castelo é parada obrigatória, sabia? Você não pode vir até a Romênia sem conhecer o lugar que inspirou Bram Stoker a escrever Drácula."

"Em primeiro lugar, nem é comprovado que ele se inspirou mesmo no castelo. Em segundo, eu posso sim. Não consta nada no meu código de conduta sobre visitar ou não lugares assombrados."

"Você vai gostar. Prometo." Ele olhou para mim, seus olhos calorosos de repente. Desde aquela ida até a fortaleza, Eric e eu tínhamos passado dias praticamente grudados um no outro. Ele estava tão animado para me mostrar a cidade e seus arredores que eu me deixei contagiar ainda mais por sua alegria. Naquela manhã, Sofia havia me arrastado para um canto e dito que nunca tinha visto o sobrinho daquele jeito. Tão... aberto, segundo ela. Aberto a conversar e rir. E o engraçado foi que, quando ela me disse aquilo, percebi que eu me sentia exatamente do mesmo jeito.

Meu tempo na Transilvânia voava. Estava aproveitando tanto tudo ali que mal tinha parado para falar com a minha família, o que deixou Ariana bastante irritada. Ela sempre queria relatórios completos e detalhados de cada dia que eu passava fora.

"Você já esteve no castelo muitas vezes?", perguntei a Eric enquanto ele acelerava pela estrada que ligava Râşnov à Bran.

"Algumas. Uma vez, quando devia ter uns dezesseis anos, eu e alguns colegas de escola fomos até lá à noite para filmar. Alexandru, um dos meus amigos, disse aos seguranças que queria postar o vídeo no seu canal do YouTube."

"E eles deixaram vocês entrarem?"

"Deixaram." Eric riu e balançou a cabeça para si mesmo. "Aquela noite foi maluca."

"Você não ficou com medo?"

"Não. Na verdade me diverti assustado Alex, que apesar de querer parecer durão, não conseguia filmar nada direito porque suas mãos não paravam de tremer."

"Pobre Alex... Eu me identifico tanto com ele." Ajeitei meus óculos no rosto e fiz a minha melhor cara de ameaça para Eric. "Se você me passar um susto que seja enquanto estivermos lá, chuto sua perna. Com força."

"Você não faria isso."

"Já fiz uma vez. Posso fazer de novo."

Eric tirou uma mão do volante e a ergueu em forma de rendição.

"Tudo bem, eu prometo." E alguns segundos depois o ouvi sussurrar baixinho para si mesmo: "Prometo tentar."

Deixei meu cabelo cobrir o rosto para que ele não me visse sorrir como uma idiota. Era tão estranho que pelo tempo que passara com Eric, ele devia ser considerado pouco mais que um estranho para mim. Mas não era assim que eu me sentia. Ele era legal e interessante. Eu sempre queria saber mais sobre ele, sem cansar. Com Eric não me sentia desconfortável, muito menos entediada.

Baixei o vidro do carro e deixei o vento bater no meu rosto. Uma música romena que eu não conhecia tocava na rádio, tinha um ritmo alegre que enchia meu coração de algo que me impulsionava adiante. Queria ser capaz de voar sobre os montes Cárpatos e ver além do que minha vista alcançava. Queria viver para sempre aquele momento.

Eric aumentou o volume, como se sentisse o que se passava dentro de mim. Eu olhei para ele e sorri. Ele sorriu de volta, os olhos fixos na estrada.

Juntos, percorremos todo o caminho, cercados por mata verde e um céu azul.

Tudo bem, o passeio até o castelo do Drácula não foi tão ruim assim. Na verdade, foi bem legal. E por legal, quero dizer incrível. Mas eu não admitiria aquilo nem para mim mesma, muito menos para Eric, que me observava com atenção toda vez que eu me impressionava com alguma relíquia medieval, por mais simples que fosse.

Ele foi cortês o suficiente para não jogar na minha cara como eu havia sido boba por ter medo de fazer aquele passeio. Mas o modo como ele me olhava, todo superior e arrogante com aquele sorriso de quem diz: "Não é que eu estava certo?", me fez virar para ele enquanto atravessamos uma sala de jantar apinhada de móveis de madeira antigos e armaduras reluzentes.

"Você é insuportável, sabia?", falei, cruzando os braços na frente do corpo.

Eric fez todo um ar de inocente.

"Eu? Por quê?"

"Porque sabe que estou gostando deste lugar e quer jogar na minha cara que eu estava errada."

"Estou feliz que você esteja feliz, Angelina. Não vou dizer na sua cara como é maravilhoso estar certo."

"Chato."

Ele riu e me seguiu de perto. Estávamos mais atrás do grupo de turistas que acompanhava o guia.

"Você já leu Drácula?", Eric perguntou, enquanto eu me inclinava para ver de perto um quadro de Vlad, o Empalador, pendurado na parede.

"Por incrível que pareça, já."

E ele pareceu mesmo surpreso. Sabia que era difícil acreditar que alguém como eu havia me aventurado por um dos maiores clássicos do terror.

"Eu li de dia", me apressei a explicar. "Em doses pequenas e controladas. Não senti tanto medo depois que Jonathan deixou o castelo para trás. E você? Já leu?"

Ele assentiu.

"É como se fosse uma leitura obrigatória por aqui. Não dá para dizer que você vive na Romênia sem escutar um monte de perguntas sobre vampiros."

"E como viver no Brasil e ser conhecido por futebol, praias e carnaval." Eu olhei para ele de soslaio. "Sabe, Eric, você pode até ser metade brasileiro, mas é só te olhar por um tempo para perceber que é todinho nascido e criado na Romênia."

"Só porque eu uso roupas escuras e tenho jeito de criatura das trevas?", ele falou, fazendo graça. "Que estereotipado da sua parte."

Eu ri e lhe dei um empurrãozinho com o ombro.

"Isso também. Mas, sei lá, não consigo explicar ao certo. É como se eu olhasse para você e soubesse que com certeza pertence a esse lugar."

Ele ficou em silêncio diante do comentário, e eu teria ficado apreensiva se não tivesse visto o brilho em seus olhos.

"Amo esse país", Eric falou então. "A Romênia é minha casa. Não a trocaria por nenhum outro lugar do mundo."

Com poucos dias estando ali, eu já começava a entender o porquê. Aquele lugar era maravilhoso.

Naquele momento, o guia nos mostrou uma espécie de passagem secreta que disse levar até o terceiro andar do castelo. Olhei para o vão na parede, onde uma escadaria de pedra estreita e íngreme se estendia por metros. A maioria das pessoas precisava se curvar e se espremer para fazer o percurso, uma atrás da outra. Foi só olhar para Eric para eu perceber que subir ali não era uma possibilidade para ele.

"Eu te espero aqui", ele falou, indicando a passagem com a cabeça. "Ou posso te encontrar nos pátios externos."

"Quer saber? Para mim já chega desse castelo. Já vi tudo o que tinha para ver."

Eric me lançou um olhar duro.

"Para com isso, Angelina. A gente ainda não viu nem metade."

"Há outras ocasiões", falei, e foi minha vez de dar de ombros. "Vamos procurar outros lugares para explorar."

Ele soltou um suspiro pesado, como se quisesse discutir mais um pouco, mas não tivesse energia suficiente para isso.

"Não precisa fazer isso por mim, sabia?", ele falou. Pelo jeito, sua teimosia tinha vencido o cansaço. "É irritante."

"Você está sendo dramático", retruquei. "É sério, Eric. Tá tudo bem. Deixo você me levar para outro lugar. Qualquer lugar que ache que vale a pena visitar."

Ele ergueu as sobrancelhas para mim, como se aquela fosse uma ideia curiosa. Droga! Podia jurar que ouvia as engrenagens daquele cérebro diabólico funcionando. Depois de um momento, Eric se apoiou com as duas mãos na bengala e se inclinou para mim.

"Qualquer lugar?", ele sussurrou.

"Quer saber? Já me arrependi disso." Mas não era verdade. Nem um pouco. Eu podia ir para qualquer lugar com ele.

"Tarde demais", Eric disse com um sorriso. "Anda. É melhor a gente não demorar muito."

Eric se recusou a me dizer para onde estávamos indo. Só sei que adentrávamos mais a Transilvânia a cada minuto, com as montanhas nos cercando de ambos os lados da estrada.

Depois de tentar arrancar informações dele por uma meia hora, desisti e perguntei se podia ligar o som do carro. Em resposta, ele jogou seu telefone para mim e disse que podia usar o bluetooth e colocar o que quisesse no Spotify. Eu amava música folk e estava me sentindo super no clima em meio aquela paisagem verde e sombria, por isso coloquei as músicas de Hudson Taylor para tocar.

Foi para a minha completa surpresa que Eric começou a cantar junto, em um inglês perfeito. Olhei para ele com os olhos arregalados.

"Achei que eu era a única que conhecia essa dupla!"

"Sou fã de folk", foi sua resposta simples.

"Eu também!", exclamei, animada como uma garotinha. Eric soltou uma risada. Sentia como se gostasse mais daquele cara a cada segundo.

Aquilo era desconfortante, isso e o fato de que eu estava consciente de sua boa aparência como nunca. Eric parecia um legítimo príncipe das trevas, menos quando sorria para mim daquele jeito e seus olhos brilhavam como estrelas.

Tão lindo.

Ele começou a falar sobre qualquer coisa de que não me lembro, e um segundo depois estávamos envolvidos em uma conversa animada. Falei tanto que a minha boca ficou seca e meu rosto doeu de tanto rir. Aquela viagem de uma hora e meia pareceu ser a mais rápida e divertida da minha vida.

Eu estava contando para Eric como era a experiência maravilhosa e enlouquecedora de ter irmãos quando avistei os primeiros sinais de civilização em algum tempo. Já tínhamos abandonado a rodovia há uns vinte minutos e a estrada de terra não era das melhores do mundo, mas desembocava bem na rua principal de uma vila.

"Não acredito!", exclamei quando entendi tudo. Estava olhando para as casinhas coloridas de telhados pontudos e construções que lembravam a Idade Média. "Você me trouxe para uma vila medieval!"

Eric não disse nada, apenas sorriu enquanto seus olhos se encontravam fixos na ruazinha de pedra.

"Viscri", ele falou quando tirei o cinto e me inclinei para colocar a cabeça para fora da janela. "A mais antiga vila saxã da Transilvânia e a mais famosa também. Agradeça ao príncipe Charles por isso. Ele tem uma casa aqui."

Não respondi. Estava encantada demais com tudo para conseguir formar uma frase coesa.

"Ah, Eric... É perfeito!"

Ele estacionou debaixo de uma árvore ali por perto e eu desci do carro. As pessoas da vila que estavam por perto sorriram para nós, alguns chegaram a acenar. Vi duas mulheres vendendo artesanato do outro lado da rua e algumas crianças correndo de um lado para o outro. A julgar pelos olhos vendados de uma delas, estavam brincando de cabra-cega.

"É lindo", falei, sem fôlego. "Eu amei!"

"A gente ainda não viu nada", Eric disse quando se aproximou de mim. "Vem, vou te pagar um sorvete. E depois a gente vai visitar a igreja fortificada que fica logo ali."

"Tem uma igreja fortificada aqui?!"

"Uma das mais bem preservadas de toda região."

Olhei para Eric como uma garota olha para o seu super-herói preferido. Ele riu e balançou a cabeça, me chamando para acompanhá-lo.

A igreja ficava a menos de dez minutos dali. Era enorme, com torres e portões pesados. Havia alguns poucos turistas no local, tirando fotos e sentados em banquinhos de madeira. O dia estava quente e abafado, e vi nuvens se acumularem ao longe. Podia apostar que logo, logo começaria a chover.

Circundei a igreja praticamente aos pulos, tirando várias fotos, com Eric me seguindo para baixo e para cima. Ele riu de mim quando vi o pequeno cemitério que ficava do outro lado da construção e saí correndo. Ele disse que eu era uma medrosa e eu falei que ele era um chato. Só para variar.

Eu estava suada e ofegante quando finalmente decidi me jogar em um dos bancos. Eric se sentou ao meu lado, me mostrando as fotos que tinha tirado de mim no seu celular. Gostei de todas. Eu parecia verdadeiramente feliz em cada uma delas.

"Você ainda não tirou uma foto comigo", disse para ele com um sorrisinho. Eric fez uma careta.

"Não sou fotogênico."

"Ah, corta essa."

Uma moça estava passando por ali naquele momento e tentei me dirigir a ela em inglês. Para o meu azar, a mulher era romena.

"Pede para ela tirar uma foto da gente", sussurrei para Eric, desconfortável com a situação. Não gostava de falar com alguém em uma língua que a terceira pessoa não conhecia. Eu me sentiria muito desnorteada se estivesse em seu lugar.

"Ah, eu acho que não. Disse que não quero tirar foto."

"Anda logo! Para de ser chato."

"Você é chata."

Lhe dei um beliscãozinho de leve na perna e Eric revirou os olhos, em seguida se dirigindo a mulher com um sorriso super charmoso e simpático. Eu revirei os olhos daquela vez.

Fiquei ouvindo Eric falar todo confiante em sua língua paterna. Senti algo estranho se remexer em mim ao observá-lo, e descobri que minhas bochechas estavam queimando. Ele ficava hipnotizante conversando em romeno daquele jeito...

Engoli em seco e tentei me concentrar quando a moça disse algo a ele, no momento em que nos ajeitamos para tirar a foto. Observei seu rosto e percebi que Eric tinha ficado vermelho de repente.

"O que ela disse?", perguntei.

Ele pigarreou. Parecia constrangido como um garotinho.

"Ela acha que a gente... está junto." Correção: nem um tomate tem a cor que Eric assumiu naquele momento. Tinha certeza que eu não estava muito diferente. "Disse para eu passar o braço pelos seus ombros."

"Ah."

Foi só isso que eu consegui dizer. Uma completa paspalha.

A mulher estava olhando para gente com as sobrancelhas franzidas agora. Eric continuava a me encarar para mim.

"Faça isso", pedi baixinho, e por um instante não reconheci minha própria voz. "Vai levar tempo demais para explicar."

"Angelina..."

Seja lá o que ele ia dizer naquele momento, se perdeu quando ouvimos o som da foto sendo tirada. Então Eric colocou o braço sobre meus ombros e sorriu para a câmera. E eu também sorri. Eu acho. Estava ocupada demais pensando na sensação de tê-lo tão perto de mim daquele jeito.

Eric era quente e o modo como me envolveu com seu braço me fez querer e aninhar ainda mais de encontro ao seu corpo.

Eu só podia estar ficando maluca...

Um segundo depois, a mulher nos devolveu o celular e se despediu. Acenei para ela.

Eric se afastou e eu fiquei olhando para a igreja, envergonhada demais para falar qualquer coisa. Há quanto tempo eu estava na seca para me sentir como uma pré-adolescente de novo quando um garoto encostava em mim?

Já era fim de tarde e o sol estava se pondo, deixando o céu com aquele tom alaranjado que faz tudo parecer melancólico, distante e lindo. Coloquei minhas pernas para cima do banco e abracei os joelhos, meu coração doendo enquanto admirava aquela construção enorme e bonita, além da paisagem ao redor. Meu constrangimento foi parcialmente esquecido.

Eu estava feliz agora, mas um pouco triste ao mesmo tempo. Não era para ser assim. Não mesmo. Eu devia estar em Râşnov, conversando com Sofia, não sentada em uma vila com Eric a cem quilômetros de distância. Aparentemente, eu vinha postergando meu dever cada vez mais. Fátima devia estar zangada comigo, onde quer que estivesse. Aliás, tinha acabado de perceber que estava agindo como uma grande egoísta. Porque o plano era dar no pé assim que eu entregasse a carta para Sofia, mas continuava adiando aquilo porque... Bem, porque eu não queria ir embora. Nem um pouco.

Ali, na Romênia, cercada por aquelas pessoas que eu conhecera há pouco tempo, mas que de certa forma já eram importantes para mim, estava alegre como não me sentia desde a morte de Fátima. Estava sorrindo todos os dias. E rindo! Para mim tudo aquilo era um pequeno milagre, embora o vazio no meu peito se recusasse a me deixar.

"Está pensando nela, não está?", ouvi a voz de Eric dizer, me despertando do devaneio. "Em Fátima."

"Penso nela o tempo todo", disse, porque não adiantava de nada negar. Eu nem queria negar. "Penso se ainda está comigo, ou se a perdi para sempre."

"Lina, ninguém nos deixa para sempre."

"Não dá para saber", falei, e me senti amarga de repente. "Ela foi embora. Não consegui nem dizer adeus. Não posso mais vê-la ou ouvir sua voz. Vivo buscando sinais, sabe? Qualquer coisa que me confirme que não estou sozinha. Que aquele dia na casa dela não foi a última vez. Essa é uma das fases do luto? A procura por sinais? Porque se não for, deveria ser. Sinto que isso só me deixa ainda mais depressiva."

Eric colocou a mão sobre a minha e eu olhei para ele.

"Ela está com você, Angelina", ele disse, e a certeza em sua voz era tão pura e tão verdadeira, que comecei a chorar. "Assim como meus pais estão comigo."

Não dá para saber, uma voz dizia na minha cabeça, não dá. E a ideia de nunca mais vê-la... Isso acaba comigo.

"Olha, eu não sei o quanto você gosta de proximidade", Eric disse enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto, "mas pode me dar um chute se quiser. É sério."

E então ele me envolveu no abraço mais embaraçoso do mundo. E o melhor do mundo também.

Me permiti ser frágil por um tempinho. Deixei que ele me confortasse e as minhas lágrimas molhassem seu casaco. Aliás, quem se importava? Estávamos praticamente sozinhos em uma vila medieval no meio do nada. Eu não precisava me obrigar a ser forte por ninguém.

De repente o som alto de um trovão me assustou. Olhei para o céu. Quando tinha escurecido tanto sem que eu percebesse? Ao nosso redor, não havia mais nenhuma alma viva. Todos tinham ido em direção ao povoado, ou até carros estacionados ali por perto.

"Acho melhor nós irmos", Eric falou, se levantando e me estendendo a mão. "Antes que..."

E, justo naquele momento, as primeiras gotas de chuva começaram a cair.

Ergui uma sobrancelha para ele. Meu rosto devia estar todo vermelho e inchado por causa do choro, mas não me importei. A situação era engraçada demais para tentar me esconder.

"Você estava dizendo o que mesmo?"

Ele começou a andar depressa para longe da igreja, me segurando pela mão. A chuva estava engrossando e vi que Eric fazia esforço para andar mais rápido, o que de jeito nenhum devia ser bom para sua perna.

"Vai indo na frente", ele disse para mim com urgência na voz. "Acha um lugar para se esconder."

"Vou ficar com você."

Ele suspirou, exasperado.

"Não consigo andar mais rápido que isso."

"Tudo bem."

A chuva estava ficando mais forte. Eric desistiu de discutir e tirou o casaco, estendendo-o acima das nossas cabeças. Mas era inútil. A chuva tinha vindo com tudo.

"Anda, vem logo!", ele disse, mas eu estava ficando para trás. O observei se afastar, tentando fugir do inevitável. Outro raio cortou o céu. A chuva caia aos borbotões.

Comecei a rir. Quer dizer, rir não. Gargalhar.

Eric se virou para trás, o cabelo escuro grudado na testa. Ele me olhou como se eu fosse maluca. E talvez eu fosse mesmo.

"O que é tão engraçado?", ele gritou por cima do barulho da tempestade.

"É que é inútil", gritei de volta, ainda rindo. Tirei meus óculos, para que, ironicamente, pudesse enxergar alguma coisa. Minhas lentes estavam encharcadas. "Já estamos ensopados!"

A cara de Eric quando pareceu se dar conta daquilo foi hilária. Ele olhou para si mesmo e para os arredores, como se tentasse se situar.

"Bom, nós não podemos ficar aqui", ele insistiu, voltando para mim. "Você vai ficar doente."

"Não me importo."

"Não se importa?"

"Não." Joguei a cabeça para trás e senti a chuva molhar meu rosto. Talvez eu estivesse maluca mesmo, ou talvez só me sentisse viva. Viva como não me sentia há muito tempo. "Estou bem, Eric."

"Você tá louca."

Ele se aproximou de mim com largas passadas e segurou meu braço com uma das mãos. Abri os olhos para encará-lo. Seu olhar estava fixo no meu. Ele não parecia saber o que fazer. Ou o que dizer.

"A gente não pode fugir da chuva", falei. "Ela já nos pegou. Agora só resta saber lidar com isso. E aproveitar."

"Essa frase está cheia de duplo sentido, sabia?"

"Você é inteligente. Tente desvendá-la."

Eric sorriu. Um sorriso torto cheio de mistério e dúvida. O modo como ele me olhava me fazia sentir maravilhosa, mesmo que eu estivesse definitivamente ridícula.

Ele então me arrastou para uma construção próxima que parecia abandonada, mas tinha uma marquise suficientemente grande para abrigar nós dois. Eu ainda estava sorrindo, ensopada e feliz até os ossos.

Fátima amava dias de chuva. Sempre comemorava quando a previsão indicava uma semana inteira nublada e gotejante. Dizia que não precisaria encarar as caras sem graça de seus vizinhos fofoqueiros durante as tempestades. Naqueles dias, nós ficávamos enroladinhas em robes peludos cozinhando doces e assistindo TV.

Aquela tempestade me lembrava dela. Forte, do tipo que vem de repente e muda todos os seus planos.

Por Deus! Havia sinal mais claro que aquele?

Ergui os olhos para Eric. Seus cachos escuros e abundantes eram uma bagunça molhada. Pequenas gotas de chuva caíam de seus cílios. Nós dois estávamos gelados, mas meu corpo inteiro parecia prestes a entrar em combustão por uns mil motivos diferentes.

Ele ergueu a mão e tirou uma mecha do meu cabelo da frente dos olhos, ajeitando-a cuidadosamente atrás da orelha. Sua mão se demorou na minha bochecha, e antes que soubesse o que estava fazendo, coloquei a minha sobre a dele e a mantive ali.

"Angelina...", ele sussurrou, a voz rouca me fazendo arrepiar.

"Lina", corrigi, com o mais leve dos sorrisos.

"Seu nome é lindo demais para não ser dito toda hora." A chuva caía forte ao nosso redor, não deixando margem para nenhum outro barulho, mas eu pude jurar que conseguia ouvir seu coração bater, assim como o meu. Ambos acelerados. Eric acariciou minha bochecha. Eu fechei os olhos por um segundo. "Você é linda."

Voltei a abri-los. Ele estava mais perto agora, mas não parecia o suficiente. Nem um pouco. Segurei seu ombro com a outra mão, tinha me sentido fraca de repente. Estava perdida em seus olhos, atraída por sua boca. Há quanto tempo eu o queria próximo daquele jeito?

"Você está pensando demais", falei, o que para mim era muito claro. Eric parecia estar lutando uma batalha árdua por dentro. "Não pense demais."

"É impossível", ele respondeu. "Eu não devia... Nós não devíamos..."

"Eric." O interrompi. "Não há nada que não possamos fazer."

E, naquele segundo, foi como se algo o atingisse com força. Seus olhos pareciam mais claros, as rugas de dúvida em sua testa desapareceram. Antes que eu pudesse piscar, suas mãos estavam no meu rosto, sua boca sobre a minha.

Ouvi o barulho da bengala cair no chão com um estrépito quando ele me segurou. Aquela foi a última coisa externa que me dei conta.

Era difícil demais me atentar a qualquer outra coisa que não fosse a pressão de seus lábios contra os meus, as mãos grandes deslizando pelas minhas costas. Afundei os dedos em seus cabelos. Queria que eles estivessem secos para que pudesse sentir a textura dos cachos, mas, sinceramente, não me importei muito. Nada importava.

Ele deslizou os lábios pelo meu pescoço e eu suspirei, escondendo o rosto na curva de seu ombro. Aquilo era bom demais. Tê-lo tão perto era mais que perfeito.

"Angelina, Angelina", ele repetia entre um beijo e outro, me segurando com firmeza. Eu precisava ficar na ponta dos pés para alcançá-lo. Nunca foi tão incômodo ter pouco mais de um metro e sessenta.

O clarão de um raio iluminou nossos rostos, pude ver mesmo através das pálpebras fechadas. Poucos segundos depois, um estrondo sacudiu o mundo.

Eric se afastou e eu me agarrei ao seu casaco encharcado. Não queria que ele se movesse nenhum centímetro.

"Precisamos sair daqui", ele sussurrou, a testa colada na minha. "Você está gelada."

"Tem certeza?", disse, ainda de olhos fechados. "Juro que não é assim que me sinto."

Eric sorriu e senti seus lábios na minha testa. E, simples assim, meu coração tinha sido reduzido à manteiga derretida.

"Vem comigo."

Ele começou a se afastar, me levando junto. Eu parei e soltei sua mão por um instante, pegando a bengala que estava caída no chão.

"Não está se esquecendo de nada?"

Ele olhou para a bengala, as sobrancelhas erguidas.

"Nove anos com essa coisa", ele disse, pegando-a da minha mão. "E foi só beijar você para que eu esquecesse até de mim mesmo."

"Meu Deus, você sabe como fazer uma garota se sentir especial!"

"Você é especial."

Eric e eu seguimos pela rua principal da vila. Não havia ninguém por perto, mas vi as luzes das casas se acenderem aos poucos. Não estávamos mais tentando correr. Não adiantava de nada mesmo. Alguns minutos depois, Eric parou em uma casa grande de dois andares que parecia ter saído de um livro de história, de tão parecida que era com as construções medievais. Ele abriu a porta e nós entramos.

Havia uma mulher de óculos atrás de uma mesa perto da parede. Eric e eu estávamos ensopando o tapete de entrada. Rapidamente uma poça começaria a se formar ao nosso redor se ninguém fizesse nada.

"Oh, Dumnezeule!", a mulher exclamou quando nos viu, se levantando tão depressa que quase derrubou a cadeira. "Îi pot ajuta?"

Eric começou a falar com ela em romeno. Nem me dei ao trabalho de tentar entender. Agora que os níveis de adrenalina e animação no meu corpo tinham abaixado, percebi o quão gelada estava. Abracei a mim mesma, batendo queixo.

Ergui os olhos para Eric quando a conversa cessou por um momento.

"Suponho que isso aqui seja uma hospedaria", falei, minha voz trêmula. "E que, com a graça de Deus, tenha alguns quartos disponíveis. Sem chance da gente conseguir voltar para Râşnov com essa tempestade e molhados desse jeito."

Eric baixou os olhos para mim.

"Na verdade, tem só um quarto disponível." Ele coçou a nuca. "Com uma cama de casal."

Olhei dele para a recepcionista. Aparentemente, ela havia entendido nosso dilema. Eric e eu tínhamos acabado de trocar uns beijos, mas dormir na mesma cama ainda estava degraus acima da nossa escadinha de proximidade.

"Não tem outras hospedarias por aqui?", perguntei.

"Tem. Mas a recepcionista disse que a maioria está cheia. Se você quiser ir lá pra fora, a gente pode tentar encon..."

"Não", disse depressa. Apesar do meu constrangimento, eu não me sentia corajosa o suficiente para enfrentar a chuva de novo. "Eu preciso de um banho quente, Eric. Sério."

Ele assentiu para mim e olhou para a recepcionista. Eu não entendia romeno, mas sabia que tinha dito a ela que ficaríamos com o quarto.

Suspirei enquanto subíamos as escadas para o segundo andar. Tinha visto comédias românticas o suficiente na minha vida para saber que aquele era um clássico.

Sério? O clichê do "só tem uma cama" acontecendo comigo?

Considerando que eu tinha acabado de beijar Eric debaixo de uma marquise, não parecia tão ruim assim. Mas, por Jesus... Eu queria enfiar a minha cabeça num buraco e nunca mais sair de lá!

A hospedaria tinha água quente. E roupas quentes também, graças a Deus.

Assim que saí do chuveiro, me enrolei no robe branco e felpudo que a recepcionista tinha me entregado. Eu daria uma parte da minha alma por um secador de cabelo, mas pelo jeito precisaria confiar na rapidez dos meus fios curtos para secarem sozinhos.

O quarto disponível era uma pequena suíte, por isso quando saí do chuveiro, Eric estava me esperando sentado em uma cadeira perto da janela fechada. Ele tinha insistido que eu tomasse banho primeiro e me aquecesse. Assim que saí, ele perguntou se eu me sentia bem. Disse que sim, e ele mais do que depressa se trancou no banheiro com sua muda de roupas secas.

Respirei aliviada. Aquele quarto era pequeno demais e eu não tinha para onde olhar direito sem que nossos olhos se encontrassem e o acontecimento de meia hora atrás pesasse sobre nós.

Aliás, o que tinha dado na gente? Em mim?!

Eric não demorou muito no chuveiro, e quando saiu senti o aroma de sabonete e shampoo nele, mesmo que estivesse a alguns metros de distância. Ele também estava vestindo o robe do hotel e uma calça de moletom. Era estranho vê-lo em branco, quando normalmente só usava preto.

Lá pelas tantas, alguém nos trouxe comida no quarto e nós jantamos. Eric ligou para a tia depois, avisando que precisaríamos dormir fora. Ele foi tão vago a respeito de tudo que precisei lhe dar um toque para que deixasse as coisas mais bem explicadas. A última coisa que queria era Sofia pensando que... Bem, que estávamos dormindo fora por vontade própria.

Eric se despediu da tia e colocou o celular na mesinha de cabeceira. Foi um milagre que nossos aparelhos não tivessem queimado com toda aquela chuva. Para mim, ter um Iphone velho à prova d'água nunca pareceu tão bom quanto naquele dia.

"Sofia não pensaria nada de errado da gente", Eric disse depois de um tempo, sem olhar para mim. "Não precisaria nem ter explicado a situação."

"Bom, não dá para dizer o mesmo de Pedro", falei, encolhendo os ombros. "Nada contra seu primo, inclusive, adoro ele, mas o garoto tem uma língua ligeira."

Eric sorriu e voltou a se sentar na beirada da cama. Cama essa que estava ocupando boa parte dos meus pensamentos. Não fazia ideia de como iríamos...

"Mas não estamos fazendo nada de errado", ele continuou, interrompendo meus pensamentos. "Quer dizer..."

Meu rosto esquentou. Sabia que ele estava pensando no beijo. Assim como eu.

"Acho que devia te pedir desculpas, né?" Ele estava obviamente constrangido. "Não devia..."

"Corta essa, Eric. Eu te beijei de volta. Eu... queria aquilo também."

Ele ergueu uma sobrancelha para mim. O sorriso prepotente no seu rosto me fez queimar inteira. Às vezes odiava ser tão sincera!

"Queria?", ele perguntou baixinho.

"Bom, em minha defesa, você deu o primeiro passo", resmunguei. "Eu só... aproveitei."

Eric levou uma mão ao peito, como se eu o tivesse atingido com alguma coisa.

"Essa doeu."

Ele estava sorrindo, se aproveitando do drama.

"Então, se era algo que você e eu queríamos, acho que não tenho motivos para me desculpar", ele concluiu.

"Não mesmo."

"Além disso, foi algo momentâneo, certo? Não vai acontecer de novo."

Meu coração deu uma cambalhota e eu ergui os olhos.

"Não?" O tom da minha voz era ridículo. Eu me sentia ridícula.

Eric soltou uma risadinha e se inclinou para mim. Sua voz não passava de um sussurro:

"Eu só queria ver qual seria sua reação."

Peguei o travesseiro mais próximo e joguei na cara dele. Com força.

"Babaca."

Eric estava rindo. Segurou o travesseiro e jogou em mim de volta. Eu o agarrei e abracei, usando-o como escudo.

"Desculpe, Lina", ele disse, agora perto o suficiente para tocar meu rosto. Coisa que ele fez, aliás. As pontas de seus dedos estavam quentes e tudo que eu queria era puxá-lo para mim. "Eu só... não esperava que você fosse querer também."

"Te beijar? Fala sério, Eric, quem é que não gostaria de te beijar?"

Qualquer outro garoto ficaria todo convencido com o comentário, mas não ele. Sua mão deixou meu rosto e seus olhos escureceram de repente.

"É que você... Bem, você é você, Lina. Toda alegre e tagarela. Não achei que..."

"Que eu poderia estar atraída pela sua carranca e jeitão de ser das trevas?", completei. Decidi deixar a vergonha de lado. Ela não me faria beijar aquele garoto de novo. "Então pensou errado."

Eric abriu um sorrisinho. Pelo jeito, tinha gostado do comentário.

"Mas não é só isso. A gente não se conhece há tanto tempo assim."

"Estou hospedada na sua casa há mais de uma semana, Eric. A gente passou quase o tempo todo junto desde então. Não diria que a gente não se conhece bem."

"É... Acho que você tem razão."

"Tenho, sim. Para mim, você só está querendo arrumar desculpas."

"Desculpas?"

"É. Para não me beijar de novo."

Aquele sorriso surgiu. O alegre e parcialmente convencido.

"Ah, isso não é um problema."

E, pelo jeito, não era mesmo, porque no segundo seguinte ele estava pressionando os lábios contra os meus de novo.

Não sei direito quanto tempo ficamos um nos braços do outro. Para mim, poderia ficar daquele jeito até a eternidade. Mas então escutamos o sino da igrejinha bater onze vezes e eu bocejei. Eric disse que era melhor a gente descansar.

"Posso colocar uma barreira de travesseiros dividindo as duas metades da cama", ele sugeriu como um cavalheiro, enquanto acariciava minha cabeça. Em algum momento, eu tinha deslizado pelo colchão e ele havia me abraçado por trás. Estávamos deitados de conchinha desde então, como um casal de verdade.

"Não, tudo bem", falei, virando-me para ele com um sorriso. "Acho que já estamos próximos o suficiente para isso." Então vi sua bengala apoiada na parede do quarto e franzi as sobrancelhas. "Eric, eu chuto muito durante a noite. Sério, mais parece que estou no meio de uma luta de karatê comigo mesma." Ele começou a rir do que eu disse. "E se eu acertar sua perna durante a noite?"

"Não se preocupa comigo", ele falou, enquanto deslizava os dedos pelo meu pescoço. Se aquela era uma tentativa de me distrair, devo dizer que estava dando certo. Quão mole eu era...

"É claro que me preocupo com você", insisti. "Reparei como está sentindo dor. Não quero piorar ainda mais as coisas."

"Angelina, uma dorzinha de nada é um preço muito pequeno a se pagar para dormir ao seu lado. Consigo aguentar."

"Você sabe como amolecer alguém", disse, rindo. "É fofo assim com todas as outras garotas?"

"Só tento ser fofo com você. E não tem outras garotas."

Eu o beijei pela milésima vez ao ouvir aquilo.

Depois de alguns minutos, Eric caminhou até o interruptor e apagou a luz, em seguida ajeitando as cobertas pesadas ao meu redor. Senti o colchão afundar quando ele se deitou ao meu lado. Era tão estranho como aquilo parecia ser tão certo.

"Boa noite", disse baixinho.

"Boa noite, Lina."

Sem querer, nossas mãos se encontraram debaixo do edredom. Eu estava prestes a me afastar quando senti seus dedos envolverem os meus. Não me mexi. Não conseguia.

Sem perceber, adormeci, me sentindo mais feliz do que nunca.

Estou na frente do portão da casa de Fátima. Encaro aquelas grandes brancas familiares, a cadeira de balança agora vazia. No meu sonho, sinto aquela dor já familiar. Dor que diz que quem eu quero ver não está mais ali. Que nunca mais vai estar.

Estou entrando. O portão está aberto e os jardins da frente estão repletos de flores. Os girassóis mais parecem brilhar, de tão lindos. Inconscientemente, levo a mão à tatuagem no meu antebraço. Tatuagem essa que fiz quando estava prestes a completar dezoito anos, em uma época que acreditava que para você ser feliz, basta olhar para a luz, onde as coisas boas se encontram. Era assim que o girassol se comportava, mas muito em breve descobri que aquilo não valia do mesmo jeito para corações humanos.

"São lindos, não são?", uma voz diz ao meu lado. Não me assusto quando olho e vejo Fátima parada, os olhos úmidos fixos nas flores. A encaro, muda, com aquela dor lancinante no peito. Preciso abraçá-la agora, porque sei que é minha única chance.

"Fátima...", murmuro. "Desculpa."

Ela olha para mim. Custo a enxergar seu rosto nas brumas do sonho, mas ele ainda está ali. Um pouco distorcido, mas reconhecível.

"Desculpa pelo quê?", ela pergunta.

"Não entreguei a carta", falo. "Desculpa. Prometo que vou entregar."

Fátima solta uma risada. Aquela risada gostosa que vem do fundo de seu peito. Tem lágrimas no meu rosto agora.

"Ah, a carta...", ela diz. "Não foi só pela carta que eu te trouxe para cá. Querida, você estava morrendo."

"Morrendo?"

"É. Morrendo. Como aquele girassol ali." Ela aponta para a flor, afastada de todas as outras. Ela está mesmo morrendo. Murchando lentamente, as pétalas longe do sol. "E, sabe, os girassóis não foram feitos para ficar muito tempo afastados da luz."

"Não entendo..." Eu enxugo as lágrimas. "Ainda estou sentindo essa angústia, dona Fátima. É parecido com o que senti quando saí do Brasil, mas agora a situação mudou. Sinto isso quando penso em voltar pra casa. Não é estranho?"

"Para mim parece bastante razoável."

Solto uma risada. Porque a cara que ela está fazendo é a mesma que fazia quando parecia guardar um segredinho só seu. Segredo esse que eu era incapaz de desvendar, ao menos que ela desse algumas pistas.

"Você vai descobrir seu caminho, querida. Sei que vai." Ela coloca a mão no meu ombro. É tão baixinha. Poderia envolvê-la em meus braços e nunca mais soltar. "Dê atenção aos seus sentimentos, tudo bem? Isso é importante."

"Tá bom."

"E sobre as cartas... Uma pertence a você. Pode lê-la quando quiser. A outra..." Seus olhos ficam tristes de repente. "A outra é para ela. É importante também."

"Vou entregá-la", digo, com toda a certeza do meu coração. "E vou descobrir o que fazer a seguir."

"Sei que vai."

Eu beijo suas mãos. Tento segurá-la pelo máximo de tempo possível.

Estou chorando, sinto meu peito balançar com um sentimento forte demais para ser comportado em um sonho. Não quero acordar, mas isso já está acontecendo.

Voltando à superfície, me dou conta de que não é apenas o meu choro que corta o silêncio do quarto.

Tudo estava muito escuro. Quando abri os olhos, levou alguns segundos para que se ajustassem ao ambiente. Respirei fundo, uma sensação estranha no peito. Meu rosto estava molhado e consegui sentir a umidade na fronha do travesseiro.

Queria fechar os olhos e voltar para o sonho com Fátima. Ainda não tinha me despedido dela. Precisava de mais tempo. Só mais um pouco.

Porém, quando estava prestes a pegar no sono outra vez, senti Eric se debater ao meu lado. O cobertor foi puxado dos meus ombros e sussurros indistinguíveis preencheram o quarto.

Sem pensar muito, sentei na cama e afastei o cabelo embaraçado dos olhos. Eric estava deitado ao meu lado, se remexendo sem parar. Sua testa estava franzida e as pálpebras tremiam. Suas mãos agarravam o lençol com força.

"Mãe...", ele murmurou. "Vem comigo, mãe."

Sabia que ele estava preso em um pesadelo. Um pesadelo terrível e invisível a mim, mas muito real em sua cabeça. Não conseguia imaginar os horrores que ele experimentava para reagir daquele jeito. A única coisa de que tinha certeza era que não podia virar para o lado e dormir, fingindo que nada estava acontecendo.

"Eric", chamei baixinho, colocando uma mão em seu ombro. "Eric, acorda. Está tudo bem."

Ele virou o rosto para o outro lado. Seu corpo inteiro tremia, o suor brilhava em seu pescoço. O sacudi com mais força, de repente tomada por um sentimento de urgência. Não aguentava mais vê-lo daquele jeito.

"Eric!"

Ele acordou em um sobressalto. Observei enquanto Eric passava os olhos pelo quarto escuro, até me encontrar praticamente em cima dele. Respirei aliviada. Eu também tinha começado a suar.

"Angelina..."

Me afastei, pensando que ele precisava de um pouco de ar.

"Você estava tendo um pesadelo", expliquei. "Eu não podia... Quer dizer, você parecia estar sofrendo. Não podia deixá-lo lá."

Por um momento, ele me olhou como se ainda não compreendesse. Estava assustado e confuso. Mas então as lembranças do pesadelo pareceram voltar à sua mente e ele se recostou na cabeceira da cama, escondendo o rosto nas mãos.

Ficamos ali, acrescentando o nosso silêncio ao silêncio absoluto da noite. A única coisa que conseguia ouvir era nossas respirações entrecortadas. Queria dizer alguma coisa, mas o quê? Pelo jeito, aquela noite estava sendo difícil para nós dois.

Sem muitas opções, coloquei a mão sobre seu ombro, em um gesto que eu esperava ser reconfortante. Eric ergueu o rosto para mim, os olhos atormentados. Sem saber direito o que acontecia dentro de mim, segui um instinto maluco e afastei os cachos escuros que caiam sobre seus olhos.

"Quer falar sobre isso?"

"Só se você falar sobre você também."

"Como é?"

Ele levou a mão à minha bochecha e a esfregou de leve.

"Você estava chorando."

Toquei meu rosto. Estava mesmo molhado.

"Pois é. Foi um sonho triste."

Eric olhou para o outro lado, soltando uma respiração pesada que pareceu vir do fundo do seu peito.

"A gente tem problemas."

"Um monte." Segurei sua mão, fazendo com que ele voltasse a olhar para mim. Então abri um sorrisinho. "Mas nada nos impede de falar sobre eles."

Eric balançou a cabeça, as sobrancelhas franzidas formando rugas em sua testa.

"Não acho que falar resolva."

"Como pode ter certeza disso?"

Acho que ele não quis discutir comigo, ou talvez só tivesse percebido que falar ajudava sim, porque disse:

"Era a noite do incêndio. Vi meus pais nas chamas, tentando me salvar. Mas não adianta. Eles nunca atravessam a janela. O sonho geralmente termina quando pulo do telhado."

Um nó se formou na minha garganta. Que angústia ele não devia sentir ao reviver aqueles momentos terríveis à noite.

"E hoje?", disse, tentando mantê-lo falando. "Quando terminou?"

"Eu estava no telhado, olhando para o chão. Você me acordou antes que eu pulasse." Ele abriu um sorrisinho triste para mim. "Suponho que devo te agradecer por isso."

"Ah, Eric..." Balancei a cabeça. Era como se houvesse algo pesado esmagando meu coração, determinado a quebrá-lo em mil pedaços. "Não consigo imaginar como deve ter sido difícil passar por isso."

"Não importa mais", ele falou em um tom seco. "Está no passado."

"Como pode dizer uma coisa dessas? É claro que importa! Acha que eu não sei? Essa tristeza nos seus olhos, sua casa toda encoberta em sombras... Algo me diz que não costumava ser assim antes, não é?"

"Eu pensei em mudar. Pensei em deixar as coisas minimamente parecidas com o que eram durante a minha infância. Mas não dá." Ele afastou as cobertas para longe, enquanto passava as mãos pela cabeça. "Minha mãe amava deixar a casa toda iluminada. As cortinas estavam sempre abertas. Meu pai... não havia nada que ele gostasse mais do que administrar as pousadas e ter contato com os hóspedes. Ele tinha aquela coisa de querer fazer as pessoas amarem Râşnov e a Transilvânia tanto quanto ele amava, por isso oferecia a melhor estadia possível para cada um deles. Meu pai me ensinou tanta coisa, e queria tanto que eu tomasse a frente do negócio um dia... Era isso que eu queria também, sabe? Mais do que tudo." Os olhos dele estavam rasos d'água. Foi naquele momento que meu coração despedaçou. "Mas depois que eles se foram, tudo perdeu o sentido. Não havia mais razão em deixar a casa como mamãe gostava, não havia propósito em dirigir as pousadas e ampliar o negócio se meu pai não estivesse lá comigo, me ajudando e comemorando as pequenas conquistas. Tudo perdeu a graça, porque eu estava sozinho. Minha família tinha me deixado."

"Eric, você não está sozinho", disse com veemência, apertando seu braço. "Não lembra o que me disse lá na igreja? As pessoas que nos amam não nos deixam. E mesmo aqui, agora, você está cercado de pessoas que se importam com você e que querem te ver feliz. Sofia, Pedro... eu. Eu quero te ver feliz, Eric." Coloquei as mãos em cada lado de seu rosto, fazendo com que olhasse para mim. Suas lágrimas estavam rolando agora, e foi a minha vez de enxugá-las. "As coisas podem ter ficado nubladas por um tempo, mas você consegue reverter isso. No fundo, sinto como se você quisesse fazer diferente. Chega de ficar no escuro. Sei que é inevitável pensar sobre o que perdemos, mas se focarmos demais nisso, nunca vamos ser capazes de enxergar o que ainda está por vir."

À medida que dizia as palavras, percebia o quanto elas também se aplicavam a mim. A morte de Fátima tinha me destruído e eu sabia que havia uma parte de mim que nunca mais seria a mesma. Mas se não me permitisse tentar de novo, se não me permitisse ficar feliz com as coisas que queria fazer, que queria viver, ficaria naquele limbo por anos. Como Eric.

"Quer saber de uma coisa?", falei, e estava sorrindo. "Abra as cortinas. Retome o negócio das pousadas efetivamente. Se joga de cabeça nisso. Sofia e Pedro vão embarcar nessa com você e não vão te deixar sozinho. No tempo livre, – e com sorte você não vai ter muito – pode continuar plantando suas flores e lendo pilhas de livros. Só não deixe que a morte dos seus pais te deixe assim para sempre."

Nós ficamos olhando um para o outro sem dizer nada por muito tempo. Os olhos de Eric eram verdadeiras janelas para a sua alma. Ele estava ali diante de mim, sem armadura, me deixando vê-lo de verdade. Eu também me sentia exposta, mas aquilo não me assustava.

"Eu vou tentar, Lina", ele sussurrou de repente, tão baixinho que quase não ouvi. Eu estava abraçada com ele, envolvendo-o nos meus braços. Não sabia direito quando tinha decidido segurá-lo daquele jeito, como se nossas vidas dependessem disso, mas também não estava pronta para me afastar. Senti sua mão fazer carinho nos meus cabelos. "Aos pouquinhos, mas vou tentar."

Me afastei apenas o suficiente para poder ver seu rosto.

"Isso já é o bastante."

Ele sorriu para mim e beijou minha testa. Meu coração batia acelerado no peito.

"Obrigado por isso. Por tudo isso. Até por ter aparecido sem ser convidada na minha casa."

Eu ri alto e precisei tapar a boca depressa, com medo de acordar os outros hóspedes.

"Disponha, Sr. Carrancudo", respondi baixinho, fazendo-o rir também.

Eric afastou meu cabelo dos olhos e me olhou atento quando perguntou:

"E você? O que vai fazer?"

"Como assim?"

"Angelina, você está tão quebrada quanto eu. Talvez até mais."

Entendi o que ele quis dizer. Não precisava nem explicar.

"Estou tentando juntar os caquinhos. E vou conseguir. Essa viagem curou uma parte de mim. Sei disso. Mas ainda falta uma coisa."

"Que coisa?"

Respirei fundo, então contei tudo. Sobre Fátima e suas cartas misteriosas. Sobre como eu tinha vindo todo o caminho até o Brasil só para procurar Sofia e como fiquei dividida entre entregar a carta e ir embora, ou estender o máximo possível meu tempo ali. Contei tudo. Eric não havia escondido nada de mim e eu não esconderia nada dele também.

"Espera um pouco", ele falou, quando precisei fazer uma pausa para respirar. "Quer dizer que o último desejo de Fátima era que você encontrasse minha tia?!"

A expressão em seu rosto era da mais pura confusão. Eu não o julgava. Era mesmo confuso.

"Pois é. O advogado de Fátima me passou as informações sobre ela, por isso sabia que morava em Râşnov. Quando a vi parada na sua sala de estar na manhã seguinte em que cheguei, quase tive um ataque! Não conseguia acreditar que a vida tinha me colocado justo no lugar onde precisava estar. Mal precisei procurá-la."

"Pensar sobre a casualidade disso tudo me deixa maluco", ele falou, massageando as têmporas como se a história tivesse lhe dado uma dor de cabeça. "Mas você sabe qual a ligação entre Fátima e Sofia?"

"Não faço ideia. Eu vim às cegas, apenas com a certeza de que precisava realizar o último desejo da minha melhor amiga. Mas, pelo jeito, nem isso fiz direito..."

"Angelina, tá brincando? Você está em um país diferente, longe de todos que conhece e disposta a falar com uma desconhecida só para fazer a coisa certa. É claro que está fazendo direito! Não importa que tenha demorado um pouco para entregar a tal carta."

"Importa para mim", disse, desviando o olhar. "Andei pensando sobre isso e... bem, fui egoísta. Não quis entregar a carta porque isso significaria que já teria feito o que precisava fazer aqui, então poderia ir embora. Mas a questão é que..."

Droga, eu não conseguia completar. Me sentia uma idiota. Uma idiota que estava começando a ficar vermelha.

"A questão é que você quer ficar mais tempo?", Eric sugeriu baixinho. Quando olhei para ele, vi que estava sorrindo. Um sorriso lindo de morrer. "Ah, Lina... Você não precisa ir embora. Pode ficar. Eu... eu gostaria que ficasse."

"Gostaria, é?"

Ele assentiu.

"Na verdade, amaria."

Ele estava me abraçando, dando beijinhos rápidos na minha bochecha. Nunca pensei como um cara grande e fechado daquele jeito poderia ser tão carinhoso. Amava aquela parte dele.

"Amanhã vou entregar a carta", disse, mais para mim mesma do que para Eric. "Sofia merece saber da morte de Fátima. Eu acho que elas eram próximas, e fingir que não sei de nada é horrível. Não posso fazer isso. Não quero."

"E depois?", Eric perguntou. Podia ser só impressão minha, mas notei o receio em sua voz. Me aconcheguei mais em seus braços.

"Meu voo está marcado para daqui alguns dias ainda. Não vou adiá-lo como pensei que faria quando entregasse a carta."

"Melhor eu te aproveitar, então", ele disse, me segurando forte.

A gente não falou mais nada depois daquilo. Eric deitou e me puxou junto, me envolvendo em seus braços. Apoiei a cabeça em seu peito e fechei os olhos. Não conseguia pensar em deixá-lo.

Sabia que estava apaixonada. Sabia, mas não tinha ideia do que fazer a respeito.

Adormeci pela segunda vez naquela noite. Dessa vez, os sonhos não vieram.

Eu estava sentada no sofá da sala em Râşnov na manhã seguinte, Sofia acomodada na poltrona ao meu lado. Assim que Eric e eu chegamos, ele pegou Pedro pelo braço e disse que os dois precisavam dar uma volta, sem ligar para os protestos do primo, que queria saber o que diabos estava acontecendo.

Sabia que Eric queria dar a mim e Sofia algum espaço, e apreciava isso. Porém, agora que estava sentada perto dela, tudo que queria era que alguém estivesse por perto para segurar minha mão ou fazer aquilo por mim.

"Eu era amiga de Fátima Vianna", disse de uma vez, olhando para os meus joelhos. Não podia esperar mais. "É por ela que vim aqui."

Senti a mão de Sofia na minha. Encarei os dedos mais velhos, me segurando com força. Ergui a cabeça e vi que ela estava com os olhos cheios de lágrimas.

"O que aconteceu?"

"Ela pediu que eu viesse", disse com a voz fraca. "Queria que eu te entregasse uma coisa." Peguei o envelope pardo ao meu lado no sofá e coloquei nas mãos dela. "Sofia... a Fátima faleceu."

Lágrimas caíram no envelope. Eu não sabia se eram as minhas ou as dela.

"Ah, meu Deus", Sofia sussurrou, se inclinando para frente como se de repente um peso enorme tivesse caído em suas costas. "Ah, meu Deus." Ela levou o envelope para junto do peito e o abraçou, seu corpo todo encolhido de dor. "Fátima, meu amor..."

Naquele momento, entendi tudo. As lágrimas de Sofia de repente assumiram um novo sentido para mim. Ela não estava lamentando por uma amiga há muito distante. Estava lamentando pela perda da mulher que tinha amado.

Deixei o sofá e me sentei no braço da poltrona, envolvendo o corpo pequeno de Sofia com o meu. A abracei com força e deixei que chorasse no meu ombro. Não conseguia dizer nada por causa do nó na minha garganta, mas não chorei. Não podia. Pela primeira vez desde que perdera Fátima, senti aquela dor dilacerante, mas não me entreguei a ela. Eu não podia. Sofia precisava de mim.

Quando ela se acalmou um pouco, busquei uma água e acariciei seus cabelos pretos. Deixei que ela se acalmasse um pouco para contar tudo. Falei sobre a morte de Fátima há algumas semanas, seu último desejo para mim e a coincidência que acabara me levando justamente para aquela casa. Disse tudo e pedi desculpas tantas vezes quanto achei ser preciso. Nunca tinha sido minha intenção enganar Sofia. Eu só... havia sido fraca.

"Filha, está tudo bem", ela falou para mim, segurando minha mão. "Eu entendo. Não tem importância. Só de você ter vindo até aqui... De ter trago isso..." Ela olhou para o envelope e enxugou as lágrimas. "Significa mais do que consigo expressar."

"Fátima nunca me falou sobre a senhora, mas sei que se importava muito com você, Sofia. Muito mesmo. O fato de eu estar aqui já é prova disso."

"Eu sei. Eu sei, querida. Eu também me importava muito com ela. Eu a amo. Sempre amei." Sofia escondeu o rosto nas mãos e voltou a chorar. "Mas nós tínhamos muito medo. Ela, principalmente. Fátima passou por coisas terríveis na juventude por ser quem era. Eu não devia ter insistido que ela viesse comigo para a Romênia quando tudo aconteceu. Não tinha esse direito."

"Vocês se conheciam há muito tempo?", perguntei.

"Vinte anos. Éramos amigas, mas a coisa evoluiu para algo mais. Escondemos de todos, é claro. Imagine só! O que as pessoas de São Genésio pensariam de nós? Eu era discreta. Fátima mais ainda. Depois da morte da minha sobrinha e dos acontecimentos posteriores, tomei a decisão de viver aqui. A chamei para vir junto, mas Fátima... ela não conseguia, entende? Abandonar tudo no Brasil para vir comigo faria com que todos soubessem, ou pelo menos desconfiassem, e ela não podia lidar com isso. Eu fui egoísta. Achei que ela não me amava o suficiente. Mas fui uma tola. Fátima pensava que não havia um lugar para nós no mundo. Ela estava cheia de traumas."

"O que aconteceu com ela? Antes de você?"

Sofia fechou os olhos com força, agarrada ao envelope.

"Quando ela era jovem e seus pais souberam que ela se interessava por mulheres, assim como também se interessava por homens, a internaram em um lugar horrível. Um desses prédios cinzas e cruéis onde as pessoas consideradas loucas eram jogadas pela sociedade da época. Ela ficou lá por três anos."

Eu não sabia daquilo. Fátima nunca tinha falado comigo sobre sua sexualidade. Será que pensava que eu a julgaria? Meu Deus... quanto dela eu não sabia! Não fazia ideia de nada daquilo. Pensar nela passando por toda aquela dor calada fez um buraco no meu peito.

"O pai a agredia também, mesmo depois que ela voltou do hospício", Sofia continuou, as mãos tremendo. "Quando nos conhecemos, nós duas já tínhamos mais de cinquenta anos. Fátima levou muito tempo para baixar a guarda. Mesmo depois de um tempo, quando estávamos sozinhas, ela morria de medo de alguém descobrir. Nem sempre fui compreensiva."

"Sofia, não é culpa sua. Nem dela." Eu fechei os olhos e balancei a cabeça para mim mesma. "O mundo é cruel demais. Vocês duas tinham suas questões."

"Mas o modo como brigamos quando vim para a Romênia... Nunca vou me perdoar, Angelina. Ela disse que sairíamos de São Genésio só para nos esconder em outra cidade pequena. Falei que nós nos escondíamos por causa dela, não por minha causa. As coisas só ficaram piores. Não soube lidar com os medos dela."

"Vocês nunca mais se falaram depois disso?"

Sofia abriu um sorrisinho triste.

"Estávamos ambas quebradas demais para admitir o erro. Duas velhas egoístas e cabeça-dura, isso que éramos. Mas continuamos mandando cartões de Natal uma para outra. De aniversário também. Mas nunca mais nos vimos pessoalmente, e agora sei que é tarde demais para reverter isso..."

Passei a mão por suas costas quando ela voltou a chorar. Não conseguia imaginar a dor que estava enfrentando.

"Sofia, Fátima odiaria te ver desse jeito. Eu sei que ela te perdoou e também sei que você não guarda mágoas contra ela. Ela não gostaria que ficasse uma lembrança amarga entre vocês. Ela te amava. E você a ama. Todos cometemos erros, mas isso não apaga o que vivemos." Eu peguei o envelope pardo em seu colo. "Leia a carta. Ela não lhe deixou isso à toa. Tenho certeza que o que quer que ela tenha escrito, te tranquilizará."

Sofia ergueu os olhos inchados e vermelhos para mim, assentindo devagar.

"Farei isso."

"Só não demore demais", aconselhei. "Não faça como eu. Precisamos deixá-la ir. Precisamos nos despedir."

Eu a abracei de novo, uma paz estranha invadindo meu peito. Eu estava calma. Tranquila. A tempestade tinha ido embora.

Sofia beijou meu rosto e retribuiu o abraço.

"Obrigada por ter vindo até aqui, Lina", ela disse com a voz abafada.

"E obrigada por ter me recebido."

Me levantei da poltrona. Sofia tinha começado a abrir o envelope.

Tudo aquilo parecia como o despertar de um sonho, uma aura de irrealidade que eu não conseguia entender me envolvia. Antes que o sentimento passasse, subi os degraus e fui buscar minha carta.

Era fim de tarde. O sol se punha lentamente atrás da colina onde a fortaleza de Râşnov se encontrava há centenas de anos. O pequeno centro da cidade já não estava muito movimentado. Todos estavam indo para casa se preparar para as atividades da noite. Do outro lado da rua, vi um homem colocar as mesas de um barzinho aconchegante do lado de fora.

Tinha ido até ali porque queria ver o pôr do sol e o vai e vem tranquilo das pessoas naquela cidadezinha tão pequena quanto São Genésio. A carta de Fátima estava no meu colo. Tinha tirado do envelope em casa e caminhado até ali com ela. Antes de sair, vi Eric na cozinha, mexendo com umas panelas no fogão.

"Quando você voltar, vai ter o melhor jantar do mundo te esperando", ele disse, depois de me dar um beijo na bochecha. Havia um calorzinho estranho dentro de mim ao sair da casa e saber que, quando voltasse, aquelas pessoas estariam ali me esperando, com sorrisos e carinho.

Respirei fundo quando uma brisa balançou meus cabelos. Fechei os olhos por um instante e depois desdobrei a carta. Estava pronta.

Oi, Angelina!

Se a conheço bem, está chorando nesse momento. Ou talvez não. Quem sabe? Você sempre foi uma boa surpresa, querida.

É estranho escrever essas palavras que só deverão ser lidas depois que eu me for, mas sinto que preciso e quero fazer isso. As más línguas diriam que é um gesto dramático e bobo, aliás, nós nunca sabemos quando vamos morrer. Trás má sorte pensar sobre essas coisas, quanto mais se planejar para esse acontecimento.

Bobagem. Eu sei que não vou viver muito. Com a minha idade, já era para eu estar no processo de me transformar em um fóssil. Tenho sorte de ainda ter olhos bons e uma mão firme o suficiente para escrever algumas palavras para as poucas pessoas que me importam.

E você é uma dessas pessoas, Lina. Desde o momento que apareceu no meu portão com o nariz enfiado em um livro. Ainda se lembra daquele dia? Há! Quando te convidei para entrar, podia jurar que você pensava que eu era uma bruxa pronta para te jogar no meu caldeirão.

Mas você não se intimidou por muito tempo. Logo foi se acostumando comigo. E eu definitivamente não precisei de muito esforço para gostar de você. Nós temos paixões parecidas. A diferença é que você ainda está pegando a longa e maravilhosa estrada da vida, e eu já desci do trem há algum tempo.

Querida, você foi a netinha que nunca tive. Mais que isso, foi minha amiga. Foi corajosa o suficiente para não se importar com os comentários de todos dizendo que a pobrezinha Angelina estava se envolvendo com a maluca da cidade. Você foi gentil o suficiente para dar atenção a uma senhora um tanto quanto solitária. Foi uma companhia maravilhosa. Passamos lindos momentos juntas, dos quais eu nunca me esquecerei. Acho que você também não.

Sei que minha partida deixará um vazio em você. Deixa um vazio em mim também. Você é dada à melancolia e vai se isolar de tudo e de todos quando a hora chegar. Mas meu nome não é Fátima se deixarei isso acontecer.

Há! Não senhora.

Se tudo correr conforme o plano, você está lendo isso na Romênia.

Me diga, como é aí? Tem tantos vampiros quanto contam nas histórias? Sinto muito por isso, aliás. Sei que tem medo de contos de terror, mas foi Sofia que escolheu viver aí, não eu.

Andei pesquisando e acho que a Transilvânia tem exatamente o que você precisa. Novos ares e aventuras. Não é isso que sempre quis?

O mundo é seu, Angelina. O mundo e todas as pessoas nele.

Não tenha medo. Há coisas maravilhosas para experimentar por aí. O brilho do sol, o sorriso de uma pessoa querida, os caminhos novos que começamos a traçar... Tudo tão simples. Tudo tão poderoso.

Aproveite cada segundo e me leve no coração. Você estará para sempre no meu também.

Preciso ir agora. Nesse momento, você está tocando a campainha. Prometi que íamos fazer biscoitos hoje e não quero deixar o seu eu de agora esperando do lado de fora, porque sei que, apesar de eu ter te dado uma chave da casa, você nunca a usa. Sempre com medo de incomodar! De ser inconveniente.

Você nunca é. Quem dera se os outros tivessem a metade do seu carisma.

Fique bem.

Te amo, filhinha.

Fátima.

No dia em que devia pegar o voo de volta para o Brasil, desci as escadas até a sala de estar e quase fui cegada pela luz do sol.

"Mas o quê..."

"Decidi seguir alguns dos seus conselhos", uma voz disse, e, só para não quebrar o costume, me assustei ao deparar com Eric quietinho em um canto perto da lareira. "Toda aquela escuridão era mesmo depressiva."

"Que bom que você se deu conta disso, Conde Drácula", Pedro falou, passando por mim enquanto equilibrava uma bandeja cheia de delícias. "Lina, tia Sofia disse para se empanturrar. Ela falou que você não pode ir embora sem experimentar seu bolo de limão."

"Ah, obrigada, Pedro. Não vai ser esforço nenhum comer tanta coisa boa."

"Foi o que eu disse para ela." Ele piscou para mim enquanto pegava uma fatia cortada do bolo e enfiava inteira na boca.

"Pedro!" A voz de Sofia veio da cozinha.

"Desculpa, tia!", ele falou com a boca cheia, e para mim sussurrou: "É muito injusto. Todo mundo gosta mais de você agora."

Eu lhe dei um empurrãozinho amigável. Sabia que estava brincando. Ele sorriu e desapareceu pela porta da cozinha.

Me aproximei de Eric sugestivamente, mas ele não se inclinou para me envolver em seus braços como de costume. Ao invés disso, manteve as mãos firmes na bengala.

"Então você está indo?", ele disse.

Mordi o lábio inferior, sem jeito. Não falei que ainda nem tinha feito minhas malas e que a ideia de voltar acabava comigo.

"Parece que sim."

Ele balançou a cabeça e comentou, com um falso pesar na voz:

"Justo agora que eu ia precisar de você e do seu charme com as pessoas."

"O que quer dizer com isso?"

Ele sorriu, mas, para ser sincera, parecia um pouco triste.

"Fechei a compra de um prédio no centro. Ele vai ser transformado em uma nova pousada em breve. Temática dessa vez. Foi ideia de Sofia deixar o lugar bem rústico, parecido com os hotéis das vilas medievais mais do interior do país."

"Eric!" Levei as duas mãos à boca, para tentar me impedir de soltar um grito que já tinha saído. "Não acredito que está fazendo isso!"

Ele ergueu uma sobrancelha para mim.

"Não é uma boa ideia?"

"É uma ideia maravilhosa!", exclamei. Minha voz saiu tão fininha que Vlad – que estava confortavelmente deitado no sofá – ergueu as orelhas para mim. "Meu Deus! Que incrível!"

"Pois é. Sofia teve uma reação parecida quando contei as novidades para ela ontem à noite, quando você já estava na cama." Ele massageou a nuca e disse: "Aquela nossa conversa trouxe à tona coisas que sempre estiveram comigo, mas que nunca tive coragem de admitir. E eu percebi que preciso mesmo tentar seguir em frente. A falta dos meus pais ainda pesa em mim em todas as decisões que tomo, mas não pode ser assim. Além disso, quero me manter ocupado. Em movimento."

"Eu nem sei o que dizer, sério. Só sei que estou muito feliz por você!"

Feliz era pouco. Eu estava radiante. Me joguei contra Eric e enlacei seu pescoço, seu cheiro me envolvendo.

"Seria bom te ter por perto, sabe?", ele sussurrou, enquanto ainda estávamos abraçados. Eric acariciava minhas costas. "Você disse que já trabalhou em uma pousada lá no Brasil, e sei o quanto leva jeito com as pessoas. Seria ótimo te ter no negócio."

"Ah, Eric..." Eu me afastei para olhá-lo. "Eu ia amar. Sempre quis mexer com as pessoas. Nunca tentei entrar na faculdade justamente por não encontrar um curso que me possibilitaria fazer o que mais gosto: conversar e tentar deixar todo mundo super à vontade."

"Deveria existir um curso para formar pessoas como você", ele disse com um sorrisinho. "Seria bem útil para a humanidade."

Eu ri, mas a verdade é que já tinha lágrimas nos olhos.

Eric segurou minha mão.

"Lina", ele chamou baixinho, encostando a testa na minha. "Não vai."

"Eric..." Engoli em seco. "Eu não posso ficar."

"Por que não?"

"Porque é impensável. Não posso mudar de país do dia para noite!"

"Meio que pode sim. A Romênia não exige visto até um prazo mínimo de três meses, então não tem problema."

"Mas..." Havia obstáculos. É claro que havia. Mas então por que não conseguia pensar em nenhum no momento? Por que aquela ideia parecia tão excitante?

"Você gosta da Romênia?", ele perguntou então.

"Amo! Sinto que não vi nem um décimo do que esse país ainda tem a oferecer. Pensar em não só visitar, mas ter uma vida aqui, parece... muito bom." Eu fechei os olhos com força. Precisava colocar minha cabeça no lugar. "Mas como eu poderia? A gente se conhece há tão pouco tempo..."

"Lina, do que isso importa? Se pensar em viver aqui te faz feliz, ótimo. Não estou dizendo que a gente precisa ficar junto se você não quiser, mas eu venho te observando e sei que não quer ir embora agora. Então, estou te oferecendo um emprego. E um quarto pelo tempo que precisar. Acha que é o suficiente para começar uma vida nova?"

Era mais que o suficiente. Muito mais.

Pensando bem, além da minha família, não havia mais muita coisa que me prendesse ao Brasil. Eu trabalhava em uma loja de sapatos que gostava mais ou menos, saía com alguns colegas nos fins de semana, lia e assistia TV à noite. Mas ali eu tinha feito três amigos preciosos, havia me apaixonado pelo país e estava animada para ver até onde aquela loucura boa poderia me levar.

Era maluquice? Talvez. Mas eu poderia ficar três meses ali sem problema. Depois, se meu coração pedisse para ficar, ou para ir embora... eu faria o que ele quisesse.

"Certo", disse, minha voz mal passando de um sussurro. Não acreditava que estava fazendo mesmo aquilo. Jesus, minhas pernas estavam bambas. "Eu fico. Pelo menos por alguns meses. Depois..."

"A gente não precisa pensar no depois ainda", Eric falou, seus olhos brilhando mais que diamantes quando ele olhou para mim. "Temos o presente. Um presente maravilhoso, por sinal."

"Tá bom", falei, e, quando a realidade me atingiu, disse mais alto: "Tá bom. Eu vou ficar!"

Senti os braços de Eric envolverem minha cintura. Ele me ergueu alguns centímetros do chão e espalhou beijinhos pelo meu rosto.

"Angelina, Angelina...", ele falava, rindo como uma criança.

"Eric, sua perna!", protestei, mas estava rindo também. Não conseguia parar.

"Não me importo."

"Mas eu sim." Escorreguei de volta ao chão. Estava ofegante. Eufórica. Sentia como se pudesse ir até a lua e voltar. "Preciso conversar com meus pais. Uma longa conversa. E Eric... você talvez possa encontrar algo para mim na sua pousada. A que você já tem. Quero trabalhar enquanto a outra não estiver pronta. Posso fazer qualquer coisa, sério. Não sou nem um pouco preguiçosa."

"Pode deixar", ele disse, enquanto me segurava perto. O sorriso em seu rosto era a coisa mais linda do mundo.

"E, bom..." Eu estava meio sem jeito, mas que se dane. Eu era corajosa o suficiente para mudar de país, conseguia falar sobre sentimentos! "Aquela parte sobre a gente não precisar estar junto... Era brincadeira, né? Porque eu quero ficar com você. Quero mesmo."

Eric não respondeu, ele me olhava com uma devoção que me deixou zonza. Senti seu toque na minha bochecha.

"Angelina, estou caidinho por você." Eu comecei a rir. Meu peito parecia prestes a explodir de felicidade. "E é claro que quero estar ao seu lado. Mas isso tudo é novo para mim e eu sou um idiota inseguro... não queria te pressionar."

"Você não está fazendo isso. Nem um pouco." Acariciei seu rosto lindo e o beijei de leve. "É o que eu quero também."

O beijo se aprofundou. Uma das mãos de Eric estava na minha nuca e a outra pousada gentilmente nas minhas costas. Eu não parecia ter o suficiente dele.

Me afastei de súbito quando me lembrei de uma coisa.

"Ah, tem algo de que eu não abro mão", falei para ele.

"Qualquer coisa que você quiser, está bom para mim, Angelina."

"A minha gata tem que vir pra cá. Não posso abandoná-la com a minha irmã. Jamais."

Eric jogou a cabeça para trás em uma gargalhada, depois voltou a olhar para mim com carinho.

"A nossa casa também é a casa da Serafina. Sem problemas."

"E o Vlad é castrado?"

"Não."

"Bom Deus, pelo jeito vamos ter gatinhos correndo pela casa!"

"Os gatinhos são só o começo", ele falou. "Quero uma vida inteira com você."

"Eu também", sussurrei, brincando com seus cachos. "Mas, para essa vida começar, primeiro você vai ter que me ajudar a falar com minha família. Sabe, garantir ao meu pai que você não é nenhum louco psicopata que está tentando me manter em cativeiro na Romênia."

"Nem um vampiro que pega garotas indefesas para trancar no sótão", ele brincou.

"Exatamente."

"Pode deixar. Acho que sou corajoso o suficiente para falar com ele."

"É bom que seja mesmo."

Ele voltou a me beijar, mas não deu para aproveitar muito, porque logo ouvimos passos adentrar a sala de estar. Eric soltou um gemido de protesto ao se afastar.

"Desculpa por ouvir atrás da porta", falou Pedro para nós dois, enquanto Sofia nos observava por cima do ombro do sobrinho. "Mas isso é mesmo verdade? Lina vai ficar?"

Eric e eu trocamos um olhar e sorrimos. Acho que aquilo era resposta o suficiente.

Sofia soltou um gritinho e Pedro deu um murro no ar, pulando de alegria. No instante seguinte, os braços deles estavam ao meu redor.

"Ah, isso é maravilhoso!"

"Finalmente vamos ter alguém aqui capaz de abrandar o mau humor do Eric!"

"Pedro, você já está querendo espantar a minha namorada?"

"Se ela não correu até agora, não vai correr mais."

"Querida, o que você acha de um jantar de comemoração?"

"Perfeito! Vamos levá-la ao melhor restaurante da cidade!"

Eu estava sufocada por abraços e beijos. Os melhores abraços e beijos do mundo todo.

Se algum dia alguém me falasse que eu encontraria a felicidade verdadeira na Transilvânia, teria um ataque de risos, mas foi o que aconteceu. Aquele lugar, aos poucos, se tornou minha casa. Mas, mais do que o país, as pessoas se transformaram no meu lar.

Só para deixar registrado, eu fiquei em Râşnov por muito mais do que três meses. Decidi estabelecer moradia fixa, e essa foi a melhor decisão que tomei.

O que Eric e eu sentíamos um pelo outro foi crescendo cada vez mais forte, a ponto de eu não conseguir mais imaginar a minha vida longe daquele cara todo vestido de preto, cabelo enroladinho e um coração do tamanho do mundo. Da mesma forma, não conseguia me separar de Sofia e Pedro. Eles eram incríveis. Sempre foram.

Eric abriu a outra pousada e ela é a coisa mais linda do universo. O ambiente ficou sensacional, e agora que estou aprendendo romeno e já tenho inglês fluente, trabalho diretamente com os hóspedes. No próximo ano, se tudo der certo e os lucros colaborarem, estamos pensando em expandir o negócio para Bran. Não seria demais?!

Serafina, aquela gatinha safada, acabou mesmo arrumando filhotes com Vlad. Agora temos um total de cinco gatos correndo pela casa e me dando sustos no meio da noite. Eric está sempre brincando com eles. Não quis deixar que a gente doasse nenhum. Por mim tudo bem, eles são muito fofinhos e eu acabei me apegando a todos.

Minha família vem me visitar pela primeira vez na próxima semana. Estou ansiosa para mostrar a eles todas as coisas que me fizeram ficar apaixonada pela Romênia! E, para ser sincera, já está passando da hora de todos conhecerem pessoalmente meu namorado. Gosto de fazer medo em Eric, dizendo que meu pai é intimidante, mas ele não cai mais nessa desde que os dois começaram a trocar receitas no WhatsApp e conversar sobre literatura.

Tenho a ligeira impressão que minha família gosta mais dele do que de mim.

Meus dias são preenchidos na pousada, ajudando Sofia na feirinha – onde vendemos as flores do jardim – lendo, brincando com os gatos e estando junto de Eric o máximo de tempo possível. Ah! Ele também me leva para ver um pedacinho da Transilvânia quase todo fim de semana. Ainda falta um monte de coisas para ver, mas a gente não está com pressa. As horas na estrada com ele, com o rádio ligado e a janela aberta, são o ponto alto dos meus dias.

Sempre penso em Fátima. Não tem um dia em que não me lembro dela e agradeço por ser a responsável por me trazer até aqui. Aprendi que a dor nunca vai embora, só amortece e vai se transformando em saudade. O engraçado é que sempre que estou em um daqueles dias tristes por conta dela, prestes a desabar, algo de muito engraçado acontece e uma risada me escapa em meio às lágrimas. Na semana passada, Pedro passou em frente à porta do meu quarto, puxando uma garota risonha pela mão. Ele estava prestes a entrar no seu quarto de fininho quando Sofia apareceu do outro lado do corredor.

"Ah, então essa é a sua namorada!", ela praticamente gritou.

Pedro levou um susto e a garota recuou até tropeçar em um sofazinho do corredor e derrubar um vaso de flores que estava por perto. Pelo que vi do meu quarto, Vlad estava deitado no tal sofá e fui com tudo para cima da garota.

Ela ficou bem. Só uns arranhões superficiais. Mas Sofia e eu rimos tanto que achei que ia passar mal.

É assim que os dias passam. Uns bons e outros nem tanto. Mas está tudo bem. Às vezes tudo o que preciso é olhar para o girassol no meu braço e me lembrar daquele sonho que tive com ela, meses atrás.

Não vou mais fugir da luz. Não me permito que a morte dela tire a felicidade de tudo o que a gente viveu.

E, em momentos como esse, observando o sol se pôr da janela do meu quarto enquanto Eric está atirado no chão, brincando com os gatos, não me sinto sozinha.

Minha amiga está em todo lugar. No meu coração, na minha risada, no ar que respiro.

Olho para as grandiosas montanhas que se estendem no horizonte. Se fechar os olhos agora, sei que posso ouvir a voz dela.

Querida Sofia,

Não há um dia em que eu não pense em você. Não há nada que não me faça lembrar o seu rosto. Eu pensei que com o tempo suas feições poderiam desaparecer da minha memória, mas elas parecem estar gravadas a ferro e agora sei que nunca desvanecerão.

Há dias em que tenho vontade de pegar o primeiro voo e ir atrás de você. A vontade é tão forte que quando deito na cama à noite, sonhos confusos sobre como seria o jeito mais fácil e rápido de chegar até sua porta me consomem até o amanhecer. Eu desejo te ver a todo instante, mas é como se algo dentro de mim me amarrasse e me impedisse de fazer o que quero.

Tenho raiva de mim. Raiva por não ter coragem o suficiente, raiva por todos pensarem que não ligo para o que dizem, mas a verdade é que eu ligaria sim se os comentários fossem sobre nós.

Sempre que me permito sonhar com um futuro em que nós poderíamos ser, é como se o fantasma de pessoas há muito mortas se levantassem dos túmulos e viessem me assombrar. Os anos podem ter passado, as décadas se acumulado, mas ainda não consigo me esquecer do que tive de enfrentar quando meus pais souberam sobre mim. Sei que o mundo mudou. Sei que as pessoas que um dia quiseram me rotular por quem eu decidia ou não amar não podem mais se levantar para me atingir. Mas do que isso adianta? As memórias estão na minha mente, assim como o medo.

Todo o seu amor não foi capaz de me fazer esquecer. Toda a sua dedicação, gentileza e ternura não tiraram o terror de mim. Você estava disposta a tudo e eu também queria estar, mas a verdade é que não sei se ainda consigo me reconciliar com essa parte de mim mesma.

Lembro-me do que você me disse uma vez, sobre eu ter sido reprimida a vida toda e, quando decidi me libertar, as coisas aconteceram como aconteceram. As amarras são fortes demais e ainda não me esqueci daquele lugar horrível onde vivi por anos, nem dos punhos do meu pai e o choro estrangulado da minha mãe.

Se até eles pareciam capazes de acabar comigo por ser quem sou, o que outras pessoas não fariam?

Talvez eu me arrependa das minhas decisões, mas acredito que o melhor tenha sido deixá-la ir. Melhor para mim e melhor para você. Sei que disse que estava disposta a enfrentar as consequências, Sofia, mas eu não tenho certeza se você sabe o que isso significa.

Eu te amo. Amo tanto que todo o meu corpo dói com a ideia de que talvez não a veja outra vez. Se eu for primeiro – e eu sei que vou, pois não acho possível que possa viver em um mundo em que você não mais habite – espero que meu amor lhe acompanhe para sempre.

Não sei se o amor será capaz de curar a dor pelos erros que cometi com você, mas tenho de ter esperanças de que talvez seja o suficiente.

Fiquei bem, querida. Eu estou bem também. Nada na minha vida foi melhor do que passar vinte anos com você. Sei que ainda temos uma eternidade toda pela frente.

Com carinho,

Sua Fátima.

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