Nas Ondas do Havaí, parte dois

   
  Ayla amava o mar de Waikiki.

No banco do carona, no buggy rubro como os fios da dona do veículo, a garota se permitiu fechar os olhos e sentir a maresia, esquecer mais uma vez do enorme problema que pesava em seus ombros. A música que saía pelo rádio retrô servia como um opérculo, a abafar os sons gritantes de seu pensamento à respeito da Lua, de Namaka, Kai, e até sobre Kimi, sua mãe, que sempre surgia em suas memórias.

Mesmo acompanhada, a loira sentia-se tão solitária quanto na noite em que conhecera Kai, embora o ser que comandava os mares estivesse sempre a lhe observar. Já era a última semana de julho e o campeonato seria no dia seguinte, o que, na teoria, levava ao fato de que o surfista logo retornaria para São Genésio e desaparecia para sempre, como um náufrago no mar. Mas, embora desejasse com todas as forças, o Mori não sobreviveria caso retornasse ao oceano para desafiá-lo, principalmente se era ele o prêmio que Namaka desejava ter.

Assim como sua mãe.

— Desculpa se foi estranho pra você. — Wendy começou, de repente, causando um enorme susto na mais nova, que arregalou os olhos e a fitou, tentando compreender o que era aquilo. A estrangeira logo deu continuidade, para sanar algumas das dúvidas que permeavam a mente da Wood: — Mas, é que eu precisava conversar com você. Sobre o Kai.

O nome pronunciado, do rapaz que era uma imensidão de sintonias, lhe proporcionou, novamente, os enigmáticos indícios que sempre vinham à tona ao pensar ou simplesmente ouvir o nome do turista vivaz. Ela ainda não entendia, no entanto passou a adorar aquilo, um doce mistério à se decifrar. Porém, a alegria e o torpor típicos se esvaneceram, ao notar o tom sério e a expressão fechada que o rosto de Wendy adquiriu.

Ao perceber tais sinais, a garota se perguntou, entre as inquietantes interrogações que enchiam sua mente, se não estava invadindo, tomando o lugar de alguém que já havia desbravado o âmago de Kai.

E se Wendy não era a pessoa escolhida por ele, para velejar nas ondas profundas que eram o seu coração.

"Pode falar. Está me assustando." — Pediu, sem mentir. O temor a possuía em vibrações alarmantes, criando inúmeras realidades em que Ayla não passava de uma intrusa, ou mesmo a assassina que Namaka desejava que fosse.

— Só quero te falar que, tipo...Você vê o sorriso do Kai, a personalidade dele, e a determinação dele em continuar no esporte, mas na realidade, o garoto passou por muita coisa. — Falou ela, inspirando um tom maternal. Wendy não era muito mais velha que o melhor amigo, encontrado em uma época e uma realidade totalmente diferente da sua, em que haviam exigências demais e escolhas de menos. A Lamberg sempre enxergaria Kai como um irmão mais novo, e como tal, seu dever era protegê-lo. Inclusive de Ayla, se assim fosse preciso. — Talvez, não caiba à mim contar isso, mas os pais dele não o apoiam nisso tudo, sabe? Não sei se ele já havia mantido você a par sobre essa situação.

A sereia assentiu com a cabeça, hipnotizada. O Mori já havia lhe dito algo parecido, porém suas palavras eram, em sua maioria, carregadas de descontração, como se não importassem, não fizessem qualquer diferença para si. Porém, a garota sabia que era tudo uma encenação, um sorriso que escondia uma mescla de angústias e mágoas, assim como ela. Logo, pediu que desse continuidade, ansiosa para conhecer mais daquele Kai que não lhe era tão familiar, mas que permanecia encantador; cativante.

— A vinda dele para o Havaí foi uma verdadeira tramoia, não só dele. Arquitetamos tudo isso, junto ao senhor Akira e ao Lorenzo, um amigo que ele conheceu na faculdade. Não foi fácil, mas Kai 'tava determinado, viu nessas férias a chance de ser reconhecido, principalmente pelos pais. E talvez, uma forma de esquecer da sua dor. — A garota soltou um suspiro longo, pensativa, a ponderar se deveria dizer mais. Talvez, devesse. Era o futuro e o passado de seu melhor amigo, afinal. – Não sei o quanto ele lhe contou sobre a sua vida, aquela que é distante das ondas. Kai é um cara que ainda tenta carregar a dor que a perda traz.

Tais palavras fizeram o corpo de Ayla travar. Assim como ela, Kai sabia o que era perder alguém.

"O quê? Do que está falando?"

Wendy riu, um sorriso triste que não condizia com seu rosto sempre tão animado. Com um suspiro, sem desviar do horizonte, falou:

— São Genésio, a cidade em que vivemos, é muito pequena, e todo mundo acaba se tornando muito próximo. Kai, com a personalidade que tem, sempre tão animado, determinado, alegre, é como um "imã", que atrai as pessoas para si, e no ensino médio, não foi diferente. Ele tinha muitos amigos, mas todos lhe diziam que o surfe era loucura, exceto a Gabi. Eram uma dupla, sabe? Não se separavam nunca.

A Wood engoliu seco, a aguardar. Aquela realidade tão feliz de Kai parecia – e estava – prestes a se estilhaçar.

A sereia assentiu, sem ousar interromper.

— Gabriela era descendente de coreanos, e ele, de japoneses, então a amizade deles foi quase imediata. – Riu a Lamberg, imersa em suas memórias. – Ela nunca foi a favor do garoto fazer Direito. Se ela o visse hoje, o arrastaria pelas orelhas da sala de aula. – Brincou. No entanto, seu sorriso se esvaneceu como uma nuvem à escurecer o sol. – Kai foi muito machucado. Todos somos, mas ele já passou por muita coisa. Os pais nunca o apoiaram no sonho dele, de ser um atleta; eles são extremamente rígidos, e colocaram o garoto em uma faculdade em que ele não se encaixa. Você o enxerga vestido em um terno e preso em um escritório o dia todo? – Perguntou a ruiva, com certa raiva. — Eu não. Ele sempre procurou ser reconhecido, tanto que veio para cá, para ganhar o torneio e, talvez, obter o mínimo de reconhecimento da família. Ninguém o entende, Ayla. Mesmo que ele carregue a dor de ser excluído na própria casa, e até de perder alguém que lhe era importante.

A loira piscou, engolindo em seco. O surfista, como ela, descobrira o espaço vazio e quebrado que restava em um coração despedaçado pela inópia; pelo arrancar de alguém de seus braços.

Kai era um oceano à esconder a dor que o acertava.

Mas, a garota não se atreveu a interromper.

— É, Ayla. Todo mundo carrega as suas cicatrizes. Ainda mais o meu BFF. Até mesmo a pulseira azul que ele carrega no pulso direito, sabe? É uma lembrança, uma dor recente que ele tenta carregar.

Ayla ficou surpresa ao notar que lágrimas desciam timidamente pelas bochechas alheias, que voavam em meio à brisa do verão.

— Havia essa garota na nossa cidade, a Gabi. Ela foi a primeira a reconhecer que Kai nunca se daria bem no mundo dos negócios, que tinha um espírito rebelde. Ambos se davam muito bem, ainda que rolassem algumas brigas por conta da ascendência deles, já que Gabriela era coreana, e ele japonês. Briga de amigos, sabe? Como idiotas. — Brincou a mais velha, tão imersa em suas memórias que parecia ter viajado ao passado, um lugar em que tantas coisas ainda não haviam acontecido. — Kai tem uma aura boa, algo que nos faz querer sempre ficar próximo dele, mas a presença da Gabriela, para ele, era um tanto única porque ela não o tratava como um louco completo. Eu sou a melhor amiga dele, mas ela, por ter a mesma idade, era a que estava mais próxima em certos momentos em que eu não podia, entende? Kai entendia também. Ele valorizava muito todos os anos passados naquela amizade. Brincávamos que um dia se casariam, mas eu sabia que nada daquilo era interesse; eles eram como irmãos.

Ayla prendeu a respiração, a reparar no tom melancólico. Tinha medo do que estaria por vir. Porque, no fim, ela já sabia.

— Talvez, seja por todo o amor fraternal de Kai, que ele tenha se culpado tanto.

"Pelo que?" — Perguntou a jovem, com temor.

— A Gabi...A Gabi morreu, há poucos meses. Um carro a atropelou na saída de uma festa. Era Kai quem estava a acompanhando, e foi Kai a ver quando o carro a acertou, quando ela...— Wendy se interrompeu, logo passando a bater no volante, como se este pudesse aplacar o sofrimento do melhor amigo. — Ninguém viu aquela droga de carro. Surgiu do nada, mas Kai se culpa por achar que poderia ter evitado, se prestasse atenção. Mas, não havia como, cara. O maldito carro apareceu do nada. Kai ficou arrasado, porque foi ele que a viu ir embora. — A mais velha parou, a respirar fundo, para recuperar a compostura que se perdera em sua história. Com uma das mãos, limpou as lágrimas que maculavam seu rosto, erguendo o queixo para observar a vida que havia pela frente. Para o futuro de Kai. — Mas, o fato é...não sei, percebi que gosta dele. E, como meu melhor amigo, acho que tenho que dizer que ele tem seus problemas, como todo mundo, e que você não esqueça disso mesmo com o sorriso dele a dizer que 'tá tudo bem, entende?

Ayla entendia, melhor do que Wendy imaginava.

"Eu entendo. Kai não é perfeito, ninguém é."

Com o suspiro, a Wood se deixou, mais uma vez, perder em seus pensamentos. Kai não era perfeito, mas em outras circunstâncias, em um mundo em que não existisse Namaka, o ser que o queria, ele seria perfeito para Ayla. O único.

— E é por isso que eu queria te dizer que, se gosta dele, por favor, não o machuque. Não quebre o coração dele, mais do que já está quebrado. Ele esconde muito, mas a família dele tentou quebrar a pessoa que ele é, o espírito livre que Kai tem. Ele não é o tipo de pessoa que imagino usar um terno e ficar trancado o tempo todo em um escritório.

Tal pensamento fez ambas rirem, ainda que a conversa fosse um pouco dramática. O surfista não era completamente desleixado com sua aparência, mas vê-lo no costumeiro traje de um jurista não era a primeira coisa que vinha à sua mente quando pensava no rapaz.

Como dissera Wendy, ele era um espírito livre. E, diferente de si mesma, o Mori permaneceria assim.

"Não se preocupe. A última coisa que desejo é machucá-lo."

O dito escrito fez Wendy sorrir, voltando à sua expressão habitual.

— Obrigada, de verdade. Mas, agora, temos uma tarefa à fazer. Você arrasará ainda mais o coração de Kai Mori nesse luau.

A loira correspondeu ao sorriso, certa de que, de fato, debilitaria o coração do surfista. Contudo, não seria da forma como a Lamberg imaginava.

Ayla poderia abalar o rapaz responsável por seus sorrisos, porém Kai não a veria novamente depois de tudo.

Por que, afinal, Namaka não permitiria seu retorno; e a Wood, enfim, se tornaria, a protagonista de uma história. Embora, tal história não lhe trouxesse um final feliz.

Kai, um dia, aprendera que o mar, ainda que belo, tinha seus mistérios.

Sozinho no cais, o rapaz observou as ondas quebraram ao longe, despejando a espuma branca e retornando, como em um vai-e-vem que não tem fim. A leve brisa bagunçava os fios escuros, e ele, como sempre, adorava o cheiro salgado da maresia, o barulho do mar, o frio da água em contrapeso ao calor do Havaí

Tudo lhe trazia paz, embora também houvesse lhe apresentado algo ainda sem explicação: a música que ressonara em seus ouvidos debaixo de um céu sem estrelas.

O surfista não era um cético, mas considerava os mitos de pescador, contados pelo avô, como fruto de uma imaginação fértil, ou mesmo como uma história de ninar cheia de elementos fantasiosos. O Mori mais novo não gostava de admitir, mas havia certas situações em que o rapaz deixava de lado seu espírito livre para pensar de forma mais realista, mesmo que fosse algo um tanto raro. E, uma dessas situações, entre outras, eram as histórias sobre seres mitológicos que o senhor Akira lhe contava, principalmente sobre sereias; que para ele, parecia um pouco impensável, do ponto de vista biológico, existir um ser que coexistia entre o mundo marinho e o humano, com corpo metade feminino e metade peixe e que habitava os oceanos, sem haver qualquer indício real de sua existência.

Contudo, o surfista também sabia reconhecer quando algo estava além de sua concepção, além do que ele poderia considerar como possível. Certa vez, o rapaz, em uma das férias passadas com o avô na infância, velejara em seu velho barco pelas águas impiedosas de um Havaí desconhecido para o pequeno Kai.

Seria apenas um passeio rápido, para ensinar o então garoto a arte em que um dia o homem mais velho fora mestre. A criança se encontrava fascinada, a imaginar como poderia existir tantas nuances em um único lugar, que mais parecia algo mágico retirado dos livros que serviam como alento na hora de dormir.

Porém, para o terror de sua mente infantil, o céu azul, cheio de nuvens, se transfigurou em tons sombrios, em relâmpagos e trovões que aparentavam ter surgido do nada. O homem mais velho, já habituado, tratou de guiar a embarcação pelas águas tempestuosas, temendo, em seu interior, pela vida do único neto em um cenário inóspito.

O barco balançava de um lado para o outro, como um brinquedo passado de mão em mão, e Kai, agarrado ao pequeno mastro, fechava os olhos para engolir todas as sensações aterradoras que o consumiam. As cores quase infinitas que existiam há apenas alguns minutos se transformaram em cinza, feito um sonho dissipado. O garoto tentava não chorar, para assim não desesperar o avô, que guiava o veículo, com o âmago em seu peito a bater em altas frequências, imerso no puro desespero.

"Vamos afundar. O vovô não vai conseguir nos levar de volta." — Pensou o menino, ao ver os longos minutos passarem, sem que chegassem à costa. Ele não era alguém pessimista, mas diante de tal situação, o cérebro aterrorizado não conseguia mais pensar em boas alternativas àquela altura. Não havia uma saída, um outro caminho. Tudo teria um fim, sem mal ter tido um começo.

No entanto, no meio de todo o torpor, o pequeno Mori abriu os olhos, ao ouvir um som completamente análogo ao barulho aterrorizante da tempestade; música, em meio ao barulho ensurdecedor.

Uma figura indistinta se tornou visível, encoberta pelo próprio mar. Kai não entendia o que seria aquela visão, que se movimentava em estranhas ondulações, como um ser marinho, embora tivesse traços que pareciam humanos.

Mesmo após tantos anos, o rapaz memorava daquela aparição como um sonho, algo criado por sua mente para desviá-lo do medo. As memórias acerca àquele dia se misturavam, sumindo e reaparecendo como o barco de ambos, que surgiu na praia junto aos dois passageiros adormecidos.

Até conhecer Ayla, e relembrar que mistérios estão sempre à vista, ele, em meio à curiosidade efetiva em si, se via a desejar esclarecê-lo.

A euforia existente no estabelecimento, em seus últimos aprestos para o evento, se elevava feito uma onda, a se espalhar no ar como um convite, incitando quem estivesse próximo à participar da comemoração.

O moreno se viu a cantarolar baixinho a canção que saía pelos alto-falantes, um pequeno ar de tecnologia em algo focado na natureza e no Aloha, a primeira palavra dirigida à ele no idioma nativo pela moça que era seu enigma favorito.

Não demorou muito para o surfista se ver a conferir as horas com frequência, preocupado com os ponteiros que se moviam com lentidão, sem a chegada daquela que Kai esperava passar pela porta. Suspirou, se perguntando para onde a Lamberg as havia dirigido, se o próprio Havaí nem era tão grande a ponto de precisarem de tanto tempo para procurarem um vestido; porém, o jovem também sabia que a ruiva tinha suas artimanhas, e o que lhe parecia simples podia se tornar uma missão impossível, se estivesse nas mãos da melhor amiga.

Kai recolheu o aparelho perdido em algum dos bolsos da calça jeans, ausente do mundo e presente em teorias, sem saber em qual delas acreditar; a memória daquele dia tempestuoso lhe surgiu ao recordar os novelos sem ponta em Ayla, uma garota que parecia ter emergido de sua própria imaginação, ou do imaginário de alguém que conhecia as inquietudes do surfista.

A garota era tão enigmática quanto aquela noite, e por um segundo, o rapaz se questionou se não seria apenas a apreensão em finalmente encontrar alguém que o entendia, se todas as palavras desconfiadas que rondavam seu cérebro seriam apenas um muro construído em volta de si mesmo para se proteger; E, no entanto, tudo aquilo caiu por terra, ao escutar um ruído, um pigarro insistente próximo à ele, que se tornava cada vez mais alto com o passar dos segundos.

O Mori se voltou para o som, um tanto impaciente com a teimosia da pessoa que o chamava em seu intervalo; afinal, já era a terceira ou quarta tentativa de tirar uma pausa desde que o movimento constante havia começado, e visto que era ele o responsável, tudo acabava recaindo sobre os seus ombros. Porém, o que Kai vislumbrou, ao se virar, poderia muito bem tomar o seu tempo, o quanto precisasse.

O rapaz, atônito, abriu e fechou a boca, sem conseguir completar qualquer palavra; os olhos arregalados e a face corada entregavam a situação um tanto atrapalhada em que se encontrava.

Wendy o encarava com uma expressão vitoriosa, como se ambos estivessem jogando algo e fosse ela a vencedora. Vestida com uma mistura de cores, que iam desde o verde do vestido ao violeta do echarpe a decorar seu pescoço, a garota trazia uma vivacidade que era notável tanto nas cores quanto em sua própria personalidade, embora não fosse pela Lamberg que Kai estivesse hipnotizado.

— Então, Kai, o que achou do novo visual da Ayla? — Perguntou a ruiva, embora a resposta para a indagação fosse notável na expressão alheia. O rapaz tentou falar, mas a timidez escondida em algum lugar de si aflorou mais uma vez, uma pequena consequência da beleza estonteante que a loira demonstrava.

— V-Você...'tá incrível.

Ayla sorriu, envergonhada, agradecendo através de seu bloco de notas a gentileza. Sentia-se um tanto deslocada, pois nunca havia se importado tanto com a aparência mesmo com parte do sangue místico, cuja principal característica era a beleza; para ela, a vaidade parecia mais uma das coisas sem sentido do mundo humano, algo sem valor.

No entanto, a garota não sabia que podia sentir seu coração acelerar ao observar o constrangimento do mais velho consigo, o que, naquela situação, não era uma questão ruim. A Wood adorava descobrir cada nova expressão de Kai, e notar que era ela a responsável por seu encantamento, diferente do sentido ao qual crescera a escutar, a fazia imaginar milhares de borboletas no estômago, ou sua mente viajar por estrelas tão distantes quanto o próprio sol.

Trajada em um vestido claro, longo e azul, com pequenas pérolas a decorar os fios dourados, o jovem que a observava piscou algumas vezes, aturdido com tamanho encanto; a loira o memorava uma obra de arte quase divina, pensada e representada minuciosamente, cada mínimo detalhe a fazer seu coração acelerar, a lhe deixar sem palavras, ou, ao menos, sem alguma que mensurasse o seu fascínio.

— Fecha a boca, garoto, senão você engole uma mosca. — Alfinetou a Lamberg, a rir com diversão. Olhou para ambos, a saber que, a partir dali, não havia mais necessidade das suas "intervenções cupidescas" e, sobretudo, que Kai poderia cuidar dos sentimentos desordenados presentes em si, sozinho. — Vou verificar se precisam de mim no salão. Não se divirtam muito, crianças.

O mais novo lhe dirigiu um olhar inquisitivo, mas sabia que, sem a amizade e até sem os incentivos que mais pareciam um empurrão para o abismo, não teria chegado muito longe.

— Pode deixar, Wen. A sua roupa também 'tá incrível. — Elogiou ele, sem deixar passar as implicâncias típicas dos dois amigos. — Dá até pra pensar que você não tem uns parafusos soltos.

A ruiva abriu um sorriso, deixando à mostra os caninos que sempre se destacavam nos dentes alvos, feito uma fera. Kai e Wendy tinham uma amizade um tanto incompreensível, como Tom e Jerry, mas cada um faria qualquer coisa para defender o outro.

E era tal comportamento, em meio à vários outros, que fazia Ayla adorar aquele verão.

— Todo mundo tem. Mas, por ora, me esqueçam e aproveitem o luau. Só que não muito, beleza?

Com essas palavras de "estímulo", Wendy os deixou no cais, cruzando os dedos secretamente para que, fosse o que fosse, sorte ou destino, que tudo desse certo naquele romance de verão.

Com um suspiro, o Mori indicou uma mesa vazia próximo de ambos, com dois lugares vagos, para que Ayla pudesse se acomodar. A mestiça, contudo, negou com a cabeça, caminhando até a ponta da plataforma, acomodando-se sobre ela, da mesma maneira que encontrara o surfista há alguns minutos. A brisa marítima bagunçava seus cabelos e, de certa forma, lhe dava algum incentivo para o que faria, embora a garota ainda tremesse. Ela não sabia, de fato, quais seriam as consequências de seus atos, cujo único erro fora se apaixonar pela primeira vida ao qual deveria entregar para a Água. Mas Kai era proibido; ele não lhe pertencia.

Pertencia à Namaka.

— Sabe, quando era criança, achava que o mar era regido por algum ser superior. — Disse o rapaz dono de seus pensamentos, encarando o mesmo ponto que ela; o mar azul e indecifrável; instável. O âmago em si martelava, a memorando do seu dever.

— Meu avô sempre foi xintoísta, então, quando passei a visitá-lo, ele me ensinou que o mar é regido por um deus que causa as tempestades. — Começou o rapaz, perdido nas memórias de algum lugar de sua infância, a prendendo naquela história distante. — E que há alguém que protege aqueles que se aventuram no desconhecido que é o mar. Sempre achei incrível todas as histórias dele, mas não sei, parecia algo fantástico demais, sabe?

Ayla assentiu, sem ousar responder. Parte de si temia aonde aquela conversa chegaria.

— Sabe aquela expressão de que, quando algo parece muito impressionante, é "história de pescador"? — Perguntou ele, embora não esperasse por uma resposta propriamente dita. —Era o que eu achava das histórias do meu avô, mas nunca deixei de ouvir. Pensei que mal não poderia fazer, afinal nada daquilo existia. — Riu sozinho, enquanto Ayla o ouvia. Ela sempre amaria ouvir sua voz. — Mas houve aquele dia, em que saí para pescar com ele. Ali, vi meu avô rezar para um deus que protegia os pescadores, para que nos protegesse da tempestade. Naquele instante, acreditei que íamos morrer, que eu não veria a luz do sol no dia seguinte. Eu senti muito medo, Ayla.

A garota quis chorar, e mais do que tudo, lhe dizer que estava tudo bem, e que estaria ali, para que o rapaz não precisasse mais sentir medo do mar. No entanto, ela era apenas uma pequena estrela em uma infinidade de galáxias.

— A água entrava no nosso barco, e eu estava com frio. Meu avô dizia coisas em japonês, e eu não entendia muita coisa, mas sabia que ele estava rezando. E eu nunca tinha visto meu vô assim, sabe? Quando o vi, eu fechei os olhos. Achei que nós morreríamos mesmo, tragados por aquilo que ele adorava.

Kai parou, por tempo demais. A jovem engoliu seco, e delicadamente, tocou o braço alheio como se temesse que ele se dissipasse, como em um sonho. Que Kai Mori fosse apenas uma linda obra de sua mente.

"E o que aconteceu?" — Perguntou ela, com letras borradas. O rapaz sorriu, mais uma entre as inúmeras características do moreno que Ayla poderia listar.

— Eu ouvi música.

A resposta fez a mestiça travar. Aquilo era a última coisa que permeava seus pensamentos.

— Você acredita nisso? Tipo, eu vi uma mulher, nadar na água como se fosse um peixe. Porque, na real, ela era. Ela era umas das criaturas que eu sempre ignorei a existência. Aquilo era uma sirena.

A Wood não conseguia se mexer, não conseguia escrever, não conseguia fazer nada além de encará-lo. Ela o temia, temia sua reação. Temia que, como todos os outros, Kai fosse um monstro.

O Mori respirou fundo, sentindo o vento tocar seu rosto. O sol baixava no horizonte, escondendo-se em algum lugar do oceano para acordar no dia seguinte. E a noite, pouco a pouco, se tingia no céu, uma lua cheia que se aproximava.

Minutos se passaram, que mais pareciam horas, sem que o rapaz desse continuidade. A loira quase se viu a implorar para que dissesse algo, que a resgatasse dos medos que a matavam, lentamente.

Assim como a Água.

Enfim, Kai riu; uma risada gostosa, que se espalhou no ar feito a sua música favorita; porque era, assim como sua voz.

O moreno enfim se voltou para a Wood, que ainda tremia, mesmo que não fosse pelo frio que se iniciava. O toque dos dedos alheios em sua face lhe causavam calafrios, caloroso como Namaka nunca poderia ser.

— Era você, não era? A garota que me salvou na noite em que cheguei aqui. A Sereia que desistiu de me levar.

Ayla engoliu seco, alarmada, pressupondo algum ressentimento, algum rancor, algo em Kai que indicasse a sua ida. Ela não o julgaria, se o rapaz decidisse ir embora, se a temesse ou se a ignorasse. Pois ele estava certo. No entanto, algo a perturbava; como o Mori haveria descoberto o outro lado de sua alma?

"Mas como você..."

— Não sou burro, Ayla. — Disse ele, com diversão. — Quando fui resgatado da água, vi vagamente o rosto de uma garota antes de desmaiar totalmente. E tipo, quando eu vi você...lembrei daquela sereia que vi há muito tempo. Ao ver você, senti que já te conhecia. Além disso, você era muito misteriosa, muito aquém do mundo para estar desde sempre nele, entende? Você parece um tanto distante, em um mundo diferente do meu.

Kai falava com um tanto de nervosismo, mas a garota sabia que, mesmo em meio àquilo, ele estava completamente certo do que falava. Não como em um sonho ou algo criado por sua imaginação; o surfista sabia sobre a sua identidade.

Não era loucura; Ayla havia tentado, mas nunca havia conseguido fugir, de fato, da outra parte que a fazia ser ela mesma. O mundo parecia um tanto incompreensível, inconstante, e ela dava o seu melhor para se adaptar àquela infinidade de caminhos, torcendo para que nenhum humano compreendesse o seu comportamento desligado.

Todavia, Kai havia a descoberto, e ela não fazia a menor ideia de qual seria a sua reação.

"Me perdoe, Kai. Eu não pude...eu não pude entregar você para ela. Para a Água." — Pediu ela, desejando manter a voz firme, mas era uma missão fadada ao fracasso. Ayla não queria novamente ser julgada, excluída por apenas ser diferente. Muito menos perder Kai, que sabia que nunca seria seu, porém que lhe apresentara à uma infinidade de possibilidades.

— Porque? — Quis saber, curioso. Ele conhecia Ayla, mas não conhecia sereias. Ainda assim, todos os mistérios acerca a história da garota se desdobraram, se tornando um enorme livro aberto.

"Você sempre ia àquela praia, e eu estava lá, sempre. Era incrível ver você, a forma como desafiava o ser que, desde que me lembro, me prendeu em mim mesma, era libertador. Ver você, me fez acreditar que eu poderia desafiá-la. Mas ela sabe, sempre sabe."

— De quem você está falando? — E, como em um clique, o rapaz soube a resposta, o que seria aquilo que ele havia irritado à tal ponto. — A Água. É ela que me quer, não é?

A jovem assentiu com a cabeça, limpando as lágrimas que escorriam pelas bochechas. Não se deixaria chorar, porque ela o salvaria. De um jeito ou de outro.

— E como você...como você não tem uma cauda? Desculpa se 'tô parecendo indiscreto, mas as histórias que eu li...

A simples pergunta a fez rir, mesmo em momento tão decisivo. Ela demorou a transcrever em palavras, todavia tudo se tornava mais fácil quando não havia mais porque se esconder.

"As sereias que você conhece, dos vários contos que fascinaram o mundo, existem, escondidas e protegidas pela Água. É verdade o corpo híbrido, o canto, a morte, nossa voz. Tratam-nos como aberrações ou representações do pecado, mas nossa Mestra nos criou apenas para punir; trazer desgraça àqueles que ousam a desafiá-la. Ela nos recompensa com seu cuidado, nos escondendo da Humanidade em lugares desconhecidos por qualquer um. A Água nos dá uma irmandade e proteção, desde que obedeçamos às suas regras; não podem haver relacionamentos com humanos, pelo simples fato de que nenhum dos mundos consegue sobreviver no oposto. Porém, eu sou a exceção, o problema. A magia, ainda que seja proibida, minha mãe usou de tal ao se apaixonar por um pescador, dando à si mesma um meio para vir à superfície. Seu erro foi punido com a proibição, a negação de nunca mais ver seu grande amor. Contudo, a Água ainda consegue ser uma boa mãe e, imaginando a dor que a sereia transgressora sentia, permitiu a vida de sua filha, embora houvesse roubado suas vozes. A mestiça então cresceu cercada pelo medo, sob a plena consciência de que não era um ser completo, sem pertencer à nenhum lugar. Ela viveu com a criação do pai, apesar do sorriso materno ser seu principal alento em um futuro metodicamente planejado. Ela então seria uma serva do mar, e ainda que a Água não a houvesse condenado, estava fadada a viver sem um verdadeiro lar, atormentada pelos sonhos alheios interrompidos que a garota cresceu à velar. Inclusive os da própria mãe".

O moreno engoliu seco, com tal resposta. Ayla era uma sereia, e portanto, punia humanos transgressores. Mais perguntas o atingiam, além do sentimento acolhedor de que, apesar de tudo, não era o único a sofrer com a dor de perder alguém. Contudo, a maior dúvida de todas se elevava, com certo receio: Seria ele o primeiro?

— Você...Você já levou alguém?

A loira abriu um sorriso animado, feliz com a verdade de que não trazia uma morte em seus ombros.

"Não. Você seria o primeiro. Toda sereia, ao completar 21 anos, deve cantar e trazer uma vida ao mar, como um agradecimento. É um ritual, que acontece à cada ano, e eu também tive que realizar isso. Esse foi meu primeiro aniversário em que teria essa 'honra".

— Mas...você não explicou o porque de não ter uma cauda. E, se ela tirou sua voz...

"Só consigo adquirir essas características na primeira lua cheia do mês, quando o poder da Água se torna mais forte e, de certa forma, 'benevolente', pois me permite a voz assassina nesse período. Cresci sob a perspectiva de que humanos eram seres cruéis, porém sereias, para mim, parecem as vilãs da história".

— Ayla, eu... — O surfista começou, um tanto aturdido. Ele sabia que havia algo estranho na garota, e claro, não achou realmente que fosse verdade a sua teoria. Ter a confirmação lhe parecia surreal.

"Eu entendo se você for embora. Se quiser se afastar. É isso que todo mundo faz, quando encontra uma garota sem voz..."

— O quê? E porque eu me afastaria? Você não é um monstro. O que importa para mim é que me salvou, e que gosto de você. Acredito que qualquer outra sereia teria me matado, mas você me amou antes de me conhecer, me aceitou antes de saber quem eu era. Porque eu iria embora, se a coisa que mais quero agora é que fique?

Ayla sorriu, encontrando em meio àquelas palavras a sinceridade e o amor que procurara por tanto tempo. Ele realmente adorava tê-la por perto. Kai a amava, ainda que a Wood não compreendesse direito o que era amor. Mas não importava, pois o amor, para a loira, era Kai.

— E então, você me concede esta dança, senhorita? — Perguntou ele, ao ouvir a música se espalhar pelos alto-falantes recém-ligados. O sol já não era visível no céu, levando suas cores junto à ele no fim de mais um dia no Havaí, e a lua, ainda que tímida, começava a tomar o lugar da estrela, iluminando os corações perdidos em si mesmos e que, aos poucos, tornavam-se destemidos; Ayla lhe sorriu, e mesmo que a frase fosse um tanto brega, achou que não poderia haver melhor forma de encerrar aquela conversa que pesara tanto em seus ombros.

Deixando o livrete no cais junto aos seus sapatos, a sereia suspirou, certa de que, o que fosse acontecer naquela noite, estaria feliz;

Afinal, debaixo das estrelas e ao lado de Kai, não havia ser algum capaz de tirá-la daquela paz.

— Por favor, tenha paciência comigo. Sou surfista, não dançarino, mas juro que posso virar o próprio Baryshnikov, se for você a minha parceira. — Brincou o moreno, arrancando uma risada melodiosa da mais nova, mais uma entre as suas músicas favoritas. A loira o encarou, levando as mãos delicadas aos ombros alheios, o tocando como se o Mori estivesse prestes a se estilhaçar; e tremendo, o observou, contudo, seu temor logo se dissipou ao sentir os dedos tímidos se alojarem em sua cintura, fazendo a sereia engolir seco, sorrindo ao perceber que não era somente ela a estar tensa.

Kai a observava como se procurasse em sua expressão algum erro seu, retribuindo a expressão que era mais bela que todas as estrelas.

— Gosto muito mais quando você sorri.

Com tal frase a permear seus ouvidos, a Wood se deixou perder em tudo o que era Kai; desde o sorriso às tímidas sardas em sua pele, feito ásteres a pontilhar aquele pequeno universo. Porque Kai Mori era assim; um pequeno oceano que ela tivera a sorte de descobrir.

O moreno a guiava em passos desengonçados pela madeira molhada do cais, o que por si, já era uma verdadeira missão multiplicada por dois; mas Ayla realmente não ligava para isso. Mesmo com a brisa fria trazida pelo mar, ela não sentia frio.

Nada além daquela pequena cúpula criada em torno de ambos lhe importava, por ora.

Tudo o que desejava era guardar aquele momento em uma caixinha, para assim poder reassistí-lo sempre que desejasse.

Saber que, até ali, Kai fora seu.

A jovem deitou sua face sobre o ombro do mais velho, fechando os olhos para se deixar viajar no que seria aquele estranho sentimento, aquela atmosfera, aquela realidade longe de seus problemas.

A música se tornava apenas mais um ruído, afinal o som favorito da garota era o barulho descontrolado no peito alheio, sua respiração, tudo o que lhe indicava que Kai não era apenas um doce sonho. Ele não se dissiparia feito fumaça, não como ela se dissiparia.

Como a Água a faria se tornar.

Os passos quase cegos a levavam em uma sintonia que parecia duradoura, infinita como as estrelas que os velavam. Em seu coração, Ayla quis que, de fato, aquele momento fosse eterno, em que Kai não corria perigo, e ela, ali, não estivesse prestes à afundar. No entanto, a Wood sabia que a realidade não era como sua imaginação levava a pensar, tão fria e profunda como o próprio oceano.

O oceano.

A loira sabia que, enquanto não cumprisse as ordens da Água, não deveria sequer cogitar em se aproximar do pélago, quanto menos com o garoto que deveria ser D'ela, Na noite que era seu limite.

Todavia, a jovem não mediu as consequências ao simplesmente abrir os olhos, e dar com o oceano azul a lhe observar.

Aquilo fora suficiente.

Kai Mori, por um momento, se tornou efêmero, fugaz, quase a desaparecer de sua visão; pontadas de dor, como agulhas, lhe atingiram em sua cabeça, e ela, em uma falha tentativa de fazer a dor parar, levou a mão até as têmporas, se desfazendo dos braços alheios para, de alguma maneira, fazer com que seu sofrimento tivesse uma solução.

O surfista, alarmado, a observou por alguns segundos, sem saber o que fazer, sem distinguir se o causador de tamanha comoção seria ele, ou se poderia ajudar. Desnorteado, chamou pela jovem que, opressa, levantou-se.

A Água a estava chamando. E, dessa vez, desejava uma resposta.

— Ayla? Você tá bem? — Perguntou Kai, a amparando pelo braço esquerdo, tentando ajudá-la a se levantar. A loira permanecia a encarar o nada, a gritar mesmo com sua voz arrancada de si.

Ela estava sofrendo. E Kai não entendia porque.

O moreno se ajoelhou junto à jovem, a agarrando pelos ombros, tentando entender o que acontecia, para que assim encontrasse a solução; mas o Mori não podia. Ninguém podia.

— Por favor, Ayla! Me dê algum sinal, algo que eu possa fazer, por favor! O que houve?! O que você...

Não demorou muito para o rapaz ser calado pela própria Ayla, que se levantou de supetão. As lágrimas adquiriram um tom assustador em seu rosto agora inexpressivo, e seus olhos acinzentados, sempre tão vívidos, se tornaram tão insípidos quanto um radar quebrado.

Kai arregalou os olhos ao ver aquela face que, embora fosse a de Ayla, não trazia a essência que o rapaz adorava, a amabilidade, ou mesmo os traços humanos que o fizeram se apaixonar por ela. Era tenebroso, surreal.

O rapaz engoliu seco, tentando ignorar o tremor que tomou seu corpo ao contemplar o que estava acontecendo; ele finalmente havia entendido. Ayla não era Ayla; naquele momento, a garota era apenas um simples fantoche, uma boneca controlada pela própria Água.

Veios azuis e negros se espalhavam por seu rosto, e o tom rubro do próprio sangue alheio escorria por suas narinas e lábios, trazendo um ar ainda mais assustador àquela visão.

— Ayla...Ayla, é você? — Perguntou o surfista, assustado. Era terrível, e a garota, agora uma simples boneca, parecia estar sofrendo tanto quanto ele, talvez até mais. Lágrimas surgiam em seus olhos cinzentos que, mesmo vidrados, pediam desesperadamente por seu auxilio, por algo que a livrasse. Os lábios rosados se abriram, contudo, diferente de todas as outras vezes, ela não iria sorrir para Kai, rir com ele, dizer, ainda que em palavras mudas, coisas doces. O Mori sabia: Ayla iria cantar.

— Não, Ayla, não dê ouvidos à ela! Por favor! — Ele gritou, sem saber se podia ser ouvido pela garota que se preparava para sua música fatal. A jovem puxou o ar, com gotas salgadas caindo por suas bochechas já coradas. Olhando naqueles olhos suplicantes, Kai sabia que não era o desejo da sereia, assim como não era sua vontade morrer ali.

Seu próprio cérebro em parafuso, durante aqueles milésimos de segundos, buscavam uma solução, que surgiu em um único clique.

Debaixo das mesmas estrelas, a situação não era mais a mesma. O encanto havia se quebrado, e outro se iniciado. Naquele instante, o surfista precisava tomar uma decisão contra algo que sequer achava ser real. Mas, era real, assim como Ayla.

E a vivência dela estava prestes à desmoronar.

Kai avançou sobre a garota, a segurando pelos ombros, como fizera quando o momento inoportuno se iniciara. Seus dedos calorosos encontraram a pele fria, feito o mar em uma noite de inverno, lhe causando arrepios. O coração desamparado do rapaz batia freneticamente, mas decidido à resgatar a garota daquele enorme abismo que ela adentraria, se cantasse.

Ayla não teria culpa, todavia, como a sereia de um certo conto de terror, haveriam suas próprias consequências para um ato tão drástico; ela, enfim, se tornaria a 'fantoche' que a Água sempre desejara que fosse, sem a humanidade que lhe cabia. Para sempre.

O Mori respirou fundo, no mesmo ritual que realizava antes de surfar; e de fato, ele iria surfar: Afundar naquelas ondas escuras que escondiam Ayla de si mesma.

A garota adquiriu surpresa em sua expressão por um curto período , a desconcentrando de sua música, o que fora suficiente; o moreno avançou, e enfim, encontrou seus lábios com os dela.

Único: era a palavra que, talvez, o rapaz usaria para descrever aquele gesto. Insólito; extraordinário; singular. Inúmeras palavras percorriam sua mente, contudo nenhuma parecia descrever, com exatidão, tamanho encanto, como um feitiço.

E, por Ayla, Kai já estava enfeitiçado.

Ele, como o cético que sempre fora, jamais imaginaria que, um dia, cairia no doce feitiço de uma garota que, assim como ele, tinha o oceano à correr em suas veias, que se perderia em um mar tão tempestuoso quanto desconhecido, como era a Wood.

No toque tão singelo, simples e ao mesmo tempo avassalador, deixou que todas as emoções referentes à garota de voz doce e silenciosa fossem transmitidas, em um pedido, para que a jovem retornasse ao pequeno mundo construído naquele atípico verão havaiano.

Em sua mente, imaginou Ayla presa pelo ser que um dia havia a protegido, a mantendo prisioneira de sua própria identidade.

No entanto, por mais que desejasse que o momento fosse eterno, tinha que agir; evitar aquele destino.

Rapidamente, o moreno arrancou o colar em formato de uma pequena placa que carregava em seu pescoço, o ajustando na nuca da loira que tentava empurrá-lo com os braços, ainda que não fosse suficiente.

O rapaz sorriu entre o beijo prolongado, e entre dentes, ditou para o espírito que era seu inimigo:

— Você ainda está no corpo de uma humana, deusa. E, nesse mundo, há muitas coisas mais fortes que você.

As orbes cinzentas se direcionaram para ele, o fitando com fúria, antes dos veios que se espalhavam pela pele de Ayla adquirirem um fraco brilho, como as algas fluorescentes que uma vez o surfista vira em suas andanças.

A moça continuava a tentar empurrá-lo, porém com menos veemência, com sua insistência se voltando ao próprio corpo, cortando os fios que a prendiam à criatura que ainda tentava vencê-la.

O beijo se findou e, assim como ele, a fraca luminescência e os estranhos veios sumiam, pouco a pouco, deixando nada além da meia-humana e o surfista para trás. Como em uma aurora boreal invertida, as luzes assumiram o oceano, e em uma voz que apenas eles podiam ouvir, ditou:

"Muito bem, humano. Ayla é minha serva e, portanto, deve ser ela a escolher. Ou a tola e dispensável vida deste adiáforo, ou a própria. Você tem até a meia-noite."

E, com isso, o ser se dissipou feito fumaça, como se jamais houvesse estado ali.

O céu e o oceano haviam retornado ao normal; As estrelas a pontilhar o plano noturno e as ondas a quebrar na praia, próxima ao cais.

Ayla tremia, assustada, chorando baixinho enquanto aninhava-se no no assoalho, onde, em algum momento, havia estado feliz. Contudo, agora, o terror a consumia, se sentindo tão só quanto jamais estivera.

Kai demorou alguns segundos para se recuperar do torpor. Logo, se ajoelhou e a tocou timidamente, temendo assustá-la, e a garota, surpresa, o encarou. Por um instante, o olhar em seu rosto parecia desamparado, e ela, sem conseguir segurar-se, o abraçou, desabando em lágrimas sobre o ombro do moreno que a resgatara. O som silencioso do seu choro preencheu a noite, e ele, com um suspiro, desejou poder salvá-la de tudo aquilo, como a Wood uma vez fizera consigo.

O rapaz observou o mar enquanto a amparava em seus braços, se perguntando como aquele lugar, que sempre lhe parecera tão pacífico, tão receptivo, poderia ser tão vingativo quanto àquela aparição.

Kai, com uma das mãos, procurou nos bolsos da calça cáqui um lenço, e ao encontrá-lo, o usou para limpar as lágrimas que ainda manchavam o rosto corado da garota em seu afago. Ainda assim, a moça não queria deixar se desprender, desejando poder mergulhar naquele pequeno mundo, longe dos seus problemas, e não mais voltar para a realidade tão assustadora.

Ayla tinha uma escolha, uma atitude à tomar.

Contudo, em sua mente ainda confusa, se perguntou se poderia apenas viver naquele microcosmos, em que somente Kai existia. Não havia Água ou maldições, ou mesmo a incerteza de quem era. Por um momento, a garota se permitiu divagar em tudo aquilo, afinal, dentro de si, já havia tomado a sua decisão há muito tempo.

A Água, jamais, seria novamente a sua Mestra.

— Ayla...Por favor, preciso que me diga se está bem. O que aquilo fez com você...

A garota se desfez dos braços masculinos para responder, substituindo a mágoa em seu rosto por pura raiva. Aquele ser que regia o oceano não era complacente; era um monstro.

"Não cumpri o que ela me pediu. Por isso, Namaka assumiu minha consciência para que eu cumprisse o que me foi mandado. Essa é a primeira vez que ela me dá uma escolha, mas já a tomei há muito tempo."

O Mori franziu a sobrancelha, sem entender o que aquelas palavras significavam.

— O que quer dizer? O que escolheu?

A loira sorriu ao voltar o olhar para o mais velho, com pura afeição em seus olhos cinzentos, feito a tempestade que ocorria dentro de si. Os dedos finos e pálidos se dirigiram para o rosto de Kai, sem desviar da noite em o que salvara, o beijo desesperado, o toque e a urgência com que o moreno procurara por ela.

Independente das consequências, estava grata; por experimentar o mais doce sentimento humano, e principalmente, por conhecer Kai.

"Obrigada. Sabe, por não ter desistido de me procurar, no que a Água me transformou. E pelo beijo também." — Riu ela, o que fez o garoto arregalar os olhos e corar. Não imaginava que, no meio de tudo aquilo, a sereia fosse lembrar justamente do seu ato desajeitado.

— D-De nada. Mas, sei lá, achei que você não fosse lembrar do que eu fiz, porque tipo, 'tava com mais medo de machucar você do que... — O Mori começou a falar rapidamente, e Ayla, com um balançar de cabeça, levou o indicador para os lábios alheios, em uma forma simplista de o calar. Ela adorava ouvi-lo, porém, naquelas circunstâncias, não poderia se permitir divagar naquela voz.

"Kai. Tenho que ir."

As palavras, escritas com rapidez, fizeram a timidez sumir do rosto do surfista, assumida por um espanto aparente. Ele não entendia, e tinha medo de entender a escolha que Ayla havia feito.

— Pra onde? O que vai fazer?

A Wood riu, sem responder as perguntas do herói da historia que ela traçava em sua mente. O fitou, para guardar cada detalhe único daquele rosto singular, que velaria seus sonhos para sempre. E, ao levantar-se, ditou em sua mudez, imaginando se, em algum outro universo, outra Ayla estaria fazendo uma escolha diferente da que havia tomado, ou se, em outro lugar, existiria uma garota capaz de viver o mais doce sentimento humano.

Contudo, aquela não era a sua realidade. E, onde estava, não havia mais lugar para fugas.

"Irei encontrá-la."

O turista a observou, desejando não ter entendido. Por um instante, se viu novamente na noite em que não pôde evitar a partida de alguém que lhe importava; em que a garota que o protegia se fora, sem que este pudesse impedir sua ida.

Em que Kai a vira partir, na sua frente.

— O quê?! Você só pode estar brincando! Depois do que ela fez, não pode ficar sozinha com...aquilo. — Rebateu ele, aturdido com a decisão que ouvira, com as memórias que o atingiam. — Ela vai matar você.

Ayla balançou a cabeça, em negação.

"Kai, você não tem a menor ideia do que a Água é capaz. Ela pode matar você, e as outras pessoas que são importantes pra mim. Posso aguentar o que ela fizer comigo, mas não poderia se o mesmo fosse feito a você, ou ao meu pai."

— Seu pai? — Perguntou o jovem, então compreendendo a ameaça feita a ambos. — Então, ele corre perigo também.

Ela assentiu, recolhendo sua caderneta e sapatos, para dar um fim àquela história de terror. Contudo, o tilintar de um objeto em seu pescoço a tirou daquele transe, a fazendo atentar para o rapaz, que andava de um lado para o outro, buscando uma solução.

"Kai. O que você colocou no meu pescoço?" – Perguntou, curiosa com o objeto, de repente.

— Ah? É um amuleto. Segundo o meu avô, afasta maus espíritos, mas eu não acreditava nisso até hoje. — Respondeu o mais velho, ajustando melhor o adereço na garota. — Você pode ficar com ele.

A Wood sorriu, feliz com aquele pequeno gesto.

"Obrigada, Kai. Por me mostrar que existem coisas nesse mundo mais fortes do que a Água."

— Incluindo você. — Respondeu o turista. — Humanos são muito mais fortes do que a Água pensa. E, por isso, eu vou com você, aonde quer que você vá, se for para te proteger. Você me protegeu uma vez, e eu farei o mesmo, um milhão de vezes, e contra todos os deuses que ousarem te machucar.

— Galera, que 'papo é esse? Cheguei na Grécia e não 'tô sabendo? — Uma voz saída do estabelecimento quebrou totalmente o encanto que se mantinha entre os dois ali. Wendy os encarava com uma bandeja na mão, os cabelos ruivos e rebeldes presos em um rabo-de-cavalo e o vestido colorido manchado com algum condimento desconhecido, arregalando os olhos ao notar a faceta em farrapos da outra garota:

— Misericórdia! Mas o que diabos...

Kai levantou-se sem demora, segurando a mão da loira como se temesse que alguém, mais uma vez, a tirasse dé seu toque.

— Wendy, cadê o seu carro?

— Meu carro? Está lá fora, o que você...

— Precisamos que nos leve à um lugar. Por favor.

A ruiva ergueu a sobrancelha, com um sorriso sacana a surgir nos lábios corados. No entanto, não era preciso muito para notar o tom urgente do melhor amigo, com a mesma — ou talvez mais — urgência com que lhe dissera que viajaria ao Havaí, sem o conhecimento dos pais.

— Para quê? O que houve, Kai?

Ayla estava pronta.

Ao acomodar-se no banco de trás, do carro alugado de Wendy, a garota estava decidida à lutar por aquilo. Por aquele lugar calmo e receptivo que era o mundo humano ou, ao menos, o mundo que havia descoberto no rapaz ao seu lado, que cantarolava baixinho a música que saía do rádio do veículo.

Ambos esperavam a resposta quanto à longa explicação de Kai sobre o porquê de dirigirem sem destino, no meio da noite, quando os três deveriam estar no luau preparado durante semanas, por eles próprios. E o Mori não via outra opção, exceto contar à melhor amiga o estranho acontecimento ocorrido, assim como a verdade sobre a verdadeira identidade de Ayla.

Ela não ligava. Esconder-se no mundo não lhe parecia certo, pois parte de si mesma pertencia aquilo. A garota queria, mais do que nunca, viver ali, sem o fardo de manter-se em segredo sob a constante vigilância do ser vil que queria dominar, não só a ela, como também as pessoas que eram e haviam se tornado importantes para a Wood. Não temia qualquer outra consequência, ainda que existissem.

A loira observava, em seu silêncio, a voz fascinada do rapaz à contar a história que, para ela, parecia um dos mitos gregos, que sempre terminavam em tragédias. Memorou-se das antigas histórias, contadas por sua mãe, que transformavam as sereias em personificações assombrosas, metamórficas, como a terrível criação de um cientista louco e alucinado; tudo culminava em algo terrível, maléfico e sórdido, sombrio como as ordens da criatura que a atormentava, que tratava vidas humanas com tanto esmero quanto a pior das imundícies.

Para Namaka, nada, exceto suas criaturas, lhe importavam. Nem mesmo Ayla, afinal o lado humano da garota, ela percebia, nunca fora, de verdade, aceito pela divindade.

Eram um conjunto de peças e palavras sombreadas na verdadeira intenção da Água: mantê-la sob controle, a tendo como exemplo para aquelas que ousariam ter a mesma decisão de sua mãe; Ayla era o defeito, o que a junção entre dois mundos acabava por formar: Uma garota que não pertencia à nenhum lugar, incompleta e inconstante, uma aberração.

A loira, durante aquele longo caminho que a levaria ao encontro com a Água, repassou todos os acontecimentos que a traziam à onde estava. Mais uma vez, se perguntou como estaria em outro paralelo, se a garota de outro universo havia desistido de Kai e do mundo, e se tornado mais uma peça daquele tabuleiro macabro.

Era algo que ela nunca saberia. Apenas sabia que, naquele instante, não seria mais um simples peão.

A Wood voltou o olhar para Kai, que terminava seu relato para a garota que dirigia, que não proferia uma única palavra sequer. A atenção de Wendy estava focada na estrada, com o olhar tão distante e nebuloso quanto um nevoeiro, e o surfista, desnorteado com a falta de expressão da Lamberg.

Tanto o atleta quanto a mestiça tremiam, temendo que o que acontecera e o que estava por acontecer parecesse uma longa história de pescador, sem fundamento nem importância.

O moreno suspirou, torturado pelos minutos silenciosos de Wendy que, para uma garota tão falante quanto ela, parecia uma eternidade, um castigo em meio à algo tão importante.

— Wen, você me ouviu? Isso é sério, fale alguma coisa. Por favor. — Pediu ele, diminuindo o volume da música no rádio, o único som além do motor e da sua voz.

A ruiva piscou enfim, como se despertasse de um transe, encarando o amigo com sua velha expressão zombeteira, ainda que, no fundo de seus olhos esverdeados, a sinceridade estivesse estampada:

— Eu ouvi. Tudo. Mas, não é tipo algo que você diz "uau, eu sempre soube!" É surreal, e é incrível. — Respondeu a mais velha, um tanto fascinada. — Você pode ser muitas coisas, Kai. Tímido, esquisito, complicado, desastrado...

— Nossa, quantas qualidades. — Emendou o Mori, com uma careta. Ayla conseguiu rir mesmo em meio à tensão, e Wendy continuou:

—..No entanto, você não é um mentiroso. Se qualquer outra pessoa houvesse me dito isso, com exceção de Lorenzo ou da Asterin, eu teria questionado a sanidade mental dessa pessoa, ou que estava brincando comigo. Só que você não mente, Kai. Então, eu acredito.

O surfista se surpreendeu com o tom sério da garota, que sempre levava as coisas pelo lado mais leve que conseguia. Um sentimento de gratidão o preencheu, e ele, animado, se voltou para a loira no banco de trás, que sorriu, movendo os dois polegares para cima, em sinal de positivo.

A noite se estendia enquanto corriam o asfalto da ilha de Oahu, os memorando do tempo que se esgotava. Wendy soltou um suspiro longo, para absorver todas aquelas informações:

— Então, Ayla é uma sereia. Bem...isso não parece tão difícil de acreditar. — Disse a ruiva, sem desviar a atenção da direção. Os dois passageiros se entreolharam, confusos. Não esperavam tal declaração.

Kai então perguntou:

— Por que diz isso?

— Porque, quando conheci você, achei que era o "boto cor-de-rosa", chegando na facul com as roupas brancas e o chapéu de praia. Ou o Roberto Carlos. — Brincou a Lamberg, sem perder a chance de brincar com o melhor amigo, e continuou: — Mas, falando sério, eu acredito. Existem muitas coisas, nesse mundo, que não entendemos ou que sequer cogitamos existir. Não duvido que Ayla seja uma delas. O que nos resta é aceitar. Tá, para onde estamos indo? 'Tô dirigindo há meia hora, sem rumo.

O moreno encarou Ayla, que demorou ainda alguns segundos para inquietar aquela questão.

"Não posso dizer com certeza. A Água é muito inconstante, mas se posso dar um palpite, seria o lago do Jardim Botânico de Ho'omaluhia".

O nome, tão conhecido por Kai, o fez arregalar os olhos, surpreso. O jovem costumava visitar aquele lugar, um jardim em meio às montanhas, quando criança, durante as férias escassas da escola em que visitava o avô.

E, no meio de tudo o que ocorrera, a última coisa que passara em sua cabeça fora que a Água seria encontrada justo naquele lugar; algo extremamente calmo e pacífico, paralelo à criatura que tivera o horror de conhecer.

— Mas, lá é um lago no meio das montanhas. É 'tipo procurar pão em uma sorveteria. — A mais velha ironizou. A sereia lhe fez uma careta, já acostumada com o gênio difícil da ruiva que os levava.

"Há muito tempo, antes do jardim botânico ser construído, o lugar era dirigido para adoração da Namaka. Para pedir por chuva ou que acalmasse as tempestades que assolavam a ilha. Com o passar dos anos, essa tradição se perdeu, e lá, como você disse, não se parece com um lugar onde Namaka estaria, mas eu sei que ela está lá".

A motorista franziu a sobrancelha, encarou o melhor amigo, porém não disse nada. Se Ayla era uma sereia, então não duvidava que uma deusa havaiana estaria em um lago escondido, no meio do nada.

— Para o lago de Ho'omaluhia, nós vamos. Á propósito, Kai. Sei que não é a hora, mas seu pai me ligou.

A menção ao seu genitor fez o rapaz empalidecer. Pigarreou, sem esperar por aquela informação:

— O quê? O que ele disse?

— Ah, não 'tá nada satisfeito por você ter usado as férias para participar de um campeonato de surfe. — A mais velha se voltou para Ayla, que se encontrava um tanto perdida com o assunto. — O pai dele não gosta que Kai seja um atleta. E, digamos que eu e um amigo, junto com o surfista aqui e o senhor Akira, armamos para que ele viesse passar as férias no Havaí, bem à tempo do campeonato. E o senhor Mori não 'tá nada feliz com isso.

O moreno respondeu com um suspiro longo, sem dizer uma única palavra. No entanto, pensou ele, a loira havia lhe contado seu maior segredo. Cabia à ele contar seus problemas também.

— Meu pai não vê o esporte como profissão, simples assim. Mas, eu vou ganhar esse campeonato, vocês vão ver.

E nenhuma delas duvidava.

"Kai, como você é brasileiro? Digo, seu avô é japonês, porém mora no Havaí. Me pergunto como as histórias se ligam, a ponto de chegar à São Genésio".

A sereia tinha curiosidade. E, antes das consequências de suas escolhas serem cobradas, ela desejava conhecer o máximo que podia sobre o rapaz que lhe mostrara os novos caminhos que a vida poderia tomar.

Embora não houvesse um sol para amanhecer, no dia seguinte.

Não para ela.

— Ah, meu avô se mudou para o Havaí, para estudar. Na década de 60, mais ou menos, e acabou ficando aqui. Meu pai nasceu em Honolulu, aliás, mas foi embora para o Brasil pra, ironicamente, conhecer o mundo. — Falou ele, com um sorriso sarcástico. — Foi para São Paulo, e em um festival que comemorava a imigração japonesa, conheceu a minha mãe. E não, ela não é nikkei, estava lá para acompanhar uma amiga, e bom...O resto é história.

— E...Tcharam! Kai Mori surge de tudo isso. — Brincou mais uma vez a ruiva, animada. — Sério, o garoto é miscigenado. Você escolheu alguém bem atípico para gostar. — Falou ela, piscando o olho para a mais nova, que corou, assim como Kai. A Lamberg ergueu um dos braços, desacreditada: — Ah, gente, fala sério! Com os olhares que vocês trocam, eu seria uma idiota, se não notasse que vocês têm uma queda um pelo outro. Uma queda não, um penhasco, convenhamos. 'Tô certa ou 'tô errada?

O Mori abriu a boca para replicar, contudo notou que Ayla havia parado de prestar atenção nas palavras ditas. Seu olhar estava perdido na escuridão e na floresta cujo grupo adentrava; um terreno montanhoso e sombrio, o que tornava ainda mais estranho o fato de uma divindade do oceano utilizar um espaço como tal. A garota olhava ao redor, procurando entre as sombras o traçado daquela que a assustava, que a esperava pacientemente, aguardando sua escolha e a sua presença.

O veiculo rubro que os levava guinchava e tremia, e a ruiva, em uma falha tentativa de fazê-lo funcionar, começou a xingar o motor, que parecia dar os últimos suspiros de sua curta vida. Ou, talvez, aquele não fosse o terreno indicado para um simples buggy.

— Droga de carro. Tomara que não esteja quebrado, senão vou pagar uma multa. — Vociferou a motorista, tentando dar partida, mais uma vez.

"Não funciona. A intenção da Água ao estar nesse lugar é justamente essa." — Indicou Ayla, recolhendo a mochila rósea ao seu lado enquanto isso.

— Quebrar o meu carro? — Perguntou a ruiva, metendo um chute certeiro no painel, o que causaria muito mais danos.

"Não. As pessoas que não a interessam, normalmente desistem. Por isso, um terreno tão instável é o ideal para uma barreira".

— E, se as pessoas, ainda assim, a encontram? — Perguntou Kai, a seguindo pela estrada escurecida.

"Então, morrem". — Ayla não teve como ignorar os olhares assustados dos dois turistas. Ela não os culpava, de qualquer maneira. Pois, de qualquer maneira, o preço seria seu. - "É por isso que peço que fiquem no carro. Eu vou sozinha."

— 'Tá brincando, 'né? Viemos até aqui, e vamos com você. — Wendy falou, sendo retribuída por um olhar cuidadoso de Kai. Ele temia, a ponto de não apostar a vida da melhor amiga e da garota que gostava, no processo.

— Não. Apenas Ayla e eu. Sou eu que a Água quer. Você seria uma intrusa para ela, Wen.

A mais velha pensou em replicar, porém assentiu. Aquele era um caminho cujo ela não poderia auxiliar Kai.

— Certo. Só...Tomem cuidado. — Pediu, da forma mais singela que conseguiu. Todavia, sem esquecer o traço que lhe era marcante, ditou: — Se for preciso, arrebenta ela, Ayla. 'Tá cheio de galhos por aqui, basta escolher um.

A garota em questão riu, o único som de suas cordas vocais que não havia sido arrancado, erguendo as mãos, em seguida, com o seu caderno de anotações. Na letra cursiva, escreveu:

"Pode deixar!"

Wendy sorriu, e se voltando para o Mori, ditou de forma autoritária, como a irmã mais velha que se considerava:

— E você, não cometa nenhuma besteira, Kai.

— Nem você, Wen. Voltamos logo. — Rebateu o jovem, ajustando a pequena mochila escura que trouxera junto à si. Logo, sorriu para a loira, como se a situação em que estavam fosse algo tão prazeroso quanto adentrar as ondas:

— Vamos?

A sereia, ao encarar aqueles olhos escuros, desejou que Kai pudesse voltar, para longe daquele ser que desejava arrancá-lo de uma vida tão bela. Que pudesse retornar, ainda que ela própria não pudesse.

E, com aquele pedido e com a única palavra do Mori, ambos adentraram a mata aberta e desconhecida, na direção do lago sem nome, em que uma deusa impiedosa os aguardava sob a escuridão.

...

Mil e duzentos segundos; era tudo o que os separava de Namaka.

Na escuridão quase absoluta, nenhum deles sabia, exatamente, o que aconteceria, nem mesmo Ayla. A garota em questão tentava não tropeçar nos próprios pés ou nas pedras que surgiam pelo caminho, graças à lanterna do aparelho celular nas mãos de Kai. Ele, como sempre fora, era preparado, e se armou com o que podia imaginar que precisariam naquela curtíssima jornada, mas que significava o tudo ou nada para qualquer um deles; água era essencial, assim como luz. Os tênis velhos — já que o garoto os tinha há um bom tempo — quebravam o cascalho enquanto se moviam pela trilha, e seus olhos, acostumados com a efemeridade e instabilidade do mar, buscavam ao redor qualquer coisa que pudesse ajudá-los.

Ele a temia, era verdade. Afinal, até aquelas calorosas férias de verão, o Mori não fazia a menor ideia de que encontraria uma deusa havaiana, justamente à sua espera, e que conheceria e se apaixonaria por uma sereia, um ser que existia somente nos livros de folclore que um dia lera na escola.

O jovem buscou o olhar da mais nova que, ao contrário dele, parecia melhor adaptada ao ambiente, ainda que escorregasse algumas vezes. O vestido que Wendy lhe comprara se encontrava um pouco sujo, mas ainda belo, como uma estampa que o tecido liso havia ganhado, e os fios claros, sempre rebeldes, estavam presos em um rabo de cavalo, para evitar qualquer acidente.

Em meio aquilo, o rapaz se perguntou como Ayla poderia ser tão bonita; feito o sol e o oceano misturados em uma forma humana; calorosa como o sol, e um mistério, como o oceano. O surfista, mesmo tendo dobrado às ondas centenas ou até milhares de vezes, poderia dizer que a Wood era até mais bela que ambos.

Uma obra-prima que jamais seria replicada.

Em meio aos devaneios, Kai franziu a testa, ao notar a garota olhá-lo e escrever em seu bloco de anotações, no entanto, com a falta de luminosidade, não conseguia decifrar direito o que seriam aquelas palavras.

— "O alho". Que alho? — Perguntou, aturdido, ao notar os dizeres, traçados em sua língua materna, sem compreender direito o significado.

Ele, contudo, não teve muito mais tempo para pensar, já que um galho o acertou, certeiro, em seu estômago. A garota se abaixou até ele, ajoelhado no chão, e não conteve a risada.

"Não era 'alho'."

— Entendi. Era "galho". — Balbuciou o moreno, se pondo de pé com a ajuda da jovem, que tentava, em vão, conter o riso.

"Você está bem?"

— Acho que 'tô. Não foi nada, foi só um empurrão.

"Tem certeza?"

— Claro, tenho sim. Não se preocupe. — Garantiu o Mori, voltando o olhar para a lua que se elevava, alto no céu. — Acha que estamos muito longe? O GPS diz que não vai demorar, mas...

Ayla, ainda segurando o braço do rapaz, parou de rir; a expressão em seu rosto se tornou séria e, dessa vez, gesticulou, sem usar o caderno deixado ao lado de si.

Um gesto simples, que não precisava de qualquer tradução.

Com a palma grudada à orelha, disse apenas uma palavra:

"Ouça".

E ele ouviu.

Era o barulho do rio.

Kai suspirou. Nunca tivera medo do mar, e daquela vez, não seria diferente; a Água não tiraria parte da felicidade que havia lhe proporcionado.

— É ela. Não é?

A loira assentiu com a cabeça, abraçando o caderno com uma das mãos. Os dedos pálidos e magros tremiam, algo que não poderia evitar visto à situação. Ainda assim, Ayla se instigou a continuar, ainda que o medo, mais um dos sentimentos humanos que tentara suprimir por anos, estivesse à flor da pele, mesmo que seus sentidos insistissem para um retorno.

Mas, não havia um retorno.

E, se houvesse, ela não queria retornar.

A Wood segurou a mão masculina, que o olhou, a procura de alguma confirmação para ir em frente; as estrelas os observavam do céu, iluminando o caminho sombrio que ambos estavam prestes à tomar.

— Tudo bem. É só você dizer. — Disse o Mori, sem desviar o olhar do enorme lago que, ao contrário da fama que a sereia lhe contara, era tão pacífico e parado quanto uma simples brisa. E, no entanto, o surfista sabia que não era bem-vindo ali.

A garota não respondeu; ao invés disso, respirou fundo e, ao soltar a mão do garoto que lhe despertara o amor, fechou os olhos.

E assim, com toda a raiva e o temor que a consumia, ela cantou; como se a melodia pudesse expurgar tudo o que a assustava, que um dia a tornaram dividida. Ayla deixou a música fluir, sabendo que a melodia, além de Kai, atingiria outra pessoa — outro ser — pelo qual ela queria alcançar.

O moreno ao seu lado, ao ouvir a canção, endireitou sua postura, e os olhos escuros feito pérola negra fitaram nada além da água à frente, ao qual ele tentou alcançar com vagar. A sereia, em seu íntimo, torceu para que seus sentimentos pelo rapaz pudessem alcançá-lo, que pudessem lhe dizer que tudo ficaria bem, que ele não iria se afogar.

Era assustador e medonho.

O turista caminhava lentamente, na direção do lago, da morte, e para longe de Ayla.

A garota desejou, mais que tudo naquele momento, parar seu canto e abraçar o jovem, levá-lo para longe daquela entidade que desejava roubá-lo de si. Porém, Ayla simplesmente não podia. Ali, em sua música mortal, era tudo ou nada. Era a única forma de trazer Namaka à eles, ou morrer tentando.

E Kai iria primeiro.

Ela balançou a cabeça, tentando afastar tais pensamentos que a afetariam em sua tarefa. Em um gesto desesperado, tomada pelas lágrimas que escorriam pelo rosto corado, a mestiça agarrou Kai pelo braço, ao notar que se distraíra ao ponto do surfista estar a ponto de lançar-se no pélago, e o abraçou.

Kai era o seu farol, e simplesmente a ideia de vê-lo se afogar a assustava. A aterrorizava, a ponto de não cumprir o planejado.

O Mori não sobreviveria, se pulasse.

Os soluços aterrorizados da garota quebraram o silêncio da noite, que se tornara tão solitário quanto um barco perdido no mar. Ayla o mantinha em seus braços como se pudesse protegê-lo da criatura que os observava, da realidade aterrorizante, da sina assustadora, de tudo o que o tomava.

Mas, ela sabia que não podia, assim como Namaka tinha tal conhecimento.

A loira, tomada pelo desespero, sequer notou o barulho quase inaudível da movimentação das águas, que se abriram feito uma porta, uma entrada para o outro lado.

Uma criatura humanoide emergiu, trajada em vestimentas que lembravam as próprias ondas; em um vestido azul que se movimentava conforme ditava. Os fios escuros e longos de seu cabelo desciam por suas costas feito uma cascata, decorados com pedrarias e conchas tão raras quanto diamantes, e que brilhavam conforme a luz das estrelas. Sua presença ditava serenidade, exceto pela expressão nada contente em seu rosto jovial, marcado por marcas do tempo que ela vira passar. Os olhos, tão azuis quanto o céu, logo fitaram ambos e, ao focar na garota, adquiriu algo parecido com nojo.

— Ayla. Porque está chorando?

A garota paralisou, como se os minutos fossem congelados. Apenas por poucos segundos, pois logo voltou-se para o ser místico com fúria, gesticulando com veemência, e até a tentar gritar, ainda que suas cordas vocais não formassem nada além de sons indefinidos.

No entanto, a divindade não precisava de muito para saber o porquê de tanta raiva.

— Está com raiva por conta desse humano? Não entendo, Ayla. Ele não passa de um verme. Você sabe, como alguém que cresceu sob o meu cuidado, que humanos não passam de simples bactérias nesse mundo.

"O que você sabe? Você não o conhece, nenhum de nós, aliás. Não tem o direito de fazer de nossas vidas um inferno, sob o pretexto de que somos simples servos. Você não é minha dona".

A mulher sorriu diante daquelas palavras silenciosas, embora não achasse graça. Era impressionante como poucos dias haviam a mudado, pensara.

— Está enganada, Ayla. Humanos são vis, maus, destroem o mundo que sequer lhes pertence. O que acha que acontecerá, no futuro, quando esse garoto, por quem você tanto aposta, for embora? Quando ele não a quiser mais? Humanos são simples brinquedos, uns para os outros.

A loira balançou a cabeça, enraivecida. Ainda que sequer fosse possível, gritou, com a voz que havia sido arrancada de si:

— Isso não me interessa! O que me importa é que amo Kai, mesmo se ele não me amar, um dia. Ele me ensinou que existe um mundo sem você, longe de você, sem tudo o que me pede e me proíbe. Não me interessa que alguns humanos sejam terríveis; pois você é pior. Eles são a minha casa, assim como Kai. Ele é a minha casa, diferente de você.

A Água a encarava, incrédula; nunca, em todos os seus anos de existência, observara tal coisa.

Alguém capaz de quebrar um de seus castigos.

— Como você...?

A jovem a encarava, pronta para avançar, se assim fosse preciso. Ela não ligava, se havia conseguido falar mesmo depois de tantos anos sem ouvir sua própria voz além do canto.

Não quando a vida de Kai estava em jogo.

A mulher levou alguns segundos para se recuperar do torpor e, tomada pela raiva, seguiu até Ayla que, surpresa, agarrou a mão de Kai. Ele não a ouvia, não a notava, mas a sereia o protegeria, do que fosse.

— É ele, não é? Ele está fazendo você agir assim. Você nunca foi assim, Ayla. — Disse Namaka, a se aproximar. A garota tentou puxar o surfista, no entanto, a deusa foi mais rápida, ao tocá-lo em seu queixo.

Parecia admirar uma pintura, ou mesmo a decidir se jogava fora algum objeto ou não.

A Wood gritou, avançando sobre o ser, que se transformou parte em névoa ao ter o corpo feminino lançado sobre si.

Sua atenção estava completamente em Kai, este ainda preso no feitiço da voz da sereia.

— Homens. São sempre o que descaminham minhas servas, são o que a tiram de seu dever. O que vê nele? Não passa de um humano. — Os dedos alheios foram em direção às narinas do rapaz, fazendo surgir pequenos jatos de água, que adentraram em suas cavidades nasais.

O surfista tossiu e engasgou, devido ao líquido que adentrava, pouco a pouco, seus pulmões.

— Pare! Por favor! — A moça pediu, aterrorizada com o ato mortal, a tentar agarrar, desesperadamente, o corpo inexistente. — Namaka, por favor, deixe-o!

Contudo, não havia resposta, sequer qualquer indício de que a mulher a ouvia. E, tomada pelo desespero de ver Kai afogar, sem mais opções, Ayla chamou:

— Mestra! Pare, por favor!

A simples palavra fora suficiente; Kai desabou no chão, sufocando e tossindo a água que quase havia o matado. O susto não fora suficiente para despertá-lo de seu transe, e a mulher o encarou de cima, sem se abalar com o fato de que quase havia tirado mais uma vida.

Namaka o ignorou feito um inseto, se voltando para a garota que não se conteve em abraçar o garoto que quase vira morrer.

— Não parei por pena, Ayla. Apenas, porque você demonstrou o respeito que tinha por mim. Não me trate como a vilã, garota. Você não sabe o que os anos que vivi já fizeram por mim. Nem mesmo o humano por quem me apaixonei.

A revelação a fez encará-la com surpresa. Nem mesmo Ayla ouvira algo parecido, ao menos não sobre o ser que havia lhe tirado a voz. No entanto, tudo começava a fazer sentido, o porquê de seu ódio à humanos ser tão intenso.

— Ele era muito parecido com o seu Kai. — Começou a deusa, sem pestanejar, ao notar os olhares assustados em sua direção. — Seu nome era Akamu, e ele existiu muito antes do mundo que você conhece. Ele era um humano, e eu, como quem sou, não poderia me casar com meu amado. Mas eu decidi abandonar tudo, Ayla. Por ele, pelo humano que passei à amar.

A loira assentiu, temendo que continuasse. Pois, no fundo, ela sabia qual era o final da história que, como a dela, não tinha um final feliz.

— Sabe o que aconteceu, Ayla? O que aquele humano fez com todo o meu amor? Akamu não aceitou quem eu era, de verdade. Porque humanos são assim, garota. Não sabem aceitar o que é diferente deles. — Retrucou Namaka, com amargura. — Seu Kai também irá embora. Ele não a aceitará. O que acontecerá quando descobrir quem você é?

A Wood a fitou, desejando gritar à todo ouvidos a verdade; que Kai já a conhecia, melhor do que a própria Namaka. No entanto, algo em manter aquilo em segredo o tornava ainda mais único, como se a mulher não pudesse arrancar também tal coisa de sua vida.

— Prefiro arriscar isso à me manter na vida que preparou pra mim. Porque isso não é vida. Não sem ele, para me mostrar pra onde vou.

As palavras fizeram a divindade rir, um som estrondoso e fantasmagórico que soou pela brisa como um trovão. Por um segundo, a sereia tremeu, ainda que a própria não ousasse sentir medo. Afinal, tal sentimento já havia a consumido por tempo demais.

— Você é corajosa, isso eu admito. Mas, não tanto quanto se trata da vida do seu amado. Um dia, ele morrerá, Ayla. E você não terá ninguém além de mim.

— Ainda que ele morra, que ele vá embora, ou que não me ame, vou saber que eu o amei. Que experimentei o amor, que pude apreciá-lo. Ele sempre estará no meu coração, ainda que você ache que não tenho um. Eu vou amá-lo, mesmo que, um dia, Kai não me ame, de volta.

Namaka permaneceu em silêncio, a observar aquela estranha situação. O amor era realmente algo perigoso, que ela própria havia abdicado.

— Leve minha voz, minhas pernas ou meus braços, Namaka. Leve tudo o que quiser. Só, por favor, me deixe ir, junto à ele. — Pediu a loira, sem permitir que as lágrimas caíssem. Não se permitiria chorar, não na frente do ser que a considerava tão fraca.

— Você realmente está disposta à isso? Á dar qualquer coisa por algo tão perigoso quanto o amor? —Perguntou a deusa, com um quê de admiração.

A jovem respondeu, sem hesitar ao encarar aquelas orbes tão frias, bem diferentes de Kai.

Ela não queria mais viver sob aquele ar gélido, uma realidade que não passava de uma ilusão. Ayla, ainda que se arrependesse, havia feito sua escolha, e nesta, não incluía a Água.

— Sim. Kai será meu novo oceano.

Namaka lhe sorriu, tão frígida quanto suas ondas. Os olhos azuis focaram no rapaz ainda paralisado, ponderando sobre aquela decisão.

— Você está fazendo um jogo muito perigoso, pequena Ayla. O amor é tão indistinto. Tão imprevisível, quanto os humanos. Até mesmo as minhas ondas são menos traiçoeiras do que a própria Humanidade. Mas, esta é sua escolha e, por ela, eu exijo um preço; aquilo que, desde o princípio, sempre foi minha. Me dê a sua voz, Ayla, em troca da liberdade que tanto procura. Quanto ao seu amado, o deixo ir, desde que ele nunca volte à adentrar meu território. Desde que nunca se atreva à perturbar minhas águas novamente.

Ayla piscou ao ouvir pedido tão cruel, para o Mori. No entanto, não havia outra opção.

Como dissera, era tudo ou nada.

E assim, logo se viu a assentir com tais condições, ainda que a ferissem por dentro, ao imaginar no quanto aquilo doeria no rapaz que a fizera se libertar daquelas amarras.

Em sua mente, garantiu à si mesma que daria um jeito, por Kai.

Ao mais uma vez olhar para aqueles olhos aterrorizantes, Ayla viu o mundo se transformar ao seu redor. Sem nada além da mão do surfista para se agarrar, a sereia sentiu a realidade fugir de suas mãos como fumaça, feito um sonho.

Um sonho em que havia salvo Kai.

Ayla adorava as estrelas.

Um dia, em algum momento de sua adolescência, a jovem havia desejado descobrir o que tornava os humanos tão únicos, tão misteriosos e tão incríveis.

Naquela época, a garota não sabia como dar uma resposta às suas dúvidas, para a pessoa que procurava em outro lugar a resposta que, agora, lhe parecia tão óbvia.

Ao abrir os olhos e dar com as orbes escuras de Kai a lhe observar com aflição, ela soube que aquele humano era a solução para tudo o que a corroera. Ou, ao menos, o primeiro mistério do mundo humano ao qual ela adorava desbravar.

— Ayla! Por favor, Não me assuste assim. Achei que...— Começou ele, animando-se com a retomada da consciência da garota sobre o banco do carro. Wendy, no banco do motorista, deu um pequeno tapa no ombro masculino, sorrindo junto à ele.

— Calma, cara, não precisa de desespero. Ela não morreu, ainda bem. — Os últimos dizeres da mais velha se foram em um sopro, um puro suspiro de alívio logo que as suspeitas de ambos se dissiparam.

A loira os observou por algum momento, assim como o ambiente em que se encontravam; o lago havia sumido e, em seu lugar, estava a estrada que os levara ao jardim. Kai estava bem, longe de Namaka, e o mais importante, vivo.

A sereia piscou ao recobrar tudo, levantando-se em um sobressalto; ela estava livre.

Livre, como nunca estivera.

No entanto, sua felicidade não se concretizou ao pensar que Kai perderia o que lhe era tão importante: o mar.

À encarar aquele sorriso, aquele rapaz que logo a envolveu em um abraço, Ayla desejou não arrancar aquilo de sua essência, um traço que lhe pertencia. No entanto, a imagem do surfista à se afogar em meio ao que tanto adorava lhe amedrontou como um terrível pesadelo, e ela, sem opções, escreveu em letras desengonçadas, sem qualquer alegria.

"Kai. Não consigo saber se lembra, mas encontramos Namaka. E ela, em troca de sua vida, exigiu que não voltasse ao mar. Ou ela o tragaria. O levaria, sem perdão."

A jovem lhes mostrou o manuscrito, com os olhos marejados pelas lágrimas. Wendy fora a primeira a entender o que tudo significava, encarando o amigo com incredulidade:

— Então, quer dizer que o Kai não pode...

Ayla assentiu, esperando pela resposta daquele cujo mais interessava. O Mori demorou a responder, a mantendo em uma tortura sufocante por alguns segundos antes de abrir seu sorriso costumeiro, a expressão feliz, ainda que trouxesse dor em seus olhos.

— Está tudo bem. Você me salvou, Ayla. Sei que fez o possível para salvar essa parte também, mas eu vou dar um jeito. Do que adiantaria, ser um surfista famoso, e não ter você ao meu lado?

Com aquela simples resposta, Ayla sabia que ali não havia mentira nem falsidade. Ainda que doesse, estava tudo bem para Kai, porque ele a amava.

— Por favor, não se beijem, ou eu vou vomitar. — Disse a Lamberg, antes da própria Ayla responder. Risadas ecoaram pela noite antes solitária, em que uma garota descobrira o pequeno mundo construído em seu entorno. Em que ela descobrira o incrível oceano que era Kai.

...

De volta à Waikiki, Kai e Wendy saltaram do veículo vermelho, sem se preocupar muito com o estado caótico em que se encontravam, principalmente o Mori. Ayla não morava muito longe dali e, portanto, uma carona à pé para a garota que adorava havia sido uma ótima maneira de encerrar uma noite tão caótica.

O moreno sempre achara que a coisa mais maluca daquelas férias seria ir para o Havaí sem o conhecimento dos pais, ou encontrar Wendy, dias depois, ou mesmo se apaixonar por uma jovem tão bela quanto o próprio verão.

No entanto, como dissera a Lamberg, haviam coisas no mundo que sequer contávamos que existia.

O luau já havia acabado, o que deixou o rapaz um pouco cabisbaixo por não estar com o avô na comemoração cujo senhor fizera questão de que o neto cuidasse dos detalhes e afins. Nada além dos pratos nas mesas restavam, além do palco, que começava a ser desmontado mesmo sendo um pouco tarde.

Os poucos funcionários se preparavam para ir embora, cumprimentando ambos os "fugitivos" no processo. Não demorou muito para Kai ver o avô à sair do estabelecimento que, em seu sótão, também lhe servia de casa, ainda vestido nos trajes tradicionais japoneses que o homem gostava de usar em qualquer festividade.

A ruiva deu um fraco empurrão no amigo, para despertá-lo do transe em que estava, sorrindo para ele com a velha expressão costumeira em seu rosto.

— Boa sorte, "Romeu". — Com um suspiro, a jovem memorou-se do terrível peso que Kai agora teria de carregar, assim como ela: ver o melhor amigo longe daquilo que o libertara da pressão do pai. E, com um abraço rápido no amigo, Wendy desejou que aquele fardo passasse, como um pesadelo finito. Pois ele, assim como todos os outros importantes para si, era indispensável. — Vai dar tudo certo, Kai. Vou torcer por você.

— Agora, você resolveu virar emotiva? — Brincou ele, ainda envolvido nos braços alheios, soltando uma risada agradecida. — Obrigado, Wen. Valeu, de verdade.

— De nada. Mas, chega de sentimentalismo e levanta esse queixo. - Ditou a garota, se afastando tão rápido quanto se aproximado. — A coroa do rei não vai ficar na cabeça se você deixar cair. Vou indo nessa, Mori. Manda ver.

E com um último incentivo, Wendy sorriu ao bagunçar os fios escuros do Mori, como uma irmã mais velha à desejar sorte.

Kai enfim se viu sozinho, próximo à nova realidade que viria a enfrentar, de alguma maneira.

Fosse como fosse, o primeiro passo seria aquele; o momento em que abdicara de seu sonho por uma garota que lhe passara o amor.

O moreno suspirou fundo ao subir as escadas que o levaria ao apartamento cujo era hóspede, em que o homem mais velho o esperava, que não olhou para o neto de imediato, como se ainda não houvesse notado sua presença.

— Kai não está a usar o amuleto. —Disse Akira, curioso com o sumiço do objeto que dera à Kai quando este ainda era menor. O Mori mais novo tocou o próprio pescoço, como se fizesse anos desde que o colocara, no entanto, faziam apenas poucas horas. Ele respirou fundo, ainda sem saber o que faria, no dia seguinte.

— É...Eu o dei para uma garota. Desculpa, 'vô, mas ela precisa dele, mais do que eu.

— Todos precisam de proteção. Assim como Kai. E sabe? Algumas coisas que encontramos na praia, podem ser tão preciosas quanto ouro.

Com tal frase quase enigmática, o homem saiu de sua varanda, caminhando para o seu aposento, sem dizer mais nada. O surfista se viu mais uma vez sozinho, sem compreender os mistérios que seu avô estaria à guardar.

No dia seguinte, à poucas horas para o campeonato, Kai se via a encarar o teto do quarto de hóspedes, a ponderar o que fazer.

Em dias, voltaria para São Genésio, sem um troféu e com a certeza de que nunca mais voltaria a surfar, além da vergonha que traria junto à si. Não se envergonhava de ter fugido ou se apaixonado por Ayla, mas retornar sem provar que estava certo fazia tudo doer ainda mais. Sem cumprir o que uma garota lhe pedira, antes de partir para sempre.

As expectativas, o encorajamento, e todo o incentivo de seus amigos, incluindo daquela que se fora, foram arremessadas ao vento, arrancadas e levadas como uma simples flor arrancada de seu jardim.

Ele simplesmente não podia cumprir o seu sonho. Bem como o sonho da garota que não estava mais ao lado de si.

— Ayla! Você tem que arremessar um rochedo, se quiser acordar esse garoto! — O rapaz piscou ao ouvir aquela voz que, com toda a certeza, era a de Wendy. Em um sobressalto, levantou o corpo da cama, e só então notou as inúmeras pedrinhas no chão, próximas à sua janela entreaberta. O surfista se apressou em aparecer no vão, quase sendo atingido em cheio por uma pedra, do tamanho de uma maçã, arremessada pela melhor amiga.

— Credo! Avisa, da próxima vez que aparecer do nada! — Gritou ela. A ruiva estava radiante, acompanhada por Ayla, que recuperou-se da expressão de surpresa que tomou o seu rosto ao ver a situação.

— Claro, vou me lembrar de avisar. — Falou Kai, sarcástico. — O que fazem aqui?

"Você vai se atrasar para o campeonato." — A Wood se apressou em escrever em letras graúdas, para que o turista pudesse ver.

— O quê? Estão loucas? Não posso, esqueceram?

Ambas as garotas se entreolharam, como quem tem um plano. A sereia se apressou, procurando na bolsa que carregava algo que, com a pressa com que fazia, o garoto achou que fosse ouro ou algo parecido. Mas era um simples colar, feito de conchas.

— Kai, você sabe porque as conchas sempre aparecem na praia? — Wendy começou, misteriosa.

— Não sei. Por que os moluscos trocam de casca? — Respondeu o moreno. Ele realmente não sabia, e não entendia o que aquilo tinha a ver com a situação.

— Porque uma certa deusa os abomina.

"Por serem as lágrimas das sereias que se arrependem de seus atos. E, ao invés de matar, elas protegem. Protegem da Água. São extremamente raras e difíceis de se distinguir, mas estas...são a única coisa que sobrou da minha mãe. E, nesse momento, ela, onde quer que esteja, passará a lhe proteger. " — Ayla falou, satisfeita.

Kai arregalou os olhos, surpreso. Ele poderia surfar, se quisesse.

— Não é possível...

"Assim como sereias?" - Brincou a mais nova, sorridente. "Você virá ou não?"

O Mori levou algum tempo para digerir aquela informação, e sorriu. Poucos minutos depois, estava à acompanhar as duas garotas, com sua prancha a tiracolo. E claro, o colar feito por Ayla, em seu pescoço.

Porque, afinal, a sereia sempre seria seu melhor amuleto, dali em diante.

Kai recomeçaria, levando em seu coração a memória da amiga que se fora, torcendo para que, em algum lugar, ela estivesse a lhe observar.

Ao olhar para o céu, o Mori sorriu, deixando que sua dor se transformasse em gratidão.

Pois ele sabia que, fosse onde fosse, a amiga estaria sempre a lhe guiar. 

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