Por um Acaso, parte um
A primeira coisa que pensei quando coloquei os pés na universidade foi que eu tinha um problemão para resolver.
Ok, talvez eu esteja mentindo. Meu primeiríssimo pensamento foi de que aquele lugar era lindo demais. Havia tanto vidro no prédio que jamais precisaria de espelhos: conseguia ver meu reflexo em qualquer lado que olhasse. Mas o que fazia um eco enorme na minha cabeça conforme eu seguia pelo piso imaculado e brilhante era que, mesmo depois de tanto esforço, eu estava terrivelmente deslocada ali.
Tinha três anos na Espanha pela frente. Maravilhoso, não é? Exceto pelo pequeno detalhe de que eu não falava espanhol. Só hola e gracias e mesmo isso soava ridículo quando saía dos meus lábios.
Minha primeira opção para o intercâmbio foi a Inglaterra, porque meus pais fizeram questão que eu crescesse aprendendo inglês — e ao menos por isso eu era grata a eles —, mas eu não fui aceita e uma oportunidade em Madri surgiu. Claro que aproveitei, mas jamais pensei que fosse ser aprovada. Acho que ajudava um pouco que as aulas fossem em inglês e esse fosse o requisito básico.
Quando li que 20% dos alunos da Universidade de Carlos III eram estrangeiros, me acalmei um pouco e me convenci de que aprenderia rápido o idioma. Espanhol é parecido com português, eu pensei, então não vai levar muito tempo.
Acontece que mudar de país envolve uma burocracia absurda. Não tive tempo algum para estudar quando ainda estava no Brasil, porque tive que resolver tudo sozinha. Meus pais moravam em Ponte Nova, uma cidade pequena em Minas, e eu estudava em São Genésio, em São Paulo. A distância, portanto, tinha me preparado para morar sozinha. Não sabia se conseguiria caso minha primeira experiência fosse em outro país.
E aí, quando saí do avião e tirei os fones de ouvido, percebi que a verdade era mais cruel: aquilo ali realmente era outra língua. As pessoas falavam tão rápido que eu nem tinha a chance de procurar uma similaridade com o português. Fiquei com uma cara tão perdida, olhando para os lados sozinha e com as malas ao meu redor, que os funcionários do aeroporto até me ajudaram a explicar ao motorista do táxi onde ficava meu hotel, o lugar no qual eu me hospedaria até poder ficar no alojamento da faculdade.
Suspirei e decidi mandar uma mensagem para meus pais avisando que tinha chegado bem. Eles deviam estar preocupados, mesmo que eu duvidasse muito que fossem externar o sentimento. Tive que tirar tudo que estava na minha bolsa, inclusive a chave do meu quarto do hotel e os dois livros que tinha levado para ler no avião — Six of crows e Crooked kingdom, que me fizeram chorar em público e atrair a atenção de todos os passageiros em um raio de um metro. Quando consegui achar o celular, nem me incomodei em guardar a tralheira na bolsa de volta e já saí andando pela universidade enquanto digitava.
Péssima ideia. Eu mal tinha passado do "não se preocupem, tô viva e já comi alguma coisa" quando me choquei com um corpo muito mais alto que o meu. Não que fosse difícil, de qualquer forma, porque eu mal passava do um metro e meio. A única coisa que consegui segurar firme foi meu celular, e as chaves do hotel fizeram um barulho irritante no chão por alguns segundos.
Eu poderia ter pedido desculpas pela falta de atenção e seguido minha vida calada, mas é claro que me abaixei e comecei a murmurar uma série de palavrões que fariam dona Fátima, uma senhora de São Genésio que eu costumava conversar quando saía da faculdade para o horário de almoço, gargalhar a ponto de saírem lágrimas dos olhos.
— Patética. Não aguenta ficar cinco minutos sem causar um desastre. Cinco dias e você coloca fogo na sala de aula, Bruna — resmunguei baixinho, em português, socando tudo de qualquer jeito na bolsa.
Uma mão grande surgiu à minha frente, e eu me agarrei a ela para me levantar. Quando enfim fiquei de pé de novo, soltei um barulhinho estrangulado e realmente patético que jamais vou esquecer. É o som da mais pura surpresa porque, nossa senhora, eu nunca tinha visto alguém tão lindo na minha vida.
Era um holograma, só podia ser! Ninguém tinha a permissão de ser tão bonito assim. Claro que eu trombaria e falaria sozinha diante de um homem que parecia saído dos livros que eu amava ler: ele tinha cabelos pretos e olhos azuis e uma régua a mais de altura. Engoli em seco e pedi desculpas em inglês, torcendo para que ele não me achasse estranha por não falar em espanhol.
Não que eu fosse muito normal, de qualquer forma. Tinha xingado como um marinheiro de filmes de fantasia e falado comigo mesma diante de uma pessoa que nunca tinha visto na vida.
— Sem problemas, Bruna — ele respondeu, e eu pisquei forte duas vezes.
Aquela frase que eu tinha acabado de ouvir com um leve sotaque português era fruto da minha imaginação ou eu era tão azarada assim? Pior do que um desconhecido lindo ter me ouvido surtar era que ele tivesse me entendido.
Eu deveria dar um sorrisinho sem graça e seguir pelo corredor. Mas é claro que continuei me envergonhando. Eu estava me tornando especialista nisso.
— Ah, que perfeito. Primeiro achei que tinha imaginado a imagem formada pelo meu cérebro, porque vamos ser realistas, ninguém tromba com um galã de filme da Sessão da Tarde justo quando muda de país. Aí eu pensei que estava ouvindo vozes da minha cabeça de novo, mas supondo que seja real, como é maravilhoso ouvir o idioma mais lindo do mundo! Talvez eu fique conversando com você o resto da tarde só para ouvir mais um pouco de português.
Apertei a alça da minha bolsa com força e me forcei a calar a boca. Caramba, eu tinha me superado na tagarelice dessa vez! Quis dar uma de personagem de desenho animado e cavar um buraco no chão, mas a realidade é bem decepcionante.
O desconhecido-lindo-que-devia-me-achar-louca me encarou por uns cinco segundos antes de soltar uma gargalhada alta. Ele até jogou os cabelos para longe dos olhos depois de rir, como se tivesse bagunçado os fios com o movimento.
— Comece a conversa me explicando o que é Sessão da Tarde, por favor — ele disse, e eu me convenci de que não tinha imaginado nada. — E obrigado pela parte do galã. Sempre achei que deveria ter ido para as telonas.
A beleza certamente ele tinha. Graças a Deus que consegui segurar minha língua, porque minha falta de filtro já estava ficando constrangedora.
— É um programa que passa no Brasil. Cada dia tem um filme à tarde. Geralmente são comédias românticas de final previsível — esclareci, percebendo que tinha que olhar para cima para alcançar seu rosto.
Ele era muito alto. E bonito, mas talvez eu já tenha comentado isso.
— E você gosta de tragédia, pelo visto — ele apontou para minha bolsa.
Demorei alguns segundos para entender que estava falando dos livros. Se ele achava que sabia o que era tragédia era porque não tinha me visto aos prantos no avião. Mobilizei dois passageiros para trazerem lenços e água para mim, e tudo na base da pena, porque eles nem me conheciam!
Só percebi que tinha falado tudo em voz alta quando ele riu de novo.
Pelo amor de Deus.
— Eu realmente queria ficar conversando com você a tarde toda, Bruna, mas tenho um compromisso daqui a alguns minutos.
Ele tinha passado a me chamar pelo nome tão naturalmente que eu sorri. Samara ia surtar quando eu contasse que um cara lindo desses sabia meu nome! E rir horrores da minha cara quando descobrisse dos meus discursos sem pé nem cabeça. Talvez fosse melhor guardar esse episódio só para mim.
— Boa sorte na sua tarefa, hã...
— Danilo — ele estendeu a mão, e eu estendi a minha.
Foi o aperto de mãos mais engraçado que já dei na vida. Eu dei uma sacudida como se estivesse em uma série de comédia e uma plateia nos assistisse. A mão dele cobria toda a minha, mas não era nem um pouco intimidador. Havia algo nele, provavelmente as covinhas ou os olhos gentis, que faziam com que parecesse o cara mais legal do mundo.
Danilo seguiu pelo corredor e eu me sentei em um dos banquinhos para arrumar a bagunça da minha bolsa. Em algumas horas na Espanha, já tinha passado vergonha em público e falado como se não houvesse amanhã.
Nada muito diferente do que eu fazia em São Genésio, de qualquer forma.
Passei em um Starbucks dentro do prédio e consegui improvisar o suficiente com meu portunhol e gestos enfáticos para pedir um café com leite. Tomei em velocidade recorde porque já estava me atrasando e segui para a sala que tinham me mandado por e-mail. Pontualidade nunca foi meu forte, mas eu estava me esforçando para causar uma boa impressão.
Um professor de óculos fundo de garrafa e roupas bem passadas me esperava. Demos um aperto de mão e ele já sabia do meu pequeno probleminha, então já começou a falar comigo em inglês.
— Seja muito bem vinda, senhorita Castro. Espero que tenha feito uma boa viagem. Vou te explicar o que precisa saber sobre as aulas e o funcionamento da universidade, está bem?
Assenti e deixei que ele falasse por longos minutos sobre o lugar em que eu passaria grande parte dos meus próximos três anos. Eu sabia que amaria a estadia na Espanha. E, ouvindo-o falar um idioma que eu conhecia, tudo pareceu menos pior. Repeti várias vezes na minha cabeça que conseguiria vencer essa barreira do espanhol. Já tinha batalhado muito para chegar até ali e não iria desistir por isso, não é?
Quando o professor Alvarez terminou de falar, estávamos os dois sentados e ele tomou uma longa respiração para recuperar o fôlego. Eu disse que tinha entendido e fiz comentários sobre a beleza do prédio e minha animação para começar a estudar na próxima semana. Ele pareceu contente com minha primeira impressão sobre a universidade.
Quer dizer, não tinha como não achar aquele lugar lindo. E o mesmo podia ser dito da cidade. Mal podia esperar para explorar Madri!
— Ah, aí está você! — ele disse de repente, me fazendo franzir as sobrancelhas. Logo percebi que ele falava com alguém atrás de mim. — Bruna, nós sempre designamos um aluno para mostrar o funcionamento de tudo por aqui durante a primeira semana. O seu guia acabou de chegar.
Abri um enorme sorriso e me virei, somente para dar de cara com o não-tão-desconhecido-lindo-que-devia-me-achar-louca.
O destino é uma coisinha louca e diabólica!
Senti minhas bochechas corarem instantaneamente. Apertei a sua mão de novo, que era tão grande quanto eu me lembrava. Para ter o que fazer, prendi meus cabelos em um coque mal feito, mas os cachos logo se espalharam de novo pelos meus ombros. Ok, talvez eu estivesse nervosa. Desde que não começasse a tagarelar na frente de Danilo e do professor Alvarez, podia conviver com isso.
Para ser sincera, tanta beleza em um cara só era intimidante. E eu nunca soube lidar muito bem com meus impulsos.
— Danilo é o aluno prodígio do terceiro ano de arquitetura — o professor brincou, e eu percebi com espanto que ele estava no mesmo ano que eu.
Danilo balançou a cabeça com exasperação.
— Quem me dera — disse, e o professor exibiu um sorriso contido como se soubesse que ele responderia isso.
— Espero que vocês se deem bem. De qualquer forma — o professor Alvarez se levantou e ajeitou o terno antes de apertar minha mão mais uma vez —, bem vinda à UC3!
Devolvi seu cumprimento com entusiasmo, focando toda minha atenção nisso. Quando ele saiu da sala, virei para Danilo e o encontrei com os olhos brilhando.
— Parece que conseguirei ficar algumas tardes conversando com você, então.
Eu nunca pensei que as pessoas pudessem me olhar de uma forma tão estranha só porque eu tinha gritado em público.
Tudo bem, não foi o meu melhor ato, mas quando a mensagem de Danilo chegou no meu celular perguntando se eu queria dar uma volta pela cidade, a minha primeira reação foi soltar um barulhinho estrangulado que de diminutivo não tinha nada. Eu estava em um café e a senhora ao meu lado resmungou um ¡jóvenes! alto o suficiente para que eu escutasse. Ao menos não precisei de tradutor para entender, o que alimentou meu ego bem mais do que deveria, considerando que era uma palavra extremamente fácil.
Mas eu estava me permitindo comemorar pequenas vitórias. Por que como assim Danilo Toledo queria sair comigo? Eu tinha descoberto o sobrenome dele pouco tempo depois da saída do professor Alvarez da sala, quando ele voltou e disse algo como "Toledo, chegue mais cedo no primeiro dia para que eu possa te passar algumas instruções!". De quê eu não sabia, e minha curiosidade tinha me consumido na hora, mas eu já tinha passado da minha cota de inconveniência do dia.
Tá, se eu fosse parar para pensar, não era nada absurdo um convite desses. Ele era meu guia na universidade, sabia que eu não conhecia ninguém no país, e tínhamos nos dado bem de cara. Foi uma conversa bem promissora se levarmos em conta que nosso primeiro contato foi uma trombada em um corredor, seguido do pior discurso de todos os tempos.
Ignorando os olhares curiosos dos clientes ao meu redor, respondi a mensagem com um sorriso bobo no rosto. A atitude, porém, me trouxe memórias que eu preferia esquecer. Eu, com um aparelho parecido nas mãos, a mesma expressão contente no rosto e meus pais resmungando os comentários desagradáveis que me fizeram ter certeza de que me mudar para outro estado seria um alívio.
Você mostra demais, Bruna. Sentir demais já é um problema. As pessoas só vão fazer você de boba. Ao menos mostre algum controle.
Eu tinha crescido ouvindo esse tipo de coisa. Meus pais sempre foram contidos e até mal humorados, mas eu ficava muito mais na casa da minha avó do que na minha própria. E ela era um raio de sol, a pessoa mais maravilhosa que tive a honra de conhecer. Esperava poder visitá-la em breve, em seu apartamento em Paris.
E eu ignorava, porque gostava da ideia de aproveitar cada segundo do que quer que estivesse sentindo. Até que, um dia, me afundei em um poço de dor e traição, duas coisas que eu jamais poderia esquecer. E pior que ser enganada por duas das pessoas que você mais ama no mundo é ouvir da boca dos seus próprios pais que talvez você tenha merecido isso.
Respirei fundo. Eu estava do outro lado do oceano Atlântico, caramba. Por que tinha que pensar naquela situação de merda toda vez que conhecia alguém? Fazer amigos tinha se tornado muito difícil para mim desde então, mas eu não podia reclamar: Samara e Jonas eram tão preciosos que eu tinha vontade de sair com uma foto deles no bolso.
A lembrança dos meus melhores amigos e colegas de faculdade em São Genésio me distanciaram daquela série de eventos da qual eu não queria me recordar. Terminei de digitar a mensagem para Danilo e enviei, tomando o resto do meu café em um gole só para fazer uma careta depois. Estava quente, é claro, e minha língua ficaria esquisita por alguns dias.
Ele logo respondeu com uma figurinha da Web Diva Tulla Luana soltando foguetes e eu soltei uma gargalhada alta. Céus, as pessoas daquele café já deviam achar que eu era a maior escandalosa. Mas eu não fazia a mínima ideia que ele conhecia esses memes!
Logo descobri que sua prima que morava em Portugal tinha uma amiga brasileira. Os melhores memes realmente eram nossos, pensei, voltando a sorrir que nem uma boba ao pagar a conta. A atendente fez uma cara estranha quando eu usei o recurso de fala do tradutor para perguntar o preço, mas o importante é que deu certo.
O problema, agora que eu tinha tomado minha dose matinal de cafeína (como se eu mesma acreditasse que fosse ser a única), era que eu tinha que correr. A noite no hotel tinha sido ótima, mas graças a Deus que eu já podia transferir meus pertences para o alojamento. O real estava desvalorizado demais para que eu pudesse sair esbanjando euros por aí.
Claro que, quando tudo que eu precisava era de agilidade, as coisas resolveram dar errado em proporções monumentais. Meu cabelo agarrou no fecho da bolsa, meus colares se embolaram sabe-se lá porquê, minha mala não queria fechar de novo e, a pior parte, minhas chaves do alojamento tinham desaparecido.
Sufoquei um grito no travesseiro. Droga, eu já estava vinte minutos atrasada e nem tinha saído do hotel ainda. O Danilo já devia estar me esperando no alojamento, e, mesmo que fosse um hábito meu, odiava me atrasar.
Acabei achando as chaves debaixo do tapete — o que não fazia sentido algum, mas eu não tinha tempo para pensar porque raios estavam lá — e mandei uma mensagem de desculpas dentro do táxi. A sorte era que o trânsito não estava carregado e o hotel não era longe da universidade, e eu consegui fechar a conta de atraso total em meia hora.
Eu era péssima.
— Mil perdões! — eu disse, fazendo uma careta para a minha mala que não queria se arrastar no chão. — Desculpa por te fazer ficar esperando. A minha chave foi parar debaixo do tapete, e eu nem sei como isso aconteceu. Por que ela saiu da minha bolsa é um mistério enorme, e eu quase furei o pé pisando em cima dela. Bem que minha avó me dizia que andar descalça é um perigo, e ela puxaria minha orelha agora, então é uma sorte que eu esteja longe, de qualquer forma.
Parei de puxar a mala (sem sucesso) e coloquei as mãos na cintura, admirando a quantidade preocupante de bagagem que eu tinha trazido. Tive até que pagar excesso, o que foi mais uma facada na minha conta bancária. Não sabia se ela sobreviveria por muito tempo se eu não arrumasse um emprego.
Olhei para Danilo, que estava em pé à minha frente. Eu ainda ficava admirada com o quão alto ele era. Seus cabelos escuros estavam molhados, e uma mecha insistia em cair nos seus olhos, por mais que ele a afastasse de tempos em tempos. Ele estava usando uma daquelas bolsas que eu tinha quase certeza de que se chamavam pasta carteiro, mas vai saber. Sua camisa tinha as mangas arregaçadas até os cotovelos e sua calça jeans era do mesmo tom da minha.
Ele era tão bonito que me dava vontade de gritar. De novo. Eu estava em um dia particularmente expressivo.
Danilo riu do meu discurso de segundos atrás e balançou a cabeça levemente.
— Não tem problema. — Ele fez uma pausa. — Debaixo do tapete, você disse?
— Pois é! — arregalei os olhos para dar ênfase, mas logo estava xingando. — Merda. Eu sabia que essa mala idiota ia estragar!
A rodinha tinha soltado e saído quicando pela área externa dos alojamentos. Uma, duas, três vezes e um giro final, como se estivesse tirando sarro da minha cara. O problema é que ela não era a única: aquela mala estava sobrevivendo com três rodinhas há meses, e eu enrolei para consertar até que não desse mais.
Maravilha. Eu teria que carregar uns dez quilos de roupa até meu quarto. Nunca odiei tanto a lei de Murphy quanto naquele momento. Saí arrastando o objeto aos chutes como uma louca, mas Danilo logo se aproximou mais.
— Deixa que eu carrego pra você. — E foi o que ele fez, como se aquela mala patética não pesasse nada.
Agradeci com muito mais animação do que o necessário, porque eu não conseguia me segurar. Carreguei o resto das minhas bolsas com um sorriso idiota enquanto o seguia pelo corredor. Por sorte, o prédio tinha elevador, mesmo que fossem somente quatro andares, e ele já estava parado no térreo.
O espaço limitado do elevador me permitiu sentir o cheiro do seu perfume (muito bom, por sinal) sem interferências, já que eu tinha esquecido de passar qualquer coisa. Lindo, inteligente, simpático e cheiroso? Quão injusta a distribuição de qualidades podia ser?
— Onde nós vamos? — quebrei o silêncio antes que falasse algo constrangedor.
Não é fácil ser boca grande.
Ele deu um sorriso enorme.
— É surpresa.
— Não aguento esperar surpresas!
— Por que isso não me surpreende?
Estreitei os olhos para ele e o cutuquei com o cotovelo de leve, mesmo que mal alcançasse seu antebraço. Que falta de dignidade, meu Deus. Ele riu, o som se espalhando pelo espaço minúsculo daquela caixa de aço.
As portas do elevador abriram e eu saí por último, arrastando as bolsas com certa dificuldade. Claro que não falaria nada. Ele já estava levando a maior parte do peso, e meu quarto não deveria estar muito longe, de qualquer forma.
— Quanto você tem de altura?
— Um metro e noventa, acho — ele respondeu, e eu arregalei os olhos. — Por quê?
— Caramba, você é muito mais alto que eu!
— Não que seja muito difícil — Danilo implicou, e eu mostrei a língua como uma criança de cinco anos faria. — Você tem quanto?
— Um e quarenta e nove — respondi, muito tentada a arredondar para um metro e meio, como eu sempre fazia. — Mas se alguém te perguntar, a resposta oficial é um e meio!
Danilo riu de novo.
— Você é surreal, sabia?
Eu estava um pouco à sua frente e, assim que vi minha porta, soltei um gritinho de satisfação e parei para tirar as chaves do bolso, ainda processando o que tinha acabado de escutar. Danilo não parou a tempo e trombou de leve em mim, porque, como dizia dona Fátima, eu tinha essa mania de "sair empacando que nem uma mula na frente dos outros".
Meu quarto era bem maior do que eu esperava. Na verdade, não sabia bem o que esperar. O jogo de cama era branco e tinha um cheiro maravilhoso, e eu poderia colocar minhas coisas em uma cômoda grande à sua esquerda. Eu também tinha uma mesinha de estudos debaixo da janela e um banheiro pequeno.
Joguei as bolsas em cima da cama e dei um sorriso satisfeito. Danilo pousou a mala no chão com todo o cuidado do mundo. Ajeitei minha carteira e celular no bolso e coloquei as mãos na cintura.
— Agora que minha mudança está feita, a surpresa será revelada!
Danilo cantou Let it go baixinho, o que me fez gargalhar.
— Vamos lá, Elsa — falei, saltitando a sua frente durante todo o caminho até o lado de fora do prédio. Porque é claro que eu seria a Anna. — O que fazemos agora?
— Quer ir de metrô?
É claro que eu queria! Assenti e comecei a caminhar do seu lado. Era um trajeto de dez minutos até a estação mais próxima, ele me informou, e eu achei ótimo, porque passaria os próximos três anos morando ali.
— Então — interrompi o silêncio de novo, mesmo que ele durasse segundos —, você disse que os livros de Six of crows eram trágicos. Você já leu?
Danilo sorriu com o canto da boca.
— Eu amo os livros dela. Mal posso esperar pro lançamento da série de Sombra e Ossos!
— Ai, meu Deus, você leu a trilogia Grisha! O que achou do final?
Eu já estava acostumada a ser julgada por gostar do jeito que as coisas terminavam para Alina Starkov, mas não conseguia evitar não amar o casal principal!
— Sinceramente, antes a Alina tivesse terminado sozinha — ele disse, muito convicto, e eu franzi a testa. — Ora, ora, temos uma Malina shipper por aqui.
— Por que você não gosta do Maly? Ele é um dos melhores personagens!
Tá, que ele era o melhor eu não poderia dizer, porque o Nikolai existia, mas qual é! Eles eram super fofos juntos. E eu chorei horrores com o epílogo. Eles mereciam tanto aquela paz.
— Ele trata a Alina mal por quase um livro inteiro!
Era engraçado ver Danilo defender seu desgosto por um personagem com tanto afinco.
— Uai, mas ele foi jogado em um mundo ao qual nem pertencia. Claro que ele ia ficar confuso com o rumo que as coisas estavam tomando.
— A Alina também era do Primeiro Exército antes.
Meus argumentos estavam acabando. Dei um sorrisinho amarelo e ergui as palmas das mãos para cima.
— Mas a amizade deles é tão bonitinha! Vai me dizer que você não chorou com aquele final?
Ele negou veementemente.
— Que insensível. Vai me dizer que não derramou nem uma lágrima com Crooked Kingdom também?
— Eu tenho um coração — ele se defendeu, e eu ri da revolta que permeava seu tom de voz.
Já estávamos descendo as escadas do metrô, e eu estava surpresa com o quanto tinha caminhado sem nem perceber. Manter o foco em uma coisa só sempre foi difícil para mim, mas discutir a trilogia Grisha com Danilo levou toda minha atenção.
Quando estávamos dentro do trem, Danilo estendeu o celular em minha direção.
— Olha o que eu achei — ele disse, um sorriso enorme no rosto que estava muito próximo ao meu.
Minha respiração estava ridícula de tão apressada. De perto, seus olhos eram do azul mais escuro que eu já tinha visto. Engoli em seco e me forcei a focar no celular.
Era um teste para saber de qual ordem grisha você seria. Olhei em sua direção com os olhos provavelmente brilhando quando percebi que ele tinha trocado o idioma do celular para português.
— Gracias — eu agradeci, usando uma das palavras que tinha ficado treinando na frente do espelho na noite anterior. Estava imitando a moça do Google à perfeição. — Vou fazer primeiro, caso você não se importe.
Ele riu, porque eu nem esperei que ele concordasse caso se importasse. Fazer testes de personalidade era meu passatempo predileto quando não tinha nenhum livro ao alcance, e logo descobri que seria uma Materialki.
— Uma Fabricadora! — eu exclamei alto demais, e Danilo riu baixo quando uma mulher fez uma careta para mim. — Mal-humorada — acrescentei baixinho, e sua risada voltou a chamar a atenção para nós. Apertei os lábios para não seguir pelo mesmo caminho. Sabia bem que crises de riso me acometiam com uma força assustadora.
Entreguei o celular de volta e Danilo fez o teste com calma. Um tempinho depois, descobrimos que ele seria um Etherealki, e ele comemorou, dizendo que sempre quis poder manipular água.
— Pfff — debochei, cruzando as pernas de novo, em um tique involuntário que não conseguia largar —, você podia escolher controlar fogo!
— Mas água apaga fogo — ele afirmou, muito certo da sua escolha.
— E a Bloom controla fogo!
— Sei que você vai querer ser uma de nós — ele cantou baixinho com um falsete horrível, e eu não consegui segurar a gargalhada. De novo. — Caramba, Bruna, daqui a pouco nos expulsam daqui.
— A culpa é sua — resmunguei de volta, tentando não rir mais uma vez.
— Por cantar tão bem?
— Claro. Nasce uma estrela — falei e, assim que ele abriu a boca, eu adverti: — Não canta Shallow, eu não quero concluir o resto do caminho a pé.
Danilo assentiu com uma expressão solene, e nós ficamos nos encarando e sorrindo pelos próximos minutos do trajeto.
Quando descemos, ele anunciou que nossa primeira parada seria na Gran Vía, uma avenida enorme com muitas atividades turísticas e de lazer. Uma parte dela era cheia de cinemas e teatros, e Danilo me contou que era conhecida como a Broadway madrilenha.
— É a parte entre a praça do Callao e a praça da Espanha — ele explicou, parecendo muito empolgado ao olhar o ambiente ao nosso redor. E eu também estava, principalmente porque era minha primeira vez ali. Era muito mais organizado do que imaginei para a maior cidade da Espanha. — Pensei em irmos ao Edifício Metrópolis, o que você acha?
Bati palmas, empolgada, porque é claro que eu sabia do que ele estava falando. Eu era uma estudante de arquitetura, afinal, e aquele prédio era super famoso. Mal podia esperar para admirar sua estrutura ao vivo e tirar mil fotos!
— Vou tomar isso como um sim — Danilo riu. — É a dois minutos daqui. Aí podemos ir em uma praça que fica perto e depois tenho algumas ideias.
Levantei a sobrancelha.
— Você adora uma surpresa, né?
— Só porque você fica muito interessada para saber do que se trata — ele admitiu, e eu o empurrei de brincadeira antes de segui-lo.
Tínhamos descido na estação do Banco da Espanha. Era um prédio tão lindo quanto na internet, e ainda mais majestoso ao vivo. Toda aquela fachada intrincada e decorada com esculturas delicadas formava uma visão e tanto com a bandeira vermelha e amarela tremulando no mastro acima.
Eu poderia me acostumar com a visão daquela cidade, percebi. Mais que isso, estava muito perto de amá-la.
Sorri ao seguir os passos compridos e rápidos demais para mim de Danilo. Ele percebeu que eu estava ficando para trás e pediu desculpas, me atualizando de cada um dos pontos pelos quais passávamos. Estávamos seguindo ao noroeste da gran vía.
— Aquele restaurante ali — ele apontou para o Las bóvedas de Cibeles — é maravilhoso, mas tão caro proporcionalmente quanto o hotel à frente. — O The Principal Madrid era cinco estrelas, de qualquer forma. Não poderia esperar nada diferente. — E agora nós vamos pela esquerda.
É engraçado perceber que em uma cidade nova cada pequeno símbolo urbano se torna uma atração e tanto. Eu estava admirada com tudo, desde os carros às placas e fachadas bonitas dos estabelecimentos. Ao meu lado, Danilo observava minha empolgação com um sorriso no rosto.
Logo passamos pela Maqueta de la gran vía, uma maquete de bronze representando a famosa avenida. A placa sobre a qual estavam os mini-prédios tinha um ligeiro relevo com o plano de Madri. Era a coisa mais fofa e maravilhosa que eu já tinha visto! Meu celular já tinha tantas fotos dela que a qualquer momento minha memória iria para o espaço, mas eu não me importava.
Eu estava adorando!
Quando viramos à direita na rua — ou calle — de Alcalá, finalmente pude admirar o edifício Metrópolis. E, uau, agora eu tinha material para admiração de horas.
— É tão lindo quanto nas fotos — eu sussurrei, admirada, segurando o braço de Danilo como se aquilo fosse surreal demais para ser verdade.
Mas era. Uma representação do famoso estilo francês beaux-arts estava bem à minha frente. O nível do solo era coberto por andares ornamentados com colunatas, um trabalho tão bem feito que eu provavelmente fiquei com a boca aberta por alguns segundos como uma idiota. Acima, a cúpula arredondada era coberta por ouro, e ao seu pé havia uma estátua de um anjo.
— É um prédio de escritórios, não é? — diante da minha pergunta, Danilo assentiu, e eu continuei falando: — É lindo. Imagino quantos significados devem haver no projeto.
Danilo assentiu, os olhos brilhando.
— De fato, existem muitos. As colunas sustentam estátuas que representam mineração, agricultura, indústria e comércio, por exemplo.
Eu reconhecia um aluno dedicado quando o via, porque eu mesma o era. Podia apostar que Danilo sabia curiosidades aleatórias dos projetos que amava, porque eu mesma tinha vários favoritos no Brasil.
E mal podia esperar para aprender o máximo que pudesse da arquitetura espanhola. Céus, eu estava tão animada!
Danilo tirou várias fotos minhas e nós tiramos uma selfie juntos que me fez sorrir, com nossas línguas para fora e um dos olhos fechados. Eu parecia tão feliz quanto realmente me sentia.
Quando já tínhamos admirado o edifício o suficiente, Danilo declarou que nossa próxima parada seria na praça de Cibeles. Nós não demoramos mais que cinco minutos para chegar lá, uma caminhada pequena que com certeza valeu a pena.
Quando eu pensava que não podia me apaixonar mais por aquela cidade, Madri decidiu que tinha que me surpreender. Aquele conjunto escultórico neoclássico era, de fato, algo a ser admirado por horas. Quatro prédios enormes e emblemáticos circundavam a fonte: o Banco da Espanha, o Palácio de Buenavista, o Palácio de Linares e o Palácio de Cibeles — o último era meu grande favorito.
Enchi meu celular com fotos de todos os ângulos daquele quarteirão.
Danilo riu.
— Você é a turista mais empolgada que eu já vi.
— Futura moradora — eu o corrigi, e seu sorriso se tornou ainda maior.
— Verdade. Vou ter que te aguentar por muitos anos ainda.
Eu o empurrei de brincadeira, pensando na diferença que poucas horas podem fazer no relacionamento de duas pessoas. Não que fôssemos melhores amigos já, claro, mas eu sentia que ele podia se tornar um grande amigo.
Era fácil conversar com ele. Não daquele jeito ruim de conversas vazias e sem sentido, mas porque parecia certo. Alguma coisa estranha se contorcia na boca do meu estômago, principalmente quando ele exibia aquele sorriso de modelo, mas era uma sensação boa.
Danilo perguntou se queria que ele tirasse fotos minhas perto da fonte, e eu bufei, porque com certeza iria encher minha avó com um álbum de Madri. Eu entreguei minha carteira a ele, rindo da sua expressão abismada quando olhou o objeto rosa vibrante cheio de strass.
Quer dizer, era bem engraçado, porque eu só tinha usado preto, branco e jeans desde que cheguei ali, e em grande parte da minha vida.
— Foi obra da Samara, aquela idiota — uma idiota que eu daria de tudo pra ver naquele momento, pensei, sorrindo com a saudade. A ruga na testa de Danilo só aumentou. — Minha amiga.
Ele fez um "aaah", ainda observando todo o brilho da carteira. Eu ri da sua expressão e segui com cuidado para perto da fonte, dando tudo de mim para não escorregar e cair para trás — geraria um entretenimento e tanto. A escultura atrás de mim era perfeita: Cibele, uma deusa originalmente frígia, tinha seu carro puxado por dois leões.
Agradeci quando voltei para perto de Danilo e decidimos que estava na hora de seguir para o próximo ponto turístico. Ele puxou um post-it amarelo do bolso, apertando os olhos para ler o que quer que fosse.
— Merda, eu esqueci meus óculos. Parece que nosso próximo destino é o karaokê...
Eu ainda estava tentando imaginá-lo de óculos quando associei as palavras. Karaokê?!
— Nem morta. — Declarei, balançando as mãos no ar para enfatizar.
Danilo apontou para o post-it, aquela carteira rosa ridícula na sua mão tornando a cena mais engraçada ainda pelo contraste com sua expressão resignada.
— É o cronograma, Bruna. Não está sujeito a mudanças.
— Eu canto mal pra caramba — adverti, já me preparando psicologicamente para o que eu sabia ser uma derrota. Eu era uma péssima cantora, sem exagero algum. — Já vou te avisando.
Não estava exagerando. Em São Genésio, eu costumava ir ao karaokê com o Lorenzo no restaurante do seu tio. O Lore era um velho amigo e provavelmente a pessoa mais paciente do mundo, se tinha aguentado minha cantoria tantas vezes. "Bem, ao menos você pode tentar quebrar o vidro como aquelas pessoas nos programas de auditório" era o que ele costumava dizer, implicando, e eu sorri com a lembrança.
— Pois eu canto muito bem — ele afirmou categoricamente, e eu ri do quão convencido ele estava soando.
— Então não se ofenda com minha falta de talento, Lady Gaga — ironizei, levantando as palmas das mãos para cima e mexendo as sobrancelhas.
— Tudo bem, fã. Nem todos são naturalmente agraciados com talento musical como eu.
Por Deus, ele era tão convencido! Eu abri a boca para zoar, mas um senhor apressado esbarrou em mim. Ele disse ao mesmo tempo que eu:
— Perdóname — e, antes que eu pudesse dizer mais nada, ele seguiu seu caminho.
Parei ali, no meio do passeio, com Danilo me encarando sem entender nada. Mas, meu Deus do céu, eu tinha pedido desculpas em espanhol! Não era a primeira vez que eu interagia com alguém na língua, porque tinha aprendido o suficiente para pedir um café, mas aquela era a minha estreia em situações tão rápidas e espontâneas!
Comecei a fazer minha dancinha de comemoração em público, até parar para pensar que, bem, estava em público. Danilo não parecia ter entendido nada, mas agora estava me olhando com um sorrisinho.
— Soy prácticamente una española — falei, depois de dar uma conferida rápida na página do google tradutor que agora ficava quase permanentemente aberta. — Prácticamente. Pufff. Uma letra e um acento a mais só para me confundir.
— Que gramática perversa, não é? — ele disse, balançando a cabeça com a expressão solene.
Eu não aguentava aquele garoto, de verdade.
— Nem me fala.
Nós fomos sorrindo e soltando expressões aleatórias em espanhol que me fizeram gargalhar até o tal destino. Viramos algumas ruas, caminhamos mais um pouco e, enfim, estávamos em frente a uma construção bonitinha de três andares cujo primeiro era um karaokê.
Haviam algumas mesas do lado de fora e uma fachada neon em uma letra bonita sobre elas. Danilo fez um floreio com os braços para que eu fosse na frente, sussurrando "as damas primeiro", e eu fiquei próxima ao balcão admirando tudo enquanto ele pegava duas fichas de karaokê para músicas em dupla.
Rá. Ele mal sabia o dano que estava prestes a causar aos próprios ouvidos.
Nós fomos para a área dos fundos, a única além do balcão que não tinha mesas bonitinhas dispostas. Começamos a navegar pelo catálogo e Danilo riu quando viu alguma coisa antes de mim.
— Não acredito — ele disse, e eu ri também quando vi para o que ele estava apontando.
É claro que escolhemos Shallow. Só bastava definir quem cantaria qual parte, porque nós dois queríamos ser a Lady Gaga.
— Sério que você vai ter coragem de me negar essa escolha no meu primeiro passeio por Madri? — tentei apelar para a chantagem emocional, mas não funcionou. Danilo estava com os braços cruzados e uma expressão muito resignada no rosto. — Qual é, Danilo. Cadê a empatia?
— Tentar me deixar com pena não vai funcionar, Bruna — ele respondeu tão sério que eu estava me segurando para não gargalhar. — Só tem um jeito justo de decidir isso.
E foi assim que eu acabei cantando a parte do Bradley Cooper após perder no pedra, papel e tesoura.
O karaokê não estava cheio, talvez porque se aproximava da hora do almoço e as pessoas procurassem por refeições em lugares mais calmos, mas os poucos clientes e os atendentes no balcão ficaram nos encarando com as testas franzidas sem entender porque tínhamos trocado as partes da música. E também pela nossa falta de talento musical, acho.
É necessário reforçar que eu cantava mal, sem exagero algum. Mas, em comparação com Danilo, eu era a próxima Taylor Swift! Sorte que a minha parte não era tão grande, porque aí pude me concentrar em segurar o riso diante das caras que ele fazia e os falsetes muito falsos.
Quando ele terminou, eu bati palmas freneticamente, apertando os lábios. Ele viu minha expressão e soltou um "rá, rá, rá" que me fez gargalhar de vez.
— O próximo nome do pop! — brinquei, e ele fez uma reverência elaborada antes de agradecer.
Nada mais justo que ele cantasse mal. Sempre achei uma tremenda injustiça pessoas que cantavam bem e ainda eram lindas. E eu nunca tinha visto ninguém tão bonito quanto ele, de verdade, então ao menos o universo tinha feito sua parte pelo equilíbrio.
— Sua vez de escolher — Danilo afirmou, bebendo um copo de água em um gole só.
Me aventurei pelo catálogo de músicas, demorando muito tempo para achar uma que me chamasse a atenção. Fazia todo sentido que eu a escolhesse, além de sempre ter amado o filme. Danilo assentiu, o sorriso no rosto indicando que aprovava a escolha da última música que cantaríamos.
— E nem ouse dizer que quer ser a Jasmine! — ameacei, mesmo sabendo que meu um metro e meio de altura não costumavam impor autoridade alguma.
Danilo ergueu as mãos com as palmas voltadas para mim com uma expressão inocente.
— Jamais me atreveria.
Soltei um muxoxo de descrença antes da música começar. O início era dele, e era impossível tirar os olhos do quanto ele se envolvia com a música. Cantando mal ou não, ele estava realmente gostando daquilo. E eu também, desde quando entrei no refrão até o fim da canção.
A Whole New World combinava muito com o dia que eu estava vivendo, e essa era provavelmente a parte mais legal. Nós giramos no palco e improvisamos passos terríveis de dança que nada tinham a ver com o ritmo que cantávamos, mas alguns clientes bateram palma ao fim da nossa apresentação.
Agradecemos com uma reverência exagerada antes de cair na gargalhada. Fazia tempos que eu não me divertia tanto!
Estávamos jogados em cadeiras ao lado do palco de karaokê, naquele momento vazio. Eu me agarrava ao meu copo de suco gelado como se minha vida dependesse disso. Danilo estendeu o seu próprio copo com a mesma bebida em minha direção.
— Às músicas de tapetes mágicos e estacionamentos — ele brindou, se referindo às cenas em que as músicas apareciam em seus respectivos filmes, e eu bati meu copo no dele. Quase consegui derramar o suco, desastrada como era, mas foi por pouco.
Nos levantamos e pagamos a conta, dividindo igualmente o gasto, já que tínhamos pedido exatamente as mesmas coisas. Danilo avisou que nosso próximo (e último) destino estava há menos de cinco minutos de caminhada, mas eu nem me importaria se fosse dali a uma hora.
Estava amando andar pelo centro de Madri! Já tinha dito — e pensado — isso mil vezes, mas a cidade era linda. Tão linda que eu sabia, sem sombra de dúvidas agora, que tinha feito a escolha certa. Amava São Genésio e tudo que a cidade trouxera à minha vida — as amizades, a independência, o curso perfeito —, mas eu sentia uma conexão intensa com a capital espanhola.
Como se eu sempre estivesse destinada a estar ali, naquele momento, observando a arquitetura única da cidade se mesclar com os elementos urbanos que toda cidade grande parecia ter.
— Chegamos — Danilo anunciou, e eu observei o edifício à nossa frente com empolgação.
A entrada do Mercado San Antón me lembrava um pouco do mercado central de Belo Horizonte, e a recordação era mais que bem vinda. Por dentro parecia mais um shopping, ao contrário do edifício na capital mineira, mas estava cheio também.
O primeiro andar tinha de tudo, desde hambúrguer (de que eu nunca fui muito fã, para choque total dos meus amigos de São Genésio) a frutas e verduras. O segundo andar tinha uma área para exposições e eventos que não estava sendo usada e uma enoteca, que nós nem entramos, para o alívio da minha conta bancária.
O terceiro andar dava acesso ao terraço, no qual estávamos naquele momento, e era meu preferido, sem sombra de dúvidas. Era um restaurante, com mesinhas espalhadas ao redor de paredes de vidro, com guarda-sóis sobre elas. A proteção era alta e de vidro cristalino, permitindo que tivéssemos uma vista espetacular do bairro.
E era perfeito. Foto nenhuma poderia capturar a emoção que eu senti olhando os prédios, as ruas, as pessoas tão pequenas lá embaixo que mais pareciam miniaturas de jogo. Uma brisa agradável nos envolvia, e eu não queria estar em nenhum outro lugar do mundo.
Estávamos observando a vista lá fora, a fome que eu sentia antes totalmente esquecida. Danilo estava ao meu lado e, pela visão periférica, eu soube que ele estava olhando para mim e sorrindo. Isso fez meu peito se apertar e aquecer, uma sensação estranha que eu não quis registrar.
— Obrigada — sussurrei, passando a olhá-lo e esperando que minha voz e olhar fossem capazes de transmitir toda a gratidão que eu sentia. — Obrigada por hoje.
Ele sorriu ainda mais.
— Não há de quê, Bruna. Espero que essas horas tenham te feito gostar um pouquinho mais da cidade.
Um pouquinho mais era um eufemismo. Eu estava louca por Madri! Queria passar os meus próximos dias explorando cada canto da capital, em busca de todas as pequenas aventuras que pudesse viver.
— É tudo que eu sempre quis — admiti, um pouco mais sincera do que gostaria.
Eu não sei o que me fez tomar a decisão a seguir: se foram seus olhos azuis e brilhantes, tão intensos quanto gentis; se foi o seu sorriso, que se alargava mais em uma alegria genuína; ou todas as paisagens incríveis que eu tinha acabado de visitar e as risadas que dera nelas.
Meus braços enlaçaram a cintura de Danilo, e ele passou os seus próprios braços pelas minhas costas. E, simples assim, estávamos nos abraçando, em um terraço lindo na capital da Espanha com uma brisa agradável nos envolvendo.
Foi fácil relaxar dentro daquele abraço. E a constatação disso me assustou mais que qualquer outra coisa nos últimos tempos. Eu deveria soltá-lo. Deveria aprender a me conter mais, a ser menos.
Mas eu não soltei.
Assim que saí do táxi e meus pés tocaram a calçada, percebi que a festa era bem maior do que eu imaginara. Mais do que isso, o tal amigo do Danilo era podre de rico, porque eu estava olhando para uma mansão maravilhosa com uma fonte na frente. Uma fonte, pelo amor de Deus.
Na volta para o alojamento no dia anterior, Danilo tinha contado que um de seus amigos de curso da faculdade — e, portanto, meu colega de sala, dali a alguns dias — faria aniversário no sábado, e que grande parte do corpo discente da UC3 compareceria. O cara era super popular e, principalmente, adorava uma festa. Danilo me convidou, dizendo que entenderia se eu não quisesse ir, mas que seria legal.
E eu pensei: por que não? Seria a ocasião perfeita para me divertir e ainda conhecer meus futuros colegas de universidade. Quanto antes eu fizesse amigos, melhor. Ninguém sabia mais do que eu que viver solitária era a pior coisa do mundo.
Mas isso não me impediu de surtar em frente àquela mansão gigantesca.
Céus. Minha roupa era bem bonita, de verdade. Repeti isso na minha cabeça umas mil vezes até me acalmar. A blusa preta de mangas compridas e gola alta estava coberta por um sobretudo da mesma cor, e a minha calça jeans era justa e de um tom médio. Minhas botas de cadarço me deixavam alguns centímetros mais alta, mas nada muito significativo. Eu não queria tropeçar e cair em uma festa cheia de gente que mal conhecia. Não havia nada de errado com a minha aparência, e eu nem tinha pagado um mico gigante ainda, então eu deveria me aquietar.
Será que tinha sido uma má ideia? Respirei fundo e decidi ligar para a única pessoa capaz de me acalmar em qualquer situação: minha avó. Estávamos no mesmo fuso horário, e nove horas nunca foi cedo para ela. Podia apostar que dona Clarisse estava bebendo vinho com suas amigas no seu apartamento em cima de um café.
Ela atendeu no terceiro toque.
— Bruna, ma chérie! — ouvi ela falando alguma coisa em francês, que eu jamais poderia entender. — Como está a mais nova moradora europeia da família?
Eu ri e contei por alto como meus dias tinham sido. Já tinha mandado uma mensagem para ela, mas minha avó nunca gostou de qualquer contato digital que não fosse por meio de ligação. Aproveitei para deixá-la a par da festa também, sem me estender muito no dia anterior.
— Você acha que foi uma má ideia ter vindo? — perguntei, me apoiando em uma das palmeiras enormes do jardim frontal.
Com a movimentação das pessoas, percebi que ninguém estava usando traje de gala, somente roupas casuais como a minha. Era um alívio, é claro, mas eu ainda sentia o nervosismo percorrer minhas veias. Conhecer gente nova nunca foi um problema pra mim, caramba. Então por que eu precisei ligar para alguém para me sentir corajosa?
— Claro que não, meu amor. Você tem que começar a se enturmar mesmo. É até bom que já esteja com uma amizade encaminhada. Por que você está tão nervosa? Esse seu amiguinho disse alguma coisa ruim?
— Amiguinho, vó? — eu ri, escutando sua risada do outro lado da linha também. Só ela mesmo para falar como se eu tivesse cinco anos de idade. — Não disse. Ele é muito legal, sério.
E eu estava usando um eufemismo enorme naquele momento. Minha barriga revirava de nervoso e, mesmo que eu mentisse para minha avó fingindo que não sabia o motivo de tamanha hesitação — e até tentasse enganar a mim mesma —, sabia, bem no fundo, que não queria me apegar a ninguém de novo.
Era impressionante o que algumas horas podiam fazer. Quase meio dia, na verdade, e minha opinião a respeito de Danilo tinha mudado completamente. E isso me assustava demais. Porque eu sabia que não deveria confiar tão rápido em quem quer que fosse. Já tinha me ferrado por isso há alguns anos, e jogaram meu erro na minha cara mais que o suficiente também.
E lá estava eu, começando minha jornada em outro país com uma ligação que não esperava. Era estranho. Eu me sentia confortável ao lado dele, confortável até demais para não me assustar com minhas próprias emoções.
— Se você sentiu que deveria ir, então está fazendo a coisa certa aí. Eu confio em você, Bruna. Tá na hora de você fazer o mesmo, não acha? — ela perguntou, mostrando mais uma vez que era expert em me deixar de boca aberta.
Eu concordei baixinho e conversei sobre sua vida em Paris por mais alguns minutos antes de desligar. Respirei fundo. Tinha me adiantado, mas com a ligação para minha vó, a hora de Danilo chegar era agora.
E ele não atrasou, ainda bem. Ele estava caminhando na minha direção, a aparência perfeita como sempre. Eram praticamente as mesmas roupas do dia anterior, mas as cores eram diferentes e ele não tinha a pasta carteiro pendurada no ombro.
Eu abri um sorriso, provavelmente tão grande quanto o dele.
— Olha quem chegou cedo, se não é a melhor cantora que Madri já viu!
— Não posso dizer o mesmo de você, né? — provoquei, e ele fechou a cara por alguns instantes antes de rir. — Acabei saindo do alojamento muito cedo. Você tem certeza que seus amigos não vão se incomodar com a minha presença, né?
Eu sabia o que ele responderia, mas me sentiria melhor com a confirmação.
— Claro que não, não seja boba. E você não é a única aluna nova da universidade por aqui, nem mesmo a única estrangeira.
Provavelmente a única que não fala espanhol, pensei, mas deixei pra lá. Tinha estudado algumas frases essenciais nos últimos dois dias, e a semelhança com o português ajudava bastante. Já tinha me matriculado em um curso intensivo de três meses perto do alojamento e, dali a uma semana, teria uma hora de espanhol cinco vezes por semana.
Meus primeiros meses ali, provavelmente grande parte do primeiro ano, seriam puxados e cheios de estudos, mas eu não me importava. Já tinha percebido no dia anterior que permanecer na Espanha era tudo que eu queria, então estava na hora de lutar por isso.
— Se você diz — falei, e encaixei minha mão no cotovelo que ele estendia para mim. Era nesses momentos que eu me lembrava do quanto ele era alto, ou do quanto eu era baixa. — Então... que os jogos comecem?
— Que a sorte esteja ao nosso favor — ele completou, e eu sorri com a referência a Jogos Vorazes. Nada melhor do que conversar com alguém que entende a maioria das frases literárias.
Nós passamos pela porta da frente e eu tentei não abrir a boca diante do tamanho daquela casa. Nunca tinha visto um lustre tão grande e brilhante, nem escadas gêmeas de cada lado do cômodo tão lustrosas. O pé direito era gigantesco, e uma das paredes era toda de vidro.
Um cara aparentando uns vinte e poucos anos veio na nossa direção com um sorriso enorme no rosto e um chapéu de aniversário preso ao topo da cabeça por um elástico que ameaçava se romper.
— Sandro! — Danilo disse ao meu lado, muito entusiasmado, e os dois se abraçaram e riram antes de se separarem e olharem para mim. — Essa é a Bruna. Ela é brasileira e vai começar essa semana. Mesmo curso que a gente.
Ele disse tudo em inglês, o que foi um alívio, e o Sandro me deu as boas vindas na mesma língua antes de me puxar para um abraço caloroso. Ele era muito animado, o que era contagiante. Não tinha como ficar triste ao lado de uma pessoa tão sorridente.
Depois de conversar por alguns instantes conosco (e eu descobri que ele realmente era tão legal quando Danilo afirmara), Sandro disse que podíamos ficar à vontade, mas ele tinha que ir cumprimentar os outros convidados. Danilo e eu decidimos ir buscar bebidas na cozinha.
A idade mínima para consumir álcool era a mesma tanto na Espanha quanto no Brasil, e eu já tinha 20, então aceitei de bom grado a cerveja que o Danilo me ofereceu. Ele disse que me apresentaria a alguns colegas de sala, e nós só deixamos os casacos no hall de entrada antes de seguir para a área externa.
A piscina brilhava em cores variadas, e eu decidi que a roxa era minha preferida. Ninguém estava nas espreguiçadeiras ao redor — fazia pouco mais de quinze graus —, e sim em um espaço enorme de grama com mesas, sinuca e futebol de mesa. Era de fato muita gente.
Uma moça se aproximou. Ela devia ser estudante, a julgar pela idade, e tinha os cabelos mais legais que eu já vi na vida. Eles eram ondulados e rosa-pastel, e combinavam com sua saia plissada da mesma cor. Ela abriu um sorriso gentil.
— Hola, Danilo, ¿qué tal? — e até o meu espanhol fajuto conseguiu entender, pelo menos. Danilo disse uma coisa que eu julgava ser "essa é a Bruna e ela não faz a mínima ideia do que você vai falar" e a desconhecida continuou, em inglês para meu alívio: — Oi, Bruna! O que tá achando da Espanha? Gostou da universidade?
— Nem se apresentou, né, Lu — Danilo implicou, e ela o empurrou de brincadeira.
Ela se virou para mim e estendeu a mão com graciosidade.
— Oi de novo, Bruna! Eu sou a Lu, prima desse chato, e estudo Direito na UC3. Você é de onde? E faz o quê?
Lu era muito animada, e gostei dela logo de cara. Ela e Danilo tinham o mesmo sorriso radiante e o formato dos olhos era quase idêntico. Eles implicavam muito um com o outro, percebi enquanto conversávamos depois de eu contar uma rápida introdução sobre mim, e era super engraçado.
— Vem cá, Bruna, eu vou te apresentar para companhias menos irritantes — Lu decretou, enganchando o braço no meu cotovelo com naturalidade, mas eu nem me incomodei. Ela era tão espontânea quanto eu gostaria de ser, e até Danilo riu da sua provocação. — Mentira, primo. Você não é tão ruim assim.
— Obrigado, eu acho? — Danilo tomou um gole da cerveja, levantando as sobrancelhas em exasperação. — Já que vocês vão dar uma volta, vou ali encher o saco do Sandro. Tudo bem por você, Bruna?
Assenti, observando-o se afastar em direção a casa antes que Lu me puxasse para os fundos do quintal. Eu achava que era o fundo, mas aquela propriedade não tinha um fim. Era imensa, e mais para frente eu via até um pequeno bosque.
Sandro era bilionário, só podia ser.
— É enorme, não é? — Lu acompanhou meu olhar, e eu assenti com ênfase. — Sandro costumava brincar que a família dele mexia com a máfia e era super perigosa, mas a verdade é que eles têm vários bancos. Bem menos empolgante.
Eu ri da sua falsa decepção, e ela nos guiou até o ponto iluminado das mesas e jogos. Havia muita gente ali, e seu grupo de amigos soltou uma série de gritos animados quando nos aproximamos.
— Pessoal, essa é a Bruna!
Aparentemente as pessoas já me conheciam, porque um cara alto e maravilhoso (todo mundo daquela universidade tinha que ser estupidamente bonito?) gritou:
— A Bruna do Danilo?
Uma garota deu uma cotovelada nele, e eles discutiram por segundos antes de se abraçarem. Ao meu lado, Lu revirou os olhos.
— Esses dois são tão grudentos que ninguém aguenta. — Ela fez uma pausa. — Sim, Julio, a Bruna amiga do Danilo.
Eles se aproximaram mais e me fizeram as mesmas perguntas que eu já estava me acostumando a responder: se eu estava gostando do país e da universidade, se iria ficar até o fim do curso e onde estava morando. Pelo visto, Danilo já tinha falado de mim para seus amigos, e eles conversaram em inglês o tempo todo.
Eu não sabia o que pensar disso. De ele ter falado de mim para outras pessoas, digo. Me dava um frio estranho na barriga, que não era um incômodo, mas se transformava em um porque eu não sabia nomear a sensação.
Com o passar do tempo, acabei me afeiçoando mais a cinco pessoas: Lu, Julio e Ísis, Afonso e Rosa. Eles tinham personalidades completamente diferentes e era muito divertido observar a dinâmica da sua amizade. Mais que isso, era maravilhoso perceber que eles estavam tentando me incluir em tudo, mesmo que eu não entendesse grande parte dos assuntos que eles desenvolviam.
Lu saiu para atender o telefone — segundo ela, era a ligação de um amigo que tinha feito em um cruzeiro pela Grécia, Alexei, quando ele estava trabalhando de bartender — quando a atividade padrão de festas surgiu: jogos.
— Quer jogar beer pong, Bruna? — Ísis convidou, e Julio imediatamente a cutucou.
Eles se provocavam o tempo todo. Eu já estava morrendo de rir antes de ele dizer qualquer coisa, porque sabia que ela iria retrucar e dar início a mais uma mini-discussão.
— Você vai ser do meu time, Ísis?
— E eu tenho cara de quem quer perder?
Seus amigos mais próximos soltaram um "uuuuuu", como se estivéssemos em uma sala da quinta série, e Rosa me acompanhou no riso.
— Eu vou acabar com você por isso. Prepare-se para uma derrota colossal.
— Nem você acredita nisso.
Ísis se virou para mim, esperando por uma resposta, e eu disse que jogaria, mesmo que nunca tivesse feito isso antes. Procurei por Lu, a pessoa mais próxima a mim no grupo, e ela riu alto ao telefone antes de se despedir do amigo ("Ah, Alexei, você não tem jeito!") e correr para o meu lado.
— Vamos ser uma dupla! — Lu afirmou, animada, e se virou para mim para sussurrar: — Quer dizer, se você quiser. Desculpa. Eu me deixo levar às vezes.
— Não tem problema. Espero que você seja boa!
— Ah, eu sou ótima.
Uma risada que eu conhecia cortou o ar atrás de nós, e eu me virei para ver Danilo e Sandro se aproximando. Ele já tinha soltado alguns botões iniciais da camisa e arregaçado a manga até os cotovelos, mesmo que a temperatura fosse baixa. Quer dizer, para mim, que estava habituada aos 25° C de média de São Genésio.
— É uma maneira interessante de analisar seu desempenho — Danilo disse, e Lu mostrou o dedo do meio para ele antes de bufar. — Eu ia chamar a Bruna, mas já que vocês vão juntas, eu e o Sandro seremos uma dupla.
Sandro se virou para ele com o cenho franzido, e levou uma cotovelada antes de murmurar:
— Uma dupla, isso aí.
A mesa foi dividida em duas partes e dois triângulos de copos de cerveja foram montados. A primeira rodada foi de Ísis e Afonso contra Julio e Rosa, que ganharam por muito pouco. Ísis parecia profundamente chateada, em grande parte por ter que aguentar as provocações do seu namorado. Antes que pudéssemos notar, porém, eles já estavam se beijando.
Era a nossa vez. Eu nunca tinha jogado beer pong na vida, porque não era uma tradição muito comum no Brasil — ao menos não nas festas de São Genésio, e não em Ponte Nova, durante minha adolescência —, e eu contei totalmente com minha coordenação motora e geometria. Quer dizer, aquilo tinha que ser a base de ângulos e força calculada, não é?
A primeira jogada foi minha, porque eles insistiram que era assim que deveria ser na minha primeira vez, e eu respirei fundo. Os copos estavam todos juntos, o que tornava mais fácil acertar algum se a bolinha quicasse uma vez na mesa... e foi o que ela fez, aterrissando em um dos copos do meio.
Lu e eu nos abraçamos aos gritos de comemoração, e ela me disse que, dos nossos adversários, Sandro era o melhor. Foi quem eu escolhi para beber, então, e ele tirou o copo da mesa em seguida.
Danilo foi o próximo a jogar e, após acertar, me escolheu como a próxima vítima. Eu bebi com pressa, animada para ver Lu acertando em seguida, e foi o que ela fez.
E assim o jogo seguiu, e eu descobri que era muito boa. Havia, de fato, uma lógica geométrica naquilo, que ficava cada vez mais difícil de ser seguida depois de sabe-se lá quantos copos de cerveja. Ainda bem que eu não tinha bebido quase nada antes do jogo, porque aquilo era mais que suficiente. Os copos não estavam cheios, tinham apenas um quarto de cerveja, então não dava para ninguém ficar bêbado.
Mas, ao meu lado, Lu estava divertidamente alegre. Ela já começava a misturar espanhol no que dizia.
— Mierda, Sandro, você acerta a pelotita toda vez! — era sua vez de beber, mas eu tomei no lugar dela, porque aparentemente era muito mais resistente ao álcool. — Mas a Bruna é ótima. Nós vamos ganhar!
Eles riram da resignação na voz dela. Tínhamos chances, se acertássemos as duas próximas tacadas e Danilo errasse a sua. Nossa mesa tinha um copo e a deles, dois, então não podíamos nos dar o luxo de errar nada.
Respirei fundo e me concentrei. O melhor jeito de jogar agora seria em um arco perfeito, porque eu ainda conseguia manter uma mira relativamente boa. Observei a bolinha cortar o ar com apreensão antes de ela pousar perfeitamente em um dos dois copos.
Lu gritou e me abraçou, e nós rimos e giramos em nossa própria órbita. Danilo bebeu com a maior cara de poucos amigos, e sua insatisfação era meio bonitinha.
Que tipo de pensamento era aquele?
Balancei a cabeça e me forcei a focar no jogo.
Era a vez dele, e eu e Lu nos demos a mão como se estivéssemos em uma cobrança de pênaltis decisiva no final da copa do mundo. Era o que parecia. Sandro deu um tapinha de encorajamento nos ombros de Danilo e se curvou para observar melhor. Danilo se concentrou e jogou.
A bolinha quicou na mesa, bateu na borda do copo... e foi direto para o chão, parando na grama perto do meu pé.
Danilo xingou enquanto eu e Lu comemorávamos a chance da vitória. Sandro foi limpar a bolinha e a garota de cabelo rosa ao meu lado me soltou.
Lu fez uma cara séria. Era engraçado vê-la se alongar como se fosse participar das Olimpíadas. Ela esticou os braços acima da cabeça sob os risos de todo mundo que assistia.
— Muy bien, vamos, eu consigo — ela afirmou, dando pequenos pulinhos antes de se posicionar. — Observem a manifestação do mais puro talento.
Ela tomou um longo fôlego antes de jogar a bolinha, uma jogada com tanta força que eu achei que jamais daria certo em um arremessamento direto. O pequeno objeto branco encontrou o copo, porém, e ficamos um segundo em silêncio antes de nos abraçarmos aos gritos.
We are the champions, do Queen, começou a tocar nos alto falantes, e nós rimos e gritamos a letra da música. Lu estava mais gritando qualquer coisa, o que foi melhor ainda de assistir, combinado à sua dancinha da vitória. Eu também fiz a minha, porque era maravilhoso ter estreado no jogo com 100% de aproveitamento.
Ok. Eu só tinha jogado uma partida. Mas podia sentir que era muito boa naquilo, ou ao menos queria pensar que sim.
Danilo se aproximou e me deu os parabéns com muito exagero. Fiz uma reverência de brincadeira, e ele riu antes de perguntar se eu queria caminhar pelo quintal. Assenti, satisfeita, e fomos nos sentar em um balanço nas árvores que separavam o bosque da área externa iluminada.
Ali, o som não era tão audível quanto antes, e as luzes eram mais fracas. Aquele lugar era absolutamente lindo. Tentei girar o meu balanço e ri quando percebi que meus pés não tocavam o chão. Novidade.
Danilo percebeu e se levantou do seu assento para me dar um empurrão. Fui para frente e para trás, em um ciclo finito e breve com o vento balançando meus cabelos no ar. Eles já tinham se soltado do coque desleixado que eu fizera mais cedo e voavam à minha frente.
Eu tirei os fios do rosto quando parei de balançar e me virei para encarar o homem ao meu lado.
— Obrigada — eu disse, e ele franziu o cenho.
— Pelo quê? Por te empurrar?
Eu ri.
— Também. Mas por me convidar. Foi muito bom conhecer novas pessoas, ainda mais as que vão estudar comigo. Seus amigos são muito legais.
— Ah, obrigado por ter vindo. Eles gostaram muito de você. — Danilo pareceu perceber meu olhar, e soltou uma risada nervosa antes de continuar: — Eu não saí comentando sobre você com eles, não se preocupe. Eu conversei com a Lu, até porque nós moramos juntos, mas é claro que ela abriu a boca e contou para todo mundo.
Combinava com ela, eu acho.
— Vocês moram juntos? — eu perguntei, porque não me incomodava tanto assim que ele tivesse comentado o que quer que fosse de mim.
— E não nos matamos até hoje. Surpreendente, não é? — ele riu. — Apesar de implicarmos um com o outro, Lu é a pessoa mais próxima da minha família.
Sua voz adquiriu um tom triste ao proferir essas palavras. Danilo suspirou e chutou uma pedra próxima a seus pés, e eu não pude segurar minha boca enorme:
— Você se dá bem com eles? Com a sua família? — e, antes que ele dissesse qualquer coisa, me atropelei nas palavras: — Não precisa responder. Eu sou muito intrometida.
Ele riu, mas não parecia muito alegre com o gesto.
— Não tem problema. Eu gosto de conversar com você. — E a sinceridade crua das suas palavras me deixou sem ar por alguns segundos. — Com a pequena parte da minha família que está viva, sim.
Eu imediatamente cobri minha boca com as mãos. Céus! É claro que eu tocaria em um assunto delicado. Era a minha cara fazer esse tipo de coisa e acabar com qualquer descontração existente.
— Ah! Sinto muito. De verdade. Desculpa, perguntei o que não devia.
Danilo riu mais uma vez, o riso um pouco mais alegre que o anterior, provavelmente porque eu não conseguia organizar o que dizia.
— Tudo bem. Faz muito tempo que meus pais morreram, e eu fui criado pela minha avó.
— A de Portugal?
Ele sorriu por eu ter lembrado.
— Sim, ela mora em Setúbal. Eu e Lu vamos visitá-la todas as férias, mas mesmo assim, é tão pouco. Eu vim para Madri com meus tios antes do ensino médio, e depois da faculdade tudo ficou mais apertado.
Eu entendia bem. A falta de tempo para viagens, não a parte de sentir saudades de casa. Quer dizer, eu gostava de Ponte Nova, e é claro que amava meus pais, apesar de tudo; mas São Genésio fora meu lar muito mais que a cidadezinha de Minas.
— Apesar de tudo? — Danilo perguntou com o cenho franzido, e eu arregalei os olhos ao perceber que tinha falado em alto e bom tom. Merda. — Não precisa explicar, se você não quiser.
A questão é que eu sempre fui uma pessoa de palavras. Em São Genésio, costumava me sentar na praça próxima ao campus e jogar conversa fora por horas com dona Fátima, a senhora mais afiada e altiva que eu já conhecera.
E podia ser precipitado da minha parte, mas eu considerava Danilo um amigo. Ele tinha partilhado algo sobre sua vida, um fato claramente doloroso, e eu estava morrendo de vontade de contar sobre tudo com alguém que não estava a milhares de quilômetros de distância.
— Bom, eu adoro falar — comecei, e ele sorriu diante da minha tentativa besta de girar no balanço. Não deu certo. — Contando de uma forma resumida e patética, eu vivia em uma cidade pequena de Minas. Tinha uma minha melhor amiga de infância e um namorado legal, e meu sonho na época do ensino médio era que eles fossem próximos. Acontece que eles eram próximos até demais.
Alguns segundos foram necessários para que a compreensão se espalhasse naquele rosto bonito. Danilo fez uma careta de dor.
— Que merda.
— Pois é. E, pra coroar, eu tive que ouvir dos meus próprios pais que a culpa tinha sido minha, que era boazinha demais, frágil demais, emotiva demais, que depositava minha confiança em qualquer ser que respire perto de mim por mais de 5 segundos — joguei as palavras, percebendo que elas saíram em uma velocidade assustadora. Suspirei. — Eu sei. Patética.
Quando levantei meus olhos, vi que Danilo tinha a expressão mais revoltada que já vira. Suas sobrancelhas quase tocavam seu cabelo.
— Mas que bobagem! Quer dizer, com todo respeito aos seus pais e tudo o mais, mas como você poderia imaginar? E como poderia ser sua culpa?
— Eles não estão errados sobre eu "externar demais meus sentimentos" — fiz aspas com os dedos, a voz um tom acima do sussurro.
Ok, eu não planejava falar tanto. As palavras só tinham saído.
Danilo me cutucou com o pé até que meus olhos estivessem diretamente ligados aos seus, tão azuis mesmo naquela luz precária.
— E não há nada de errado em ser uma pessoa intensa. Não acho que demonstrar o que você sente seja uma fraqueza. Na verdade, não consigo pensar em nada mais corajoso que transformar pensamentos em palavras.
Havia uma beleza tão singular no que ele dizia que eu não consegui segurar o sorriso. Ele logo fez o mesmo, um reflexo instantâneo da minha expressão.
— Obrigada — dessa vez, sussurrei.
Ele chutou mais uma pedrinha.
— Não precisa me agradecer. Eu é que tenho que dizer obrigado. Você fez meus últimos dias serem incríveis.
Meu sorriso se alargou ainda mais. Droga, ficava bem difícil me convencer que não estava começando a sentir nada por Danilo quando ele dizia essas coisas.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, mas não poderia haver nada mais confortável. Uma paz se estabeleceu naquele limite do bosque, nossas palavras pairando entre nós, imersas no alívio de termos dividido nossos pensamentos com alguém.
Algo gelado tocou minha mão, e eu pisquei, confusa. E de novo. E de novo.
Tinha começado a chover.
E, contra tudo que eu podia esperar, Danilo riu.
— É claro que tinha que chover justo agora — ele resmungou, mas não parecia nem um pouco chateado. Danilo se levantou e estendeu a mão para mim. — Me concederia a honra de uma dança, senhorita?
Fingi uma expressão solene.
— Nada poderia ser digno maior apreço neste instante, meu caro senhor — e aceitei a mão que ele ainda estendia.
Minhas botas, por sorte, não afundaram na grama. Danilo colocou as mãos ao redor da minha cintura, o toque de seus dedos por cima da minha blusa aquecendo meu corpo por inteiro. Pisei nos seus pés para alcançar seus ombros com as mãos, e ele sorriu quando ajeitei o colarinho da sua camisa.
Não avisei que era péssima dançando, porque era perceptível em segundos. Eu tinha feito algumas aulas de dança com o Lorenzo em São Genésio, e valera a pena só pelas risadas que eu dava diante do seu bom humor incrível, mas estava para nascer uma dançarina pior que eu. Danilo riu quando eu pisei no seu pé pela terceira vez.
Mesmo o meu desastre natural não estragou o momento. O frio penetrava meus ossos, mas o calor do contato com suas mãos e o pescoço me faziam crer que o calor do Brasil não era nada comparado àquilo. Sorri quando Danilo me girou e voltou a me segurar, nós dois agindo como se aquele canto afastado do jardim fosse um universo particular.
E, debaixo das gotas geladas, nós dançamos por minutos, sob qualquer música que estivesse tocando no quintal. Eu, de fato, estava apreciando aquela dança mais que a qualquer outra coisa no mundo.
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