Nas Ondas do Havaí, parte um
Toda sereia anseia por um amor tão profundo quanto o oceano.
— Autor Desconhecido
Kai não sabia voar.
Ele, como todo ser humano, não era capaz de tocar o céu com suas próprias asas. Viajar entre as nuvens que mais parecem feitas do mais fofo algodão, e desfrutar da liberdade que um voo poderia lhe proporcionar.
Contudo, o rapaz não tinha qualquer pretensão em ganhar asas ou vislumbrar o plano azulado através da janela de um avião; sua liberdade não estava resumida em tal desejo, tampouco no objetivo de ser como um pássaro: livre. Pois ele, em sua própria concepção, tinha a liberdade; a de domar o oceano em manobras, tornando-o seu lar.
Kai não precisava do céu.
Afinal, tinha o oceano, a imensidão azul para desbravar.
Sozinho em meio à areia branca e morna, o moreno respirou fundo o ar puro de Waikiki, sorrindo para ninguém em especial. Ali, sem o movimento quase catastrófico da capital, podia enfim ouvir somente o som das ondas a quebrar na praia e o barulho de sua respiração.
A prancha que utilizava — não só para passatempo, mas também em competições — estava fincada nos grãos brancos, como alguém a lhe observar em seu momento de sossego. Contudo, não lhe incomodava o fato de sua única companhia nas belas praias do Havaí ser um simples objeto de madeira; inanimado. Para ele, era um privilégio dividir seu lugar favorito com sua companheira de todas as horas, que estava lá sempre que precisava fugir para a mansidão.
Waikiki era o único lugar em que o surfista se sentira realmente em casa; como se o oceano o recebesse sempre de braços abertos. Mesmo em dias sem qualquer movimentação no mar, o rapaz visitava a praia com tanta frequência quanto o nascer e o pôr do sol; um lugar suficientemente diferente da rotina milimétrica que o aguardava.
Kai suspirou fundo a brisa marítima, o ar salgado advindo do Pacífico, sentindo os raios de sol a lhe bronzear a pele pálida. O cenário era perfeito para qualquer um, e ainda mais para um praticante de surfe que adorava o que fazia. O jovem fitou a paisagem, enquadrando-a em seus dedos, logo procurando em sua mochila deixada próximo à si a câmera fotográfica que também era um objeto indispensável em sua lista. Observando o plano azul do pélago através da lente, as cores se misturavam, formando um conjunto que era seu favorito; o azul do céu tingido com tons de fogo e o sol a se pôr como se mergulhasse nas correntes marítimas, a fim de desfrutar da maravilha que era tão calma e tão poderosa ao mesmo tempo.
Ele entendia a estrela; se pudesse, viveria a desbravar as águas que atiçavam seu imaginário, a descobrir os mitos contados pelos navegadores que temiam a imensidão sem fim. Desdobrar-se além de onde estava, e encontrar a liberdade que o impulsionara.
Era assim que Kai Mori via o oceano.
Mas, não era desse modo que as pessoas ao seu redor o enxergavam.
Viajando em pensamentos tão conflitantes quanto as correntes do mar, o moreno tomou um verdadeiro susto ao ouvir o toque de seu celular. Ele praguejou, xingando à si próprio por ter esquecido de desligar o aparelho, para se ver livre, por algumas horas, de todas as obrigações que o cercavam, deixando que o toque insistente atrapalhasse sua paz.
O moreno respirou fundo, e com os olhos castanhos ainda fechados, procurou dentro da mochila largada próximo de si o causador de seu torpor. Com um suspiro de pura exasperação, o surfista vislumbrou na tela seu remetente: Era Wendy que, em uma mensagem de texto, ditou. Mori quase podia ouvir a voz nada alegre da amiga ao mandar aquilo.
Wendy 17:32
Atenda esse telefone, idiota. Está atrasado. Não me faça ir buscar você.
Ele então suspirou, voltando-se para as cores que se misturavam nas nuvens. O sol começava à se pôr, o que era um péssimo horário para sair dali; afinal, segundo Kai, todo pôr-do-sol no Havaí era imperdível, um evento único que deveria ser registrado. Mas, o surfista também sabia que não podia esconder-se para sempre; nem fingir que sua outra realidade não existia.
O rapaz deteve a própria careta enquanto retornava as inúmeras ligações perdidas em seu telefone, logo sendo recebido por um voz nada satisfeita do outro lado da linha.
"Ah, finalmente. Achei que havia se perdido de propósito".
Wendy era uma garota legal, uma espécie de "irmã mais velha" para o moreno que, como sugere o dito título, agia sempre como um garoto mimado que precisava de uns "puxões de orelha", de vez em quando. E a Lamberg não hesitava em dar tais "puxões" quando necessário.
Kai fez um muxoxo, imitando a interlocutora da melhor forma que conseguiu, soltando uma risada animada ao fim de sua "performance". A irritação na voz da melhor amiga era um ótimo impulso em sua brincadeira.
"Deixa de tolice, Kai, é sério. Você precisa vir ao trabalho hoje. Seu pai mandou que viesse".
A menção ao Mori mais velho fora o suficiente para fazer o sorriso em seu rosto desaparecer, sumindo junto com o vigor. Era esse o efeito que as ações dos pais do surfista tinham sobre ele, que se via, cada vez mais, como um tubarão lançado ao mar, sem suas barbatanas.
Ele não era como os pais, e por isso, fugir para uma das praias pouco ou desabitadas se tornaram parte da rotina.
Porém, em alguma hora, teria de retornar.
O jovem soltou um suspiro com o saber de que não poderia mais se esconder naquele dia que chegava ao fim. Lançou um último olhar para o oceano, desligando o aparelho em mãos. E ao segurar sua prancha e correr para o azul, ele também soube que aquele, onde estivesse, sempre seria o seu lar.
"Durma. Entregue sua vida para a Água, o lugar onde sempre quis estar. Ela espera você. Ela o deseja."
Despertando de um pesadelo, Kai levantou-se da prancha, levando um verdadeiro susto ao perceber que estava dentro d'água. Não sabia onde estava ou que horas seriam, ou quando havia dormido em sua prancha debaixo de um céu sem estrelas. Já era noite, muito tardio, se julgasse a escuridão presente. O barulho das ondas e da respiração descompassada do Mori eram os únicos sons audíveis, embora pudesse garantir ter escutado a voz que irrompera os sonhos alheios.
Seus membros inferiores estavam afundados no mar, causando arrepios na pele desprotegida. Tinha medo, estava assustado, o que não lhe era uma sensação comum ao adentrar aquele que considerava seu habitat. Ele tentou se debater, contudo seu corpo parecia descansado, paralisado, sem conseguir se mover. A voz doce e calma ressoava como uma brisa, mesmo que lhe dissesse palavras assustadoras, lhe trazendo paz em uma situação amedrontadora. O rapaz logo se viu a procurar quem seria a possuidora de algo tão belo, com uma curiosidade quase selvagem; aterradora.
Era uma garota, tinha certeza, porém suas orbes não conseguiam capturar onde a dona daquela voz estaria. Uma canção ressoou em meio ao mar, acordando o mundo em torno de si.
Kai estava no meio do oceano, à uma distância considerável da areia. Era impossível haver música ali, que estava tão próxima quanto a própria água. A canção adentrava os tímpanos, penetrando o cérebro e o preenchendo de uma sensação serena, desaparecendo com os problemas que antes o atormentavam.
Não existia mais o peso de ser um garoto perfeito, ou corresponder às expectativas de seus pais. Nem mesmo o surfe. Tudo desaparecia em uma melodia, um som, um pedido. Ele parecia não ligar. Afinal, era onde sempre desejara estar.
"Me entregue sua vida. Adentre o azul e morra."
Kai não queria. O pequeno lado racional de seu cérebro, que desaparecia à cada minuto, o alertava incessantemente para não dar ouvidos, não saltar no mar. Ele não podia. Mori amava o oceano, e mais ainda poder desafiá-lo.
O azul se tornava a única coisa em sua visão, e a canção o único som à se ouvir. Os batimentos cardíacos se acalmavam com o passar dos segundos, que mais pareciam horas. A mente conturbada entrava em conflito, pois não era assim que o surfista desejava encontrar o mar; se entregando à ele. Mori era um desafiante, um desbravador.
E foi isso o que fez.
Em uma última tentativa, conflitando a maior parte de seu corpo que o impelia ao contrário, o surfista gritou. O mais alto que pôde, o mais forte que conseguiu. Não podia morrer, não podia deixar-se afogar.
A voz esganiçada soou pela praia deserta, pelas ondas, pelas dunas, e pelos ouvidos da sereia que tentava levá-lo. Seu canto falhou, o suficiente para desfazer o encanto que levava o jovem para um abismo sem fim. As notas mortais paralisaram, em uma canção silenciosa e interrompida, que reverberaram em um eco final.
A Água parou, e assim, com o fim da doçura que quase custara uma vida, o surfista desabou sobre o pedaço de madeira que o apoiava, em pura exaustão. O moreno fechou os olhos vagarosamente, coberto por uma Lua que não era visível no céu, e pelo mistério capturado por sua mente cansada; algo como uma alucinação; a estranha e doce melodia que surgia das ondas.
Uma garota, em parte encoberta pelo luar, emergiu das águas e o observou: os fios escuros e molhados, a pele pálida, os olhos fechados. Os lábios vívidos. Ela, sem proferir uma única palavra, nadou sem dificuldade na direção do desconhecido; o estranho e único à escapar da canção. A fascinação era notável em sua expressão, tanto quanto seu dever. Aquele homem não devia estar ali; vivo. Mas, no fundo do oceano, tragado pela Água, como havia sido ordenada.
Contudo, a jovem não conseguia entender. Porque se encontrava tão assustada, e porque aquele garoto havia sobrevivido.
Ninguém deveria hesitar em ouvi-la, desistindo de si mesmo e entregando-se como sacrifício para aquela que sempre os espreita, como uma sombra.
E ela, nada mais era do que uma serva; uma imperfeição criada para alimentá-la.
Os dedos pálidos e finos da moça se direcionaram para o rosto de Kai, parando sua ação antes de tocar a tez. A moça nunca havia visto algo como tal; alguém forte o suficiente para resistir ao chamado da Água, à sua ordem.
A garota continuou a atentá-lo, buscando algum sinal naquele corpo de que ainda existia vida, ou se tudo aquilo havia sido o último suspiro de um humano desesperado. A criatura fantástica, protagonista de diversos contos e mitos, olhou em volta, como se procurasse por olhos que a vigiassem, à espera de um único erro para levá-la ao fundo. O silêncio, que lhe era tão comum, permaneceu, sem qualquer ordem de sua Mestra, o que serviu como um impulso para cometer um erro.
A jovem respirou fundo, e em uma decisão, levou o surfista desacordado pelas ondas, na direção da praia. O corpo não lhe era pesado, mas o pélago em torno de ambos tornava a tarefa tão fatigante quanto carregar uma rocha; ela sabia, a Água ainda tentava levá-lo, mesmo sem a sua voz.
A moça, cujo nome era Ayla, era tomada por perguntas pertinentes em sua mente, dúvidas sobre o porquê de salvar aquele humano, trair seu voto, o que poderia levar à consequências que sequer queria pensar.
Ayla engoliu seco, mas continuou o que havia iniciado; lutando contra as correntes invisíveis, levou o rapaz, sem nome para ela, até as areias escurecidas pela noite. Uma onda de alívio a percorreu ao se ver fora d'Água, embora nunca conseguisse se ver realmente livre do ser que a tornara quem era. A Lua Cheia voltava a desaparecer no plano azulado, deixando nada além das estrelas a iluminar a escuridão, levando consigo a música de suas cordas vocais.
A moça de voz mortal soltou um suspiro, ao notar que sua quase vítima respirava, fundo e em um ritmo lento; a indicação que precisava para garantir que não havia levado a primeira vida em uma lista infindável de rostos sem nome. Ayla tentava não lembrar, mas a falsa felicidade adquirida por seus corações, antes de cair no abismo profundo da morte; a esperança, os sonhos, a assombravam tanto quanto o pior de seus pesadelos, ainda que não fosse ela a responsável por aquelas ruínas.
A garota suspirou, lançando uma rápida olhada para o céu, que compunha uma sintonia com o oceano abaixo de si; e isso não era diferente em sua vida, visto que ambos sempre levavam o que lhe era importante; a machucando, e a fazendo esquecer que, em algum lugar de sua alma, ainda era humana.
Ela tremeu devido ao frio, que piorava ainda mais por suas roupas molhadas, acomodando-se por míseros segundos ao lado do jovem que quase tirara a vida; que lutara por tal como a força de uma corrente marítima. A moça de cabelos tão claros quanto o dia observou os traços daquele ser, e tomada por uma onda de consolo ao ouvir sua respiração, soltou o ar, abandonando por um segundo suas preocupações.
Contudo, ao decidir que já havia feito muito mais do que deveria, Ayla levantou-se, logo que teve certeza de que o rapaz ficaria bem; desde que não retornasse ao oceano.
A sereia o olhou uma última vez, e com os gestos de suas mãos, pediu desculpas veementemente, embora seu destinatário não pudesse vê-la naquele momento. E, sentindo-se mais solitária do que nunca, mesmo com a companhia de tímidas estrelas, correu, desejando que seu destino não fosse tão complicado quanto as ondas do mar.
Kai não acreditava em contos-de-fadas.
Nem em todas as histórias que seus pais lhe contavam enquanto crescia; para ele, tudo parecia apenas parte de um imaginário fantástico, como histórias de pescador.
E, ao acordar na praia que era seu paraíso, velado por nada além do céu azul e a lembrança de uma linda voz, o Mori achou que poderia estar sonhando; que tudo aquilo fazia parte do seu melhor devaneio.
O mar se encontrava calmo, desmanchando-se em espuma ao tocar a areia fina e branca. As palmeiras balançavam com o leve toque da brisa, e as nuvens brancas constituíam um belo quadro em conjunto; uma paisagem perfeita para qualquer artista. Ele era um amante assíduo de tais cenários, que pareciam criados por um pintor extremamente perfeccionista, porém, naquela manhã em que seus sonhos eram guarnecidos por uma voz, Kai descobriu que poderia haver coisas ainda mais incríveis do que Waikiki.
O jovem olhou em volta, encontrando sua prancha — sua companheira inseparável — e a mochila, intacta, largadas na areia. Em um momento de pânico, procurou pela fita azul que sempre mantinha em seu braço, tomado pelo alívio ao perceber que o objeto ainda permanecia ali.
As memórias em sua mente acerca a noite anterior pareciam mais o fruto de uma longa fantasia, assim como os contos de sua infância.
Ele levantou-se, um tanto aturdido. Recolheu seus pertences e seguiu na direção da cidade, onde o outro lado de sua realidade o esperava; completamente dissonante.
Enquanto trilhava o caminho costumeiro de volta ao centro, o Mori respirou fundo. A melodia feminina ainda ressonava em sua mente, assim como a paz que aquela presença lhe trazia; ele não fazia ideia do que seria aquilo. O mar trazia mistérios, e aquela garota parecia ser mais um a se decifrar.
O céu de Waikiki estava límpido, azul como em uma paleta de tinta. O verão chegara, levando em seus dias as lembranças sobre uma garota que não podia mais voltar.
Ao deixar a praia deserta, a estreita estrada de asfalto guiava os viajantes e residentes da ilha à diferentes destinos, com estabelecimentos que iam de pequenos comércios à grandes restaurantes e hotéis, tornando o Havaí o retrato de um lugar utópico retirado dos livros. Talvez, fosse apenas a impressão do surfista, mas os dias ali passavam de uma forma diferente, como se estivessem em uma linha do tempo distante do resto do mundo, um universo alternativo em que os problemas sumiam.
Mas, não para sempre.
Apressando-se pelas ruas que já adquiriam algum movimento com o advento do novo dia, o rapaz teve certa dificuldade em se desviar das pessoas enquanto praticamente corria até o Mori's House, o restaurante de pescado mais famoso da ilha, que pertencia aos avós paternos de Kai. O lugar não havia sido aberto, porém se preparava para o comércio de antemão, com caixas sendo transportadas para a área interna e as mesas a serem devidamente limpas.
A fachada do restaurante consistia em uma enorme placa com seu nome grafado em letras caprichadas, envolvidas por pinturas coloridas de flores. Grandes janelas se estendiam pelas paredes, proporcionando assim a iluminação natural que irradiava feito dezenas de luminárias acesas. O local em si não era à beira-mar, mas a maresia trazida na brisa junto ao frescor do verão oferecia uma atmosfera diferente, que fazia com que todos os presentes ali mergulhassem em ótimas sensações. E, construída com pedras de granito brancas — que seu avô garantia ter vindo do próprio Kilauea —, era quase como se estar em casa. Ou, melhor do que isso.
Esbaforido, o jovem correu para dentro do restaurante, prendendo os fios médios e ajustando o avental — deixado em um gancho na cozinha —, recebendo alguns olhares de dúvida, principalmente do avô, Akira, um senhor cheio de energia e vitalidade para seus oitenta anos de idade. O homem, já cheio das marcas do tempo, sorriu para o neto, entregando-lhe seu desjejum.
Mori Akira era alguém completamente distinto de seu filho, encontrando no neto o desejo de liberdade e autodescoberta que o seguiram na juventude, e assim, apoiando-o na árdua jornada de se tornar um atleta, sem o apoio dos pais. Seu único desejo para Kai era que vivesse; sem as amarras de uma vida planejada. A ponto de ajudá-lo em sua artimanha na viagem para o Havaí.
— Kai atrasado. Onde estava? – Perguntou o idoso enquanto realizava as devidas tarefas de seu estabelecimento. Mesmo com os protestos do mais novo quanto à sua idade, trabalhar era algo que o senhor provavelmente nunca deixaria de fazer.
Kai sorriu amarelo antes de responder. Areia estava impregnada em seu cabelo, o que, por si só, já entregava seu paradeiro. Além da prancha de surfe deixada no salão; o cheiro de maresia em suas roupas. Não era necessário ser um detetive para descobrir a resposta, e seu avô já entendia qual era.
— Na praia, vovô. Resolvi dar um tempo. Pensar na minha vida. — Respondeu o moreno, soltando um suspiro. Por mais que quisesse, aquela não era a sua verdadeira realidade, e ser lembrado disso era o estopim para que inseguranças florescessem, o memorando de que sua casa não estava em Waikiki, que havia um garoto perfeito esperando para ser encenado quando retornasse para o seu lugar de origem.
— Pensar na vida. — Ponderou o senhor, dividindo a atenção entre o neto e a cozinha; afinal tudo ainda precisava do chef. Este deu um sorriso bondoso, o que era um completo oposto às expectativas colocadas sobre os ombros do surfista. — Não se pensa na vida. Só se vive ela. Kai vai perder mais tempo a pensar do que a viver.
O jovem retribuiu o gesto ao recolher o prato que lhe era entregue. Havia sentido nas palavras do avô. Era uma pena que seus pais não pensassem da mesma forma.
— Meu pai não pensa do mesmo jeito. Pra ele, sou só um vagabundo. — Riu ao dizer tais palavras, embora doessem. Estava acostumado, afinal seu jeito de ser não estava nos padrões.
— "Vagabundo". Liberdade é chamado de "vagabundo" hoje? Pai de Kai mudou. A idade cobra uma hora. 'Tá cobrando dele agora. — Balançou a cabeça o idoso, em negação
— E o senhor? Porque não se cobra, nem cobra a mim, 'vô? — Perguntou Kai, curioso. O pai e o avô pareciam água e óleo, que jamais se misturam. Akira sorriu para o neto, com paciência em suas palavras.
— Avó de Kai, ela morreu. Com ela, eu aprendi que vida passa. Rápido. E Kai aproveita vida, como a avó. Kai é livre. Como um pássaro. — Gesticulou o mais velho, ainda com a feição alegre em seu rosto. Na face envelhecida, havia serenidade, alegria, ainda que o homem fosse viúvo há pouco anos.
Naquele segundo, com palavras como aquelas, em que era aceito por simplesmente não seguir o mesmo que o pai, o moreno teve certeza de que sua mentira não havia sido má, que a viagem arquitetada em torno de uma teia de calúnias tinha seus ganhos. Tudo era um aprendizado, algo novo. Tal como a música que ouvira em uma praia deserta.
Ao recobrar aquela estranha canção, Kai olhou para o homem idoso, ponderando se devia ou não perguntar sobre o acontecimento misterioso; um canto a irromper das águas, o chamando em uma sintonia que lhe tirava de órbita.
O Mori não sabia o que era; e por isso, achou que poderia ser chamado de louco; o pior deles, aliás. Afinal, quem acreditaria em algo tão extraordinário quanto aquilo?
Com um suspiro, o jovem agradeceu ao mais velho com uma reverência curvada, felicitando ainda mais o fato de estar ali.
Kai era como um pássaro e, portanto, não podia haver uma gaiola, uma vida regrada, à prendê-lo.
Ele era o oceano, e assim como o mar, tão livre quanto as ondas.
Com o cair da noite, as estrelas logo se tornaram visíveis no plano escuro, pontilhando o céu como pequenos diamantes. As luzes dos prédios se destacavam, mas não tanto quanto a beleza que o moreno conseguia vislumbrar ao apenas dar alguns passos para o externo do restaurante quase vazio.
Não havia muito movimento devido aos preparativos para o luau dali há alguns dias, uma tradição que o senhor Akira, embora não houvesse nascido havaiano, não hesitava em pôr no calendário. E o neto adorava tais festividades; cheias de vida, alegres, diferentes do lugar em que as asas de Kai eram cortadas; onde não havia um céu para voar.
Deixado sozinho no lugar que se tornara seu lar, o rapaz se apressou em terminar suas tarefas, a fim de logo retornar ao treino de surfe. Não era tão tarde, o que lhe daria um pouco de tempo. Com esse pensamento em mente, o Mori cuidou em velocidade quase absurda dos preparativos para fechar o estabelecimento: Limpeza das mesas, organização da cozinha, higienização do assoalho; o surfista não se importava com a atribuição dada pelo avô, de cuidar e fechar o comércio. Ali, Kai sonhava em ser a pessoa que realmente era: aquele que preferia a instabilidade das ondas à uma aula de Direito, ou qualquer plano imposto por seus pais. Pois ele era quem era, embora tentassem moldá-lo.
Em meio aos devaneios que quase o tiravam da realidade, o jovem pulou do espaço em que estava ao ouvir o sino da porta de entrada tocar, indicando o advento de alguém. Por um segundo, achou que poderia ser o avô, que chegara para levá-lo para casa, contudo, o moreno foi ainda mais surpreendido ao ver que não era Akira, mas uma garota, parada debaixo da fraca luz das luminárias que permaneciam acesas.
O Mori piscou, alarmado, como se em sua frente estivesse mais um dos mistérios da ilha de Oahu; a moça era tão bela quanto um raio de sol, com os cabelos longos e loiros a deslizar como uma cascata por suas costas. A pele um pouco bronzeada, as sardas salpicadas sobre o nariz achatado, os olhos castanhos e os lábios rosados a tornavam uma personificação de alguém que a maioria das pessoas definiria como perfeição.
Contudo, dentro de uma bela aparência, existia um ser atormentado pelas dezenas de vidas que a Água havia levado e que Ayla presenciara, em um oceano de dúvidas e deveres.
Ayla não era livre, como Kai ansiava ser.
O surfista enfim se recuperou do torpor, sorrindo para a recém-chegada em um gesto de boas-vindas. Acendeu as demais luminárias, iluminando assim o ambiente e, principalmente, seu rosto, que antes era encoberto pela penumbra.
— Desculpa, o restaurante 'tá fechado.
A loira não respondeu o dizer do mais velho, de imediato. Suas orbes se arregalaram e a face adquiriu uma expressão de pânico ao notar que aquele era o mesmo jovem que quase assassinara, na noite anterior; os dedos finos apertaram com força a alça da mochila rósea apoiada no ombro, paralisada, sem saber o que fazer. Parte de seu cérebro insistia para ir embora, afinal um erro já havia sido cometido por conta daquele mesmo humano.
Ayla fitou o sorriso no rosto do moreno, sentindo um bolo de angústia se formar em seu peito; havia jovialidade, alegria e uma vivacidade que a sereia poderia jurar nunca antes ter visto tão fortemente em outro indivíduo, coisas que eram sempre lindas de se ver em qualquer pessoa, e que eram tão dolorosas ao serem retiradas.
Um milhão de pensamentos rodopiavam por sua mente em um único minuto. Ela engoliu seco, e observando traços tão vívidos, a moça decidiu que aquela não seria outra vida tragada pelo mar.
Suspirou e sorriu, retribuindo o gesto do moreno. Suas mãos se moveram pelo ar, formando palavras incompreensíveis para o surfista, que se surpreendeu ao constatar que a visitante não tinha uma voz.
— Ah! Me desculpe, eu realmente não sabia. O que eu 'tô fazendo? Você consegue me ouvir? — Perguntou ele em inglês, um tanto desconcertado. Não pela deficiência demonstrada, mas pelo próprio desconhecimento quanto à comunicação gestual que a garota tentava estabelecer entre ambos. Kai não era um leigo, porém era a primeira vez que encontrava alguém com o que lera nos livros.
A loira riu, um som que soava como uma das músicas favoritas do outro, que sentia o rosto corar ao estar naquela situação.
O mais velho olhou em volta, pedindo em um gesto que sua interlocutora esperasse por apenas alguns segundos enquanto procurava algo. Correndo na direção da mochila largada em uma das mesas, o Mori retornou com um caderno esfarrapado e uma caneta, que entregou para o seu mais novo mistério.
Ayla não precisava de maiores explicações para entender e, em letras caprichosas, escreveu, em inglês perfeito:
"Desculpe por assustar você. Sou Ayla, e posso ouvir você, embora não possa ouvir minha voz."
Ao terminar, a moça estendeu o objeto para o turista, que soltou um suspiro de alívio ao ler seus dizeres.
— Ah, que bom. Achei que estava sendo um idiota completo. — Riu o Mori, bagunçando os cabelos arrumados em um pequeno coque. — Não precisa se desculpar, estava meio distraído...Posso te ajudar em algo? — Perguntou, buscando melhorar a primeira impressão tida com a desconhecida, esta que esquadrinhou o lugar vazio; além dele, era a única ali.
"Vim aqui para jantar. Meu pai indicou este lugar, mas parece que cheguei tarde". — Disse a moça, que deu um sorriso tímido ao constatar que sua visita fora em vão.
O rapaz balançou a cabeça em negação, apontando para a porta, onde ainda se encontrava a placa que indicava estar aberto; um erro que haveria de ser consertado.
— Tecnicamente, o erro foi meu. "Até virar a placa ao contrário, esse lugar ainda está aberto". É o que meu avô diz. Desculpa, senhorita. Se importaria se eu a levasse à sua mesa? — Disse o mais velho, buscando em sua mente a polidez que o progenitor sempre pedia para ter com pretensos clientes, e ali estava uma. Contudo, um estranho sentimento tomava seu peito ao fitar aqueles olhos, que ele juraria ter visto em algum de seus sonhos. Ayla lhe trazia calma, assim como o oceano, que era sempre sua válvula de escape de uma vida monótona.
A loira assentiu com a cabeça, a rir com o embaraço que o jovem adquiria. A timidez era notável em Kai, um traço não muito comum de se aflorar, ainda que um tanto evidente em suas ações desajeitadas. O rapaz se apressou para o externo, a limpar uma das mesas de carvalho marcadas com pequenos grãos de areia levados pela brisa, mesmo que fosse uma tarefa sem um final, já que não estavam tão longe da praia. Este polia a madeira com tanta determinação que a Wood quase imaginou fumaça a sair da lenha, o que lhe fez sorrir. A moça gesticulou que tal cuidado não era tão necessário, acomodando-se em uma das cadeiras acolchoadas, com o mar azul e calmo como plano de fundo.
Seu pai estava certo; aquele lugar era único, porém o sorriso do moreno a lhe receber a atraía mais do que qualquer coisa naquele restaurante.
Incluindo o próprio cardápio.
— Você não come peixe? — Perguntou o Mori, logo que Ayla afastou o cardápio e indicou sua condição. Era curioso o fato de alguém com alergia à frutos do mar escolher justamente o Mori's House para sua refeição. Porque, afinal, era justamente esse o carro-chefe do lugar.
"Desculpa. Como disse, meu pai indicou esse lugar, mas acho que ele esqueceu esse pequeno detalhe." — Brincou a sereia, recolocando o cardápio no lugar, a fim de procurar uma solução para seu "dilema", e ainda mais, para a decisão que tomara ao reconhecer o jovem que ainda não tinha um nome para ela.
Kai sorriu, sem estar decepcionado por ter perdido mais uma entre os inúmeros clientes que atendia em falhas tentativas. E a loira muito menos, pois sua ida não fora em vão; havia um objetivo. E ela, mais do que tudo, tinha que impedir a volta do surfista para o mar.
— Seu pai, ao menos, não lhe obriga à fazer algo que não quer. — Resmungou o moreno, ao ser surpreendido por mais uma das cobranças do pai por mensagem. Fora automático, mas o suficiente para ter a atenção da garota, que o observou como se quisesse ouvir o restante de sua história.
Ele logo piscou, se dando conta do peso das palavras proferidas, e claro, do desvio das regras de Akira. Logo se inclinou — o cumprimento ensinado pelo homem mais velho — desculpando-se pelo seu dizer:
— Me desculpe, senhorita. Não devo incomodar você com meus problemas.
A mestiça se perguntou em seu íntimo o que alguém como ele teria de problemas, exceto o que a garota já sabia. O jovem tinha toda uma vida pela frente, uma bela aparência, e ao que parecia, determinação em algo que a sereia não conseguia entender; talvez, fosse parte do mistério dos humanos cujo sua mãe sempre lhe contara, que são criaturas difíceis de se decifrar. A menina cresceu rodeada por histórias, contos sobre uma humanidade cuja deveria se encaixar, em que sentimentos, emoções, sonhos e objetivos são tão complicados quanto os movimentos das ondas, e assim, imprevisíveis.
E Kai era seu principal exemplo.
Ela se apressou em escrever, ruborizada com o simples pedido. O surfista lhe ocasionava sensações conflitantes demais para seu coração machucado, que a amedrontavam ao mesmo tempo em que acalmavam sua mente cheia de responsabilidades.
"Não é nenhum incômodo. Ás vezes, pessoas que amamos acabam nos machucando mais que qualquer ferida." — A loira engoliu seco, viajando pelas ordens de sua Mestra, que ignoravam qualquer dor ou arrependimento que recaíam na moça sem voz. A música que vinha de suas cordas vocais a atormentavam como se saíssem de um filme de terror, que continuavam a ressoar em seus ouvidos mesmo depois do fim da canção mortal.
O oceano se tornara sua tortura, e não a maravilha que sempre acreditara ser.
— Tenho que concordar com você. Quer dizer, com a senhorita. — O Mori falou com um suspiro, segurando a fitinha azulada e maltrapilha que trazia no pulso direito. Logo, xingou à si mesmo pelo deslize. — Droga, sempre esqueço. Desculpa.
A mais nova sorriu, levantando as mãos, indicando que estava tudo bem, que não havia porque pedir desculpas. As orbes castanhas se permitiram observar o rosto alheio, aquele que havia marcado seu primeiro sonho depois de anos rodeada por faces levadas pelas correntes. Os fios escuros, o sorriso, até seus gestos e personalidade; o turista era tão belo quanto às estrelas com que Ayla adorava sonhar.
Ela não era uma sonhadora, pois não se permitia fantasiar com uma vida normal em um mundo em que era uma intrusa; ainda que tivesse um nome, uma identidade naquela realidade que era tão palpável e tão distante, Ayla Wood não se enxergava como parte dele. Parte de si pertencia à Água, assim como outra parte era humana; e dessa forma, não fazia parte de nenhum dos dois mundos. Não havia um futuro visível além da sua busca inalcançável por pertencimento e de obedecer ordens, tornando-a uma completa tempestade.
A Wood vislumbrou a prancha de surfe deixada em um canto do lugar, que se mesclava às demais decorações marítimas espalhadas pelo salão; um objeto que não lhe deixava esquecer seu objetivo dali em diante.
A visitante então levantou-se, surpreendendo aquele que atiçava sua curiosidade acerca à humanidade. Disse, em palavras silenciosas, embora tudo o que estava em sua garganta preenchessem mais do que um simples caderno:
"Eu que peço desculpas, por fazê-lo perder seu tempo."
Kai ditou rapidamente enquanto a via seguir para a saída, sentindo que toda a pressão do mar residia em seu peito.
— Não foi perda de tempo, foi um prazer conhecer você. E, da próxima vez que nos encontrarmos, vou lembrar que é alérgica à frutos do mar, e farei algo especialmente para a senhorita.
Ayla riu e, em sua despedida, escreveu:
"Eu me lembrarei disso. Mas, acontece que não sei seu nome."
— É Kai. Kai Mori.
A garota piscou, a absorver e guardar o significado daquele nome.
O oceano, que tanto lhe amedrontava, estava presente no nome do rapaz que desejava salvar.
"Kai. Como o oceano."
— Sim. – Sorriu ele, com diversão. — Meu avô o escolheu.
"É um bom nome. Tão forte quanto o mar" . — Disse a sereia, forçando-se à ir embora, mesmo que esta não fosse a sua vontade. —"Tenho que ir. Aloha, Kai".
— Aloha. — O Mori a observou sumir na escuridão da praia, tão misteriosa quanto à sua chegada. E, observando as milhares de estrelas que se elevavam em um céu tão escuro quanto pérola negra, ele desejou que aquela aparição não fosse apenas parte de seus sonhos.
Ayla não gostava do frio.
Ao deixar aquele restaurante e correr por uma praia deserta, a jovem pensou que estava em algum ponto do Alaska, e não em uma noite quente do verão havaiano.
Alguns metros à frente, o oceano lhe chamava, a persuadindo a voltar para sua tarefa. Contudo, Ayla tremia, como se todo o calor houvesse sido roubado de si. A boa energia que a envolvera naqueles rápidos minutos em que encontrara Kai havia desaparecido, ao memorar que aquela deveria ser uma das milhares de vidas sugadas por sua Mestra, tragado e desaparecido; morto.
A loira se deixou cair sobre a areia, sem entender porque lágrimas escorriam de suas bochechas, porque sentia-se tão triste e desolada. Afinal, sua infância fora resguardada por canções; músicas que afogavam aqueles que desafiaram a soberania da Água. Desde pequena, fora ensinada que aquilo era algo belo, nada além de uma punição e um pagamento, mesmo que o ser que prometia amá-la houvesse lhe desprovido de uma voz normal, humana, assim como sua mãe.
Pela primeira vez, a mestiça gritou em silêncio, se permitindo sentir rancor, raiva, todo o ressentimento pelo que a Água havia tirado de si, e dos outros. Os rostos de pessoas sacrificadas em naufrágios, acidentes ou qualquer outro nome dado por humanos, se tornaram claras em sua memória, trajetórias interrompidas por um final trágico no fundo do oceano.
Ela voltou a caminhar, sem ter um lugar exato para ir. Já estava tarde, mas não queria voltar para casa, ou mesmo para a irmandade que sua Mestra concedia. O mundo, naquele instante, parecia pequeno, tão diminuto quanto uma gaiola, sem uma chave para se abrir a porta.
Estava sozinha, e acomodando-se na areia branca que se tingia de azul com o cair da noite, deixou que as ondas que quebravam na praia a tocassem, em uma tentativa frustrada de levar tudo o que a machucava, que tiravam sua paz.
— Ayla! Ayla! Onde você estava, menina? Estava preocupado com você! — Uma voz a tirou de seus devaneios, que a levavam a viajar por lugares tão longínquos e sentimentos tão estranhos quanto aqueles existentes no fundo desconhecido das águas. A loira logo viu um homem alto e moreno a correr em direção à ela, e apesar da escuridão que se assomava, sabia que havia preocupação crescente em seu tom.
Era seu pai, Mamede, com uma expressão cada vez mais assustada enquanto se aproximava da jovem, que o olhou com um sorriso desajeitado. Usando a língua de sinais americana, gesticulou rapidamente, no intuito de acalmar o coração preocupado do genitor.
"Desculpa, pai. Perdi a noção do tempo, no restaurante que me indicou. E, bom...acabei encontrando o rapaz que salvei na noite passada".
O homem, em seus mais de cinquenta anos, sendo vários deles no mar, já vira muitas coisas que a maioria das pessoas não acreditaria. E, entre tais coisas fantásticas, estavam as sereias, que pareciam não passar de lendas criadas por alguém imaginativo o suficiente para criar mitos como aqueles. Contudo, seu ceticismo foi completamente estilhaçado ao se ver apaixonado por uma das criaturas que, para ele até então, não passavam de pura história farsante para afastar os homens das águas.
Mamede então se habituou a viver em uma realidade tão incrível quanto as descritas em livros, e como fruto de tal encontro impossível, nasceu Ayla, uma menina tão bela quanto o céu, e com voz tão mortal quanto veneno, castigada em uma punição sem sentido.
O pescador criou a menina, sabendo que, em algum momento, teria de entregar seu tesouro para o mar, aquele que era seu amigo e inimigo. Ayla não era somente sua filha, mas principalmente uma serva das ondas, tida para trazer desgraça àqueles que ousavam desafiar o ser que a feria.
E tal hora havia chegado, mas a jovem sereia não conseguia cumprir seu dever. E, claro, existiriam consequências caso as ordens da Água não fossem acatadas.
— E como foi? — Perguntou ele, de forma gentil. Podia notar, nos olhos da mais nova, que ver sua primeira vítima depois do canto falho era doloroso, da mesma forma que a plena consciência de tirar alguém das pessoas que o amavam e encontrá-lo sem vida em uma praia a machucavam.
"Ele me trouxe paz. Pela primeira vez, com exceção do senhor e da minha mãe, pude sentir aquilo que diziam, que não sou um monstro. Que sou uma humana, que posso ser alguém normal, sem carregar o peso da morte de alguém nos meus ombros. Vi nos olhos dele, aquele rapaz não é mau, não é alguém que 'ousou insultar a Água'. E ele tem uma vida, Porque eu tiraria isso dele, se não fez nada de errado?"
Ayla sentiu as lágrimas quentes em suas bochechas, salgadas como a água do mar. Durante toda a vida, a sereia havia se preparado para seu primeiro canto, uma cerimônia única, apenas entre ela e sua Mestra, em que provaria à própria quem era. Mas, havia falhado, e assim, todos os infortúnios trazidos pela desobediência rodopiavam na mente cansada, trabalhando em inúmeros cenários aterrorizantes.
Desobedecer era um caso raro, no entanto tão apavorante que as histórias sobre tais serviam como exemplo, para que as demais membros da irmandade não ousassem se rebelar contra o ser que lhe dera tudo, e que, da mesma forma, podia lhes roubar tudo; a gratidão e o medo andavam juntos, em uma terrível balança.
O pescador suspirou, acomodando-se ao lado da jovem que observava as ondas com torpor, voltando o olhar para a mesma escuridão.
— Ninguém pode obrigar você a nada, nem mesmo a Água. Eu sei que tudo tem um preço, mas também sei que daremos um jeito, não precisa temer.
A Wood achava aquilo pouco possível; não estavam lidando com uma pessoa, mas com uma entidade tão antiga quanto a própria Terra, com temperamento extremamente instável. Ayla a via como sua guardiã e carcereira, que a manteria sempre presa naquela condição, em que não existia uma saída.
Apenas a obediência e o dever, em um caminho sem qualquer bifurcação.
A loira suspirou, absorvendo todos os pensamentos que a prendiam, e sorriu, grafando no papel o que gostaria de dizer, apesar de não ser o que sua voz silenciosa proferiria:
"Eu sei, pai. Sempre há uma escolha. E a minha, é não entregar o rapaz para o mar."
Na manhã de domingo, o sol se elevava no céu com maestria, iluminando as gotículas salgadas que eram lançadas à brisa, dando ao ar a maresia que Ayla adorava.
As nuvens brancas riscavam o plano azul-claro com pequenos fiapos que pareciam feitos do mais puro algodão em uma pintura detalhista.
E as ondas que quebravam na areia branca e morna, a molhar os pés da jovem, serviam como um lembrete, sobre o rapaz que não deveria mais voltar ali.
Ayla já ouvira, antes do seu primeiro canto, que nunca se devia olhar diretamente para a vítima, menos ainda saber o nome; pois o simples ato causaria um erro, remorso, sentimentos humanos que deveriam ser evitados.
Mas, a sereia também era humana; e ao deixar o corpo desacordado na praia deserta e ouvir seu ressonar, a loira descobriu o mais indecifrável e perigoso dos sentimentos.
Com um suspiro, a garota transcreveu, em desenhos na areia, as imagens de um surfista tão impetuoso quanto seu nome sugeria; a água esverdeada acabava por apagar a arte, porém os traços permaneciam marcados na memória; um rapaz a lutar contra o ser que tentava afundá-lo, os olhos tão escuros quanto a noite, a coragem contra o mar. Ela sorriu, imaginando que tais desenhos lembravam narrativas heroicas de alguma mitologia, contudo era apenas alguém que havia quebrado um feitiço inquebrável. Pensou então que Kai poderia ser o protagonista de um desses contos, em que ele é o herói que sempre tem um final feliz.
— Legal, os seus desenhos. Pena que o mar está levando tudo. — Ayla piscou ao ouvir a voz, ponderando se estava apenas fantasiando o som que vagava em seus ouvidos. Olhou em volta, sendo surpreendida pelo surfista presente em seus pensamentos, exatamente ao lado de si, observando-a com curiosidade.
A jovem sentiu o peito errar algumas batidas, as mãos suarem e certo rubor se elevar nas bochechas, o que lhe pareceu mais sintomas de uma doença do que qualquer outra coisa. Não entendia o que seriam tais coisas ao estar perto ou pensar em Kai.
A sereia engoliu seco, se limitando a focar nas palavras do mais velho; que as ondas apagavam os traços desenhados por ela, deixando nada além da areia molhada, como se nunca houvesse nada ali.
De certo modo, lhe lembrava o que a Água fazia com a própria, a tentar apagar os pequenos traços que a tornavam quem era, as imperfeições que a tornavam humana.
A loira suspirou, refazendo a arte com paciência. Não era a primeira vez que refazia algo que era destruído.
"Não tem tanta importância. Posso refazer."
Escreveu, e voltou-se para o Mori que, dessa vez, não trazia em mãos o objeto que esperava que estaria a acompanhá-lo. Vestido com uma regata azul, bermuda amarronzada e chinelos, Kai parecia mais um turista qualquer do que um atleta, com uma expressão totalmente oposta à quando havia o conhecido realmente, dias antes. O ar sombrio, triste, quando este se referia ao pai, havia desaparecido, sendo substituído por jovialidade e entusiasmo ávidos.
Os pensamentos gritantes em seu cérebro a indagavam incessantemente, uma dúvida pertinente: Como poderia retirar algo como aquilo?
Destruir uma vida, apagá-la da existência?
E, na verdade, não podia. Ela já havia decidido.
A resposta da garota o surpreendeu A maioria das pessoas ficaria brava com a destruição de algo que custara parte de seu tempo.
— Sério? — Ponderou o rapaz, pensativo. — Você parece viver em uma sintonia diferente. Como se o tempo passasse mais lentamente. — Disse ele, ao ter a confirmação de sua pergunta. Ayla, ao seu ver, tinha uma aura calma, em contrapeso à sua realidade tão conturbada. Como um ponto pacífico em meio à um furacão.
A Wood riu, um som surpresa à deficiência que lhe havia sido imposta por sua Mestra, algo que soou como a mais doce melodia para ele. Este se acomodou na areia, ao lado da jovem que mantinha o velho caderno próximo de si, curioso à cada pequena descoberta sobre a garota que juraria ter visto no melhor de seus sonhos.
"Mas a vida é assim. Ela passa em um minuto, muito rápido. E olhar para a vida lentamente, aproveitando, é o melhor que podemos fazer".
Ela respondeu em letras caprichadas, as mostrando para seu interlocutor, que se encontrava ainda mais interessado pelos seus mistérios.
O Mori se perguntou, internamente, pelo que alguém tão jovem poderia ter passado para pensar de tal forma. Não era algo ruim, porém lhe recordava os dizeres de Akira, um homem que já tinha certa idade e dezenas de histórias na bagagem, o principal responsável pela sua estadia no Havaí. O idoso tinha segredos no baú, e algo dizia à Kai que Ayla também tinha os seus.
— Concordo com você. É por isso que amo surfar. Sou surfista, à propósito. — Assentiu o moreno, à observar as ondas que iam e vinham, molhando os pés agora descalços. Sorriu, e ao lembrar de algo, lhe estendeu a mão, em uma tímida saudação: — Acho que não me apresentei adequadamente antes, não é? Sou Kai, e vim para o campeonato de surfe desse ano. É como aproveito a vida, e 'tô aqui pra isso. — Disse ele com um sorriso em sua face, o que fez certo arrepio correr pela espinha da garota.
A menção ao esporte fez a loira paralisar, o fitando com assombro. Ele não era apenas um surfista, mas um atleta, que viajara quilômetros para fazer o que gostava. E isso complicava ainda mais sua tarefa.
"Você é turista?" — Perguntou, da forma mais natural que conseguiu. O âmago em seu peito martelava ferozmente e, assim como o cérebro, buscavam encontrar a solução para tal dilema. Contudo, a Wood escondeu tudo dentro de si enquanto trabalhava em inúmeras ramificações, a fim de chegar ao ponto final.
O tempo era o inimigo de ambos, e havia muito a se perder caso se esgotasse.
— Sim, sou de uma cidade pequena, no interior de São Paulo. O Havaí é incrível, e tinha que vir surfar nessas ondas. Você já foi ao Brasil?
Ayla lhe dirigiu um sorriso, retribuindo a clara felicidade do outro em falar sobre o que o havia levado às belas ilhas do Havaí. Estar próxima à Kai resgatava o lado humano que há muito era reprimido, que era tratado como errado ou inferior e que a jovem adorava.
Ela negou com a cabeça, fazendo uma anotação mental de que deveria visitar aquele lugar, embora soubesse, no íntimo, que não poderia deixar seu pai, à mercê da divindade que muito lhe tirara.
"Infelizmente não. Minha família não costuma viajar, mas adoraria visitar o Brasil, um dia. Parece ser bem diferente daqui."
— Ah, entendo. Mas, se um dia for ao Brasil, pra São Genésio, a cidade onde eu moro, você pode me procurar por lá. — O rapaz corou levemente ao perceber o possível duplo sentido de suas palavras, tratando logo de se desculpar. – Se você quiser um guia! Lá é uma cidade muito pequena, então 'tipo, todo mundo se conhece, é caloroso como uma família. Temos algumas "personalidades marcantes", como a Dona Fátima. Todo mundo diz que ela é louca, mas uma noite, a senhora me viu fugir pela janela de casa e nem me dedurou para os meus pais, pelo contrário; Disse que o "mundo pertence aos loucos" e eu era um. — Disse o Mori, viajando através de suas memórias para a cidadezinha onde vivia. Sorriu envergonhado, com o fato de que — talvez — estivesse falando demais. Todavia, Ayla simplesmente amava sua voz, o observando com deslumbre; Kai tinha uma vida fascinante.
A jovem pediu que continuasse; afinal aquilo era o mais próximo de uma viagem que já havia chegado. Pois, a Água não permitia sua saída, uma "fuga", como o ser chamava. Contudo, através das palavras do Mori, era possível viajar por lugares incríveis, acontecimentos comuns que se tornavam tão fantásticos quanto os contos de fadas. Ali, durante os minutos que conversara mesmo sem uma voz, a sereia sentiu-se livre. Longe de todas as obrigações que lhe eram infligidas.
Com o passar das horas, a praia já não estava tão deserta, com pessoas a preencher a areia em pequenos grupos, aproveitando o calor do sol e o frio das ondas. O rapaz olhou em volta como se despertasse de um transe, recordando da tarefa que o avô lhe havia atribuído, que aliás, nem havia sido iniciada, já que a primeira pessoa que encontrou depois da incumbência, fora Ayla.
— Ah, droga...Vovô vai me matar! Ele vai me dar umas quatro horas de sermão enquanto serve o chá ou sei lá o quê. Ou me dar a tarefa de preparar todos os pratos do cardápio, sem nenhuma receita... — Kai passou a murmurar consigo mesmo, ao reparar que o próprio não estava atrasado apenas alguns minutos, mas escapado completamente de sua tarefa, o que, por si só, não era algo tão complicado para demorar tanto tempo.
O Mori agarrou a mochila acoplada em suas costas, retirando da bolsa uma resma de papéis coloridos, tantos que tinha certa dificuldade em carregá-los de uma vez. Ayla o observou, sem entender, recolhendo então uma das folhas que acabara voando das mãos alheias, caindo sobre a areia.
— É 'pra você. — Disse o surfista enquanto tentava ajustar tudo aquilo nos braços. Respirou fundo com o esforço e sorriu, logo que a garota lhe estendeu um de seus escritos, esta que, por sua vez, observou o papel com curiosidade.
Uma fotografia de uma certa festividade local estava em destaque no centro, junto com o nome do restaurante cujo avô de Kai era o dono, um convite para o próximo evento do Mori's House. Com letras coloridas e desenhos de flores, o anúncio de um luau, com dança, música e comida típicas do Havaí, lhe chamou a atenção, pois mesmo que a garota houvesse nascido ali, não se lembrava de já ter participado alguma vez de uma comemoração como tal.
Seu pai sempre lhe dizia que a alegria da celebração lembrava a mãe da Wood, Kimi, assim como a própria festa, afinal fora em uma delas em que se conheceram, e havia sido no fim de um mesmo evento em que ela fora arrancada do homem que amava.
Ayla observou com atenção, tanto o sorriso animado a ser dirigido em sua direção quanto o panfleto, que faziam centenas de engrenagens girarem em seu cérebro, a criar cenários e maneiras de forma a evitar seu destino. Com o papel em mãos, a sereia pensou se aquele não seria um sinal de sua mãe, mesmo que a mulher não estivesse mais ali. Franziu a testa, pensativa.
Talvez, estar próxima à ele a fizesse encontrar o que procurava.
Ela assentiu com a cabeça, escrevendo rapidamente em seu caderno:
"Conte comigo!"
Kai animou-se ainda mais ao ter aquela resposta, como se o sol surgisse para ele após um longo dia de chuva.
— Que ótimo! Vai ser muito legal, ver você lá.
O simples fato de vê-la já era suficiente para que, ao menos por algum tempo, seus problemas sumissem, feito uma realidade paralela, sem nada para os atrapalhar.
— Kai? Kai! O que houve, garoto, achei que tivesse sido sequestrado!
Ou quase.
O grito de Wendy se fez ouvir no meio da praia, ainda que a garota estivesse a metros de distância dos dois. A feição em seu rosto — assim como a resma que trazia — lhe dava uma pequena dica do estado de humor da amiga e colega de trabalho.
O Mori arregalou os olhos ao lhe ocorrer que só havia distribuído um panfleto, o de Ayla, em três horas. E pela raiva crescente no tom de voz da Lamberg, que vinha praguejando em um passar rápido, a simples obrigação fora colocada sobre as costas da mais velha, e ela não estava nada feliz com isso.
— Ah, droga...— Ralhou ele baixinho enquanto se voltava para a "interrupção", como se a própria fosse um maníaco a lhe seguir com uma serra elétrica. — Oi, Wendy, desculpa o atraso, é que.. — Kai começou logo que a amiga parou à sua frente, largando o peso que carregava sobre a areia e a lhe dirigir uma expressão nada amigável. Os curtos fios cor de fogo e os olhos vívidos destacavam ainda mais o seu descontentamento, afinal não era agradável sair com quilos de papel para distribuir pela cidade, sozinha.
— "Oi", o caramba! Essa tarefa devia ser... — A ruiva parou sua futura torrente de insultos ao reparar que, além do Mori, havia mais alguém presente ali, que não fazia parte das pessoas conhecidas no cotidiano. Ayla os observava com espanto, o que não era uma surpresa, visto a primeira impressão causada pela mais velha.
A garçonete sorriu, o que surtiu como algo completamente oposto à raiva clara em sua expressão há alguns segundos, deduzindo, então o motivo do atraso de Kai, além de outros comportamentos suspeitos do amigo.
E se tinha uma coisa em que Wendy Lamberg tinha aptidão, era juntar casais, a própria cupido de São Genésio. E ela não poderia deixar passar essa.
— Ora, Kai, você 'tava com uma amiga? Já a convidou para o nosso luau?
— Sim, eu...— O rapaz foi interrompido pela recém-chegada, que se dirigiu à sereia e ignorou completamente a resposta para a sua indagação.
— Nosso luau vai ser incrível! Qual seu nome? Você é daqui? Digo, do Havaí.
A Wood assentiu com a cabeça, escrevendo no papel o retorno para tantos questionamentos:
"Oi, eu sou Ayla, e nasci aqui, em Honolulu. Muito prazer."
Wendy franziu a testa ao ser surpreendida por aquela questão, afinal não fazia ideia de como se comunicar com a outra ou se esta poderia ouvi-la ou não.
Ayla, percebendo a inquietação no ambiente, tratou de tranquilizá-la, garantindo que poderia escutar sua voz e o mundo, além de não precisar exatamente da língua de sinais.
A ruiva sorriu em agradecimento, vislumbrando então os olhares discretos trocados pelos dois que, antes, se encontravam sozinhos; Kai trazia algo entre encanto e fascínio, e a Wood, remorso e admiração, o que, para ela, evidenciava que existiam acontecimentos ocorridos longe de seu entendimento como uma simples espectadora, e que ainda haviam muitos mais para acontecer.
— Que nada, o prazer é meu. Mas, me diga: Se você é havaiana, não quer nos ajudar a preparar o evento do restaurante?
A pergunta aturdiu não só à loira, como Kai também. O surfista não imaginava o que podia ser, mas sabia que coisa boa não era. Uma ideia como aquela era mirabolante demais, até para ele.
A sereia, contudo, achava aquilo uma ótima ideia, em todos os sentidos. Assim, poderia encontrar uma solução para seu problema, ao mesmo tempo em que decifrava tudo o que a fascinava em Kai. Além de si própria.
"Eu topo!"
Aquelas duas palavras foram suficientes para fazer a surpresa preencher a expressão do mais velho e o coração alheio disparar e gritar para não se opor à artimanha criada pela amiga. Que, aliás, sorria como se houvesse ganhado um milhão de dólares na loteria, ao observá-los.
— Que ótimo, Ayla! À propósito, sou Wendy. Sou garçonete do Mori's House, e melhor amiga do "desastre em romances", digo, Kai. Valeu por aceitar nos ajudar. Agora, vamos ao trabalho, pessoas! — Falou alto a ruiva, em um incentivo que mais parecia uma ordem. O Mori atentou para Ayla, que sorriu com diversão.
Em todos os anos desde que a jovem descobrira ser diferente dos demais, nunca antes havia se sentido realmente como parte do mundo humano, como naqueles dias. Kai lhe estendeu a mão, para lhe ajudar a levantar-se, e a Wood aceitou de imediato, sentindo o calor de sua palma junto à do surfista; aconchegante como um cobertor no meio da tempestade. O moreno a puxou delicadamente pela areia, a convidando a seguir em frente; a deixar seus problemas para lá, apesar de seu principal óbice estar estampado no rosto que a garota adorava admirar.
— Você vem? — Perguntou o rapaz, dirigindo um sorriso tão iluminado quanto às estrelas, em sua direção. Ela poderia sempre esquecer do mundo, se observasse aquele lindo oceano. Com um aceno, Ayla decidiu que, por apenas algum tempo, esqueceria de tudo, tudo aquilo que a tornava um simples barco no meio do furacão.
Kai adorava observar o mar.
A brisa marítima que fazia os fios escuros esvoaçarem, o esverdeado da água a se mesclar com o tom azul do céu e o clima ameno feito um abraço aconchegante, tudo a se fundir em uma melodia tão doce quanto o riso da loira ao seu lado.
Ayla estava animada, anotando em seu caderno róseo uma enorme lista daquilo que poderiam trazer à festividade, tantos tópicos que a visão do Mori quase se confundia em meio às palavras, listadas organizadamente em ordem de prioridade. Contudo, não importava tanto; a sereia apenas desejava que tal sentimento indistinto que crescia em seu peito não desaparecesse, que o tempo parasse exatamente ali, ao lado do rapaz que parecia cada vez mais parte de um simples devaneio, e não da realidade.
A garota memorava-se da noite em que o vira pela primeira vez, em que o observara a flutuar sobre as ondas como se estivesse a domá-las, um humano tão corajoso quanto os mitos que embalaram sua infância. Os traços singelos, as pequenas sardas que salpicavam a tez pálida, o ressonar suave; qualquer coisa naquele ser lhe trazia paz, além do titubear em seu peito, coisas estranhas demais para alguém que tentava encontrar um lugar.
— Tudo bem, vamos dividir as tarefas: Vocês dois ficam com a compra dos itens dessa lista, e eu fico com a distribuição dos panfletos que o nosso querido surfista apaixonado esqueceu de entregar. E solta a mão dela, Kai. Parecem realmente dois pombinhos. — Wendy alfinetou, recebendo um olhar fuzilante do melhor amigo. O rubor nas bochechas do mais novo era nítido, e ele, ao notar que as mãos de ambos continuavam juntas, as soltou de imediato, envergonhado.
— Desculpa! Eu nem perguntei, como eu sou idiota...Desculpe, se assustei você. — Pediu ele, baixinho.
A moça retribuiu o riso, o tranquilizando em poucas palavras.
"Tudo bem. Você não me assusta."
Ayla gostaria de lhe dizer que Kai era aquele que viajava em seus sonhos, o humano responsável por fazê-la sentir-se parte do mundo em que ela tentara desesperadamente pertencer; o sorriso que servia como alento para seguir em frente com seu objetivo, contudo a jovem estava feliz em apenas se manter próxima àquele rapaz que esbanjava animação.
O Mori, também, não era diferente; embora não pudesse ouvir a voz daquela garota que era tão misteriosa, tão amável e tão doce aos seus olhos, a simples presença da loira lhe lembrava a paz que sentia sempre ao adentrar as ondas do mar.
— Meu Deus, vou sair daqui antes que comecem a se beijar na minha frente. Não que isso seja ruim, porque vocês são bem fofos juntos, shippei. — A Lamberg falou sorridente, lançando um beijo no ar ao correr a frente de ambos, deixando-os sozinhos na estranha atmosfera. — Divirtam-se, mas nem tanto, ok?
O surfista arregalou os olhos, abaixando a cabeça e desejando ser um avestruz para fugir da vergonha alheia causada pela melhor amiga, que tinha como principal objetivo melhorar a sua vida amorosa, que era um completo desastre, se comparado ao sucesso nos campeonatos que participava.
E ele não precisava de nenhum lembrete sobre tal fato.
O moreno sorriu para a garota ao seu lado, um sorriso mais desajeitado do que alegre, visto a situação constrangedora em que Wendy acabara o colocando.
Naquele minuto, Kai fez uma anotação mental: Wendy é a pior "amiga da onça" que existe. Porém, a Lamberg também era a melhor cupido de São Genésio, e nunca houveram clientes insatisfeitos.
— Obrigado, Wen. — Disse o Mori com um suspiro, quase não crendo que a mais velha havia feito tal coisa consigo; o deixar com a garota que fazia seu coração palpitar.
"Ela parece gostar muito de você."
Ayla deu um sorriso ao mostrar o que achava. O surfista torceu o nariz, certo de que, com um cenário constrangedor como aquele, tinha certas dúvidas sobre o carinho e amizade que Wendy Lamberg tinha quanto à ele.
— Sim, ela me adora. — Afirmou com sarcasmo, respirando fundo para — tentar – esquecer do que havia o colocado ali. — Mas, não precisa escutar a Wendy. Tipo, não precisa nos ajudar, se não quiser. Ela é meio autoritária e assustadora, só que você...
"Eu quero. Seria uma honra ajudar um dos concorrentes do nosso campeonato. Além disso, faz parte do espirito Aloha, cuidar dos visitantes. Ainda mais, um que está me devendo uma refeição sem frutos do mar."
A Wood brincou sorridente, recebendo um olhar surpreso do mais velho; ela não havia esquecido da promessa, o que, por algum motivo, deixara o surfista feliz.
Promessa é promessa, e Kai havia de cumprir a sua.
— Como quiser, senhorita. Você me acompanha? — O moreno lhe estendeu a mão em um convite, e com aquele simples gesto, Ayla sentiu que poderia ir à qualquer lugar se fosse ele o seu guia, o seu acompanhante e o seu amigo, ainda que a sereia fosse a simples observadora de seus passos.
Ela não saberia dizer quando, afinal o tempo era algo muito relativo no dia-a-dia complexo de uma meia-humana que convivia com entidades que pareciam existir apenas nos livros de histórias locais, mas a jovem guardara em sua mente a primeira vez em que vira Kai; o surfista a observar as ondas, sorrindo para a água como se fosse uma amiga de longa data. Mesmo que as oscilações no oceano estivessem enormes, amedrontadoras, o moreno se lançava sobre tais, sem medo algum, as desafiando em um perigoso e instigante duelo.
O mar revoltava-se em volta dele, formando altos muros que se tornavam o paraíso de qualquer atleta do surfe, e ele não era diferente; com a luz da lua a reluzir sobre as gotículas, a espuma branca, a concentração e a felicidade que se revezavam em sua face; coisas a tornar sua presença algo quase etéreo.
Ayla, protegida pelo mesmo ser que Kai desafiava, o observava dos abissos, ou de algum lugar na areia deserta, sem nunca deixar que sua figura fosse vista pelo turista que se encontrava completamente absorto.
A Wood era sua única plateia além da natureza, um espetáculo cuja moça sentia-se lisonjeada em apreciá-lo, um espetáculo sem igual.
Afinal, nunca vira alguém à desafiar Namaka. Nem ela mesma.
— Eu adoro o Havaí. É meu lugar favorito no mundo, até agora. — O moreno ao seu lado falou, a despertando do transe que era a consciência que a fazia vagar. Ela franziu a testa, certa de que o rapaz, como alguém livre, poderia escolher qualquer outro lugar como seu favorito.
"Porque? Acredito que o Brasil também deve ser um lugar único, e você já deve ter ido à outros lugares, certo? Porque escolher aqui?"
O Havaí era incrível, porém toda a beleza do lugar, para a loira, se camuflavam em meio ao que lhe prendia ali.
O moreno suspirou o ar puro de Honolulu antes de responder, fitando a paisagem como se desejasse marcar cada lugar na memória.
— Além da minha cidade, esse é o único lugar onde já fui. Mas aqui...Sabe quando sentimos que ali, onde quer que seja, é o seu lar? — Ele perguntou, recebendo um aceno com a cabeça em resposta. — Esse é o Havaí pra mim. É onde posso ser quem eu sou, sem ninguém para me julgar.
"Achei que houvesse dito que São Genésio era como uma família para você".
— E é. Só que não é sempre que a nossa família nos apoia. — Disse ele, em um tom quase melancólico. A loira sabia bem o que aquilo queria dizer; afinal não contava as situações em que se sentira como uma alienígena nos lugares em que tentava se encaixar, apesar dos mesmos serem sua casa.
Havia um entendimento entre ambos, uma sintonia, como o sol e a lua a se revezar no céu, e que por vezes se juntavam em eclipses.
Ayla o entendia, mesmo que em seu peito martelasse o dever incumbido pela Água, o que fazia com que certa tristeza e culpa ainda fossem presentes.
— Nossa, eu 'tô o tempo todo falando somente sobre mim, devo parecer um insensível. — Falou o mais velho, com uma risada embaraçada. Enquanto caminhavam pela larga faixa de areia, Kai imaginou que não havia melhor lugar para se estar. E a garota ao seu lado, o acalmava, o fazendo esquecer dos problemas, feito uma canção de ninar. — Mas, e você, Ayla? Você não contou quase nada sobre a sua vida, sinto que 'tô te enchendo com minhas palavras. — Perguntou o rapaz, despertando a loira com os dizeres. A sereia estava longe de sentir-se entediada com aquilo, com histórias que eram tão diferentes da sua. A Wood balançou a cabeça em negação, anestesiada pela singularidade que era uma vida humana, animada para saber mais e mais, conhecer o mundo que a separava e à unia a Kai.
"Não se incomode com isso. Você parece ter uma longa história para contar, e eu gosto muito de conversar, mesmo que não acredite. Além disso, temos algum tempo até encontrar tudo da lista. Se não se importa, poderia continuar?"
Pediu a jovem, ansiosa. O surfista, no entanto, ergueu a sobrancelha, fingindo desconfiança. Embora fosse ótimo ter alguém para ouvi-lo, a curiosidade sobre a garota que lhe causava batimentos desregulados penetrava a mente; perguntas constantes continuavam a se formar, criando uma imagem que mudava à cada novo sorriso ou expressão.
Ayla permanecia sendo um mistério, um conjunto de especulações e ideias que escondiam-se por detrás de um sorriso gracioso e sereno, que aumentava ainda mais com o passar das horas.
As histórias contadas pelo Mori, ainda que cotidianas, a deslumbravam, o suficiente para assim realizar o que havia desejado; esquecer o seu mundo de problemas.
Kai não podia entender tudo o que a cercava, ou a tamanha fascinação por algo que, para ele, era tão cotidiano e repetitivo. Todavia, o moreno questionou se, ao contar fatos que lhe eram iguais, monótonos em certo ponto, não acabaria descobrindo não só pontos sobre a loira, mas também recobrando os motivos que o faziam ser quem era, o pequeno cosmos que havia constituído grande parte do que conhecia.
E que parecia cada vez mais belo ao estar ali.
"Me conte sobre a sua cidade. Afinal, como irei visitar São Genésio, sem saber o que tem lá?"
Disse a garota, com uma expressão intrigada feito uma detetive, o que divertiu muito o rapaz. Quase podia imaginar uma lupa em suas mãos e uma boina, em uma alegre imitação de Sherlock Holmes que Ayla entendeu de imediato, acompanhando o riso alheio.
Em seu íntimo, a mais nova desejou guardar aquele riso para sempre; um lembrete de que, apesar dos pesares e das repreensões, o mundo humano, assim como o sangue que corria em suas veias, era fascinante, único, que brilhava à frente como uma incrível El Dorado.
Se assim pudesse, a sereia não retornaria para o mar; contudo, haviam consequências demais, escolhas demais, caso as regras fossem quebradas. E nenhuma delas lhe era viável. Ainda assim, ouvir a voz do surfista a falar sobre um universo distante do seu, valia o risco, um risco que estava disposta a correr, quantas vezes fossem necessárias.
— Bom...— O Mori começou, e ao ver que a jovem não desistiria tão fácil, deu continuidade às suas palavras, surpreso ao notar tamanho interesse. Pois, no fim das contas, ninguém desejava ouvir o que o levava até ali, apenas o fim de uma somatória de fatos complicados. Portanto, estar com alguém que o ouvia, como a voz no oceano que só ele escutara, era tão estranho quanto reconfortante, mas ele não reclamava; apenas desfrutava da doce companhia que era a de Ayla. — São Genésio é um lugar muito legal, bem pequeno, no interior do estado, sabe? Lá, todo mundo se conhece, nos encontramos na igreja ou na praça, e qualquer coisa se torna um evento. Como a minha seleção para o Campeonato, ou quando...A Gabi nos deixou. — O jovem falava tudo com um sorriso a estampar a face, entretanto algo o fez entristecer, apagando o brilho que o preenchia. Nesse instante, a garota sentiu como se as estrelas houvessem parado de brilhar em uma noite terrivelmente escura, sem qualquer outro astro para iluminar a imensidão.
Ela soube então, que por detrás da feição que fazia sentimentos indistintos surgirem, havia um furacão a perturbar a paz de alguém que se tornara a sua, desde a noite em que o vira pela primeira vez.
"Você está bem?" — Perguntou, preocupada com o desconsolo que o lesionava e o aprisionava em uma gaiola enorme e invisível. A loira não sabia direito como agir, ou sobre o que falava, já que seu contato com seres humanos haviam sido tão desastrosos a ponto de ser considerada uma louca entre os habitantes de Honolulu, porém algo em Kai a fazia parar de tentar se encaixar e apenas ser ela mesma: a garota que ansiava por explorar e se ver livre das correntes que a levavam a ir e voltar.
O Mori não respondeu de imediato, deixando um suspiro profundo escapar dos lábios rosados. A encarar nenhum ponto específico, Kai replicou enfim, adquirindo uma alegria que certamente não existia em si há apenas alguns segundos; para ele, evitar o outro lado da realidade era muito mais simples que vivê-la, ou lembrar que, em outro lugar, havia um mundo de responsabilidades que não lhe convinham, a lhe esperar.
— Claro, 'tô sim. Desculpa. Mas, quanto ao luau, o que acha que deveríamos comprar primeiro?
A moça o encarou, sabendo que tudo aquilo era apenas uma máscara a esconder um lado falho, humano, que o surfista tentava encobertar e que, coincidentemente, ela tentava trazer à tona.
No lado mais profundo do oceano que era seu coração, a jovem tomou mais uma decisão, entre as inúmeras que tomaria naqueles dias quentes de verão:
Kai não morreria, não levado pelo mar.
Ela não carregaria tal culpa, a de apagar um sorriso que lhe era mais belo que as estrelas.
E, observando as orbes que eram tão escuras quanto uma noite sem astros a iluminar, Ayla enfim aceitou o estranho e novo sentimento que a consumia em pequenas ondas, tão fortes quanto aquelas que os fitavam em algum lugar do horizonte, tão profundo e belo quanto o mar.
Assim, com o passar dos dias, que voavam rápido feito a mais forte das correntes marítimas, a sereia se viu, pouco a pouco, a ansiar pelo momento em que veria o rapaz responsável pelas suas divagações, seja no estabelecimento onde o jovem trabalhava, na praia ou mesmo à invadir os sonhos alheios, em uma doce surpresa inesperada; tais acontecimentos levavam à uma irrupção de emoções diferentes, que a animavam em meio a tantas questões que a absorviam e a levavam em um carrossel, sempre a girar.
Se apressando pelos degraus de madeira desgastada, a garota cantarolava baixinho a música que saía pelos fones de ouvido, a ajustar a velha mochila rósea ajustada em suas costas, com uma alegria que há muito tempo seu pai, que a observava admirado, não vislumbrava na menina que crescera sob seus cuidados; com a jovialidade que era visível por qualquer um, mas que, para o mais velho, trazia inúmeros significados; O principal, ao ver a jovem a correr pela areia com pressa e animação, era liberdade. Enfim, Ayla libertava-se da jaula que a prendera inconscientemente em solidão, deixando assim que suas asas se mostrassem.
Embora, a partir dali, a loira amara o mar, e o que ele havia lhe trazido.
Ao se ver em frente ao Mori's House, o estabelecimento onde tudo havia se iniciado, de certo modo, Ayla sorriu mesmo ao sentir os típicos indícios humanos em seu corpo palpitarem, ao memorar-se de que, ali, não precisava fingir ser algo que não era, e encontrar alguém que era o motivo de tudo aquilo.
Com os passos ecoando nos degraus que a levaria à entrada, ela seguiu para a pequena portada que a conduziria ao interior pouco movimentado, pois ainda era cedo demais para a habitual correria do local, que parecia tão solitário quanto um veleiro no mar.
A loira correu o ambiente com o olhar, à procura do rapaz que havia lhe encontrado em meio às dúvidas pertinentes, a vítima que Namaka desejava. Mas, nenhum daquelas sorrisos dirigidos à ela era o de Kai.
Ele não estava lá, e por um momento de pura loucura, a garota imaginou se o Mori não descobrira o real motivo por trás do primeiro encontro entre ambos, o terror que o assumira ao ouvir a voz da garota e o chamado da Água por sua vida, o impelindo a desistir do que amava e se entregar à um ser egoísta que apavorava a humanidade desde sempre.
Não era dessa forma que a garota imaginava que a história de Kai acabaria, como um mito trágico grego em que o protagonista é punido pelos deuses por motivo de sua coragem.
Ayla não se atrevia a pensar em si mesma como parte do futuro daquele rapaz que fazia os sentimentos humanos existentes na mestiça despertarem, mas apenas como um meio, embora isso não lhe impedisse de imaginar como seria o surfista dali para frente, o humano contrário à tudo que Namaka havia lhe ensinado.
"Humanos são cruéis, Ayla. Tudo o que desejam é me destruir, nos destruir, provando à ninguém a soberania deles no nosso planeta. Entretanto, eu sou a Água. E enquanto eu existir, a crueldade da humanidade não reinará".
Kai não era cruel; tampouco o ser humano maléfico capaz de cometer tamanhas atrocidades em um lugar que ele visivelmente adorava. O Mori era a quebra de tudo o que a loira crescera a ouvir, e claro, sua própria experiência não havia sido das melhores.
Por conta disso, a moça estava habituada à viver em um pequeno mundo, onde somente seu pai e Namaka existiam para completar o espaço oco em seu peito. Ela, em sua pequena bolha, não sabia o que era o amor.
Não até Kai chegar.
— Você 'tá esperando por ele, 'né?
Ayla ergueu a cabeça em um sobressalto, logo que a voz invadiu seus tímpanos, a assustando de imediato; um lembrete da realidade que estava ali, próxima à ela como a garota de cabelos cor de fogo e expressão confiante que lhe encarava com afinco. Não era preciso muito para descobrir que a mais nova, que havia se acomodado ali há quase uma hora, procurava por alguém com uma rapidez e urgência quase imediatas, a julgar pelos olhares esperançosos lançados sempre que alguém passava pela mesa em que estava ou adentrava o salão,
Ela estava ali por alguém.
E esse alguém não estava lá.
O lugar estava decorado com tudo aquilo que Ayla havia planejado, aguardando apenas os últimos detalhes da arrumação, mas a garota não fora até o local para cuidar de tais preparativos.
A Wood transcreveu as palavras no papel, e a ruiva, antevendo a expressão da garota ao descobrir que Kai não estaria no lugar durante o dia todo, ditou:
— Ele não virá hoje, disse que treinaria para o campeonato. — A simples palavra a petrificou ao digerir aquela informação. Kai não podia, não deveria, em hipótese alguma, voltar para o mar.
Não podia permitir que tal tragédia acontecesse.
"Você saberia onde ele está? Preciso falar com Kai, imediatamente."
Wendy franziu a testa ao notar a pressa com que a outra escrevia, as gotas de suor que escorriam pela tez e o próprio desespero em seu rosto, como se a jovem soubesse de algo extremamente importante, que o resto do mundo sequer imaginava e que poderia comprometer seu destino.
A ruiva riu internamente com aquela teoria maluca criada por si mesma, indicando então para a mais nova onde estaria Kai àquele horário. Seu sexto sentido — "A cupido de São Genésio" — a alertava que aqueles dois tinham muito para conversar. O verão no Havaí seria cheio de surpresas para os dois jovens que, antes tudo, tentavam entender à si próprios antes de compreender o que seria aquilo que os ligava, em um fio invisível do destino.
Wendy se despediu da garota com um desejo de boa sorte; não só para a sua busca, mas para a nova jornada que ela estaria à começar.
— Boa sorte, Ayla! Não se esqueça: Aquele garoto pode ser tão imprevisível quanto o mar.
Kai só precisava de um lugar para encontrar à si mesmo.
Ali, sozinho na praia de Waikiki mesmo na alta estação, ele quase agradeceu por não haver ninguém para julgá-lo por suas escolhas.
Naquela manhã, ao acordar, as certezas sobre quem era foram jogadas ao chão como nada além de lixo, feito um pássaro à voar de suas mãos.
Ele não entendia porque aquilo ainda lhe doía, afinal já havia se habituado de que não era — e que nunca seria — o que seus pais haviam planejado para a sua vida, que apenas desejava encontrar aquilo que adorava, sem as amarras de um destino milimetricamente regrado.
Com um suspiro, o moreno fechou os olhos, se deixando sentir a brisa marítima por poucos minutos antes de realizar o que viera fazer ali: Surfar.
Desde a estranha noite em que quase se afogara, guarnecido pela terna voz que permanecia em sua memória, o moreno fora tomado por certo receio em retornar para o pélago que, em contraponto, movimentava-se em ondas que quebravam aos seus pés, como se o convidasse, em um pedido mudo, a adentrar novamente.
O campeonato se aproximava cada vez mais, junto com a pressão que, ainda que mínima, recaía sobre seus ombros, lhe causando inseguranças e medos que não eram comuns quando se tratavam do esporte.
Ele engoliu seco e balançou a cabeça, certo de que aquilo, de fato, não deveria fazer parte do que o próprio amava e havia escolhido para si. Ao agarrar a prancha fincada na areia, o rapaz decidiu deixar tudo aquilo para trás.
Nada de problemas demais ou planos demais.
O Mori respirou fundo, observando mais uma vez o azul do oceano, que se transfigurava em diversas cores devido à luz do sol. Seu estômago se contorceu em rebuliços, uma sensação irremediavelmente distante de tudo aquilo que o dominava ao simplesmente pensar na vida que sempre quisera.
— Vamos, Kai, qual o problema com você? — Ele indagou-se, frustrado com as correntes que pareciam o impedir de continuar com o longo caminho que havia trilhado.
Suspirou ao colocar o pé direito na água, como uma criança que está aprendendo a nadar. A temperatura fria o arrepiou em um choque térmico devido ao calor do verão havaiano, mas não o suficiente para fazê-lo recuar.
Kai se voltou para buscar sua prancha e, surpreso, notou uma garota a correr, com pressa, pela extensão da praia, em sua direção.
Não demorou para perceber que era Ayla, o que, por si só, fez o âmago em seu peito se agitar, a pular em tantas batidas que o rapaz sentia que estava prestes a ver seu coração sair pela boca.
O atleta acenou para a moça, contudo a expressão em seu rosto se converteu em confusão ao notar o puro horror nos olhos acastanhados.
— Ayla? 'Tá tudo bem com você? — Perguntou ele, assim que a loira estava tão próxima à ponto de ouvir sua voz. A sereia, no entanto, não respondeu, e lançando-se sobre o surfista desnorteado, deixou que as lágrimas que segurava desabassem, assim como o pânico que tomara conta de sua mente ao sequer cogitar que o rapaz tivera seu destino interrompido pelo mar.
A Wood o abraçou, permitindo que o calor do turista a afagassem, ainda que o tal não entendesse o motivo de seu desespero. Com o soluço alto da garota, Kai engoliu seco, sem saber direito o que fazer. Pigarreou, e hesitando em acalentar os fios áureos, falou:
— Vai ficar tudo bem. Eu 'tô aqui com você.
Ao ouvir tais palavras, a jovem sentiu o rio de lágrimas em seu rosto aumentar, se perguntando em seu íntimo a resposta para aquelas palavras; afinal, por quanto tempo a Água permitiria aquilo?
Ayla encarou o mar, visível em sua frente como um terrível expectador a lhe observar.
Fitando-o, decidiu que seu destino não seria mais definido por aquele ser que não era tão benévolo quanto parecia, nem veria outra pessoa ser sacrificada, ainda mais por suas próprias mãos.
Ela salvaria Kai. De um jeito ou de outro.
Ao observar o rapaz criar fogo com apenas dois pedaços quebrados de galhos retorcidos, a Wood reparou que havia muita coisa no mundo humano que ainda não conhecia.
Como o ato de preparar comida com menos de dez ingredientes, sem um fogão, no meio de uma praia praticamente deserta.
Kai, segundo suas próprias explicações, era precavido, e sem saber se demoraria ou não para voltar para o restaurante do avô, sempre trazia na mochila algo para "petiscar" durante as longas horas na praia.
E, naquele dia em questão — e em todos os anteriores, desde a primeira vez em que vira a garota — ingredientes vegetarianos faziam parte da quase indecifrável lista de coisas indispensáveis de sua rotina antes da competição.
A loira o olhou enquanto realizava a tarefa que mais parecia uma missão impossível, um verdadeiro show que não trazia à tona nem um pouco da timidez que era visível em muitos aspectos desde que o conhecera, exceto no esporte, e agora, em cozinhar, ao que lhe parecia.
— Eu aprendi meio que 'na marra'. Meus pais não ficavam muito em casa enquanto crescia, então tive que fazer tudo sozinho, sabe?
A moça assentiu com a cabeça, em concordância. Para ela, aquilo era uma situação tão contrária à dela que parecia parte de uma ficção que lia em seus livros favoritos.
Contudo, era óbvio, por cada pequena descoberta sobre o surfista, que o sorriso tão animado que lhe trazia a paz que a Água não lhe concedia, escondia muitos problemas por detrás da felicidade que ele a inspirava.
A apoiar o queixo sobre as mãos e acenar, indicou que o jovem prosseguisse, se assim desejasse.
As páginas escondidas acerca à vida daquele humano se desdobravam pouco a pouco, revelando traços de alguém que Ayla guardava em um lugar especial de um coração tão humano quanto ele.
O moreno se acomodou na banco de areia branca e fofa, do lado oposto ao seu, sem continuar com sua história; afinal, também havia interesse quanto ao outro paralelo, o da Wood, que ainda não era tão franca em relação à sua vida, o que se assemelhava à um castigo. Pois, mesmo que dias houvessem se passado entre conversas tímidas e bastante tempo juntos devido à tarefa incumbida por Wendy, Kai sentia que a loira nada mais era do que parte de seu imaginário; um de seus sonhos que trespassava a realidade.
A garota abraçou os joelhos, deixando parte de seu riso desaparecer com o simples pedido. Em pensamentos, sentia que, caso a verdade sobre si viesse à tona, tudo o que ambos haviam construído naquele atípico verão cairia por terra, completamente destruído pelo que havia a aproximado do rapaz.
No entanto, o oceano a espreitá-los lhe lembrava constantemente: o tempo estava acabando.
E Ayla já havia compreendido que, fizesse o que fizesse, um dia, o moreno retornaria para o azul, e nesse momento, ela não estaria lá, para salvá -lo. Então, Kai não passaria de uma linda memória de julho, mais um entre os incontáveis rostos apagados por sua Mestra, um simples nome em uma lista.
Fitando aqueles olhos escuros tão belos quanto a noite, ela balançou a cabeça veementemente, o que assustou o jovem, ao notar mais uma vez as lágrimas a marcarem o belo rosto da garota que era seu verão.
— Ayla, o que 'tá acontecendo? Você 'tá com algum problema? Algo em que eu possa ajudar? Não gosto de ver você assim, tão triste. Não é como a vejo, eu...— Kai começou a balbuciar, aturdido com a tristeza notável no olhar que adorava. Ayla limpou o rosto, certa de que não seria daquela forma com a qual o convenceria a não enfrentar a Água novamente.
Algo dentro de si insistia que Kai Mori não seria preso tão fácil, por palavras com peso tão grande, proferidas em uma manhã preguiçosa de julho.
No mínimo, seria levada como nada além de uma brincadeira. Ou, na pior das hipóteses, seria taxada de louca, e ele, voaria em um território perigoso, aquele que pertencia à Namaka, e pereceria pelas mãos vis e egoístas do ser falsamente altruísta.
Enquanto balbuciava em pensamentos, o turista lhe entregou o que cozinhara, em um simples vasilhame que ela chutaria ter sido afanado do restaurante do avô do rapaz, devido aos escritos na língua nativa do idoso.
Ela franziu a testa, sem entender a linguagem grafada na porcelana, embora o cheiro delicioso da sopa preparada pelo mais velho a levasse por lugares em que nunca estivera, por sentimentos apaziguadores.
Kai sorriu ao ver o belo sorriso voltar ao rosto da loira, juntando-se à ela para aproveitar do que eram as simples coisas que aprendera a valorizar.
"Você poderia ser um chef. Mas acho que leva mais jeito no surfe." — Escreveu a garota timidamente, sem desviar a atenção da refeição que fazia.
Quebra de Página
O jovem riu, sem se ofender. Afinal, não era segredo para ninguém que o surfe era sua verdadeira paixão.
— Vou levar isso como um elogio, senhorita.
Entre risadas e conversas, o sol se elevava no horizonte, trazendo um pouco mais de cor para o céu tingido em tons claros; um aviso, para lembrá-los que as horas estavam passando, e ambos tinham um compromisso que requisitava suas presenças; um traço do mundo humano que Ayla experimentaria pela primeira vez.
O mesmo que, um dia, a Água havia usurpado de sua mãe.
O Mori respirou fundo ao receber uma notificação de Wendy que — além de torcer discretamente por seu shipp — pedia aos dois para que retornassem ao estabelecimento, afinal o luau seria realizado naquela mesma noite, e eles, os organizadores, haveriam de estar presentes, tanto na festa em questão quanto nos últimos preparativos.
— É a Wendy. — Disse ele, guardando o aparelho no bolso. — Ela "quer a nossa presença imediata no Mori's House, sem demora". — Repetiu Kai as palavras da amiga, limpando o que havia utilizado para cozinhar e as colocando na velha mochila a tiracolo, a fim de iniciar o longo dia que teria com aquele evento em especial.
Ayla se pôs de pé de imediato, sorrindo para o jovem que retribuiu o olhar com preocupação. Ele não sabia o motivo de seu pranto, e não havia a pressionado sobre a chegada repentina e o abraço caloroso que a garota lhe dera, mas era óbvio que algo acontecia, algum fato que a colocara naquele ponto desesperador.
O Mori apenas não imaginava que tal questão remetia à sua vida ou morte, determinadas por um ser que ele desafiava desde sempre. E que era Ayla a criatura que deveria ceifá-lo.
Enquanto caminhavam pelas ruas pouco movimentadas de Waikiki, aquilo era algo que a sereia, ainda que tentasse, não conseguia tirar completamente de seus pensamentos enfadonhos.
Ela, porém, não desistira da tarefa que a própria havia se atribuído, mesmo que sua mente a questionasse inúmeras vezes quanto àquela decisão.
Há muito tempo, quando criança, a garota lera uma história sobre outra jovem, como ela, capaz de ir contra as regras da irmã, para resgatar e salvar um humano que, no fim das contas, não a amou o suficiente para escolhê-la.
Ao observar o azul que era o plano de fundo de seu caminho até o restaurante, Ayla temeu ser aquela jovem, a simples coadjuvante em uma história maior. Nos dias que antecederam àquele em questão, a Wood sentia as inseguranças a consumirem, feito a lava do Kilauea a lhe destruir; pouco a pouco.
A sereia tinha medo, pois sabia que aquela noite, a noite em que concluiria o que fizera aproximar-se do rapaz, também haveria de ser a que determinaria o destino do jovem.
Ela também sabia que Kai, como o ser impetuoso que era, não deixaria as ondas para trás; o surfista era um desbravador, e como tal, como descobrira, era capaz de muito para fazer o que o tornava único em um mundo terrivelmente cinzento.
Contudo, a garota não desejava ser a vilã daquela história, a que daria um fim à uma vivência tão bela quanto ele próprio.
— Ayla. Ayla, você 'tá me ouvindo? — Kai perguntou, preocupado com o total silêncio da garota sem voz. O Mori estava animado por diversos motivos, desde o luau ao campeonato, que se tornava cada vez mais próximo, e até à sua presença, tais sentimentos que se combinavam em uma fusão que irradiava boas emoções.
"Estou sim. Desculpe, só estou distraída."
Respondeu, com um sorriso alheio. As engrenagens em seu cérebro trabalhavam como um foguete, a planejar como salvaria Kai, e assim, a deixando um tanto absorta da conversa.
— Sei como é. O campeonato 'tá chegando, e tipo, meu coração 'tá a mil. Mas, seja já o que estiver acontecendo com você, vai ficar tudo bem. Se estiver nervosa quanto à sua faculdade, não se preocupe tanto. Sei que vai dar tudo certo, e quando isso acontecer, quero ser uma das primeiras pessoas à receber a notícia, tudo bem? — O moreno falou, com tanta convicção que a moça realmente quis acreditar que tudo ficaria bem quando a lua cheia se tornasse visível, e a voz mortal fosse devolvida ao seus lábios, tornando-a assim a serva que nascera para aquele propósito medonho.
Contudo, aquele conto-de-fadas não parecia ter um final feliz; Ayla tinha certeza.
"Mate-o esta noite. Ou descobrirá o destino que aguarda as pessoas que ama."
A moça parou ao ouvir a voz que invadia seus pensamentos, em uma terrível canção de ninar que lhe causaria pesadelos. Lágrimas tímidas surgiram em seus olhos, engolidas pelo temor de assustar Kai, como fizera naquela manhã.
A Água sabia — sempre sabia — o seu objetivo com as suas tímidas visitas e encontros com o rapaz, um pequeno resquício do seu próprio lado humano que a garota tentava resgatar, e que sua Mestra odiava.
Os dias sob a companhia do surfista, as conversas e risadas se transfiguravam em uma única palavra, um terrível sentido e um temeroso destino: Erro.
E a Água raramente permitia erros, e ao permiti-los, sempre haviam consequências.
E era ela o principal exemplo.
— Me concede, senhorita? — Kai repetiu as palavras que lhe eram tão conhecidas e estendeu a mão, em um gesto convidativo para adentrar o estabelecimento, que a jovem sequer notou ter chegado. O chamado da Água em seus ouvidos a tirara de órbita, o suficiente para mantê-la tão distante da realidade quanto um barco perdido no mar.
O lugar parecia completamente diferente desde a sua saída, com as mesas devidamente ajustadas no externo, tochas ainda não acesas na entrada e um palco rústico a ser montado.
Ela não imaginava que se sentiria feliz por algo assim — algo humano — porém seus lábios rosados se moveram, formando um caloroso sorriso, como o próprio sol no verão havaiano.
Ayla tinha uma longa tarefa à frente, porém a simples visão daquela comemoração à ser preparada fazia um turbilhão de sensações diferentes surgirem, a memorando do coração humano que ainda batia dentro de si.
Sentindo o âmago em seu peito descontrolar-se ao observar o belo sorriso nos lábios alheios, a garota estendeu a mão, correspondendo o gesto oferecido pelo rapaz, que lhe sorriu como milhares de estrelas visíveis no céu noturno. A loira engoliu seco, o fitando por poucos segundos enquanto seguia o caminho amadeirado, imaginando que as tábuas a levavam na direção de Namaka, quando o ser arrancaria Kai de suas mãos.
Os passos trepidavam sobre a lenha, mais um entre os muitos sons que misturavam-se na balbúrdia organizada que era o festejo marcado para o pôr-do-sol. O Mori a levava com delicadeza entre os demais funcionários que, apressados, empurravam uns aos outros na tentativa de cumprir suas devidas tarefas, o que, de alguma maneira, culminava nas preparações assertivas que tornavam o restaurante ainda mais belo.
A Wood sorriu, e ao enfim adentrar o salão, um sentimento de realização a tomou, logo que notou que os esboços que desenhara na areia, em um dos encontros com o surfista, estavam ali, em carne em osso, se é que poderia chamar assim. Ela, ainda que temesse o ser que o regia, adorava o mar, e principalmente, tudo o que o oceano lhe dera. Estudá-lo era uma maneira de se sentir mais completa, parte dele, como sua mãe devia se sentir.
E Kai, mesmo com motivos distintos, trazia o mesmo afeto; portanto, não fora muito complicado decidir qual seria o tema do luau cujo era o Mori mais novo o seu principal organizador.
Estrelas-do-mar caíam em penduricalhos do teto, feito verdadeiros astros a despencar do telhado em cores diversas, assomadas a pequenos cavalos-marinhos, confeccionados com algum material metálico, que dançavam no ar como se as posições, do céu e do mar, houvessem se invertido.
O azul era a principal cor visível, contudo, assim como no oceano, os demais tons se mesclavam timidamente, a formar uma sincronia incrível, feito a bela composição de um pintor renomado.
O dourado, fruto das minúsculas peças que imitavam os hipocampos, assemelhava-se à luz do sol que permeava as ondas, em majestosos e delicados feixes de fulgor.
As demais tonalidades eram representadas em sucos e drinques, produzidos na área mais afastada do restaurante; o bar, e decorados com pequenas flores ou guarda-chuvas, postos sobre a bancada, a aguardar o primeiro pedido.
Tudo se movia em velocidade quase máxima, em contraponto à calmaria das ondas a ressoar em seus ouvidos; uma terrível lembrança à voz que a comandava.
Ayla aspirou fundo o cheiro das flores silvestres trazidas por um dos funcionários, torcendo para que aquele lugar, bem como a pessoa ao seu lado, embora, dentro do si soubesse a verdade, fosse capaz de apagar as mágoas que a machucavam.
— Então, você gostou? Sei que vínhamos aqui quase todo dia, mas acho que ver tudo pronto é algo muito diferente, sabe? Você é daqui, então...— Kai começou, ao perceber o silêncio do garota, o que por si só, o deixava nervoso. Ela, contudo, soltou uma risada contida, pois já havia aprendido que o falatório do rapaz se devia a timidez que aflorava com alguma frequência, um traço contraditório nas miríades que eram o surfista.
O moreno a olhou com certa indecisão, sem saber o porquê da risada, que soava como o doce barulho das ondas que acalmavam seu coração.
— Isso é um "não"?
Ayla balançou a cabeça, com a alegria ainda estampada no rosto corado pelo riso recente. No caderno sempre à tiracolo, ditou em cores tão animadas quanto o som de seus sorrisos, que aumentavam cada vez mais com o passar dos dias.
"Desculpe. Não estou rindo de você. Apenas gosto quando você fica nervoso, e então fala sem parar. Gosto de ouvir sua voz."
A loira voltou a atenção para a preparação por um momento, retornando às suas palavras em seguida, sem notar o leve embaraço adquirido pelo mais velho, ao ouvir o elogio.
Kai era uma infinidade de traços, sendo a timidez uma característica guardada entre camadas e miríadas em algum lugar dentro de si, e que a Wood, em definitivo, adorava.
Se assim pudesse, guardaria os enigmas acerca o humano em quadros, para que jamais esquecesse dos dias atípicos de um verão havaiano em que uma sereia havia se apaixonado.
Ao falar através do papel e caneta, Ayla imaginou que tais traços, metodicamente pensados, traziam todos os sentimentos e temores que permeavam seu coração etéreo, amolgado por uma vida em busca de identidade, sem haver alguém que entendesse as dores de tamanha falta.
Com exceção de Kai.
Mostrando o caderno ao rapaz, já preenchido com uma voz que não podia falar, a Wood desejou, dentre os pedidos da sua lista infindável de rogos, que a doce ternura que a ligava ao jovem, de alguma maneira, pudesse estar presente nas letras caprichadas, apesar de não estarem.
Ainda assim, a estima pelo moreno permanecia em uma parte especial do âmago afável, guarnecida, para que a Água jamais a arrancasse.
O Mori sorriu, agradecido, ao compreender as palavras silenciosas da loira.
"E o restaurante do senhor Akira ficou realmente incrível. Fizemos um bom trabalho".
— Com certeza. Fazemos uma boa dupla, não acha? — Indagou ele. A garota, no entanto, demorou alguns segundos para responder, hipnotizada pelo peso da simples fala. Em outras circunstâncias, talvez as coisas pudessem ser diferentes; talvez, em outro lugar, haja uma garota com escolhas, e que possa dizer "sim" ao turista tímido que lhe causava sentimentos demais, humanos.
Talvez, em outra realidade, existisse uma jovem, como ela, capaz de se desprender de um ser vil e egoísta, e assim viver a vida que sempre havia desejado.
Ou, talvez, houvesse a garota que não precisava buscar à si mesma, mesmo com a corrente do mar a lhe prender.
Contudo, eram apenas suposições, caminhos e incógnitas que sua mente criava, tentando apaziguar a dor que a tomava ao memorar-se da ordem ao qual fora subjugada.
Ayla assentiu, fechando o punho em um gesto amigável, um cumprimento que aprendera com o rapaz e que lhe parecia um tanto estranho, mas apaziguador. Nos poucos segundos em que seus dedos se encontravam, a sereia o observava, pequenos traços quase imperceptíveis que se tornavam palpáveis, como as discretas covinhas em suas bochechas, as sardas que pontilhavam o nariz delicado ou os fios escuros e médios que caiam em parte sobre a testa pálida.
Kai era um emaranhado de detalhes, que a loira adorava descobrir.
As mãos, ainda unidas, permitiram a aproximação de um casal de jovens que não sabia muito sobre a vida, sobre si mesmos, e muito menos sobre o outro, mas a garota simplesmente amava cada segundo naquele pequeno universo que era criado, sem haver algo para macular a atmosfera, sem nada para quebrar a fina cúpula de vidro que os cobria.
E assim, deixando a razão, o pensamento constante quanto ao seu destino, de lado, a Wood o tocou; um cálido e terno toque, os dedos finos levados timidamente à face corada do rapaz tão tímido quanto ela. A moça sentiu o coração acelerar ainda mais, em um ritmo que sequer achava ser possível, entregando o fato de existir algo além.
Os batimentos faziam eco em seus ouvidos, em uma sintonia quase musical, enquanto o sangue corria mais rapidamente, deixando as bochechas avermelhadas devido ao embaraço, a pura inocência quanto ao mais belo sentimento humano.
Ayla o fitou, nos olhos cor de café, escurecidos como uma noite sem a iluminação das estrelas; límpido, envolto em mistérios, tentando enxergar além de orbes tão belas; se haveria algo a afastá-la, ou a desejar por sua presença, pela ação quase impensada e pelo gesto meigo, que para ela, era mais um entre os inúmeros erros cometidos desde que o conhecera.
Sua mãe, há muito tempo, lhe dissera que humanos eram feitos de erros e imperfeições e, por isso, eram tão interessantes e atraentes, principalmente para seres que passavam sua existência a observar o decesso de outros.
Eram fascinantes, em seus defeitos e qualidades, e tudo o que os tornava humanos.
Contudo, a sereia mais velha também lhe alertara sobre o amor; aquilo que era considerado o sentimento mais puro, mas que também podia causar grandes malefícios a quem o experimentar.
Naquele momento, perdida em escuridão tão terna, a Wood não se importava com avisos ou consequências; o que existia, nos segundos que pareciam tênue, era Kai.
— Eu gosto do seu cabelo. — Falou o moreno, tocando as mechas loiras e as levando a orelha alheia, em um toque que lhe causara um choque da cabeça aos pés; uma sensação indescritível que lhe lembrara uma onda enorme a atingir a areia, de supetão. O cheiro masculino invadiu suas narinas, uma mistura de maresia e doçura que, a partir daquele momento, se tornara seu aroma favorito. Os dedos longos do rapaz correram uma curta trilha, em direção à bochecha direita e aos lábios corados, e secos; um entre os inúmeros sintomas que a afetaram.
A respiração se tornou mais próxima, mais rápida, até Ayla se ver mais próxima do moreno do que jamais sonhara estar, a ponto de notar as sardas discretas no nariz do Mori.
Ela sentiu vontade de rir, mesmo em momento tão único; o surfista era mesmo adorável.
Único, e simplesmente encantador.
Fechou os olhos, ansiosa, tímida, nervosa, tudo em um turbilhão de emoções diferentes que a deixavam fora de órbita; Fosse o que fosse, Ayla não iria recuar. Seria apenas a humana que sempre desejara ser.
Apenas isso.
— Ai credo, se beijem logo.
Ou quase isso.
A loira foi tomada pelo susto, recuando até quase tropeçar nos próprios pés. Kai, assustado, arregalou os olhos e se virou como em um filme de ação onde o protagonista é apanhado em seu momento mais vulnerável, prestes a morrer, o que foi mais do que o suficiente para uma risada ecoar, advinda da mesma pessoa que interrompera o momento do seu próprio shipp, como a própria insistia em dizer.
A ruiva ria descontroladamente, ainda mais ao vislumbrar a feição perdida no rosto do melhor amigo. O Mori enfim a fuzilou com o olhar, desacreditado com a ação de Wendy. No entanto, a Lamberg era a cupido de São Genésio, e sua principal tarefa era juntar pretensos casais. Nem que, para isso, os fizesse passar vergonha em meio à suas tentativas.
— Finjam que eu não 'tô aqui, continuem o que estavam fazendo. 'Tava demorado o beijo, mas vocês são muito fofos juntos. — Disse ela, gesticulando rápido com as mãos. As palavras proferidas faziam Kai desejar se tornar um avestruz e se afundar na areia, a fim de evitar mais uma das inúmeras situações constrangedoras que a Lamberg havia o colocado, em todos os anos de amizade entre os dois.
— D-Deixa de ser bisbilhoteira, Wendy. Aliás, o que faz aqui? — Perguntou o Mori, xingando a si mesmo pelo embaraço, o que serviria como uma discreta prova de que, de fato, a ruiva havia interrompido algo importante. A Lamberg sorriu, um sorriso quase assustador, divertindo-se com o constrangimento alheio; Kai poderia ser seu melhor amigo, mas isso não queria dizer que o rapaz estava liberto de sua personalidade travessa. Armada com a bandeja que utilizava para servir os clientes que chegavam ao Mori's House, a mais velha correu para o lado de ambos, que se encontravam mais corados do que o pôr do sol na praia de Waikiki, como pegos em um terrível crime em flagrante.
Ayla tentava não encarar o surfista, tomada pela timidez e por suas próprias dúvidas; afinal, sabia ela que a proximidade com Kai Mori não deveria existir. Contudo, cada traço e cada minuto ao lado do humano que fugira de seu canto a fazia sempre esquecer que existia um mundo além, em que surfista não passava de um prêmio.
A Água não passava de uma vaga lembrança, um zumbido em seus ouvidos que aparecia em momentos solitários, assim como sua macabra tarefa que, cada vez mais, parecia retirado de um livro, pura ficção, do que algo que era real.
Mas era real, e a Wood não precisava de qualquer outra prova. Não precisava que o ser, a quem um dia chamara de preceptora, arrancasse mais uma vez alguém importante para si.
Wendy a poupou de dar uma explicação — embora a Lamberg estivesse ali há um bom tempo —, encaixando seu braço ao dela em um gesto tão amigável quanto suspeito; Para Kai, aí tinha coisa.
— Vim buscar a Ayla. Ninguém nesse luau, ainda mais os idealizadores, vai aparecer com cara de "quem deixou esse povo entrar". Você, Ayla, vai ter um banho de loja, e não aceito um "não" como resposta.
A garota em questão a olhou, sem entender. Parte de si era humana, mas isso não significava entender todos os costumes e hábitos do mundo que, em parte, a tratara com estranheza, uma intrusa.
E, de fato, em meio à termos tão estranhos, Ayla se viu a se perguntar que língua seria aquela, ou sobre o que Wendy falava, pois afinal, não compreendia. Sorriu então, acanhada com a resposta que lhe daria.
"Desculpe, Wendy, mas não entendi o que quis dizer."
— Sério? Meu inglês deve 'tá horrível, então. — Respondeu a ruiva, surpresa. A Lamberg não era exatamente a primazia da fluência, porém a afirmação a surpreendera, o bastante para Kai, que se mantinha distante da conversa recém-iniciada, guardar o próprio espanto imediato dentro de si, para não assustar ou constranger a mestiça, que já parecia um tanto desconfortável com a comoção. Ele, contudo, zelou aquele fato, mais um entre os incontáveis enigmas acerca a garota de ondas douradas e sorriso tímido, que com o passar dos dias, se parecia ainda mais com um personagem que se encontrava perdido, saído de um livro e de uma época completamente análoga à que se encontrava.
— Ela quer levá-la para escolher algumas roupas. Algo que, segundo ela, faça mais jus ao luau, embora eu não ache...
— Você não entenderia meu conceito e meus motivos, Kai Mori. — Wendy interrompeu a explicação e propensa crítica do amigo, ignorando por um segundo o mais novo e voltando-se à loira, que assentiu. Havia finalmente entendido qual o propósito da jovem de fios cor de fogo, que quase a intimava para acompanhá-la nas tais compras.
Ayla não via o que havia de tão extraordinário, pois, ainda que se esforçasse, nunca havia se importado com a moda ou as tendências que permeavam o mundo a qual tentava pertencer. Olhou para as próprias roupas, ponderando o que havia de errado com elas para que precisasse de novas.
— Não estou julgando, que fique claro. — Intimou a Lamberg, e embora a afirmação fosse dirigida à loira, o olhar estava focado no surfista, que deu de ombros. Quando Wendy colocava uma ideia na cabeça, era uma missão impossível fazê-la mudar. — E isso é apenas um convite. Pode ficar assim, se quiser, mas minha ideia é que tenhamos um visual tipo mais voltado para o verão, com flores e tal. Claro, a havaiana é você, portanto é você que escolhe acatar a minha ideia ou não.
A sereia a fitou, considerando o convite, a estranha interrogação sobre um hábito que não lhe condizia. Era uma pergunta simples, fácil, porém Ayla não contava as situações em que imaginou ser parte daquela realidade, que mais parecia um sonho distante, que some ao se acordar.
A Wood engoliu seco, decidindo por aceitar, finalmente. Os humanos eram seres um tanto incompreensíveis, e restava para ela, uma mestiça, tentar entender aquele universo que se tornava mais e mais enigmático à cada nova descoberta.
— Ah, isso é ótimo! Viu só, Kai? Ela não é desconfiada como você. — Comemorou a mais velha, ajustando melhor a bolsa vermelha que já estava em seu ombro, somente a aguardar uma resposta. O Mori negou com a cabeça, notando que em alguma coisa a melhor amiga devia estar pensando. Algo maléfico.
— Não sou desconfiado, apenas acho que...
— Fofo, você podia parar de dar pitaco e tratar do restaurante, 'né? — A Lamberg, mais uma vez, interrompeu as insinuações do rapaz, empurrando Ayla levemente pelas tábuas do assoalho, a fim de dar continuidade ao que quer que a garçonete estivesse planejando. — Se não tiver problema pra você, Ayla, podemos ir agora. Assim, ainda teremos tempo de cuidar do luau quando voltar.
"Mas, o luau ainda não está pronto."
— Eu já cuidei de tudo. Kai só tem que supervisionar, falei com o senhor Akira, mas confia em mim. Não vamos demorar.
A loira concordou então, curiosa como Kai, que as observava se distanciar. A sereia o fitou, vidrada nos lábios finos a formar palavras silenciosas, como as dela. Em todos aqueles anos, a garota havia se habituado a aprender, sem comunicar, a lê-los, sem poder replicar. E, ali, naquela situação, a estranha habilidade da mestiça foi mais do que suficiente para entender algo que, como todas as vezes em que via Kai, fazia seu coração acelerar
"Por favor, quando voltar, me encontre no cais. Queria conversar com você."
Ayla engoliu seco ao entender. Há muito tempo, já ouvira a expressão "com o coração prestes a sair pela boca", mas sempre achou que aquilo era apenas uma demasia. Contudo, ali, a garota acabou descobrindo que Kai Mori sempre a surpreenderia, a fazendo descobrir o real sentido de sentimentos que lhe pareciam irreais e que, talvez, ser humana não parecia tão terrível quanto às histórias que ouvira faziam parecer.
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