As Cores do Amor, parte um

POR the_bookstan

"Para aqueles que subestimam as obras do destino: duas almas nunca se encontram por acidente."

— A autora.

🎨Apolo🖌 — Sexta-feira, 28 de janeiro.

"É uma verdade universalmente conhecida que um jovem, em posse de um histórico escolar impecável, dedicará o restante da juventude em um curso de Medicina, Direito, Engenharia ou outras dessas faculdades que a sociedade tanto supervaloriza. Que palhaçada é essa?"

Eu conversava com meu reflexo no espelho do banheiro, enquanto tentava inutilmente dar o nó na gravata borboleta. Quando Atena me pediu para usar isso na formatura dela... não imaginei que seria tão difícil fazer o laço.

De repente, me assustei com o barulho da porta sendo escancarada, acordando de meus pensamentos. Minha irmã entrou, como sempre, sem bater, trazendo consigo uma energia contagiante. Estava belíssima, o vestido vermelho de gala reluzia impecável, e o emaranhado de fios castanhos estava agora bem-arrumado e adornado com presilhas douradas em formato de louros.

Para quem se acostuma com um zumbi vagando de pijamas pela casa com uma xícara enorme de café e um ninho de ratos no lugar do cabelo, parecia até outra pessoa. Só que eu não diria isso a ela.

— Qual o seu problema em bater na porta? — reclamei pela milésima vez e ainda tentando dar o nó da gravata.

— Pura perda de tempo — respondeu, fazendo o laço num instante e apertando minhas bochechas.

— Você está deslumbrante, Tena...Ah não! Será que trocaram minha querida irmãzinha por um clone alien?

— Hahaha, muito engraçado, enfiou o Patati Patatá naquele canto, foi? — revirou os olhos e deu um peteleco em meu nariz, como sempre fazia desde que éramos crianças. A diferença é que ela agora precisava esticar o braço para alcançá-lo. — você também está uma gracinha, se tirar essa porcaria de lente de contato fica perfeito. — eu sabia que ela reclamaria assim que visse meu olho esquerdo castanho escuro, igual ao direito.

— Eu não vou fazer isso, você sabe que não. Por que ainda insiste?

— Porque é uma característica raríssima e bela que só te faz mais original, além de ser um charme a mais né? Você estava lindo naquelas fotos que a Ariel fez! — Puxou um cacho do meu cabelo para a frente, deixando-o solto e rebelde comparado ao restante contido com gel e spray fixador.

— Vem cá, deixa eu te dar um abraço antes que vire uma mulher de negócios metida a besta. — desviei o assunto. Atena havia puxado todo o lado advocatício da nossa mãe, eu não teria a menor chance se ela tentasse me convencer a tirar a lente.

— Você é idiotinha, mas eu te amo. — percebi que ela tentava não borrar a maquiagem.

A abracei demoradamente, ela finalmente alcançou os dias de glória e não poderia estar mais feliz pela minha irmã, estava quase tão orgulhoso quanto ela se sentia.

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Pude notar fileiras enormes de carros no caminho, numa cidade como São Genésio, qualquer festa era um grande evento. O salão estava lindo, as luzes da pista de dança chegavam ao palco principal como num show. Minha mente agitada não conseguia prestar atenção em falatórios, então corri a visão pelo ambiente no intuito de ver algo interessante. Exceto por alguns conhecidos faltando e pessoas com péssimas combinações de roupas, nada de mais. Fui tirado do transe quando minha irmã me puxou para dançar com ela.

— Já que sou uma jovem e recém-formada tia dos gatos, a honra de me acompanhar nesta dança é sua. Infelizmente, para você, não tem a opção de recusar — deu um solavanco no meu braço com força e me perguntei se o real intuito dela seria na verdade arrancá-lo.

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Na volta para casa, eu estava morto, Atena roncava apoiada em meu ombro e minha mãe ria de qualquer coisa que passasse em sua frente. Pela manhã, busquei o cheiro de café e fui levado direto para a cozinha, meu estômago roncava como se não comesse há semanas.

Na mesa do café, todos estavam em perfeito estado para assustar criancinhas no halloween. Mesmo parecendo explicitamente exausta, Atena ainda estava eufórica. "Ou quem sabe ainda bêbada", pensei.

— Bom dia família Addams! — falei alto e melodicamente, ignorando minha própria dor de cabeça.

— Cala a boca Apolo! — responderam em uníssono me xingando com resmungos sussurrados

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Cerca de uma semana depois, comecei a retomar a rotina da faculdade. Mesmo com meus professores e todo o setor de artes em greve por falta de verba, eu não poderia perder um mês inteiro. O prédio ficaria vazio até que as autoridades fizessem algo, ou seja, eu tinha fevereiro consideravelmente livre. Liguei minha playlist de música clássica no máximo e parei em frente a tela em branco.

"Vamo lá cara, você é o melhor da turma. Será possível que não consegue transmitir amor em uma pintura?", questionou minha consciência, relembrando as palavras do meu professor.

— Não posso ter visto tantos filmes melosos e livros açucarados em vão.— falei em voz alta. Rabiscando em sincronia com os violinos.

"Admita que chorou quando Mr. Darcy teve seus sentimentos correspondidos. E no final de A escolha. E...", a voz intrometida da minha cabeça pontuou.

— Ah, cala a boca... — ouvi a porta sendo aberta atrás de mim e logo meus queridos violinos foram silenciados.

Não precisei ser vidente para saber quem era.

— Qualquer dia vai ficar surdo com esses barulhos tão altos. — meu pai entrou no quarto, era notável seu desgosto sempre que ele olhava para o teto e as paredes repletas de quadros.

— Chopin me ajuda a fazer esboços, Tchaikovsky é pra preencher, Vivaldi é perfeito para a iluminação. Não que Beethoven não seja o cara, mas depende muito da vibe sabe... — tentei fazer graça para amenizar a tensão que subia pelo meu corpo.

— É incrível como você não faz nada além de preencher rabiscos. — segurou um dos quadros "nota dez" em exposição na parede oposta à cama.

Eu já contava até cento-e-alguma-coisa mas ainda fervilhava, puxei o fôlego tentando pôr em prática os exercícios de respiração que vi na internet. O jeito foi tentar encerrar a conversa o mais breve possível:

— Tenha um bom dia no hospital Pai, pode ir, é melhor não se atrasar não é? — sorri falsamente sem mostrar os dentes.

— Estou de saída, primeiro preciso falar com você. — falou, apontando para que eu me sentasse no pufe à sua frente.

A vozinha que há pouco eu havia calado se manifestou: "O coração parou de funcionar, tente novamente em outra encarnação", ótimo.

— Sou todo ouvidos! — cruzei a perna esquerda sobre a direita e adotei uma postura desleixada.

— Gostaria que fizesse o ENEM e alguns outros vestibulares novamente. E... dessa vez, controle seus impulsos rebeldes por favor.

— Nem ferrando! — ouvir aquele absurdo me deixou em estado de alerta — ter passado na faculdade anula oficialmente minha necessidade de viver aquele sufoco de novo.

Teria anulado, se você tivesse o mínimo de juízo e eu não fosse burro o suficiente para te deixar fazer a matrícula por conta própria. Não vou cometer o mesmo erro duas vezes, você vai estudar e se esforçar bastante e, assim que sua nota for suficiente, eu mesmo cuido do resto. Já falei com a secretaria, suas apostilas chegam em oito dias.

— Você não pode fazer isso! — A indignação predominava.

— Não vou deixar que jogue sua vida fora, sei que já não posso decidir muito por você, mas ainda sou seu pai.

— E eu sou seu filho... não o paciente que segue a sua receita à risca! A vida é minha e, por mais arriscado que possa ser, sou eu quem vou estar lá trabalhando. — não sabia mais o que estava sentindo, só soube que era insuportável.

— Ainda se ilude com essa história de "profissão por amor", isso não existe, o amor vai pagar suas contas? Esses troços coloridos nem sequer aparecem em uma parede fora deste quarto. Se preferir esse caminho, tudo bem. Mas eu não vou te sustentar quando for mais um vagabundo na porcentagem de desempregados.

Senti meu rosto inundado pelo choro, raiva, tristeza; desgosto... frustração. Um lixo, inútil e impotente. Segurei as lágrimas evitando que ele tivesse mais um motivo para me rebaixar.

— Não vou sentir falta de um apoio que nunca tive. Se eu "morrer de fome" o problema é meu, a culpa é das minhas escolhas. Pode esfregar na minha cara depois, só que eu não vou aceitar isso agora.

— Sabe, Atena não seguiu o caminho que eu imaginei para ela. Mas pelo menos ela optou por algo decente

Dito isto, saiu como se puxasse o ar do cômodo com ele, fechando a porta num estrondo.

Perdi completamente o controle sobre meu corpo e minha mente, comecei a tremer e chorar, como se o chão tivesse se aberto e eu estava caindo num abismo infinito, a voz do meu pai ressoava cada vez mais alto e eu sabia que ninguém além de mim ouvia aquilo. "Por favor, que seja só um pesadelo, por favor, que não seja real.", pensei, muito antes de esgotar completamente.

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Na sala de estar, dona Lisandra já havia xingado até os primatas ancestrais de seu marido.

— CÉSAR O QUE VOCÊ FEZ? — Ela sabia que o esposo costumava exagerar, mas daquela vez ele tinha extrapolado todos os limites.

— Foi para o bem dele, querida. — César baixava o volume da voz a cada palavra.

— Isso é tudo, menos para o bem dele. Não pode fazer seus ideais afetarem a vida de outra pessoa, principalmente se essa pessoa for o meu filho.

— O filho também é meu, sabia?

— Não parece. — ela estava realmente furiosa.

— Eu só quero o melhor pro nosso garoto. Deixar que continue é como condená-lo! — César estava a ponto de implorar para que a esposa entendesse.

— Tenho certeza que ele terá alguma estabilidade antes de morrermos, ou seja, estaremos sempre aqui quando precisar. Reveja seus conceitos de condenação. — Lisandra virou-se, evitando contato visual.

— Não importa, já está feito. — ele começou a caminhar rumo à cozinha.

— Você só sai daqui quando resolver essa palhaçada.— murmurou ela.

— Como? — questionou César

— Não sei. Tente pedir desculpas, algum gesto, que tal algo com aquele seu colega de Paris? O que tem uma galeria?

— Nem pensar que eu vou mandar Apolo viajar justo quando quero que ele pare com essa bobagem.

— Estou farta dessas suas coisinhas, falta esse tanto aqui para eu pegar os papéis de divórcio. — ela fez uma pinça com os dedos deixando um pequeno espaço entre eles.

— Tá bom amor, tá bom. Estamos apenas estendendo uma tolice, mas tudo bem. Quando ele voltar fracassado vai perceber que eu estou certo.

— Apolo não vai fracassar, conheço meu menino.

— Sejamos realistas, meu bem, quais as chances do garoto? Ele só rabisca.

— Se não apertar esse botão logo, eu mesma pego seu celular e falo com o Devineaux.

E assim, a vida de Apolo estava prestes a virar de ponta cabeça.

🎨Apolo🖌 — Quinta-feira, 4 de fevereiro.

Eu não fazia ideia por quanto tempo havia dormido, olhei a hora no celular e percebi que estava anoitecendo. Minha última refeição havia sido o café da manhã e minha cara estava inchada de choro, o que explicava a náusea e a dor de cabeça. Sem querer ir até à cozinha e correr o risco de esbarrar com meu pai, a última alternativa era ligar para Atena.

— "Como você está?"— a voz dela parecia muito preocupada

— "Nada bem, tenho tanta fome que estou me sentindo mal." — eu não duvidava dela ter ouvido tudo.

— "Vou passar na Mercearia do Tio Santos pra ver se já saíram aqueles salgados que você gosta. Fica calmo, mamãe já sabe." — não sei se fico aliviado ou com medo.

— "Estou muito ferrado?"

— "Não, acho que não. Pelo menos nada além do que já aconteceu" — ouvi um barulho de riso do outro lado da linha.

— "Monet me proteja..."

— "Conversamos assim que eu chegar, okay?" — falou com a voz mais tranquila, calmante.

— "Tá." — confirmei.

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— Van Gogh do céu! Com assim "você está indo para Paris"? Achei que 1° de abril fosse só em... abril? — não fazia sentido ser uma pegadinha. Também não parecia verdade.

— Não é mentira meu bem, já até comprei suas passagens. — pisquei duas vezes quando mamãe me mostrou o print do comprovante das passagens de ida e volta.

— Por que? Desde quando? — era muito para processar.

— Porque uma das pessoas aqui presentes fez uma grande bobagem e esta é a oportunidade do indivíduo para se redimir. Desde alguns minutos atrás. — ela respondeu, eu já sabia quem era a pessoa.

— Eu sei reconhecer meus...excessos, apesar de ainda acreditar que tenho razão. — ele reclamou, Atena virou os olhos e minha mãe massageou as têmporas. Era óbvio que papai estava indo contra a própria vontade.

Uma situação repentina seguida por outra no mesmo dia, tinha alguma coisa errada ou no mínimo estranha ali. Desde quando meu pai aceitaria uma coisa dessas? Quem simplesmente "presenteia" o filho com uma viagem internacional depois de toda aquela discussão? Tinha alguma coisa por trás, e não era do tipo bom.

— Ninguém considerou que eu não sei falar francês? — tento inutilmente livrar minha pele.

— E aquele curso de 4 anos que fez com sua irmã? — Droga! Eu usava como desculpa para participar da oficina de artes da escola. Faltei quase todas as aulas.

— Faz...muito tempo. Não lembro de muita coisa. E tem a questão da estadia, alimentação...

— Lembra da minha amiga Catherine? Eu consegui um quarto para você na pousada dela. Não se preocupe com alimentação, seu pai adquiriu o pacote completo! — mamãe sorria tanto que parecia o gato de Alice no país das maravilhas enquanto meu pai respirou fundo ruidosamente.

— Mas... — tentei contra-argumentar novamente, quando Atena me interrompeu.

— Nada de "mas", você ganhou quinze dias em Paris e ponto! Custa só aceitar? Qualquer coisa você me liga e eu te ajudo a se comunicar. — minha irmã me lançou um olhar ameaçador enquanto apoiava as mãos em meus ombros de uma forma intimidadora.

Eu jamais convenceria elas a me deixarem ficar. Talvez, com muita sorte, teria tempo de encontrar um imprevisto antes de embarcar.

— Tá bom, eu aceito. Quando é o voo? — abri o melhor sorriso, sem querer parecer que estou tramando alguma coisa.

— Amanhã! — mamãe já me empurrava em direção ao meu quarto.

— Como é que é? — será que estavam loucos?

— Tá, tá, eu sei que é muito corrido fazer as malas em tão pouco tempo, mas relaxa que a mamãe ajuda e sua irmã também.

— Não lembro de ter oferecido ajuda... — pontuou Atena, sarcástica como sempre.

— Tenho alguma escolha? — Fiz minha melhor cara de cachorro sem dono.

— Não. — responderam juntas.

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Assim que a esposa e os filhos saíram, César ligou novamente para seu contato francês. Apesar de acreditar no insucesso do caçula, prevenir sempre fora melhor do que remediar.

J'ai encore besoin d'une petite faveur de ta part, Louis. (Preciso de mais um pequeno favor seu, Louis.)

— Si c'est à ma portée... (Se estiver ao meu alcance...)

— Assurez-vous qu'il ne veut plus tenir un pinceau dans sa vie. (Garanta que ele nunca mais vai querer segurar um pincel na vida.)

— Considérez que c'est fait, mon ami. (Considere feito, meu amigo.)

— Bonsoir, Devineaux. (Boa noite, Devineaux.)

— De même, Rodrigues. (Igualmente, Rodrigues.)

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🎨Apolo🖌— Sexta feira, 05 de fevereiro.

Eram 3 da manhã, mas não conseguia dormir. A velha companheira insegurança estava de volta, trazendo a ansiedade como aliada. Fui sorrateiramente até o quarto da minha irmã, como sempre fazia quando era criança e jurava existirem monstros no escuro.

— Atena...

— Ahmm...

— Não consigo dormir. — me senti

— Eu consigo, é só me deixar em paz. — ela pôs o travesseiro sobre a cabeça e virou-se de costas para a porta.

— Em nome de Da Vinci, Tena! — parecia que ela estava hibernando

— Polo? Ah, desculpa ai... — coçou os olhos e acenou para que eu entrasse — estava estudando turco hoje então pensei ter invocado alguma coisa. Quer um chazinho de camomila? Maracujá?

— Credo, detesto chá. E meu problema não é falta de sono, mas toda vez que tento pegar no sono vem mil e uma coisas na minha cabeça e meu coração dispara mais rápido que um trem.

— Então vem cá, deixa a Nana fazer uma limpeza na sua cabecinha. — aquela frase trouxe uma nostalgia tremenda do jeito que ela sempre me fazia deitar a cabeça em seu colo e acariciava meus cabelos enquanto eu dizia tudo que me vinha à mente.

— Não vai dar certo, eu não tenho nada realmente bom pronto, não vai dar tempo de fazer nada quando chegar lá, e se eu perder o voo? E se o senhor Devineaux odiar meu trabalho? E se eu me perder, entrar em um beco e, sei lá, for sequestrado? Tem uma enorme chance de eu passar vergonha, e eu não quero ser um médico...Tena, papai vai usar cada oportunidade pra lembrar do quanto eu sou imbecil...até mesmo o avião pode cair! — comecei a suar frio outra vez.

— É tanto absurdo que meu tímpano quer sangrar. De onde você tirou essas burrices? — ela parou de alisar meus cachos para puxar minha orelha.

— Ai! Ansiedade, paranóias e Google? — soaram como fontes obviamente confiáveis.

— Escute bem o que eu vou dizer, nem ouse me fazer gastar meu português à toa. Você é mais especial e talentoso do que imagina Apolo. Só precisa acreditar que consegue e cada ação sua vai colaborar para isso. Se não tiver nem um pouquinho de fé em si, eu; mamãe; a vovó; seus professores... e muita gente também, vamos todos confiar por você. Sua essência é única, tão diversa que se reflete nos seus olhos. A chance de um avião cair é mais ou menos uma em 11 milhões, e não, ninguém vai querer te sequestrar em Paris.

— Ei, eu sou muito sequestrável! — precisei brincar para evitar as lágrimas que ameaçavam sair.

— Besta é um adjetivo melhor... — brincou ela.

— Alguém aqui pediu uma despedida em grande estilo? Esse tanto de brigadeiro não vai se comer sozinho! — Atena foi interrompida quando mamãe invadiu o quarto toda enrolada em pisca-piscas movidos à pilha, enquanto tentava levar um monte de almofadas; uma bandeja de guloseimas e refrigerante.

Lancei um olhar acusador para minha irmã, que se defendeu com: "Sei digitar sem olhar" e um sorriso altivo.

Com aquelas duas, acabei esquecendo os demônios que o assombravam. Foi como se aquilo realmente antecedesse algo grandioso em sua vida, uma voz do seu subconsciente sussurrava que nada seria como antes.

— Se divirta, e não seja preso. — minha mãe falou, rindo.

— Que calúnia! — fingi indignação e ri junto com elas.

— Vê se me arruma uma cunhadinha ou cunhadinho. A gente já combinou que eu vou ser a tia rica e legal, lembra? Se a criança tiver dupla nacionalidade eu vou ficar um nojo. — só minha irmã mesmo pra fantasiar aquilo.

— Santo Michelângelo, garota! Me deixa! Vou tentar a sorte com o Senhor Devineaux e rezar para que o pai mude de ideia quando eu voltar.

— Você vai estar em Paris! Se lembre de aproveitar também. — Atena falou com a boca cheia de sorvete.

— Concordo — mamãe pegou outra bolinha de brigadeiro.

— Até parece que vou estar na Cidade da Luz por 15 dias sem desfrutar de um bom vinho. — falei, enfiando a colher no pote. — sou lerdo, não burro.

A viagem já não parecia mais tão assustadora, cheguei a ficar animado até. Continuamos rindo, conversando e vendo alguns episódios de uma série qualquer até pegarmos no sono.

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"Com o voo marcado para às 08:30, eu chegarei ainda hoje às 20:30 no horário de Brasília. Em Paris, será meia noite. Mais ou menos..."

Repassei na mente tudo o que faria durante a estadia em território francês. "Uso a primeira semana para criar algo inspirado na atmosfera parisiense e depois mando a tela para análise do senhor Devineaux.", ouvi alguns podcasts em francês — como se aquilo fosse adiantar para um falante nível "bonjour" e "merci" — o restante decidi contar com a sorte.

Terminava de amarrar os cadarços dos tênis quando meu pai invadiu de novo meu quarto.

"Lá vem..." resmungou o subconsciente.

Ele olhou para os lados e fechou a porta com cuidado para que não fizesse ruído algum, andou até mim com uma fúria contida, fiquei preso contra a parede apenas com a força do medo. Parecia que estávamos em um filme, terror misturado com ação, nunca tinha visto meu pai assim...nervoso. Ele aproximou com as mãos para trás e sussurrou olhando em meus olhos:

— Se for bem, conversarei com a diretoria e nunca mais me meto na sua vida. Se falhar, começará a estudar para um novo vestibular assim que chegar e não vai nem se dar ao trabalho de contestar.

— Eu vou me dar bem, sua opinião mesmo que dita mil vezes jamais se tornará verdade. — eu tremia, mas minha voz saiu confiante

— Prove que consegue resolver alguma coisa sozinho, nem sua mãe nem sua irmã vão saber dessa conversa. Entendido? — ele sorriu, a visão do rosto tinha um ar triunfante.

— Prove que sabe tomar conta da própria vida e me deixe em paz, pai. — agradeci mentalmente pelos meus centímetros a mais quando ele ergueu o rosto novamente para olhar em meus olhos.

— Como quiser, filho. — e se afastou da mesma forma que apareceu, era tudo apenas pra me tirar do eixo.

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Mamãe e Atena me acompanharam até hora do embarque, a ausência do meu pai não fez falta alguma.

— Não vou te desejar sorte, eu sei do seu potencial filho. Espero que faça uma boa viagem.— minha mãe me abraçou apertado.

Atena se jogou em cima de mim, abraçando com força e apertando minhas bochechas.

— Meu pequeno está tão grande...porcaria de sentimentalismo! — riu entre as lágrimas — Te amo polinho. — Era um péssimo apelido, mas meus olhos estavam marejados mesmo assim.

Na entrada do corredor, ouvi um grito que com certeza era da totalmente indiscreta e sem-vergonha da minha irmã:

— Não esqueça de trazer minha cunhadinha! — fingi que não a conhecia, em seguida, respondi por mensagem antes de desligar o celular.

"Essa vergonha tu passou no crédito ou no débito?😓🤦🏻"

"Amor, eu pago é à vista 😎😘?", recebi a mensagem dela com uma figurinha rindo.

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Dormi o voo inteiro num sono tão pesado que a comissária teve de me sacudir quando chegamos, nem o pouso turbulento venciam o cansaço físico-mental de virar uma madrugada.

Quando sai da aeronave, o frio avassalador foi como um tapa na cara. Como, dentre tantos detalhes, ninguém se atentou sobre o clima? Eu sabia que tinha casacos na mala, mas estava vestindo apenas uma camisa comum e uma calça jeans, quase congelei. Corri para um táxi e dei um papel com o endereço da pousada de Madame Catherine.

Pela janela do quarto, avistei apenas a paisagem cinza e morta. Naquele momento, a coragem e a confiança que me levaram até ali haviam sumido.

🖼 Mariénne📚 — Sábado, 12 de fevereiro.

"Por que a manhã insiste em chegar tão depressa?", resmunguei enquanto me obrigava a levantar e desligar outro alarme, o terceiro em menos de quinze minutos. Foi um esforço hercúleo abrir os olhos, minha higiene matinal seguiu no automático. O dia estava ainda mais frio que ontem, a portinha de vidro que dava para a varanda estava embaçada e rendada com cristais de gelo. O inverno não costumava ser tão rigoroso, todavia aquela manhã estava perfeita pra dormir se eu não estivesse a caminho de aulas extras.

Preparei um chá de camomila e enchi uma garrafa térmica com chá de alecrim. Fico estressada e sem um pingo de filtro quando não durmo o suficiente e acho que as duas horas de sono não contariam como "ideal". Se tudo corresse bem, a ausência do descanso passaria despercebida.

Vesti um conjunto de inverno escuro e pus o pesado casaco preto com luvas e um gorro da mesma cor, minha pele escura dando uma aparência monocromática ao visual.

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No período da tarde, saí da faculdade com passos rápidos quase correndo, não posso me atrasar para o estágio de meio período na D'Auvergne, uma galeria muito estimada em Paris que fazia leilões anuais famosos em toda Europa por lances altíssimos. Meu trabalho era produzir a descrição e controle de qualidades das obras para que Louis Devineaux, meu chefe e gerente financeiro da galeria, as apresentasse aos compradores. Para uma estudante no segundo ano de história da arte, era meio caminho andado para o sonho de gerenciar minha própria galeria.

O prédio fica a vários quarteirões da minha faculdade, após cerca de dez minutos de espera, um táxi parou perto de mim e segui apressada sendo empurrada por uma outra garota que "rouba" o veículo. Sem sequer perceber, estou levantando o dedo do meio para a traseira do carro e acabo me obrigando a ir a pé, às 04:04 da tarde. Se eu teria que justificar uma chegada tardia, ao menos ela seria significativa.

Entro tentando disfarçar os 28 minutos de atraso, mas encontro o senhor Devineaux na porta da salinha que eu chamava de escritório.

— Mais um atraso como este e você estará dispensada, senhorita

— Perdoe-me, Sr. Devineaux. — optei por reduzir as palavras para não acabar falando bobagem

— Gostaria de pedir que revisasse as avaliações, o lucro caiu mais de 26% dessa vez.

— Como é possível? Eu fiz a comparação, os valores foram os mais altos nos últimos quatro anos!

— Não descarto a possibilidade de equívocos seus, garota. — que insuportável, ele é só cinco anos mais velho que eu! E tenho plena certeza que olhei tudo certo. — e incompetência não é algo que aprecio em meus empregados.

"Respira Mariénne, falta muito pouco para ir embora.", tentei me conscientizar enquanto virava um grande gole do chá já frio por conta das várias vezes que eu havia aberto a garrafinha.

— Sim, senhor Devineaux.

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Finalmente o relógio apitou. Meu expediente acabou e prometi a Louis que pagaria os 17 minutos chegando mais cedo outro dia. Enquanto recolhia minhas coisas, me parabenizando pelo autocontrole, um homem aparentemente de meia idade e muita gordura sobressalente adentra minha sala num rompante.

— A senhorita é a responsável pela venda das pinturas?

— Não senhor, eu apenas as avalio e repasso o valor estimado ao monsieur Devineaux.

— E não é a mesma coisa? Não me importo. Quanto custa aquele quadro na entrada? — "mantenha a calma, seu artigo foi citado no Le Monde, lidar com um idiota não pode ser tão difícil quanto isso"

— Não está à venda. Somos uma galeria, fazemos leilões de peças uma vez ao ano. Terá de esperar até janeiro do ano que vem.

— Não quero saber de esperar leilão algum, tenho 15 milhões de euros em cheque, pode conferir. Vou levar agora! — olhava para os lados impaciente.

— Monsieur, compreenda, não vendemos pinturas aqui. A D'Auvergne é uma galeria com alto renome mundial. Por favor, respeite o regulamento.

— Quanto você quer para calar a boca? Posso aumentar para 20 milhões, 5 são seus.

— Não aceito suborno, venda ilegal de arte é crime.

— Todo mundo tem seu preço, mocinha, 30 milhões! Não seja estúpida...

"Pelo menos eu tentei", pensei jogando o autocontrole pelos ares.

— Como eu já havia dito inicialmente, senhor, esta é uma ga-le-ri-a. — Peguei o celular e digitei a palavra no dicionário virtual — De acordo com o dicionário oficial de l'Académie française, significa um lugar utilizado para EXPOSIÇÃO de quadros e outras peças de arte. Quer que desenhe? — senti meus olhos revirarem pela segunda vez.

— Quem é o gerente dessa espelunca? — esbravejou o homem.

— Uma espelunca não valeria seu tempo e nem a merda do seu dinheiro, não acha? — eu nem tinha percebido que estava rindo até olhar para a carranca no rosto do meu chefe e perceber a burrada que fiz.

— O que está acontecendo aqui? — O tom do Senhor Devineaux era rígido e irritadiço.

— Sua mão de obra aqui é péssima, Louis. É isso que está acontecendo.

— Mil desculpas, Argent! — meu chefe pôs a mão nas costas do homem e o guiou pela escadaria em direção à sua sala. — Perdoe a estagiária. Venha, vamos conversar em meu escritório. Baudelaire, espere aqui.

Alguns minutos depois, vi o homem seguir para a saída, ele parou e virou para a minha direção, acenou levemente com o chapéu e deu um sorriso estranho que pareceu ser de satisfação. Ouvi o senhor Devineaux me chamar nos instantes seguintes: "Baudelaire, venha imediatamente!"

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— Desrespeito, grosseria, vocabulário de baixo calão, preciso citar mais ou já percebeu o quão péssima foi sua conduta? — meu chefe estava em pé, apoiado em sua escrivaninha. A grande diferença de altura, mesmo que eu não fosse baixa, me fazia ter de olhar para cima.

— Sinto muito, senhor... não foi minha intenção. Eu...eu... — sequer sabia como explicar o ocorrido, só queria sumir dali.

— Você o que? Tirou o dia para ser irresponsável? — ele cruzou os braços.

"Burra, burra, burra! Mil vezes burra!", me xinguei mentalmente sem saber como ia sair dessa sem perder o emprego.

— Não precisa vir amanhã, está dispensada. A sua remuneração deste mês será entregue como indenização ao senhor Argent, exceto pelo desconto do atraso.

— Por favor, não! — Eu tinha me dedicado muito àquele estágio. Cada plano do meu futuro incluía ele como peça principal do meu currículo.

— Maurice era um dos maiores financiadores daqui. Se eu não o tivesse convencido a relevar, a D'Auvergne corria o sério risco de beirar a falência.

— Mais uma vez, eu sinto muito. Nunca tinha visto o nome do senhor Argent nos registros.

Como já disse previamente, não tolero incompetência. Passar bem senhorita Baudelaire.

Eu não perderia aquela oportunidade, pelo menos não sem lutar.

— Espera, e se...se eu conseguir reverter essa crise? Se eu encontrar algo valioso o suficiente para compensar o déficit? — não constava nada sobre perda monetária, mas ele quem era o gerente financeiro, não eu — O senhor daria conta de fazer a venda ano que vem?

— Cada um com suas habilidades, pirralha. Mais valioso que o nosso acervo apenas itens de museu ou algum artista exclusivo. Não tente dar um passo maior que a perna.— Soou como um desafio, e eu queria fazê-lo pensar duas vezes antes de duvidar de mim novamente.

— Vou encontrar um nome autêntico para esta instituição, Senhor Devineaux. Em alguns meses poderá lançar como publicidade e...

— Uma pequena correção: você tem uma semana. Caso contrário espero não vê-la mais aqui.

— Mas isso é impossível! — nem se eu acabasse esbarrando em alguém qualificado, uma semana nunca seria suficiente para fazer a negociação.

— Não é problema meu.

Durante a discussão, não havia notado que eu tinha retrocedido involuntariamente para fora da sala. Meu "quase-ou-futuramente-ex-chefe" bateu a porta de madeira fazendo um estrondo ressoar pelo segundo andar. Me recusei a desmoronar ali mesmo, e me apressei a voltar para casa da mesma forma que cheguei. Talvez o ar gelado e fresco me revigorasse.

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Usar o tempo da caminhada para pensar não tinha sido uma boa ideia. Quanto mais eu buscava soluções, mais a incerteza e o medo se apossavam de mim. Decidi ligar para Nabi, minha única e melhor amiga. Ela com certeza me ajudaria com sua extrema sociabilidade, enquanto eu avaliaria possíveis candidatos. Mas a faculdade dela já havia iniciado o recesso de inverno e ela aproveitou a folga para ver os pais em Seoul.

— Énne! Quanto tempo. — a voz dela estava animada como sempre

— Nos falamos ontem, Nana. — soltei um suspiro.

— Que voz é essa? Quem morreu? — o tom passou de alegre para aflito imediatamente.

— Minha dignidade, eu acho.

— Quer falar? — Nabi perguntou, hesitante. Ela sabia que eu tinha dificuldade para falar dos meus problemas.

— Fui...teoricamente...despedida.

— Teoricamente?

— A menos que eu arrume uma arte autêntica, valiosa e feita por alguém que aceite um contrato para trabalhar exclusivamente na D'Auvergne...no prazo de uma semana, contando com hoje.

— Como assim? Uma semana? Como raios você se meteu nessa furada? Conta isso direito Énne.— eu podia vê-la pondo a mão no rosto.

— Então, há pouco mais de cinco minutos...

Comecei a contar para ela o que havia acontecido, senti-me ainda mais patética ao narrar meu comportamento absurdo. Penso que, se eu fosse Louis, não daria sequer essa oportunidade de redenção por mais impossível que ela fosse.

— De todas as pessoas do mundo, você é a última que eu imaginaria numa situação dessas, mas de verdade,estou orgulhosa por ter se permitido expressar suas emoções.

Sempre foi típico de Nabi ressaltar o lado bom das coisas e tentar me fazer "sentir a vida", certamente aquela não era a melhor oportunidade. A última coisa que eu queria naquele momento era experimentar emoções.

— Depois de tudo isso, com o tamanho da enrascada que me meti, você me...parabeniza?!

— Óbvio! Se eu estivesse aí, te ajudaria a virar essa cidade do avesso. Vai dar certo Énn, e se não der é porque foi melhor para você.

— É a melhor oportunidade da minha vida, como perder isso pode ser melhor? Não tem como ser otimista o tempo todo, Nabi.

— Não é ser otimista, é ter esperança. Você nunca precisou do Louis para se destacar, ele quem precisava de você porque a única habilidade dele é contar dinheiro e iludir ricos superficiais. No fundo sabe que tenho razão. — Era muito difícil convencê-la e eu não tinha ânimo para argumentar.

— Tudo bem, você venceu. Vou para casa, fazer um cházinho quente, ler um livro triste e dormir até o meio dia amanhã. — A única verdade em minhas palavras era o fato de que eu iria para casa.

— Isso aí garota! Menos que o merecido. Quando eu chegar vamos sair juntas nem que eu tenha que te arrastar.

— Mais fácil eu te prender em casa comigo, não?

— Tanto faz. An-nyeong-ha-se-yo! (Tchau!)

Adieu. (adeus)

Por mais oposta que Nabi e eu fôssemos, nossa amizade funcionava. Por alguns minutos ela me fez esquecer a decepção que eu sentia de mim.

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Guardei meu celular na bolsa e fui procurar as luvas, revirei cada bolso e não as encontrava até que...

Ah, merde! ( Ah, m****!)

Lá estava eu, caída no meio do campo de Marte, ensopada de vinho e... em cima de algo, pior, de alguém.

🎨Apolo🖌— Sábado, 12 de fevereiro.

Já fazia uma semana que eu havia chegado em Paris, quase não tinha saído do quarto durante seis dias, vidrado no IPad para que meu trabalho fosse impecável.

Eram minhas melhores pinturas, e ficariam ainda mais bonitas quando passadas para a tela. Eu estava orgulhoso e voltei a me sentir confiante quando passei pela fachada moderna da Galerie D'Auvergne. Não liguei para Atena para que fosse uma surpresa, mais uma vez eu estava à mercê da sorte, com meu inglês terrível e um francês pior ainda. Ao menos eu entendia o contexto geral.

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Is this what you have to show for me? isso que você tem para me mostrar?) — eu não soube se a face do senhor Louis era de nojo ou tédio, mas tinha certeza que não era coisa boa.

— O-o-o..."yes" m-m-m... "monsieur".(Sim,senhor) — que ótimo, agora estava gaguejando em um idioma no qual eu já era incompreensível.

A child would make something like this, probably choosing harmonious colors and, with some random technique, get a better result. Maybe I should rate kids. (Uma criança faria algo como isso, provavelmente saberia escolher cores harmônicas e, com uma técnica aleatória, obteria um resultado melhor. Talvez eu devesse avaliar crianças.)

Aquelas palavras me atingiram de um modo muito parecido com quando meu pai e eu brigávamos. Mas aquele homem não tinha nada a ver com meu pai, era a prova imparcial de que ele tinha razão quando falava que tudo o que eu fazia eram rabiscos.

Nothing to say young man? (nada a dizer, meu jovem?) — perguntou, seco — well, you can leave now. Come back in... a week, only if you get something way more acceptable than this. (Bem, pode sair agora. Volte em até... uma semana, apenas se tiver alguma coisa muito mais aceitável que isso.)

As palavras estavam presas em minha língua, acenei com a cabeça em confirmação e soltei um "merci" quase inaudível. Ele me entregou meu iPad e saí o mais rápido que pude sem parecer estar correndo. Andei sem saber para onde e peguei o celular para conversar com minha irmã, vi que tudo tinha acontecido em menos de dez minutos. Minha vida e meus sonhos, arruinados como se não fossem nada, como se nunca tivesse sido alguma coisa.

Acabei não ligando para Atena, ela diria a mamãe e as duas ficariam preocupadas por minha causa. Meu pai acabaria sabendo também. Se serei obrigado a obedecer meu pai, que ele passe ao menos mais uma semana me mantendo aqui sem saber da verdade.

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Andei até chegar na praça da torre Eiffel, algumas pessoas andavam apenas atravessando. Alguns outros turistas tiravam fotos com o monumento que estava com as luzes acesas. Mesmo sendo uma atitude provavelmente incomum no inverno, estendi uma toalha que achei na cozinha do quarto e espalhei algumas guloseimas junto com uma garrafa de vinho tinto.

Tudo aquilo seria para comemorar, na realidade, o chão gelado era só mais uma forma de lembrar minha infelicidade. Coloquei os AirPods no ouvido e deixei o volume no máximo enquanto tocava Gentileza, de Marisa Monte.

Pus vinho na taça e tomei um gole, as vozes vieram com tudo na minha cabeça: "Troços coloridos", "uma criança faria melhor"... talvez meu pai esteja certo, talvez eu apenas seja orgulhoso demais para admitir. Limpei a lágrima solitária da minha bochecha e pisquei pra afastar as outras que insinuavam aparecer, fechei os olhos com força tentando buscar refúgio no vazio...até ser atingido por algo, na verdade, alguém.

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🖼 Mariénne📚

Fiquei em choque, minha mão escorregou no tecido úmido e minha testa acabou batendo no nariz do rapaz. Ele segurou na parte superior dos meus braços e me empurrou para o lado desajeitadamente. Com certeza eu não havia sido a única a ouvir o estalar de vidro. Sob minha perna esquerda, se encontrava um iPad com a tela em frangalhos, molhado de vinho também.

Opa! Pardon. (Desculpa) — o sotaque dele era evidente, e estranho.

Pas de problème, je vais bien. (Sem problemas, estou bem) — senti uma tremenda vontade de sumir.

Ele puxou o celular do bolso — por sorte estava intacto — e virou para minha direção.

Parle ici, s'il... vous plait. (Fale aqui, por favor) — a voz dele soava insegura. Me senti um pouco mal por achar engraçado. Em minha defesa, as caretas que ele fazia eram hilárias

Désolé pour l'accident, je paierai pour réparer votre tablette. ( Desculpe pelo acidente, vou pagar pelo conserto do seu tablet.) — tive que me aproximar ainda mais.

Merci, je ne suis rien sans lui. Et ne vous inquiétez pas, comme vous l'avez dit vous—même, c'était un accident.(Obrigado, eu não sou nada sem ele. E não precisa se preocupar, como você mesma disse, foi um acidente.) — ele sorriu, realmente era muito estranho conversar por meio de uma voz robótica.

Donnez—moi votre numéro de téléphone, je vous dirai quand je serai prêt. (Me dê seu número telefone, vou avisar quando estiver pronto.)

Peguei meu celular e salvei o número dele como "tablet tourist" (turista do tablete). Nossos olhares se encontraram por longos e desconfortáveis segundos, ir embora havia se tornado uma questão de necessidade. Peguei o tablet e pus na única sacola plástica limpa, enquanto ele arrumava a "cena do crime" virei—me de costas e saí a passos rápidos.

EI! Attendre! Tu n'as pas dit ton... nom. (Ei! Es...pera! Você não disse seu...nome.)

Ele gritou metros atrás, provavelmente lendo a frase do tradutor. Fingi que não o tinha ouvido, aproveitando sua dificuldade em falar para fugir como a covarde que sou.

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Cheguei em meu apartamento já perto das nove da noite. Não tinha planejado tomar banho novamente, mas o cheiro adocicado de vinho havia grudado em minha pele tanto quanto em minhas roupas. O relógio mostrava 10:47 da noite quando saí do banheiro, o vapor d'água ao meu redor, todo o tratamento que fiz ontem em meu cabelo tinha sido perdido. Me olhei no espelho e lamentei pelos cachos que não ficariam tão bonitos como estavam pela manhã.

Mesmo que o dia seguinte fosse domingo, eu ainda acordaria cedo. "Como se não bastasse ser dispensada do melhor estágio possível e ter minha carreira — que ainda nem existe — dependendo de um ser humano cuja existência é improvável, ainda tinha me metido em um acidente facilmente evitável com um turista, o qual precisarei indenizar pela minha falta de atenção. Parabéns Mariénne! O que seu pai diria dessa bagunça que você mesma fez na sua vida?"

Respirei fundo e notei o quão louca deveria ser por conversar com meu reflexo. A pergunta ainda ecoava na minha cabeça e eu sabia que precisava encontrar algo para fazer antes que o pânico tomasse conta.

Refiz trabalhos da faculdade que seriam entregues em mais de um mês, tomei três xícaras de chá, tentei meditar, li 150 páginas de um livro sobre arte conceitual... cinco horas haviam se passado, e eu não conseguia dormir. Me obriguei a deitar e fechar os olhos, assim que o fiz a pergunta encontrou espaço em meus pensamentos. "O que Papa diria?" Provavelmente nada. Imagino que, se meu pai ainda estivesse vivo, ele me abraçaria e me diria para chorar até que eu mesma decidisse quando pararia. Ele afagaria meus cabelos e falaria que não é minha culpa, me prometeria que tudo ia ficar bem, era o único em quem eu realmente acreditava quando dizia isso. Não limpei nenhuma das lágrimas mesmo quando pingavam na blusa, envolvi meu tronco com com os braços na inútil tentativa de lembrar o calor do abraço dele. "Não tema nada neste mundo além de esquecer do que é capaz", era o que sempre dizia. Mas Papa não estava ali, há muito tempo eu sabia que nunca mais sentiria seu cheiro tão familiar ou seria confortada por seu riso contagiante.

Ouvi o sino de alguma igreja próxima badalar cinco vezes, meus soluços ficavam mais brandos, fechei novamente minhas pálpebras enquanto os primeiros raios de sol surgiam pelo vão da janela. "Eu não consigo, Papa, estou perdida. Por favor, me ajude.", sussurrei.

🎨Apolo🖌— Domingo, 13 de fevereiro.

"Pelo amor de Romero Britto! Quando foi que programei tantos alarmes?", desliguei provavelmente o quinto em menos de uma hora. O que era estranho pelo simples fato de que eu não tinha o costume de usar alarmes, muito menos aos domingos. Resolvi olhar o celular, convencendo meu subconsciente de que logo voltaria a dormir, o visor mostrava que ainda era uma da tarde e eu tinha tempo de sobra. quase derrubo o aparelho ao ver que eu tinha mais de seis chamadas perdidas. Cinco apenas de um número desconhecido... "a moça da torre Eiffel!", lembrei na hora. Abri as notificações das mensagens e o mesmo número havia entrado em contato mais de três horas atrás.

"Me encontre às duas em frente à Sorbonne. Cinquième arrondissement. (Bairro 5)" — 08:47 a.m

"Não se atrase" — 08:48 a.m

"São 2:10, onde você está?" — 09:10 a.m

"Segue rota partindo da torre" — 09:15 a.m

"Pretende aparecer ou terei que entregar sua residência?" —09:30 a.m

"Vou embora, estarei na livraria Giraud Baudelaire se decidir buscar seu tablet. Não vou mandar localização dessa vez, encontre sozinho." — 10:08 a.m

Droga, o fuso horário. Paris estava cinco horas à frente do Brasil, o que significava...porcaria, são seis da noite! "Que cavalheiro da sua parte Apolo! Se atrasar mais de três horas. Você vai deixar uma bela imagem do Brasil.", meu "eu interior" nem se deu o trabalho de ser sutil.

A temperatura era de três graus lá fora, mesmo o aquecedor não parecia dar conta. "Agora faz sentido os europeus não curtirem banho", pensei enquanto tentava me enfiar em um terceiro casaco. Não tive tempo para lanchar antes de sair, segui direto para o endereço que encontrei no Google maps.

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Désolé monsieur, mais ce n'est pas l'adresse que vous recherchez. (Desculpe senhor, mas este não é o endereço que procura. — eu gostaria de não ter posto aquela declaração no tradutor.)

Pouvez-vous me dire où se trouve la librairie Giraud Baudelaire? (Por favor, sabe dizer onde fica a livraria Giraud Baudelaire?) — Tentei a sorte, Paris poderia ser muito maior que São Genésio, mas ainda era uma cidade pequena.

Non, bonne journée. (Não, tenha um bom dia.)

Merci, bonne journée. (Obrigado, bom dia.) — sai cabisbaixo.

Salvei o número das mensagens como "moça do tombo", já que ela preferiu não se identificar.

Mandei uma mensagem quase implorando pelo endereço, fui em uma padaria que encontrei do outro lado da rua enquanto esperava a resposta. Meu coração saltava cada vez que ouvia o "plim" da notificação, finalmente ela respondeu, meia hora depois de ter visualizado.

— " 37 rue de la Bûcherie, 75005."

— "Merci, madam." (Obrigado senhora)— tentei parecer o mínimo educado.

— "Mademoiselle." (Senhorita) — tudo bem, não saiu como eu esperava.

Como eu ainda estava na padaria, resolvi comprar alguns doces bonitos que vi na vitrine, quem sabe assim eu me redimisse. Comprei dois cafés básicos e segui o trajeto do Google Maps, levei quase meia hora para chegar na livraria. Era um lugarzinho bem antigo, escondido entre os becos estreitos da região. Olhei o caminho percorrido, me dando conta que estava apenas a dois quarteirões de distância.

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🖼 Mariénne📚

— Não esqueça de trancar a livraria ma chérie, tome cuidado com a fechadura, está muito frágil.

— Pode ir tia Mel, logo eu irei também. — mal prestei atenção no que ela disse. Minha tia Mélodie, irmã de papai, sempre conseguia ser ainda mais cuidadosa — para não dizer paranoica — do que eu.

Pretendia esperar pelo moço por apenas mais vinte minutos, incrivelmente, ele bateu à porta no momento que o cronômetro apitou. Muito mais agasalhado do que estou acostumada a ver, estendendo o celular para mim enquanto o aplicativo traduzia um pedido de desculpas bastante esfarrapado. Ao final do monólogo robótico, ele olhou para mim e desviou os olhos soltando um "désolé" (desculpa) baixinho. O vento frio proveniente da porta escancarada me causou arrepios e temi não ter escondido minha irritação. Tudo culpa da falta de sono.

En plus d'arriver en retard, ne faites même pas attention à la température, argh! (além de chegar tarde, nem presta atenção na temperatura, argh!) — resmunguei baixinho me aproveitando do fato dele não me entender.

Le micro était allumé.(o microfone estava ativado.) — percebi seu riso irônico.

Engoli em seco, agradecendo meu tom de pele por esconder o rubor do constrangimento.

Procurei o pendrive na bolsa — "qual era o dele mesmo? Certo, o vermelho. O laranja é o dos artigos desse semestre", relembrei o que o técnico da loja disse — e o pus em sua mão. Faltavam quinze minutos para às oito da noite, no mundo em que vivo, estar nesse horário sozinha com um desconhecido do gênero masculino é quase uma sentença de morte.

Pour l'instant je n'ai que vos fichiers, il a fallu quarante-huit heures pour nettoyer et remplacer les pièces endommagées. (Por enquanto tenho apenas seus arquivos, foi necessário um prazo de quarenta e oito horas para a limpeza e troca de peças danificadas.)

Oui. (Sim) — ele respondeu.

Desviei do rapaz em direção à porta, minha função estava completa, a fechadura estava um pouco emperrada, quase tive um ataque cardíaco quantos ele tocou meu ombro. Novamente ergueu o celular:

J'ai apporté des collations en guise d'excuse. (trouxe alguns lanches como pedido de desculpas.) — estendeu o pacote de papel e a bandeja com dois copos para minha direção.

Merci, mais je refuse. (Obrigada, mas recuso.) — "nunca aceite doce de estranhos" mamãe sempre dizia.

Je pense que je sais ce que vous pensez, je suis vraiment désolé. (Acho que sei o que está pensando, sinto muito mesmo.)

Pondo as sacolas em cima da mesinha, adentrou na livraria como se já tivesse ido ali diversas vezes. segui atrás dele com medo por estarmos sozinhos, todavia ainda mais temerosa por cada item de extenso valor presente na livraria.

Hey! Monsieur! N'avons-nous pas fini ce que nous devions faire? (Ei! Senhor! Não já encerramos o que tínhamos a fazer?)

— Je suis désolé pour mon manque de manières. Ma sœur est architecte et adore les vieux bâtiments, je fais des photos pour elle. (sinto muito por minha falta de modos, moça. Minha irmã é arquiteta e adora construções antigas, estou tirando algumas fotos para ela.)

— Oh, oui. (Ah,sim.)

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Foram cerca de quarenta minutos, ele andando pelos corredores e eu em seu encalço, temendo por cada item valioso ali. Finalmente, se dirigiu para a saída, mas ao tentar abrir a porta, virou—se para minha direção acenando negativamente, logo entendi que a porta não abria.

Lembrei sobre o aviso de minha tia em relação à fechadura, provavelmente sobre estar difícil de abrir, usei o peso do meu corpo sobre o puxador antigo e levemente enferrujado. O metal rangeu e estalou, com parte da peça ficando em minha mão.

Non, non, non! (Não, não, não!) - Alarmei-me.

Ele se aproximou e inclinou o corpo sobre a porta, antes que concluísse o movimento, adverti:

Qu'est-ce que tu fais? (o que raios está fazendo?) — ouvi um resmungo confuso e puxei o telefone em sua mão, apertei o botão do microfone e repeti. Ele digitou algo e a sua "solução" pôde ser ouvida.

— Je vais essayer d'enfoncer la porte, tu peux m'aider si tu veux. (Vou tentar derrubar a porta, pode me ajudar se quiser.)

Devenu fou? Le bâtiment est vieux, la structure ne pouvait pas tenir. Au moins une partie du plafond tomberait au-dessus de nos têtes. (Enlouqueceu? O prédio é antigo, a estrutura não aguentaria. Pelo menos parte do teto cairia sobre nossas cabeças.)

Et si on faisait semblant de ne pas être sous un piège mortel géant? (E se fingirmos não estar debaixo de uma armadilha mortal gigante?)

Je vais appeler les pompiers. (Chamarei os bombeiros) — avisei.

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S'il vous plaît, mademoiselle, calmez—vous, donnez votre adresse et tout sera résolu. (Por favor senhorita, mantenha a calma, diga seu endereço e tudo será resolvido.)

— Cinquième arrondissement, 37 rue de la Bûcherie, 75005.

Désolé, le service n'est pas disponible pour cette région. (Sinto muito, o serviço está indisponível para esta região.)

Comme ça? Moi et mon... hum... ami, nous sommes coincés! (Como assim? Eu e meu...ahm, amigo, estamos presos!)

Une grande partie de notre équipe est bloquée dans le nord du pays. D'autres doivent être attentifs aux urgences majeures. Nous vous garantissons que le matin nous partirons. Bonsoir. (Grande parte de nossa equipe está presa ao norte do país. O restante deve permanecer em alerta para maiores emergências. Garantimos que pela manhã estaremos a caminho. Boa noite.)

Madame, c'est une urgence! (Minha senhora, isto é uma emergência!)

Nous sommes au bord de l'effondrement ici, soyez patient et nous serons là quand nous le pourrons. (Estamos à beira do colapso por aqui, tenha paciência e estaremos aí quando pudermos.) — não foi a atendente quem falou, mas sim uma voz masculina irritadiça que desligou na minha cara.

Nous sommes bloqués. (Estamos presos) — avisei ao rapaz.

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Enquanto eu procurava — sem sucesso — alguma tomada funcionando para carregar meu celular, ele aumentou o fogo da lareira e se posicionou no divã azul encarando a parede. Pensei nas outras quatro línguas que eu era fluente e me repreendi mentalmente por não ter usado elas antes.

— "Do you speak english?"— questionei

— A little. (Um pouco) — respondeu.

— "hablas español?"

Entiendo poquito. — falou um pouco envergonhado.

— "Parle Italiano?"

"No"— eu soube que ele negava, mas seu sotaque era uma mistura de inglês, espanhol e outra coisa que não soube identificar.

Faltava apenas o português de Portugal, língua nativa da minha bisavó paterna. Foi uma das últimas coisas que meu pai me ensinou antes de partir. Era um pouco improvável, mas não impossível.

— "Tu falas português?

Quando acabei a frase, seu rosto se iluminou e um sorriso enorme se abriu. Ele começou um coro de "não acredito" misturado com "obrigado Senhor" e outras expressões estranhas. Sem aviso algum, fui surpreendida por um abraço repentino.

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🎨Apolo🖌

Ao escutar aquelas palavras, não pude segurar a alegria de entender o que ela dizia. Nunca na minha vida eu pensei que fosse ficar tão feliz ouvindo alguém falar português, o mínimo que eu poderia fazer era agradecê—la do modo mais brasileiro que conheço: com um abraço.

Ela se desvencilhou rapidamente, constrangida, "também né, tu foi abraçar a menina do nada? Queria o que?", daquela vez, meu subconsciente tinha razão.

— Desculpa, desculpa.

— Sem problemas. — ela deu um sorriso quase imperceptível.

— Então...eu mexi nas chamas...tá bem frio né?

— Está. Precisas de algo?

— Sim, preciso comer. Na verdade, estou morrendo de fome. Mas mesmo isso aqui estando uma maravilha e eu sou muito educado para comer tudo sozinho na sua frente. — o nervosismo me fazia tagarelar antes que pudesse controlar o que eu diria.

— Tudo bem...vamos comer. — ela hesitou, me senti um idiota por intimidá-la.

Com muito gosto, ataquei um croissant de frutas cristalizadas e deixei a bandeja de café ao pé da lareira para esquentar — uma ideia genial, se o gênio aqui tivesse lembrado que o copo de papel poderia pegar fogo, sorte que ela tirou dali antes de um desastre maior.

— Poderia me dar o privilégio de saber seu nome? — tentei puxar conversa com ela, que estava andando em círculos há minutos.

— Mariénne. — O forte sotaque francês, dava a ela uma elegância e seriedade que destoava da sua juventude. Desviou rapidamente o olhar, como se estivesse nervosa

— Encantado milady, o meu é Apolo — me curvei um pouco para pegar sua mão como nos filmes antigos, mas ela recuou educadamente, acho que não é muito chegada ao humor.

— Tal qual o Deus grego? — destacou, confusa.

— Na verdade, é justamente por causa dele. — falei entre risos — minha mãe é uma amante da cultura helênica, em especial a mitologia.

— Uau! Demasiado exótico!

— Devia ver os nomes das coisas lá em casa, aí você veria o que é exótico...

Delicada e sutil, uma risada contida soou, pude ver com clareza um pouquinho de sua tensão sendo aliviada. Foquei em seu rosto, Ao prestar mais atenção, me imaginei misturando as tintas até chegar àquele tom de pele achocolatado, salpicando o cinza-claro para reproduzir os olhos que pareciam dois pedaços de um perfeito céu noturno.

— Precisas de algo? — não prestei atenção ao que falou, devo ter entrado em estado de hiperfoco.

— Essas paredes...são belíssimas. — solto aleatoriamente para disfarçar.

— O que disse? — ela se voltou completamente em minha direção, meu coração quase parou com medo de ela ter notado minha atenção escancarada à face.

— Ahm...é...É uma bela construção, não acha? — tirando o divã azul horrível e desbotado...era realmente um belo lugar.

— Sim, foi um presente do meu bisavô paterno para minha bisavó e agora é minha tia quem toma de conta. O prédio tem mais de cem anos, quase duzentos se contarmos o período em que se tornou propriedade da família.

— Caraca! Atena ia enlouquecer com isso.

— Atena?

Minha irmã...a arquiteta.

"Incroyable!" Vais dizer-me que és parente dos olimpianos todos? — soltou mais uma risada e segundos depois parou bruscamente, como se estivesse envergonhada.

— Se dependesse da minha mãe, eu teria no mínimo mais onze divindades gregas na família. — tentei emendar algum comentário a sua brincadeira, daquela vez ela não demonstrou nenhum humor.

Algo naquela garota era estranho, o fato que ela parecia ser gentil e distante ao mesmo tempo, junto com o hábito de disfarçar as expressões. Estava sempre tensa e com uma energia preocupada, tudo parecia forçado, como se obrigasse a si mesma seguir um personagem. Não sabia o porquê, mas senti uma vontade inexplicável de me aproximar e conversar, quem sabe fazer amizade. Sempre fui bom em fazer amigos, e minha intuição dizia que era o certo a fazer.

Sentei-me confortavelmente no divã azul horroroso — sério, quem coloca uma cor daquelas num cômodo antigo? — abri e organizei as caixinhas de lanche sobre o móvel, deixando espaço para que ela se sentasse também.

Numa das estantes acima da lareira, reconheci a lombada antiga de um livro que procurava fazia um bom tempo.

— Não creio! Aquele é um exemplar de Orgulho e Preconceito 1874?— avistei a lombada no outro lado da sala.

— Sim. Minha tia sempre busca uma desculpa para não vendê-lo. É uma relíquia de família.

— Posso...tocar? — meus instintos meio infantis gritavam para segurar o exemplar.

— Fique a vontade. — esticou a mão em incentivo

Quando reprovei em uma das atividades sobre representação de emoções, comecei a consumir tudo sobre amor, que valia boa parte dos pontos. Orgulho e preconceito, de Jane Austen, foi meu primeiro contato com o romance e porta de entrada para minha admiração pelas obras da autora. Fiz pequenos quadros para cada um dos livros dela e hoje me considero um verdadeiro fã.

Aquela era uma das primeiras edições traduzidas e mais rara ainda por ser em francês. A capa de couro envelhecida e uma fita vermelha para marcar as páginas. Abri uma página aleatória e comecei a ler em voz alta mesmo sem saber nada do que estava falando, certamente Mariénne se contorcia internamente com minha pronúncia terrível.

— Lê as falas da Elizabeth. — estendi o livro para ela.

— Eu...? — o espanto era evidente.

— Está vendo mais alguém apto entre de nós? — insisti.

— Porquê tu mesmo não lês?

— Elizabeth Bennet merece ser interpretada à altura.

Allors, Tudo bem.

Meu senhor Darcy ficou terrível, mas ao menos a fiz rir e aliviar um pouco da energia ruim.

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O relógio acima da lareira marcava onze da noite, no Brasil ainda eram seis horas do mesmo período. Apesar de não estar com sono, cobri o chão ao lado do divã e pus uma das almofadas sobre o pano. Mesmo me considerando um "alérgico a feiúra", era bem melhor do que dormir no chão frio. Dormir significava também tirar a lente de contato na frente dela — uma completa estranha — e era o que mais me atormentava. "Se tudo correr como o esperado, ela vai sentir pena de mim e dividirá o espaço comigo, pensei.

Bem...ela agradeceu o cuidado, deu um boa noite e virou de costas.

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Oito da noite no meu relógio, eu já havia mapeado as teias de aranha do teto acima de mim. Mariénne tinha explorado todos os espaços do sofá, tendo se sentado; virado de cabeça para baixo, e estava naquele momento com a almofada sobre os olhos.

— Também não consegue dormir? — perguntei.

— Como descobriste? — senti o sarcasmo na sua voz abafada pelo tecido. Sorrimos.

— Não tem nada pra fazer aqui? Nem um jogo de tabuleiro? — perguntei.

— Que eu saiba, não. — disse ela.

— O que é aquela portinha no porão? — eu tinha notado o contorno de uma passagem lá quando fui atrás do carvão. Ainda estava curioso sobre.

— Que portinha?

— Vem cá ver! — peguei sua mão e a puxei em direção ao cômodo velho e abafado.

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Precisamos empurrar várias vezes até que o pequeno alçapão abrisse, Mariene seguiu na frente com a lanterna do meu telefone enquanto eu segurava uma espécie de candeeiro antigo.

— Se tiver algum rato aqui eu juro que mato você, Apolo. — sussurrou, mas sua voz ecoou corredor adentro.

— Se tiver algum rato aqui, eu morro do coração antes que você me mate. — respondi com o mesmo tom de voz, a adrenalina fazia meus batimentos aumentarem.

Chegamos ao fim do corredor e não acreditávamos no que estava à nossa frente. Parecia uma galeria, oito molduras penduradas cobertos por panos brancos e um cavalete com uma nona tela inacabada com jornais ao redor. Parecia que tinha sido deixado exatamente como da última vez em que alguém esteve ali. Quanto tempo fazia? Teias de aranha enormes e muita poeira "enfeitavam" o local, sem contar o fedor de mofo.

— O que será que tem debaixo desses panos?— perguntei.

— Não faço ideia...cof, cof...tenho... puff...certeza que nem minha tia sabia da existência desse lugar. — ela abanava inutilmente a névoa suja.

— Muito fácil de descobrir, então. — Ao dizer isso, puxei a cobertura do primeiro quadro. Uma paisagem verde à margem do rio, iluminados com o que parecia ser luz solar.

— É como as paisagens da Coreia do Sul que Nabi tanto fala. Lembra o rio Han. — ela se aproximou um pouco mais. — até parece que se move!

— É... espetacular. — não tive palavras que pudessem descrever a beleza daqueles traços.

Quem puxou o segundo pano foi Mariene, havia uma sereia emergindo das ondas como se estivesse indo ao encontro da silhueta masculina sentada nas rochas.

— Uau. Parece uma ilustração de contos de fadas! — ela comentou surpresa.

— Sabia que as sereias fazem parte da mitologia grega? Criaturas horríveis e sanguinárias que atraem pescadores manipulando seus sonhos...

— Na minha cabeça, elas são só parte de algo bem maior, sabe? Como...serviçais do mar. E hoje em dia não faria sentido atrair apenas pescadores, mas todo mundo que ficasse na água, tal como os surfistas.

— Nossa! Você anda mesmo refletindo sobre as sereias.

— Sofro com insônia, preciso de material para as horas em claro. — A reação dela me fez lembrar do Brasil, fazer piadas com os problemas era quase um símbolo nacional. Eu sorria a caminho do próximo quadro.

Um palco de teatro, do ponto de vista da plateia. Um jogo de luzes com um clarão no centro. A pessoa destacada era claramente uma mulher, os braços erguidos e os detalhes do rosto indicavam que ela cantava. As sombras e a precisão dos detalhes era incrível, quase como se fosse nos teleportar para lá.

Na moldura seguinte, estava retratado uma construção que logo reconheci: a Acrópole de Atenas. O Parthenon retratado em toda sua grandiosidade mesmo sendo uma ruína, raios de luz pareciam cintilar nas pequenas torres e tudo o que havia sobrado da antiguidade. Lembrei de minha mãe e de minha prima Martina, ambas apaixonadas pela Grécia e tudo relacionado ao país e sua história. Mamãe a influenciou de tal modo que Tina havia se tornado uma historiadora, e embarcou num Cruzeiro rumo ao território grego há poucos meses atrás.

Atrás da quinta cobertura, uma fonte. Os pingos de água retratados como cristais, sob uma escultura de carruagem romana puxada por leões.

— É a fonte da Plaza de Cibeles! Incroyable! — Marienne comentou extasiada.

Os últimos três quadros seguiam a mesma linha de beleza dos anteriores. Na sexta moldura, uma propriedade sobre uma montanha que lembrava que lembrava um castelo assombrado, rodeado por névoa.

— Parece a mansão do conde Drácula. — comentei

— Tens razão, vê só esse raio cortando o céu. — ela apontou.

— Dava um filme aí. — adicionei — um clichê bem meloso com toque dark, tipo...Romance na Transilvânia. — gesticulei com a mão direita no ar. Caímos na gargalhada com a ideia aleatória.

Em seguida, uma paisagem rasteira ao redor de um lago. Fiquei em dúvida se seria um lugar na Irlanda, Inglaterra ou Escócia. Era uma pintura diferente das outras, belíssima também, um efeito de visão através da lente de uma câmera antiga. Se aquela era a intenção, eu nunca tinha visto nada tão impecável.

A última mostrava uma mulher, uma dançarina, entre as mesas de onde parecia ser um restaurante, num vestido vermelho de tango que parecia voar no ritmo de seus movimentos. Apesar da figura estar parada,a sensação era de que estava ali a muito tempo, numa dança eterna.

Eu e Marienne nos viramos ao mesmo tempo em direção àquela última tela no cavalete. Um começo de céu ao entardecer, servindo de fundo para a figura inacabada da Torre Eiffel. Metade estava em branco, como se a pessoa que pintava tivesse abandonado tudo ali, achando que voltaria.

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🖼 Mariénne📚

No cantinho daquele cubículo sujo e mofado, avistei papéis e um tinteiro sobre uma escrivaninha. Peguei um dos papéis e soprei o pó de cima. Era uma carta.

— Vem cá, Apolo! Olhe o que encontrei.

— Caraca, uma carta antiga! Aposto que é de amor. Uma pena que não consigo ler, tá tudo em francês.

— Ah, traduzi-lo-hei então. — limpei a garganta e comecei a ler em voz alta. — "Paris, 27 de outubro de 1916. Minha amada Jolie..."

Arrá! Eu disse que era de amor. — ele comemorou e eu o encarei em repreensão — desculpa, pode continuar, não tá mais aqui quem falou.

Allors (então), continuemos. — respirei fundo para retomar e me arrependi ao perceber quantas impurezas eu poderia ter inalado. — "Não podemos mais fingir que a guerra não nos afetou. Como todo homem em boas condições físicas, fui convocado para servir a minha pátria. Sei que seu maior sonho sempre foi viajar o mundo, então deixo-lhe meros pedacinhos dele a sua disposição. Prometo que voltarei, deixo como garantia este esboço da torre, que pretendo finalizar contigo ao meu lado, como minha esposa. Não importa quanto tempo eu leve, cada dia será um a menos para ficarmos juntos novamente, minha coisinha furiosa e linda. Eternamente seu, Pierre."

Não ouvi nenhum comentário ao finalizar a leitura. Apolo estava estático, rastros de lágrimas em seu rosto quando ele disse:

— Por que eu acho que ela nunca recebeu essa carta? — fungou ao fim da frase.

— Porque esta carta nunca sequer foi enviada. — encarei o papel sabendo tudo o que ele significou um dia.

— Como você sabe disso?— pôs as mãos na cintura.

— Lembra-te que eu vos falei sobre essa livraria ter sido um presente do meu bisavô paterno para minha bisavó? — sua boca se entreabriu levemente com a surpresa — Jolie era minha bisavó. Ela não sabia que estava grávida quando meu Bisavô foi atuar na primeira guerra mundial.

— Então...ele nunca soube que seria pai? — vi os olhos marejados cintilarem.

— Provavelmente não. Meu pai... — a lembrança doía como uma lâmina rasgando meu peito — contou que ela se casou com outro homem quando soube que estava grávida e que Pierre estava morto, mas nunca deixou de amá-lo. Mesmo sem ter descoberto sobre esse lugar.

— Me sinto como se estivesse violando algo privado, apesar de tudo isso ser lindo demais pra permanecer trancado no esquecimento. Vamos? — percebi seu olhar triste se despedindo da sala, estendeu a mão para que eu o acompanhasse.

— Vamos. — aceitei a gentileza, me deixando ser confortada pelo calor humano daquele estranho.

Uma pena eles terem tido um fim tão trágico. Ainda mais surpreendente era saber que meu pai foi filho único e não tínhamos primos de segundo ou mais graus. Eu era o que sobrava daquele amor.

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Passava das quatro da manhã, não dava para ver o céu pela janela congelada da porta de entrada. Apolo bocejava a cada cinco minutos, insistindo na teimosia de que só iria dormir quando eu fosse também. Levantou-se da cadeira onde estava e novamente percorreu as estantes, parando na sessão de internacionais.

— Você ouve áudio livros? — perguntou —me enquanto segurava uma obra brasileira, Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector.

— Raramente — respondi com sinceridade — absorvo melhor com a leitura visual.

— Tanto — *bocejou* — faz. Deita aqui.

Mais uma vez havia o pedido para que eu o seguisse. Já não bastava termos invadido o passado de meus bisavós? A tensão estava ali novamente, e, talvez por estar atordoada demais, deitei sobre a almofada em seu colo, tal qual ele indicou.

Começou a leitura e sua voz estava diferente, suave e levemente grave, quase um cochicho. Senti quando sua mão começou a acariciar meu cabelo, e logo estava leve e sonolenta, permitindo meu corpo ter um descanso profundo e completamente vulnerável.

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Segunda— feira, 14 de fevereiro.

Senti o coração disparar com o barulho repentino da porta sendo aberta. Levei minutos para processar o que estava acontecendo até que as últimas 24 horas vieram como um flash na minha mente. O moço...Apolo, havia adormecido sentado, a cabeça caída sobre um dos ombros e uma pequena manchinha de baba havia escorrido pela bochecha, um arranjo nada confortável, supus.

A realidade do momento voltou à minha cabeça. Eram 10 da manhã e eu não estava na faculdade! Ergui o dedo indicador e cutuquei a bochecha não babada do rapaz, finalizando o movimento com um peteleco. Enfim, Apolo acordou, tão desnorteado quanto eu.

— Levanta! — sacudi—o.

Humm... sai, cara de fuinha. — abanou o ar, certamente em busca de atingir algo.

— Cara de quê? — Que audácia! não lhe dei o direito de me insultar, seja lá o que "fuinha" fosse.

Sua cabeça girou devagar para minha direção, e a face tomou uma expressão de espanto como se em câmera lenta. Acomodou-se sentado bem próximo a mim, olhando para a frente encarando o nada.

Il va bien? (ele está bem?) — perguntou a mulher do corpo de bombeiros.

Euh... Je suppose que oui. (eh...suponho que sim.)

Nous avons changé la serrure et vérifié le bâtiment. Ils sont libres et en sécurité maintenant. (trocamos a fechadura e verificamos o prédio. Estão livres e seguros agora.)

Merci beaucoup madam. (muito obrigada madame).

De rien. (de nada) — se despediu ela com uma continência sutil.

Estiquei a mão e abanei o rosto de Apolo, que voltou a si em meu terceiro estalar de dedos.

— Desculpa, a alma acabou de voltar pro corpo, sabe? — eu não sabia, entretanto afirmei positivamente. — e... a propósito, "cara de fuinha" é um dos apelidos que eu chamo minha irmã, geralmente quando ela inventa de me acordar cedo assim.

— Ah, claro. — fazia todo sentido — mas não é tão cedo como tu pensas, são quase onze da manhã! — meus batimentos ligeiros como o motor de uma locomotiva.

Aqui, certamente. No Brasil, cinco horas a menos.

C'est vrai (verdade), perdoe o engano. — "poderia ter saído sem essa", pensei.

Nada não, quer que eu a acompanhe até em casa? — sugeriu

Não precisa, merci. Mon Dieu! Perdi o primeiro dia da última semana desse período.

Já que não há o que fazer, com sua licença, pretendo voltar a dormir. — falou, fechando os olhos.

Se não levantar daí agora, vou te fazer se arrepender de ter esbarrado em mim.

Lentamente, ele abriu um sorriso largo—que um ser humano normal não daria em plena manhã, muito menos com sono— soltou uma risada sarcástica e aproximou o rosto ainda mais:

— Foi você quem esbarrou em mim. — apertou os olhos em forma de desafio.

Poderia ter sido uma cena fofa de um romance clichê. Mas nós havíamos acabado de acordar e...

— Argh, vira essa boca pra lá! Que fedor! — mandei a educação para longe e não resisti à careta.

— A sua também está podre e nem por isso eu falei nada! — ele revirou os olhos, ainda focando em mim.

Seguimos em silêncio recolhendo nossos pertences, cada um indo em sua própria direção.

Passei o caminho inteiro a tentar entender como dormira tanto, e de onde vinha aquele descanso. Tipo de resultado que minha cama macia não estava conseguindo fazer.

🎨Apolo🖌

Fui correndo até chegar no quarto, meu olho esquerdo ardia e minha visão estava turva. A pálpebra começou a latejar quando tirei a lente, o medo de sofrer com outro dos períodos de conjuntivite me obrigou a ligar para mamãe. Virei o rosto para que apenas o lado bom aparecesse na chamada de vídeo.

— "oi fofuchinho! Acordado tão cedo? Como vai aí na cidade da luz?"— falou enquanto tirava os óculos de leitura.

— "É o Apolo?" — ouvi minha irmã falar de longe — "POLI! Faz dois dias que você não liga seu obtuso!"— falou escandalosamente enfiando a cara na câmera.

— "Andei muito ocupado esses dias, tanto que acabei dormindo de lente. Alguma das duas sabe o que eu faço pra não ter outro ataque de conjuntivite?"

A expressão de Atena ficou desconfiada, tive certeza que ela não acreditou na mentira.

— "Só lavar com soro e não colocar lente nenhuma pelos próximos cinco ou dez dias. Um anti-inflamatório também pode ajudar, coloquei uma caixinha deles na sua mala." — minha mãe respondeu.

Só um cego não veria a alegria e o ar triunfante das duas criaturas que me pressionavam a parar de usar lente de contato desde meus dezesseis anos.

— Okay, se não estivesse morrendo de dor eu adoraria permanecer em vossa companhia. Sinto despedir-me, todavia necessito tratar de minha enfermidade.

— Olha ele, todo trabalhado na norma padrão. — Atena pontuou sarcasticamente, desviei e desliguei a chamada.

Devo ter incorporado um pouco do estilo de fala de Mariene pelo tempo que passamos. Agora sim minha irmã podia ter certeza que havia algo errado.

Como se a tivesse invocado, seu nome brilhou na tela pouco depois de eu ter lavado o olho e tomado o comprimido.

— "Desembucha"

— "O que?" — apelei para o cinismo.

— "Você apanhou?"— sua voz emanava desconfiança.

— Não! Eu hein, foi só um imprevisto. — engoli seco.

— Tá, senta lá Cláudia. Eu não tenho o dia todo. — apoiou o celular em algum lugar.

— Tudo bem — ela sempre foi minha maior confidente, eu nunca conseguia segurar nada perto de Atena. — vamos pelo início.

— Agora sim eu tenho o dia todo. — vi quando se jogou na...minha cama? Aquela ladrazinha de colchões King size! "Deixa pra lá Apolo, foco." Lembrou meu subconsciente.

Comecei a contar desde a rejeição do senhor Devineaux até o acidente na torre Eiffel e como tudo isso ocasionou o imprevisto na livraria.

— Então quer dizer tem uma garota no meio humm? — A feição maliciosa dela antecedeu um ataque de risos.

— Não tem nada demais nisso...— minhas bochechas formigavam — um garoto e uma garota que foram obrigados a passar uma noite presos num mesmo cômodo, cada um no seu canto. Satisfeita? — Obviamente eu não falei tudo, ou nunca mais ela me deixaria em paz.

— Não muito, dá pra ver que tem algo mais— estreitou os olhos — só não vou insistir porque realmente tenho mais o que fazer, você sabe como esse tipo de história começa, né Polinho?— sucedeu o apelido insuportável a uma risada de bruxa.

— Não tem história nenhuma, se quer tanto um casal porque não arruma alguém pra você e me deixa em paz? — busquei inverter o assunto para o lado dela.

— Não, não, olha, entre nós dois meu papel é o de tia rica e legal, só um irmão pode ficar com essa tarefa, entendeu? — explicou como se eu fosse uma criança.

— Só um irmão né... que os jogos comecem. — murmurei.

— E que a sorte esteja sempre ao meu favor. — completou e desligou na minha cara.

Era incrível como nós tínhamos aquela cumplicidade, Atena conseguia deixar tudo mais leve. A agradeci mentalmente por isso.

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Com um prazo de apenas quatro dias para tentar convencer o Senhor Louis a me dar algum grau de qualificação, planejei virar a madrugada revisando o que eu já tinha feito, quem sabe daria pra aproveitar algo. Inseri o pendrive laranja no laptop, mas nenhum dos meus arquivos estava ali. Apenas uma pasta repleta de PDFs e apresentações do Powerpoint. Era só o que faltava!

Contatei às pressas a "moça do tombo", perder todo aquele tempo me daria um prejuízo e tanto, aquele sentimento de ansiedades de medo com afazeres era novo e assustador.

"Você me deu o pendrive errado 🙃" — (16:38)

"Tem certeza?" — (16:42)

"Não lembro de ter tantos pdfs e slides nos meus arquivos 😐😀"— (16:43)

"Merde."— (16:43)

"Tem como eu pegar ainda hoje? 🙏🏻🥺" —(16:44)

"Não poderias amanhã?"—(16:47)

"Menos de 24h e já cansou do meu rostinho? 😔" — (16:47)

O que raios eu tô fazendo? Não sei. Pode ter sido alguma coisa de hoje cedo me fazendo mal, ou simplesmente estou tão nervoso sem poder usar a lente que todo meu senso de ridículo sumiu.

" Vá para Art&Cafe. Na entrada da livraria que estávamos, atravesse a praça e entre na primeira rua, onde tem uma fachada verde e amarela." — (16:51)

"Tô saindo já, dessa vez eu chego até antes de você 🏃‍♂️⌛️"— (16:51)

"🙄" — (16:56)

Admito que troquei apenas a calça por outra mais quente. Assim que me senti devidamente embalado em roupa e me sentindo ridículo usando óculos escuros em pleno anoitecer de inverno, andei o mais rápido que pude.

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Foi fácil reconhecer o pequeno prédio de dois andares, um som suave de bossa nova e calor interno unidos ao cheirinho típico de padaria eram a coisa mais viva e quente das redondezas.

— Mentira! Apolo meu bem, quanto tempo! Que faz aqui na cidade da luz? — mal pude acreditar ao ouvir a voz alegre da dona Clarisse.

— Tia Clarisse, meu Deus, como o mundo é pequeno! Eu...estou usando a greve da faculdade pra...buscar novas inspirações. — estendi os braços para abraçá-la.

— Como você cresceu! Da última vez que te vi era um molequinho todo sujo de tinta. Como vai a família?

Atena se formou em arquitetura, mamãe começou a colecionar miniaturas de estátuas gregas e papai...o mesmo de sempre. A Bruna foi estudar em Barcelona ano passado, não foi? Como ela tá?

— Menino, você sabia que ela está como uma das melhores da turma e está namorando um rapazinho espanhol? Um pão, graças a Deus! Você ainda pinta? - eu amava as expressões das pessoas mais velhas.

— Estou cursando artes plásticas. — nada como uma inverdade para evitar climas ruins.

— Eu sabia que César não ia ter coragem para impedir seu talento.

— Pois é né...— doeu mentir para a Tia Clarisse, mas lembrar o motivo pelo qual eu estava ali doía ainda mais.

Considerando o tamanho minúsculo da nossa cidade natal, todo mundo se conhecia, de algum modo, éramos todos parentes de consideração. A mulher me ofereceu inúmeras das belas e suculentas guloseimas de sua vitrine me fazendo sentir "obrigado" a aceitar e comer todas, por educação, claro. Sendo também uma exímia pintora, me guiou em um tour por cada peça autoral espalhada pelas paredes.

O sininho tocou e tanto eu quanto a Tia Clarisse nos viramos para a porta. Mariene entrava no traje de inverno todo preto e cinza trazendo consigo a energia inquieta que emanava o tempo todo. Clarisse foi a seu encontro comigo atrás, ali começou o ponto alto da minha noite.

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🖼 Mariénne📚 — Segunda—feira, 14 de fevereiro.

Como eu deixei que isso acontecesse? Quão atordoada me encontrava ao ponto de não notar os pendrives trocados? Tarde demais, já estava a caminho da cafeteria da senhora Castro.

Clarisse Castro era uma mulher no final dos sessenta anos, valor nada condizente com sua lucidez e vitalidade. Ao menos uma vez por semana, nós tínhamos nosso chá da tarde apenas para conversar e apreciar a calmaria do parque. Realmente não faz meu estilo, mas, como ela sempre diz, "não se diz não aos mais velhos". E confesso que nunca foi um sacrifício estar em sua companhia.

— Hoje só pode ser o dia das coincidências! — Mesmo sendo um costume estranho onde moramos, me abraçou sem contenção alguma.

Bonsoir, Clarisse. (boa noite Clarisse)— comecei a pendurar meu casaco e cachecol na entrada, mal terminei e ela já me arrastava para algum lugar.

— Quero que conheça meu afilhado Apolo! Querido não se preocupe, ela fala nossa língua.

Tive vontade de rir, realmente era um dia de coincidências. Ele se curvou extremamente cavalheiresco, pude vê-lo segurar o riso quando beijou levemente o dorso de minha mão.

— É um enorme prazer conhecê-la, mademoiselle. — Alguém poderia dar um óscar a esse rapaz?

— Não seja bobo, já nos conhecemos, Senhora Castro. Ele está aqui porque eu o chamei.

— Ah, que maravilha! Veio atrás de inspiração, não é? Eu deveria ter percebido. Esse mundo é realmente pequeno, como vocês são lindos! — comentou a idosa em tom de malícia.

Apolo explodiu em gargalhadas, eu olhei em todas as paredes algum buraco para me enfiar. Sabíamos bem o que se passava na cabeça da mulher.

— Não é bem...assim, nós nos conhecemos ontem e...enfim, não é o que a senhora está pensando. — dei graças a minha pele escura por esconder o rubor do meu rosto.

— Não estou pensando nada — sorriu em cumplicidade e piscou — esses jovens de hoje são rápidos... feliz dia dos namorados!

Enquanto eu tentava explicar, Apolo estava sentado rindo feito uma hiena, as mão sobre a barriga, o rosto vermelho pelo esforço.

— Por favor Clarisse, não tem...nada. Tudo isso é um grande mal entendido. Ajude-me com isso Apolo, fripouille! (canalha!)

Caaalma benzinho — lancei meu melhor olhar de "vou matar você" enquanto ele respirava tentando cessar o riso — é brincadeira Dona Clarisse, eu vim só pegar meu pendrive que esqueci na livraria da tia dela.

— Aqui está — estendi o aparelho e ele me entregou o meu — viu? Rápido e fácil. Agora eu vou...

— Nem pensem que algum de vocês vai sair daqui sem comer nada. — não havia sido um pedido.

— A senhora já me agraciou com muita coisa boa, estou satisfeito. Até logo! — ao menos a pressa também o afligia.

— Vai realmente vir à minha cafeteria para sair sem tomar café? Fiquem sentadinhos aí, os dois. — deu dois tapinhas em nossas costas e saiu.

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Passados cerca de dez minutos, ainda estávamos esperando a madame Castro e o que quer que ela pretendesse trazer. Pensei em toda a matéria perdida hoje cedo e como eu estava prestes a recuperá-la até pouco antes de ser contatada por Apolo. Falando no diabo... senti vontade de apertar seu pescoço cada vez que ele puxava o ar profundamente enquanto ria, e o que ele fazia com óculos escuros de noite?

— Acha que ela vai perceber se a gente for embora?— perguntou ele.

— É mais fácil ela ir atrás de nós. — eu disse, sorrimos.

Finalmente a mulher apareceu, uma bandeja arrumadinha com duas xícaras, uma com chá e outra com café, fumegantes, uma porção de crepe para mim e outra com mille-feuille (bolinho com várias camadas) para ele. Comemos em silêncio, sem a presença de nossa anfitriã, Apolo não tirou os óculos por nenhum minuto sequer e não me ousei a perguntar.

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🎨Apolo🖌

Quando o lanche terminou, levantei e me ofereci para pagar a conta. Ela "recusou a gentileza" e acabei por não insistir, qualquer gasto extra estava por minha conta e o euro não custava tão barato assim.

Fui até o caixa onde tia Clarisse estava, percebi que ela guiava o estabelecimento sozinha e tinha apenas uma outra atendente que foi embora pouco depois que chegamos.

— Nem venha, é por conta da casa. — nem pensar que eu ficaria alegre com essa resposta...tá, eu fiquei.

— Por favor, é o trabalho da senhora. — "pare de insistir!", alertou a consciência.

— Eu sou uma velha aposentada, isso aqui é uma forma de não ficar em casa tricotando ou me entupindo de gatos.

— Já que é assim... tem alguma forma de eu retribuir? — "não cara, só vai embora!", se manifestou novamente a voz interna.

— Sabe, tem uma forma sim. Mariénne é como uma neta para mim, eu gostaria que a acompanhasse até em casa. Está tão escuro e deserto lá fora...— era algum tipo de armação, aquele rostinho de idosa fofa não me enganava.

— Sinto muito, o local onde estou hospedado é muito longe. — engoli seco.

— Onde é?

— Hospedaria de Madame Catherine. Cité Trevise 2006.

— É pertinho meu jovem, apenas um favor para sua velha conhecida. — chantagem emocional, meu ponto fraco.

— Ahm... — busquei uma desculpa qualquer

— Você vai. — ergueu a sobrancelha e usou um tom ameaçador.

— Claro! Por que não? — sorri sem graça e voltei para a mesa.

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— Não preciso de uma babá, merci.— respondeu Mariénne irritadiça.

— Não foi uma decisão minha. — apontei para a tia Clarisse que nos observava do balcão.

Nos separamos assim que sairmos do campo de visão dela— sorriu para a senhora fingindo estar agradecida.

— Ótimo. — Apoiei meu braço esquerdo em seus ombros na saída, entretanto, logo ele foi tirado dali, e ainda ganhei um beliscão de brinde.

Alguns metros depois, ela começou a se distanciar mesmo indo na mesma direção que eu.

— Estás a seguir-me?

— Essa é minha rota também, querida.

— Eu não sou sua...— suspirou com desânimo.

— Tudo bem, já entendi. — interrompi.

Caminhamos mais alguns metros e o silêncio estava sendo sufocante demais. Eu tendia a falar muito quando nervoso, pelo que entendi, perto dela eu estava sempre inquieto.

— Olha como a lua está linda. — brilhante e enorme, levemente emoldurada por nuvens.

— Realmente, e as estrelas também parecem mais brilhantes. — quando ela olhou para o céu, foi como se seus olhos se misturassem a ele, puxando as estrelas consigo. — ao menos uma noite de céu limpo esta semana.

— Depois de alguns dias aqui, mesmo no inverno, consigo entender o porquê tanta gente gosta de pintar a noite parisiense.

— Você entende de pintura?— as galáxias, digo, seus olhos, se voltaram para mim.

— Eu amo, estou aqui por isso. — meu peito se encheu de orgulho — sou pintor. — rapidamente sua expressão passou de indiferente para surpresa.

— Estudo história da arte. Posso ver algum trabalho seu? — perguntou eufórica e contida.

— Está tudo no ipad...ou seja, neste pendrive.

— Certo, deixemos de lado então. — Havia decepção em sua voz.

Continuamos conversando amigavelmente até que paramos justamente na porta da hospedaria onde eu estava.

— Parece que a Madame Castro conseguiu o que queria. — sorriu de lado, se despedindo.

— Na verdade, esse é meu destino também— confuso era a palavra que me definia naquele momento.

— Quer dizer que... — ela raciocinava junto comigo.

— Você é a moça que dona Catherine sempre se desculpa por não apresentar devidamente!

— E você é o hóspede que ouve música clássica todas as noites!

— Esse com certeza é o dia das coincidências. — falamos ao mesmo tempo, dessa vez ela não conteve o riso.

Vem, vou te mostrar algumas das minhas criações.

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🖼 Mariénne📚

Entrei por vontade própria na casa de um desconhecido, mama e Nabi me matariam se soubessem.

— Não repara na bagunça...— entrou recolhendo alguns copos e algumas outras coisas fora do lugar.

Meu apartamento era deveras pior, se aquilo seria bagunça nem soube onde se classificaria meu quarto.

— Aceita alguma coisa? Água, café, vinho...?

— Não fosse pelo último nem saberíamos a existência um do outro. — refleti.

— Pois bem, uma homenagem, vinho então. — não foi bem o que gostaria de dizer mas eu não estava em casa para "impor" as coisas.

Colocou duas taças pela metade na mesinha do centro, abriu o laptop e, quando percebi, estávamos lado a lado conversando efusivamente sobre arte.

— Não acha que tem um reflexo de Rodin aqui? — apontou para a figura em destaque.

— Sim! Só não sei como trouxe o efeito de escultura para uma pintura digital.

— O segredo está no acabamento irregular, faz parecer que tem realmente pedra desgastada.

Mal sentimos o tempo passar, debatendo desde o estilo barroco a arte conceitual, depois de três taças, já não estava em minhas condições normais e ele não parecia tão melhor que eu.

— Porque?— Apolo perguntou.

— O que? — respondi, confusa.

— Você é tão inteligente, responsável, e...séria, porque seguir essa loucura que é o mundo da arte? — ele soou incrédulo e totalmente sem contexto.

— Porque é nessa loucura que eu encontro razão para manter tudo isso. Como uma bicicleta. Você só continua pedalando se tiver um objetivo, nem que seja apenas ir para frente. — repetir aquelas palavras, algumas das muitas que meu pai já compartilhou, tocou em algo muito sensível dentro de mim.

— Poético! Parabéns.— aplaudiu suavemente.

— Não posso levar os créditos, meu pai quem criou.

— Um homem excepcional eu suponho.

— É, ele era. — aquela se tornava a primeira vez em que me referia a Papa no passado.

— Sinto muito, Marienne. — murmurou.

Não sei se foi o vinho, ou o baque da realidade. Só sei que todos os problemas dos últimos dias, meses...anos, se acumularam feito pranto. Sem questionar ou dizer qualquer coisa, Apolo me abraçou.

——————————————————————————————————————————————————🎨Apolo🖌

Eu não soube muito bem o que fazer quando ela começou a chorar, eu não era o único com problemas paternos afinal, mas pelo menos meu pai estava vivo. Ela limpou as lágrimas, visivelmente envergonhada, e começou uma ladainha de desculpas. Decidi contar algo meu também, nada mais justo.

— Ninguém além de mim e do meu pai realmente sabe o que estou fazendo aqui.

— Como assim?

— Ele não aceita muito bem a minha escolha de futuro. Meu pai é movido a status e "nobreza", o que ele ganharia comigo sendo, no mínimo, um professor de artes?

— Isso não é...*fungou*... da conta dele. Como crê que vais te tirar desse caminho o mandando direto para a terra das artes? — até que enfim alguém concordava comigo sobre a estranheza dessa proposta.

— Bem, eu vim para ser julgado. Não sei como ele conheceu o cara, mas diz papai que ele é um grande crítico de arte. Sendo que eu nunca ouvi falar dele, tanto faz. — balancei os ombros.

— Por que? — agora ela quem iniciava uma pergunta desconexa.

— Porque...se eu falhar, dou ao meu pai o direito de escolher por mim. Desistir será como renunciar, entende?

— Não, não entendo. — disse sinceramente.

— Sempre admirei meus pais. Jurei para mim mesmo que faria eles se orgulharem de mim. Parece bobagem, e falando em voz alta soa pior ainda só que... meu pai especificamente sempre foi mais difícil de agradar. É a minha última chance dele perceber que eu posso conseguir alguma coisa.

— Quem é?...a pessoa que ele contatou... talvez eu saiba. — desviei o assunto.

— Louis Devineaux.

— Da galeria D'Auvergne? — ela fez soar como se fosse uma piada.

— Esse mesmo.

— Alguém foi enganado então, Louis não saberia reconhecer um Vermeer nem se o próprio pintasse na frente dele. — ironizou.

— Como você sabe? — o medo se instalou em mim.

— Trabalhei para ele até justamente aquele dia em que nos esbarramos. Eu que fazia as avaliações das peças para leilão.

— Se ele não fazia nada sem você, porque a dispensou? — temi ter tocado em algum ponto frágil.

— Me meti numa briga com um cliente, que logo descobri ser um patrocinador. — senti a fofoca de longe.

— Tá, e...?— incentivei a contar o resto.

— E o que?

— Você não pretende deixar essa história sem complemento não é? Não parece o seu tipo se meter em uma discussão.

Allors, é...realmente incomum.

Ela começou a descrever o ocorrido com um leve humor, mas eu percebi a frustração por trás daquela situação.

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🖼 Mariénne📚

Com a língua solta e inconsequente graças a bebida, revelei tudo que acontecera naquele fatídico dia. Nem mesmo Nabi sabia completamente, e eu a evitava há dias para não ter que tocar no assunto outra vez. Reconheci que — para alguém tão prudente — eu deixara boa parte de minha vida à mostra para uma pessoa que só conheço há alguns dias. "As princesas da Disney ficariam orgulhosas de tão pouco senso.", considerei mentalmente.

— Se não fosse alguns poucos minutos, capaz de termos nos esbarrado não entrada.— Notou Apolo

— Depois de hoje, estou relevando as coincidências entre nós dois.— comentei.

— Devineaux não te deu nenhuma chance? Sério?— revidou ele.

— Bem, ele...— quase pude ver a lâmpada da ideia sobre minha cabeça— sim!

Notei Apolo me olhar mais atentamente, enquanto eu repetia as condições de Louis , seu sorriso se alargava.

— Está pensando o mesmo que eu? — apoiou as mãos sobre meus ombros.

— Talvez. — sorri abertamente.

— E se nos ajudássemos? — falamos em simultâneo.

— Eu crio. — disse ele

— Eu avalio. — completei.

— Você pega o emprego de volta...— continuou.

— E tu retomas a faculdade. — finalizei, notando quando reabasteceu nossas taças.

Pegou minha mão, fazendo que eu sentisse novamente uma sensação estranha tal qual das últimas vezes, levando-me em direção a varanda. Sob a luz da lua, propôs um brinde:

— Às coincidências! — ergueu o braço.

— Às coincidências! — repeti.

Silenciosamente, aproveitamos a calmaria ambiente. Como num estalo, recordo-me de um detalhe importante.

— Quanto tempo temos?

— Três dias. — respondeu calmamente.

— Três dias? Apenas? E o que fazemos parados aqui mon dieu! — levei as mão à cabeça.

— Estou pensando, ora. — balançou os ombros. — O cenário de inverno não é dos mais inspiradores, além do mais, não tem nada novo aqui.

— O inverno é a estação mais bela. Allors, Paris tem muito a oferecer além da Torre.

— O que acha de sairmos pela cidade? — sugeriu.

— Feito, a partir de amanhã começamos. Provar-te-ei que há bastante para ver por aqui. — sem querer, minha voz fez soar como um desafio.

— Veremos então. — piscou, me desafiando em retorno.

Selamos nossa parceria com um aperto de mãos, logo me dirigi a meus aposentos para elaborar o roteiro dos próximos dias. Seria uma longa noite. 

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