Prato Especial: Uma Dança Eterna, parte um
POR Jiih_Celly
A vida é uma música:
Os batimentos cardíacos ditam o ritmo;
Escrevemos a letra ao correr dos dias;
E a melodia é garantida com o equilíbrio de sentimentos e emoções.
Mas, ela pode ser muito mais envolvente, a partir do encaixe de dois corpos numa dança transparente, harmonizando duas vidas distintas que possuem personalidades fortes, somado a atração entre opostos.
É sedutor, curioso e interessante apimentar a vida com o amor!
Jicelly Vitória.
Aquele abraço apertado era tão quentinho...
O guia dos passos era muito preciso e ritmado.
Ao olhar seu rosto, qualquer um podia ver o sorriso resplandecente que amava bailar tango ao som de La Cumparsita. E, eu era privilegiada por ver o sorriso de Papá, desde que nasci, ou seja, mais sortuda, do que mi Mamá, até!
Mis padres (Carlos e Agustina) se conheceram num Carnaval em Salvador, na Bahia, e se apaixonaram. Digo que foi um encontro certo do destino, pois Papá sabia falar muito bien em espanhol. A família de mi mamá passou aquele ano lá e foi o tempo que os dois tiveram para namorar, antes que ela retornasse para a Argentina. Mas, continuaram com o namoro à distância. No ano seguinte, no mesmo feriado, eles se reencontraram e diante da família, se casaram um pouco depois. Seu Carlos dizia que "o amor é tão simples que pode acontecer das formas mais inusitadas, inesperadas e num curto espaço de tempo" - como no caso dele. Talvez fosse uma justificativa para o fogo de paixão deles, mas se tornou uma verdade para mim que presenciei de camarote o lindo amor deles.
Como mi mamá não falava bem o português, eles resolveram morar na Argentina. Mas, Papá me ensinou a língua e me contou a história do povo que eu também fazia parte, pelo menos no sangue, já que eu não parecia nada com ele, infelizmente, pois achava Papá bem bonito, mas eu sou a cópia de Mamá, desde os olhos cinzentos com fundo verde até a minha personalidade. Somente o pequeno detalhe de fracas ondulações nas pontas do meu cabelo castanho, eu posso dizer que puxaram o cabelo cacheado e volumoso de Seu Carlos.
Era certo irmos ao Brasil no Carnaval para comemorar o aniversário de casamento deles e visitar a hermana (irmã) de Papá, ou seja minha tia, a Camila e minha prima Vitória (a quem tenho como mi hermana, quien me ajudou a ser um tanto fluente no português e que diz ser "chique" o meu sotaque argentino). Nós aproveitavamos as férias para nos ver. Se bem que eu acho que ela amava vir ver as belas criações divinas (qualquer garoto que ela via por aqui). Elas eram as únicas que queriam manter o laço familiar e o contato frequente conosco. Infelizmente, la mamá de Papá não aceitava que ele "tivesse a abandonado" e não entendia que ele fue a vivir su propia vida y su amor e por isso nunca quis me conhecer. Mas também não fez falta, pois tenho os melhores abuelos ou avôs do mundo todinho, os pais de mi mamá. Eles têm um restaurante muito famoso chamado El Farol em Buenos Aires, administrado como um negócio de família e em família. Mas, mamá não tinha nem tem dom para a cozinha. Só auxiliava na parte administrativa e na tesouraria, controlando os gastos e os lucros. Papá, quando admitido, com seu carisma imenso e humor agradável, ajudava na atenção aos clientes, como uma espécie de gerente e conquistava os corações famintos de alegria em uma sociedade que nos massacra pela correria do dia.
O amor dos meus avós pela culinária foi passado exclusivamente para mim: Maria Florência; e viver inserida neste ramo só fez desenvolver ainda mais meu talento. Assim, eu quis me profissionalizar na área de gastronomia.
Eu fico feliz de lembrar que Papá pôde estar presente na minha formatura em 2019, antes de partir no final do ano passado, um dia antes da véspera de Natal, que não teve como ser comemorado.
Eu gosto de pensar e acreditar que seu infarto se devia ao fato do tanto de amor que ele tinha em seu coração.
O luto foi intenso e compartilhado por muitos amigos, vizinhos e clientes. Quando as coisas voltaram ao "normal", clientes fiéis nunca deixaram de ir e amavam lembrar das brincadeiras e conversas com o falecido – termo usado por eles. Não que fosse mentira ou de forma maldosa. Acho que demorei em aceitar que nunca mais o veria.
Ele era uma lembrança viva no ambiente. Talvez fosse por isso que eu não me sentia bem. Parecia que alguma coisa faltava na minha vida. Eu fiz vários cursos extras como alimentação saudável, decoração em frutas e a diversidade de temperos. Encontrei uma pós-graduação na culinária brasileira e não pensei duas vezes antes de fazer. Amei relembrar e conhecer os aspectos da cultura de Papá. Porém, o curso espanhol, não era tão brasileiro – óbvio – e Papá havia me ensinado modos e pontos de sabores diferentes dos ensinados.
Então, pedi férias no restaurante para viajar para o Brasil e ninguém da minha família ficou contra. Pelo contrário, eles perceberam que eu precisava desta conexão e me apoiaram. Difícil foi fazê-los entender a minha escolha para um destino sútil: São Genésio. Uma cidade simples e pequena com lugares bonitos para visitar. Um lugar perfeito para fugir da Polícia, segundo minha prima-hermana Vitória, a que mais contestou e até acho que parou de tentar me convencer quando percebeu que era realmente o que eu queria, fugir, não da Polícia, mas da realidade de não ter mais o meu herói.
Agora, com meu fone de ouvido vermelho, aguardo o início do voo que durará duas horas e quarenta e cinco minutos, escutando La Cumparsita, recordando do meu parceiro de dança e sentindo o tanto de coisa que vem me acompanhando nos últimos meses que apenas uma palavra pode resumir: saudade.
Acordar cedo para alguns é muito difícil, mas sem querer, acabei me acostumando. A única exigência é que seja escutando música. Não me julgue, pois cada louco com sua loucura. A que está tocando hoje é Paradise do Coldplay – banda top. Os caras manjam.
Quando me sento na cama, desativo o despertador e me levanto, esticando o corpo, escutando alguns estalos: o pai aqui tá "crocante", babys. Coloco na playlist do celular e ativo o aleatório e vou para a sala para conectar com a caixa de som, aumentando o volume do celular e deixando o volume da caixa de som mediano para poder ouvir as canções em todos os cômodos de maneira ambiente, enquanto vou me arrumando, pois não quero acordar os vizinhos e aproveito para alongar e acordar o corpo, seguindo o ritmo, e logo estou movimentando o corpo em uma sequência de passos espontâneos. Quem dança vai entender. A gente não consegue se conter diante de uma sequência de passos aparentemente perfeita na mente e se não reproduzi-la, provavelmente esqueceremos. É como aqueles que cantam ou que entendem de música, quando percebem que alguém desafinou ou saiu do tom, seja em voz ou instrumento. É bem natural.
Talvez seja uma fixação, mas amo música e estar em meio a um silêncio é aterrorizador para mim. E como moro sozinho num apartamento alugado dividido em sala, cozinha, um corredor que dá acesso ao banheiro e aos dois quartos, onde o maior é o meu laboratório de dança, pois um dançarino que se preze deve ter um espaço para dançar e o outro que uso para beneficio próprio, seja dormir ou outras coisas. Por aqui sempre tem uma música tocando por algum dos cômodos, quando não tenho companhia, e bem, vira e mexe, eu arranjo uma.
Mas, eu confesso que também odeio o silêncio por causa da minha infância. Grande parte dela foi em Salvador, então "senta aí que lá vem história".
Minha mãe, Lorena, engravidou de mim sem ter planejado e um tempo depois que nasci, ouvi o silencioso som da rejeição: meu pai nos abandonou. Quando eu tinha sete anos, fomos morar com um namorado dela que no início se mostrou amistoso e após dois anos, até o chamei de pai. Mas depois, ele nos apresentou o silêncio de temor. Começou com a frustração do seu desemprego. Quando eu chegava da escola, eu tirava o uniforme para não sujar enquanto recebia o castigo. Ele dizia que apenas queria a minha mãe e não a mim: outra rejeição. Não dá para dizer qual doeu mais. As duas foram e são o que são.
Um dia, Dona Lorena notou minha barriga machucada e eu culpei o futebol. Mesmo eu estando infeliz com o canalha, ela estava bem, então não contei. Mas, naquela mesma semana, ela chegou mais cedo num dia e o flagrou me maltratando. E ao me defender, confrontá-lo e bater em sua face, também foi alvo de sua agressão, o que se tornou rotina e, por ele sempre estar em casa, não podíamos pedir ajuda. E também, a casa ficava bem afastada das outras. Em pensar que antes ele dizia que gostava da falsa ilusão de ter um sítio, morando longe de outras casas.
Um tempo depois, ele começou a sair para beber, gastando o dinheiro de minha mãe, mas ela aproveitou esse momento que ele estava fora para achar uma solução: juntou parte do dinheiro que recebia, o guardou em um envelope e o escondeu no fundo da minha mochila. Nós começamos a ter pouco para comer, pois ela pagava a luz e a água da casa, porque não podia fazer o miserável perceber nada. Além disso, ela entrou em contato com seu irmão (meu tio) que morava em São Genésio. Ele enviou passagens de voo, um envelope com dinheiro para viagem e um Mp4 de presente para mim no endereço de trabalho da minha mãe para não ser suspeito para o meu padrasto. A preocupação de meu tio era nos tirar de lá.
Minha mãe sempre me contava as novidades, me dando fé de que iriamos sair dali, nos dois meses que se seguiram. As músicas já baixadas no Mp4 que meu tio me mandou me acalmavam e alegravam. Eu só o usava no intervalo das aulas, no colégio para não levantar suspeitas.
Até que o dia da fuga chegou. E eu me lembro de cada detalhe da agonia que foi aquele dia. Nós arrumamos as mochilas com o pouco que tínhamos. Eram poucos os meus brinquedos e como uma criança inocente, eu fiquei feliz de não deixar nenhum deles ali com ele. Acho graça disso até hoje.
Antes de o táxi chegar, o bêbado apareceu e nos flagrou na frente da casa e nos encarou como uma fera. Apontou o dedo sem um foco e com passos largos se aproximou. Eu ouvi os sussurros aflitos de oração de minha mãe e quando ele quase a tocou, simplesmente caiu desacordado no chão. Vivo, eu sabia que estava. Pena? Não senti e é provável que jamais sinta. Mas, raiva de Dona Lorena por verificar isso, sim, eu senti, e muita. Em reflexo, ele segurou seu braço e minha reação foi chutá-lo fortemente na barriga, fazendo-o soltá-la, reclamando de dor e em defesa ela se afastou dele. Neste instante o táxi chegou. Despertando minha mãe, que se adiantou a me puxar e pegar as outras sacolas no canto, gritando para o motorista não desligar o motor e nem descer, acho que de nervoso.
Estar com o carro em movimento foi tranquilizador. Ao conversar com o motorista e explicar a situação, ele se preocupou em acelerar e ultrapassar os outros carros, além de praticamente nos escoltar até o aeroporto e só se despediu quando embarcamos no avião. Parecia um cara gentil.
Estar pela primeira vez em um avião me deixou nervoso, mas eu gostei da experiência. Ouvi música durante todo o percurso.
Quando avisaram que a águia ia pousar, minha mãe avisou a meu tio, por mensagem no celular. E quando em terra firme, depois de pegarmos as bagagens, pude enfim conhecer pela primeira vez o tio Lázaro, que cuidou de mim mesmo de longe. Hoje, eu sei que ao me enviar aquele reprodutor de músicas, ele me adotou em seu coração e depois de bastante tempo, eu o aceitei como meu pai. É engraçado que nós nos parecemos muito fisicamente. Temos a pele em um tom leve de marrom e os cabelos castanhos como chocolate, sendo que o meu é encaracolado e eu deixo grande, apreciando o volume e nem sei dizer de fato seu comprimento, e o dele, bem, meu tio nunca deixou crescer e duvido que um dia o faça. Segundo Dona Lorena, eu só tinha do homem que biologicamente me fez, a covinha na bochecha esquerda, os olhos castanhos médios (os dela e de meu tio são pretos) e um tal olhar que ela diz ser determinado e feroz (doideira), inclusive devo agradecê-lo pelo gene míope de 2º grau, por favor, sintam a ironia e o deboche. Para dançar, consigo me situar sem precisar utilizar meus óculos se estiver sozinho e num lugar que já conheça. Mas, para uma apresentação, uso lentes de contato.
Inicialmente nós moramos com o tio e sua esposa Sarah que é muito graciosa e meiga e é como uma segunda mãe. Depois conseguimos um cantinho legal. Meus tios dirigem um restaurante sofisticado de comida caseira e nós ajudamos. Bem minha mãe, por que como criança, eu só podia curtir as boas canções tocadas pela banda ao vivo, o karaokê na parte do Pub ou as que meu tio colocava nas caixas de som.
O meu talento musical foi primeiramente notado pelo meu tio e assim, tive aulas de canto, de violão e até inglês e espanhol, pois segundo meu tio: "Um artista deve ser preparado para encantar o mundo." – meu Coroa sem dúvidas é o melhor. Porém, certa vez me deixei levar pela canção. Não lembro como começou nem o motivo que me fez perder a razão ao seguir o ritmo com meu corpo conscientemente, sentindo cada pulsação de vida fluir por cada membro, como cargas elétricas, os passos simplesmente surgiram, liberando um acúmulo de emoções que outrora, eu não havia expressado. Com certeza eu estava desengonçado e de uma forma embolada tentava reproduzir o que a melodia da música Titanium de David Guetta me inspirou a fazer. "Você me derrubou, mas não vou cair. Sou de titânio." Eu disse para meus fantasmas do passado, através da dança. Eu me libertei. E quando a atmosfera do meu quarto voltou ao normal, eu percebi que não podia viver sem aquilo. Tornou-se necessário. E um dia, fui flagrado pela tia Sarah que amou e super apoiou.
Lembro-me da minha primeira apresentação de Hip Hop na escola e minha mãe chorou de emoção, embora a música fosse totalmente remixada. Foi dali para frente que ela foi minha maior fã. Enfrentamos tanta coisa e o pouco de tempo de plena felicidade que ela teve, foi tão injusto... Nos dois anos que ficamos lutando contra o maldito câncer de mama, seu sorriso estava ainda mais vivo e ela, viveu cada dia intensamente e me fez prometer que iria "aproveitar a vida com atenção aos presentes que o destino colocaria em meu caminho e viver cada dia como se fosse o ultimo com escolhas equilibradas que não sacrificasse meus sonhos, meus dons e paixões".
Seu falecimento foi aos meus 18 anos e hoje, com 24 anos, estou cursando o último semestre de Dança na Universidade Federal de São Genésio (UFSG) realizando um grande sonho. Infelizmente, a arte não é tão reconhecida no Brasil, mas o povo mais artista sem dúvidas é o brasileiro. Uma pena que não investem nem valorizam esta área. Viver de talento é com certeza um risco justamente pelas pessoas só buscarem estabilidade financeira. Por isso há muitos profissionais insatisfeitos com sua profissão. O autoconhecimento é muito importante na escolha da carreira profissional. E eu poderia ser um ótimo Coach com todas essas frases de efeito.
Além da faculdade matutina, trabalho como bagageiro de segunda a quinta na Alpha Pousada, que na minha humilde opinião é a melhor da cidade. E o encaixe na função foi feito pela amizade de meu tio com o dono Roberto e também falar outros idiomas me ajudou na vaga que estava disponível. De início foi para ajudar o meu tio pelas dívidas conseguidas com o tratamento de minha mãe e ganhar um pouco mais que um salário mínimo fez diferença. Mas, depois uma grande crise financeira assolou por aqui. Infelizmente, a pousada também teve seus baixos e demissões. Todos os que permanecem fazem um pouco de tudo, em respeito. E graças a Deus, recebemos mais turistas nesse ano e a economia melhorou por aqui, uma pena que muitos amigos meus viajaram e deixaram um alivio sobre mim, haha, brincadeira. Falando sério, eu sinto uma falta braba da galera e das bagunças que fazíamos.
E é lembrando da minha rotina que me adianto em terminar de me arrumar, tomar um cafezinho e comer um pedaço do bolo de laranja delicioso que tia Sarah fez para mim.
Quando estou pronto, vestindo uma calça esportiva preta e uma camisa marrom de mangas curtas e calçando um tênis também marrom, de cano alto e os óculos no rosto, pego meu celular e o fone de ouvido e coloco no bolso lateral da calça e minha mochila que guarda os materiais de anotação que usarei na faculdade, meu almoço e o uniforme da Pousada e coloco nas costas. Infelizmente, além das aulas de hoje, terei de participar de uma reunião que a coordenação do curso convocou com a minha turma para tratar sobre a cerimônia de Colação de Grau.
Ao sair do apartamento, tranco a porta, no corredor cumprimento a vizinha Leila que retribui e me deseja um bom dia como sempre. Desço as escadas e no último andar, encontro minha bicicleta, a pego, abro o portão e saio do alojamento, fechando o portão. Em seguida, conecto o celular com o fone de ouvido, coloco a playlist aleatória e posiciono o fone na orelha e logo a voz de Sam Smith preenche o meu silêncio com a canção Time after Time que é original da Cindy Lauper e Rob Hyman, guardo o celular no bolso lateral da calça e subo na bike, pedalando para começar o meu caminho, aproveitando a linda vista da orla da praia, admirando o céu e as paisagens que encontro e agradecendo pela vida, até chegar à universidade.
Após a terceira e última aula do dia, a reunião começou atrasada, pois a galera demorou a se juntar e quando enfim, ela terminou encontrei alguns colegas um tanto tagarelas. Quando consegui fugir, subi na bike e sai pedalando rápido pelo canto da pista, cortando o caminho pela estrada da rodoviária para chegar logo ao centro da cidade. Tudo por aqui se conecta como um grande círculo por ser um interior pequeno. Entretanto, o que devia me adiantar – o atalho – está surpreendentemente em grande movimento, ao ponto de me fazer diminuir a velocidade e por fim, opto por apoiar a perna esquerda na calçada, esperando um espaço entre os vários carros e avanço quando possível.
Valeu aí, Sr.Destino!
Quando uma muvuca enfim abre um caminho para mim – graças a Deus – acelero o pedalar e saio da área da rodoviária. Avisto à esquerda a entrada da cidade e ao fazer uma curva para seguir à direita, sinto um esbarrão de repente e no supetão, pulo do assento e firmo as duas pernas no chão e tento firmar minha magrela – a bicicleta – para não arrebentá-la e de quebra ainda aguentei o peso da morena que apoiou no guidão. Só faltava essa, na moral. Ouço os murmúrios da morena, enquanto ela se levanta devagar, com a cabeça baixa e os cabelos longos e castanhos cobrindo seu rosto, se afasta se ajeitando e aparentemente, não se feriu.
– Êee... – balbucia e por alguns segundos, me surpreendendo com a voz doce. Mas, não posso perder mais tempo.
– Fico feliz que esteja bem. – digo e rondo minha bicicleta com o olhar – E que minha bebezinha está inteira. Um bom dia, senhorita. – subo na bike e sigo meu caminho, correndo para chegar à Pousada.
Quatro minutos depois chego e noto vários carros sendo estacionados. Guardo meu veículo nos fundos e entro pela porta que somente os funcionários têm acesso por dentro, uma vez que fica na nossa ala de descanso. Encontro com Luciano, recepcionista e um amigão de infância que me segue berrando, enquanto corro para trocar de roupa, ouvindo o citar temeroso que se receber reclamações a culpa será minha. Dramático, dramático.
Já pronto com o uniforme vermelho chamativo com botões dourados e alguns detalhes pretos e como se já não bastasse a terrível fantasia, um chapéu vermelho completa o look do guarda real da Inglaterra aqui. Atendo uma família de hóspedes que chegam, iniciando meu trabalho e então, percebo que guardei os óculos e não coloquei as lentes. Como já estou familiarizado com este lugar, não é difícil me situar, e apesar de não ser fácil, eu consigo. Mas, antes de retornar ao meu lugar, na porta de entrada, vejo Luciano livre e o chamo aproveitando que não há hóspedes por aqui e faço um sinal para ele apontando meus olhos e piscando rápido e ele responde com outro, perguntando onde está e eu aponto para o corredor, curvando a mão direita para esquerda, indicando nossa ala. Após me mandar um belezinha com as mãos, ele vai com o passo apressado.
Quando volto ao meu posto, vejo saindo de um táxi, uma mulher com uma silhueta que apesar da minha visão embaçada, parece ser bem desenhada. O motorista também sai e retira do porta-malas, uma mala tão grande que facilmente a dona caberia dentro. O infeliz do taxista parte, deixando-a atravessar o estacionamento de forma desengonçada. E eu fico agoniado querendo cumprir meu trabalho.
Recebo uma tapa no braço e ao me virar, encontro Luciano que me entrega os meus óculos e corre para trás do balcão quando um hóspede se aproxima com certeza, para pedir alguma informação.
Pronto que vou ficar terrível – com esse chapéu ridículo e ainda por cima, óculos. Lançando uma nova moda, seguindo a minha primeira graduação – Passar – e a pós-graduação – Vergonha. Mas, fazer o quê, não é?! Eu já nasci do avesso, haha!
Viro novamente para frente, colocando os óculos e vejo a mulher caminhar desfilando parecendo ser a dona do mundo e logo ouço de forma imaginável o soar da canção Miss Independent do Ne-Yo. Combina totalmente com ela. Desço as escadas, me aproximando da linda dona de longos cabelos castanhos lisos com ondas nas pontas que além da mala carrega uma pequena bolsa no ombro. Ela usa um top cropped com mangas curtas e um short de cintura alta que me apresenta suas belas pernas torneadas. Ambos são pretos e modelam seu corpo violão perfeitamente – deu uma vontade de tocar agora. Eu espero que os anjos da guarda e os outros que ficam entre nós, não leiam a mente humana porque a minha, no momento, está muito pecaminosa. Perdoa-me, Papai do Céu. A carne é fraca. Sério, é bem capaz desses pensamentos me levarem a um lugar terrível após a morte. Perdão, perdão, Senhor! E antes que me estranhem por analisar o look da moça, aprendi um pouco sobre moda com uma das minhas maninhas do coração, a Lina tagarela, que já trabalhou na Pousada, mas depois foi para uma loja de roupas e passou muito tempo falando sobre isso. Ela foi uma das que me abandonou e partiu para Romênia após o falecimento da Dona Fatima, a quem muitos não gostavam por aqui, pois aquela senhora não tinha papas na língua. E mesmo não sendo tão próximo a Coroa, eu a venerava pelo simples fato de fazer bem a Lina.
Encho meu peito de ar para lhe falar com uma voz bem charmosa – o mínimo que conseguirei com esta aparência ridícula – entretanto, ao olhar em seu rosto, antes de pronunciar qualquer cumprimento, vejo lindos olhos cinzentos com um fundo verde, lançados de forma afiada em minha direção, junto a uma abertura de seus atraentes lábios rosados, transparecendo sua surpresa.
— Fuiste tú! – diz a morena, dona da voz doce, com quem me esbarrei no caminho para cá. E só agora noto seu sotaque delicioso e apaixonante de ouvir. Acho que se eu prestasse atenção antes, me atrasaria ainda mais, somente para gravar esse som suave e reproduzir sempre que eu quisesse. Não que eu não vá memorizá-lo.
No entanto, sua expressão raivosa — e encantadora — me transmite o seguinte recado: Estou lascado.
Que o Santo Deus me ajude!
— Fuiste tú! – acuso o chico a quem eu iria aproveitar o esbarrão para perguntar onde ficava a tal Pousada. Já tinha sido desgastante ir do Aeroporto de Guarulhos para a Rodoviária na mesma cidade, a qual estava cheia ao extremo. Depois de una hora de espera, que extraiu toda la minha ansiedade pela aventura, o ônibus que me levaria a São Genésio finalmente chegou no ponto quase deserto. E assim, várias pessoas surgiram do além. Apenas eu deveria não saber da demora do tal ônibus.
Depois de algum tempo pela estrada, ao contemplar mais verde que prédios, tive a sensação de tranquilidade. Se aquela experiência fosse tão boa quanto eu queria que fosse, com certeza iria repetir a dose.
Chegando ao interior, a entrada já me encantou e o cheiro do mar... Ai,ai, perfeito. Eram duas grandes guarnições que preenchiam dois arcos azuis que cobriam as pistas de ida e vinda, com uma placa na parte de cima do arco que ia de uma ponta a outra, nomeando o local. Passar pelo arco era como estar num pequeno túnel.
Mas, sem dúvida, a melhor parte foi, enfim, poder esticar as pernas, a coluna e movimentar o pescoço após desembarcar na Rodoviária local que fica logo depois da entrada virando à direita e com uma área bem isolada que não entendo se queriam realmente que as pessoas viessem. Dali notei que haviam mais pessoas do que imaginei que encontraria e me di cuenta, de fato que estava num lugar totalmente desconhecido e sem ninguém que conhecia. Perceber isso assolou certo nervosismo que talvez fosse pela ansiedade da viagem, ao mesmo tempo em que me encheu de expectativas. Caminhei devagar, arrastando a enorme mala com certa dificuldade a qual tinha total culpa: trazer cinco pares de tênis, sendo que não havia trazido somente os tais, mas também, uma sandália rasteira e dois sapatos de salto altos. Afastei-me um pouco do ajuntamento de pessoas. Alguns já embarcavam em carros que provavelmente eram parentes que moravam aqui e outros entravam nos cinco carros de táxis que logicamente não supriram a demanda dos turistas. Fui andando pensando que se eu me afastasse encontraria um ônibus, um taxi que estivesse voltando vazio. Atravessei a pista que nem imaginava onde daria. Ao sair daquela rua, seguindo o caminho que os carros faziam, virei à direita e avistei um campo de flores belíssimo e a simples comunidade um pouco longe. E calculando que andaria muito, suspirei. Ouvi som de carro e vi um táxi vindo na outra pista, voltando provavelmente para a rodoviária. Daria para eu fazer sinal se atravessasse rápido. Foi o momento que me esbarrei no ciclista e além de não se desculpar nem ouvir se eu iria fazer isso, ele me fez perder o táxi. Eu continuei ali pelos três minutos mais chatos da minha vida e quando enfim chegou outro, bom, nem tenho palavras para dizer sobre o motorista que parecia não estar a fim de trabalhar e duvido se algum dia estará. Eu reconheci o ciclista por causa dos cabelos encaracolados numa cor forte de chocolate que nem essa piada de chapéu consegue esconder.
— Espanhol? Ok. Buenas tardes. Eso fue un incidente. Déjame darte la bienvenida. — Ele falava bem o meu idioma. E não vai se desculpar, já notei. Respirei fundo, tentando me acalmar. Deixei-o juntamente com a minha mala, segui subindo a escada e entrei na Pousada e por alguns segundos admirei o local, muito mais bonito e arrumado que as fotos do Google. Com certeza não haviam atualizado e eu daria esta sugestão mais tarde. Senti o ciclista bagageiro atrás de mim e ao virar para ele, me indicou a recepção.
— Olá, senhorita... — o recepcionista de cabelo preto bem aparado que me atende é interrompido pelo ciclista.
— Espanhol Luciano! — diz, me fazendo revirar meus olhos e o tal Luciano murmura um "Como eu iria adivinhar?" — Hola, senorita... — estendo a mão para ele parar.
— Olá, Luciano. Boa tarde. Fiz uma reserva de quarto pelo site de vocês. — falo em português e vejo a surpresa no rosto do ciclista e o divertimento na face do recepcionista.
— Seu nome, por favor. — Luciano continua o atendimento.
— María Florência Suárez Martins.
— Ok. Só um instante. — pede e mexe no computador. — viro para o bagageiro e o encontro me encarando com as sobrancelhas franzidas como se quisesse perguntar algo e nem disfarça ao perceber que o flagrei. Ele continua tentando fazer sua descoberta seja lá o que seja. — Documento de identificação, por favor. — Luciano pede e eu pego na bolsa que carrego e o entrego. Ele confere, mexe no computador, pega uma lista e me dá para assinar. Quando termino, ele carimba e me entrega um papel e uma chave presa a um cartão com o número 12. — Seja bem-vinda a Pousada Alpha, o Lorenzo vai levá-la ao seu ao seu quarto. Esperamos que aproveite sua estadia aqui, durante as duas semanas seguintes. Bem vinda a São Genésio! — me saúda com um sorriso simpático e eu retribuo.
— Obrigada.
— Vamos. Por aqui, por favor, senorita. — o bagageiro que agora sei que se chama Lorenzo fala e o sigo. Subimos a escada, ambos calados enquanto analiso os detalhes do local. — Lá embaixo tem quatro quartos, aqui em cima são sete e no próximo andar mais quatro. — explica — Você deu sorte de ficar no segundo andar, os quartos são maiores e normalmente são mais tranquilos.
— Acho que quebrou o profissionalismo. — digo constando o fato de como se referiu a mim, mas sem tom de reclamação.
— Se esbarrou comigo na rua; me deixou falando sozinho na entrada; me fez traduzir saudações em espanhol, sendo que não precisava e ainda quer que haja profissionalismo?! — o desdém estava presente em sua voz grave e achei melhor ficar quieta. Por enquanto, estava ainda irritada com o esbarrão e certamente iríamos discutir. Então me limitei a revirar meus olhos para me conter. — A propósito, posso perguntar algo? — questionou enquanto subíamos a outra escada.
— Você já não está perguntando? — também desdenhei. O cara não cala a boca!
— Seu sobrenome... — me virei para ele curiosa com o que citou — Martins... — assenti, confirmando e levantei a sobrancelha direita como quem pergunta o "por que". A origem dele é Portugal, por isso é comum no Brasil. Você parece ser argentina ou mexicana, pelo estilo do espanhol então... — me surpreendi com a pergunta. Era isso que ele devia estar pensando na recepção.
— Meu pai... — suspirei por lembrar — O meu pai era brasileiro. — não vi mal em falar. Ele abriu um pequeno sorriso simples que iluminou o seu rosto. Notei uma covinha charmosa na sua bochecha escada e me forcei a virar para frente, quebrando o contato com os olhos castanhos médios chamativos do Lorenzo. Ele é muito bonito.
— Chegamos. — paramos em um dos quartos com portas de madeiras que combinavam com a cor bege das paredes e a numeração numa pequena placa ao lado da porta. Abri a porta com a chave e entrei admirando o local simples, mas bem arejado e aconchegante. O Lorenzo entrou e deixou minha mala ao lado da cama. — Bom novamente, seja bem-vinda! — falou e se retirou, fechando a porta.
Analisei mais o local e ao chegar à janela, a vista da praia um pouco longe, do campo das flores e até do estacionamento. Joguei-me na cama, me esticando. Tinha que informar a minha família que eu estava bem.
Peguei o telefone na bolsa e liguei primeiro para minha prima Vitória.
— Florência do Céu. Você tá viva! Graças a Deus. Alô! É você mesma, né? Ai meu Deus, e se ela foi assaltada ou sequestrada? Ai, moço, eu sou pobre. Solta ela. Somos do bem, eu juro.
— VITÓRIA! Cala a boca e para de delírio.
— Ufa! É você mesma!
— Meu Deus! — não consigo segurar e gargalho.
— A culpa da minha angústia é sua. — murmura e eu sei que faz seu beicinho.
— Eu estou bem, hermana. Aqui é mais bonito do que as imagens mostravam.
— Hum. E quando vai passear? — pergunta.
— Estou pensando em dar uma volta... — respondo.
— Menina, já vai dar dezenove horas, como pensa em sair sozinha?
— Ahora bien! Para conhecer, eu tenho que sair.
— O que vai conhecer a noite, Florência? "Cê" tá doida?
— O que pode acontecer?
— Muita coisa, ouviu? Muita coisa! Amanhã você se diverte, passeia e relaxa. Agora, você vai ligar para a recepção e perguntar de uma pizzaria ou algo assim e vai dormir. — ordena.
— Não posso nem ser a aventureira... — murmuro.
— Você não é a Dora. — diz e ri — Você pode se aventurar, mas tudo com bom senso, tá?!
— Você sabe que eu sou a mais velha, não é, chica? — digo.
— Não ligo! — cantarola — Todos precisam de juízo, às vezes.
— Boa noite, prima. Obrigada por tudo!
— Eu que agradeço por ser minha hermana. Me ligue sempre! Te amo.
— Também te amo, hermana!
Depois de falar com ela, ligo para Dona Agustina, mi Mamá. Ela estava na cozinha do restaurante no horário de descanso com os meus avós. Conversei com os três, mostrei o quarto e a vista da janela, despreocupando-os. Após me despedi deles, saio do quarto e no corredor escuto uma voz baixa. Parece que alguém está cantando. Viro e vejo um rapaz de costas para mim, que varre o corredor. O mesmo uniforme vermelho e os cabelos encaracolados livres do chapéu ridículo denunciam a identidade da pessoa. Pelo seu balançar de corpo, deve estar ouvindo música. E pelo movimento de ombro, curvando a cintura pode estar escutando um reggeaton (ritmo musical latino). Tenho que dizer que ele dança muito bem. E eu já vi muitos pagarem mico nesse quesito no Carnaval. Uma verdadeira tentação um rapaz ser tão preciso assim nos movimentos. Deveria ser proibido, isso. Ele se vira empolgado e se atrapalha com a vassoura com o susto que leva a me ver ali.
— Com certeza, nada profissional. — acuso em tom de zoação, vendo-o tirar o celular para, provavelmente, pausar a música. Tenho certeza disso quando ele guarda o fone de ouvido num dos bolsos da calça.
— Meu expediente já acabou, mas eu ajudo a galera com a limpeza. — explica. Achei legal da parte dele fazer isso. Papá o julgaria humilde.
— Compreendo. Você tem talento!
— Para a limpeza? — diz nos fazendo rir.
— Não! — exclamo — Para a dança. — ao dizer isso, o sorriso dele parece se iluminar mais.
— Eu sei. — diz convencido — Obrigado.
— Desculpa por interromper. — digo e ele assente — Você pode me indicar um bom delivery? — pergunto.
— Você não tem ideia de nada por aqui, não é mesmo? — diz inclinando um pouco a cabeça para a direita.
— No mesmo. — decido ser sincera, olhando um ponto qualquer atrás dele porque falando em voz alta talvez eu pareça meio boba.
— Posso te arranjar uma comida.
— Agradeço. — então uma ideia me surgiu — Poderia ser meu guia da cidade também? — faço o melhor olhar "pidão" que consigo, enquanto ele levanta uma das sobrancelhas — Assim, te perdoaria pelo esbarrão. — digo, dando uma cartada final.
— Não me lembro de ter pedido desculpa. — fala, cruzando os braços e me encara, fixando seus olhos nos meus como se armasse uma guerra de argumentos. E desafios só me atiçam!
— Mas deveria. — acuso, empinando o nariz, sem desviar nossos olhares.
— Se eu me sentisse culpado... — desdenha, me deixando nervosa.
— Me fez perder um táxi!
— E eu poderia ser demitido por chegar atrasado. — ouço e suspiro digerindo suas palavras e me arrisco.
— Te darei uma pequena gorjeta. — insisto.
— Não me convenceu. — diz e se vira, juntando o lixo na pá com a vassoura e coloca num saco descartável. Que cara difícil! Respiro fundo para me acalmar e para poder raciocinar uma resposta convincente.
— Ao dirigir qualquer veículo, se deve atenção ao trânsito e ao fazer uma curva fechada, bem, não deve estar em alta velocidade. É muito perigoso. Ainda mais em uma bicicleta. — ele encosta os materiais na parede, se vira, cruzando novamente os braços, o que me leva a considerar que é uma mania e me encara em silêncio por uns cinco segundos sem desviar o olhar, o que me envergonha um pouco. Depois ele suspira, descruzando enfim, os braços e levanta as mãos em sinal de rendição.
— Te vejo amanhã às 13h00min, Florzinha! — eu consegui! Sorrio vitoriosa e ele passa por mim, carregando os materiais de limpeza. — Alguma preferência? — pergunta me fazendo virar para ele, que está andando devagar e de costas.
— Que não me chame de Florzinha. — respondo. Ele ri, parando de andar e morde o lábio inferior para se conter.
— Isso não está aberto a discussões! — fala e me dá uma piscadela. Charmoso! Admito. — Me referia ao que quer comer. — explica, sorrindo de lado.
— Ah, sim. Bom, prefiro algo leve. — falo gesticulando — Um beiju ou uma tapioca recheada com carne ou queijo, um sanduíche caprichado na salada ou uma sopa.
— Anotado. — assente — Só não posso prometer não demorar. Mas, a comida é muito boa e do melhor restaurante daqui! — ao falar isso, explodo em curiosidade sobre o local.
— Tudo bem, eu aguardo. Me leva lá amanhã? — peço.
— Vou pensar em seu caso. — diz.
— Certo. Olha... muito obrigada, Lorenzo. Agora que trará comida será um prazer, te conhecer. — brinco e ele ri.
— A vida é arte, comer faz parte! — diz, indo a escada e logo some da minha vista, ao descer. Entro novamente no quarto e penso que ele nem imagina que disse aquela frase para uma cozinheira.
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