As Cores do Amor, parte dois
Por: the_bookstan
🎨Apolo🖌 — Terça-feira, 15 de fevereiro.
— Mãe, tem certeza que eu não posso colocar a lente hoje? — eu parecia um cachorro na chamada de vídeo, a cabeça torta e com o olhar suplicante.
— Sou advogada, não oftalmologista. Mas no fundo você sabe que enfiar essa coisa no olho só vai piorar tudo — Infelizmente, ela tinha razão.
— Mas mãe...
— Tivesse pensado nisso antes de virar a noite. — pelo menos, Atena não contou a verdade pra ela.
— Tudo bem, obrigado mãe.
Eu já ia desligar quando fez uma última pergunta:
— Por que está tão preocupado em poder usar lente? — Perfeito, ela estava desconfiada.
— Porque... vai que eu preciso sair né? Usar óculos escuros no inverno é bem sem noção. — não era uma mentira, apesar de também não ser a verdade.
— Simples, não use. — e desligou na minha cara.
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Em meu relógio biológico, eram nove da manhã. Eu já estava acordado desde às sete, quando Mariene me despertou "sutilmente" com diversas ligações. Àquela altura, eu já tinha posto um toque só pra ela, no intuito de não confundir com qualquer alarme igual da última vez.
"Pra que eu me meti nisso?" — resmunguei para o espelho do banheiro — "desde quando eu, logo eu, sou capaz de ajudar aquela moça?", passei as mãos pelo cabelo, nervoso. Quando ouvi as batidas na porta, senti a pressão baixar, arrumei os óculos e andei firme até a porta. Ela estava lá, com seu típico conjunto preto e o cachecol cinza escuro cobrindo quase metade do rosto.
Segurava uma prancheta e vários papéis nas mãos, as sobrancelhas franzidas em...confusão? Seu olhar diretamente em meus óculos escuros, ops.
— Tu vais sair assim?
— Algum problema? — me fiz de sem noção, de novo. Talvez eu fosse mesmo.
— Está parcialmente nublado, não enxergarás nada com isto. — apontou para o acessório em meu rosto.
Era verdade, parecia um fim de tarde lá fora. Com toda certeza minha mãe está sorrindo aleatoriamente agora e sem entender o porquê, todo mundo sabe que mães sentem esse tipo de coisa.
— Não ri, ok? — não tive ideia de onde saiu toda aquela coragem, mas ainda bem que foi.
— ...tudo bem.
Assim, depois de anos sem deixar que vissem a aberração na minha cara, tirei o disfarce que restava.
— Não vais abrir os olhos? — "detalhes técnicos", tive vontade de dizer.
— Não gostaria de me guiar? Experiência nova, sabe? Pintar sem ter visto, apenas com o restante dos sentidos...
— Estamos atrasados! — enfiou os dedos na minha cara, me obrigando a abrir.
Silêncio entre nós dois. Eu era novamente o garoto estranho, com quinze anos de idade e o apelido "olho de frankenstein" rodando na escola.
— Era isso? Heterocromia? — para minha surpresa, ela não parecia nem um pouco surpresa.
— Não é extremamente esquisito pra você? — Impossível, estava apenas sendo educada.
— Uma condição genética? Tá, é bonito e legal. Tu não precisavas de tal estardalhaço. Vamos, estamos atrasados.
Fiquei levemente aliviado, talvez desapontado por esperar algum tipo de rejeição maior. Mas, como ela já tinha avisado, estávamos atrasados. Peguei meu celular, fones e a carteira enquanto ela checava alguma coisa nos papéis que carregava.
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Seguimos até um parque perto do nosso prédio, a pé. Nunca fui do tipo atlético — meu porte físico denunciava isso — andar a pé por tempo indeterminado não parecia o melhor jeito de passar a tarde.
— Vamos andar a pé?
— Non. — respondeu ela.
— Não vi nenhum ponto de táxi por aqui.
— Porque não há. — ela falava de forma sucinta.
— E como vai ser esse tour? — me preocupei.
— Bici. — indicou a fileira de bicicletas na borda do parque.
— Olha, minha mãe falou que não era pra eu ser preso. — Nem me permiti considerar um absurdo daqueles.
— São públicas, alugáveis. Um euro por hora. — começou a inserir moedas na catraca.
— E porque você está colocando três moedas? — "cara, se manca!", manifestou meu cérebro.
— O que achas? — me olhou como se eu fosse um acéfalo.
— Ótimo. — sorri, de nervoso.
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Ativei minha playlist e seguimos, ela sempre à frente.
— Primeira parada: Chaumont Parc — indicou, o mapa preso no guidão da sua bicicleta.
— Cuidado aí...olha pra frente. — de repente me veio a preocupação com algum acidente, tentei disfarçar com outro assunto — estamos chegando?
— Falta pouco, apressa-te que será mais rápido.
— Tá.
O caminho foi tranquilo, aumentei o som do fone quando começou a tocar Dona Cila, na voz de Maria Gadú.
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Estacionamos numa das bordas, adentrando as árvores secas e o chão semi-coberto de neve rala, o vento frio me fazendo arrepiar.
— Cadê a beleza toda que a senhorita prometeu?
— São plantas no inverno, o que querias ver? Sigamos.
— Certo...
Haviam poucas pessoas, a leve neblina dava um toque fantasmagórico à atmosfera do lugar.
Subimos um caminho que dava a um mini templo no topo da colina, a vista lá de cima era de tirar o fôlego. Dava para ver o parque abaixo de nós, o lago congelado e uma parte da cidade ao fundo. A ausência de visitantes além de nós trazia uma sensação de paz. Olhei para o céu cinza brilhante e...
— APOLO! — ela falou em voz alta.
— Quê? Que foi? — tirei os fones, assustado.
— Falo deste local há minutos e tu nem estavas a escutar! — "será que ela sabe como fica bonita quando está indignada?" pensei... o frio já estava congelando meus neurônios.
— Desculpa... — a lâmpadazinha das ideias brilhou em minha cabeça — vamos fazer assim, fica cada um com um fone, aí eu deixo um dos ouvidos livres pra te ouvir.
— Eu... am... — parecia muito hesitante.
Não deixei ela decidir, quando os violinos de Cheia de Manias começaram a tocar, coloquei o fone nela. E a puxei pela mão, impulsionando seu movimento.
— Costumo dizer que minha playlist é mágica. Ela sempre sabe o que tocar e quando tocar. Aproveite!
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Passamos por uma ponte antiga, com uma visão ótima do lago. Olhei no celular e já estávamos andando ali há pelo menos uma hora.
— Por aqui já deu, não acha? Próxima parada! — a batida me deixando mais elétrico do que o normal.
— Cemetérie Père Lachaise, não é longe daqui. — meu francês podia ser ruim, mas qualquer um sabe que ela falara de cemitério.
— Nem ferrando, não vou entrar num cemitério nessa neblina de inverno, muito menos na baixa temporada.
— Poupai-me, não sejas covarde! — covarde? Tudo bem, eu concordo nesse caso.
— Eu não vou pro cemitério antes de morrer, próximo canto. Por favor!
— Tudo bem, não podemos desperdiçar a luz do sol. — suspirou.
— Para onde agora? — questionei.
— Rue Crémieux.
No caminho, as batidas de Lost, por Maroon 5, me ajudavam a encarar o esforço das pedaladas. Vi quando ela se mexia disfarçadamente no ritmo da música, acelerei no intuito de acompanhá-la.
— Pode dançar, não tem ninguém olhando. — pisquei. (Por que eu tinha piscado?)
— Mas eu...não estava...eu não estou dançando. — desviou o olhar envergonhada.
— Por que você faz isso? — a pergunta saiu sem meu consentimento.
— O que?
— Tenta parecer um robô, logo depois de deixar a humana aparecer. — eu tinha percebido aquele hábito desde o episódio da livraria.
— Não faço isso. — soltou ríspida
— Se você diz... — me distanciei um pouco.
Mal sabia ela que eu estava determinado a fazê-la se libertar um pouco. Nos conhecíamos há poucos dias mas era como se fôssemos amigos há muito mais tempo. Éramos opostos complementares, ligados pela arte.
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— Cá estamos! — ela anunciou a ruazinha de casas coloridas e enfileiradas.
— Como é fofa! Parece o pelourinho! — lembrei da viagem à Salvador que fiz com minha família há três anos.
— Creio que a versão brasileira é mais extensa. — comentou.
— Você conhece as coisas do Brasil? — era só o que faltava.
— Gosto de estudar a cultura brasileira. A mistura é hipnotizante. — conseguiu a façanha de trazer à tona meu orgulho nacional.
— Acho que você ia gostar de conhecer o país. — sugeri, sem intenção alguma
— Está em meus planos futuros. — revelou ela.
Acabei sentindo falta do Brasil, principalmente do calor, que eu detestava até ter que aturar o frio de um inverno real. Come to Brazil, de Why don't We, começou a tocar em nossos ouvidos.
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🖼 Mariénne📚
"Como ele consegue estar sempre de bom humor?", refleti, espantada. Nem mesmo Nabi costumava falar tanto, e o pior de tudo é que não estava sendo a tortura social imaginada por mim.
Saber sobre sua atenção na minha pessoa, ao ponto de notar as falhas em minha personalidade, me deixou em alerta para que meus atos e dizeres fossem mais coerentes entre si.
Contei a história daquela rua, da homenagem presente naquele nome. Vê-lo registrar cada pequeno detalhe por meio de fotos era um pouco irritante para a defensora da apreciação real que eu era.
Em meio à uma conversa agradável sobre como seriam as plantinhas das casas durante outras estações, senti um pingo molhado escorrer pela minha testa.
— Vamos embora, agora. — alertei e corri até minha bicicleta.
— O que? Por que? Aconteceu alguma coisa? — eu compreendia seu espanto, mas seria melhor sair daquele local aberto e depois explicar.
— Nada de perguntas agora, só vai, putain!
— Você está bem Marienne? Se estiver passando mal ou coisa do tipo fala logo que a gente vai direto pra um hospital. — havia muita preocupação em sua voz e rosto.
— Não. Eu estou bem. Só que vai chover e eu não posso tomar chuva. — não tinha certeza quanto a isso, mas não poderia arriscar adoecer e acabar faltando mais um dia.
— É de açúcar por acaso? — posicionou as mãos na cintura.
— Não seja idiota, podemos morrer de hipotermia se pegarmos chuva nesse frio. — as gotas ficavam cada vez mais grossas e frequentes — Depressa! Allez! (depressa!)
Para minha alegria ele obedeceu, e seguimos o mais rápido até onde a segurança nos permitia. Infelizmente, não conseguimos chegar em casa antes do temporal nos alcançar. Ficamos abrigados num parque próximo, sentados num banco sob algumas árvores que pouquíssimas folhas.
Ainda com o fone emprestado em minha orelha direita, ouvi a música mudar pra um toque conhecido. Singing in the Rain ressoava para nós, quando Apolo se levantou e começou a imitar a coreografia.
— Saia daí, vai acabar ficando doente. — alertei.
— Eu cresci brincando na chuva. "I'm siiiiiiinginig in the rain..." — cantarolou.
— Aposto que nunca fez isso no inverno. — falei.
— Detalhes, apenas detalhes. Você não vem?
— Jamais!
Observei aquela demonstração de...seja lá o que fosse. Consideravelmente influenciada com o bom humor. Passei o dia sem problemas com a falta de sono, e ainda voltei para casa com a garrafa de chá pela metade.
Tínhamos muito em comum na minha opinião, ou pelo menos teríamos se eu não tivesse abandonado aquela Mariénne extrovertida e falante no passado. Não era um bom momento para resgatar sentimentos tão bem trancados, então me restringi a rir e aproveitar aquela cena hilária, seguida por todos os espirros dele durante o trajeto até nossas moradias.
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🎨Apolo🖌
Chegando ao quarto, preparei um caldo quente para evitar ficar resfriado, e tomei antialérgico contra os espirros. No conforto e calor da minha cama, esbocei involuntariamente o sorriso dela, ao som de Nocturne n° 9, Chopin.
🖼 Marienne📚 — Quarta-feira, 16 de fevereiro.
Meu nariz coçava e escorria como nunca, optei por usar máscaras descartáveis durante a manhã na faculdade, assim ninguém reclamaria e eu não correria o risco de discutir novamente. Fiquei até às quatro da manhã planejando o roteiro e tudo precisava sair corretamente.
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No mesmo horário do dia anterior, bati na porta do apartamento ao lado do meu e Apolo abriu em questão de segundos. Os surpreendentes olhos multicoloridos me avaliando da cabeça aos pés.
— Você está de luto? — indagou.
— Não... *sniff* ? — o que o levaria a pensar que estou de luto? Minha cena de dois dias antes?
— Toda de preto, pensei que fosse...sei lá. Esquece. — pôs a mão esquerda atrás do pescoço.
— Certo. *atchim!* Vamos? — me virei para a porta.
— Você tá bem? Não prefere descansar?
— Estou aceitavelmente em boas —*atchim!*— condições. — assegurei-o.
— Então, simbora! — falou colocando o fone em meu ouvido. Às vezes ele usava expressões estranhas.
Diferente da última saída, o céu estava azul-acinzentado e limpo, com o sol brilhando sem esquentar nem um pouco a cidade. Eu espirrava de pouco em pouco tempo e toda vez ele ria da minha condição.
— Seu espirro é muito bonitinho! Parece um bebê. — filho de uma mãe.
— Como não ficaste como eu? Nem mesmo tomei chuva como tu!
— Cobertores, muitos cobertores. E a receita de canja da mamãe. — piscou, como uma mania. Apolo sempre piscava aleatoriamente.
— Ainda considero injusto. — virei os olhos.
— A vida não é justa baby. — e pedalou mais rápido, me incentivando a ir tão depressa quanto, pois ele não sabia onde estávamos indo.
— *atchim!*
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— Deixe a bicicleta aqui, a partir desse ponto seguimos andando. — avisei a ele, ensinando como acoplar o veículo nas catracas.
— Onde estamos? — disse, vidrado no teto.
— Galerie Véro-Dodat. Paris tem algumas...*sniff* ruelas cobertas, atualmente muito usadas para lojas e cafés.
— Nossa... É linda a forma como a luz do sol atravessa o vidro, não acha Mariéne?
— É... - me peguei olhando para ele sem querer - Vamos andando, ainda faltam quatro dessas por hoje — olhei o mapa, para desviar de sua visão.
— Botticelli me acuda! — lamentou atrás de mim e eu sorri, aproveitando que ele não via.
Algumas lojinhas estavam realmente decadentes, em contraste as fachadas das grifes de luxo. Haviam pessoas passando e Apolo quase esbarra nelas com seu entusiasmo de ver tudo de perto.
A próxima galeria que adentramos foi a Vivienne, a mais turística das quatro. Mesmo assim, o barulho era pouco além do jazz suave das cafeterias de luxo.
— Se esse lugar fosse uma pessoa, com certeza teria o nariz empinado.
— Certamente, o tipo que tem a coluna dolorida de tanto esticá-la. — me diverti com a imagem.
— Olha só quem está descobrindo o senso de humor! Ah, eu sou uma ótima influência não sou? — se inclinou um pouco, pondo o rosto de frente com o meu.
— Nos vossos sonhos...*sniff*... apenas. — era divertido entrar nas brincadeiras dele, eu só precisava me conscientizar e não ir longe demais. — *atchim!*.
— Eu nunca vou superar esse espirrozinho... — comentou ele.
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Nossa próxima parada foi a Galerie Colbert, onde não há lojas e as poucas pessoas que passam usam o lugar apenas como caminho.
— Sua roupa dá certinho pra uma foto aqui. — olhou com expressão de gato abandonado — por favor...
— Não sou fotogênica. Detesto fotos. *atchim!* — meu pai costumava fotografar tudo, nunca mais consegui encarar uma foto quando ele se foi.
— Prometo pra você: ninguém nunca vai ver isso além de nós, se quiser. Sei que na teoria ainda somos estranhos, mas eu juro que pode confiar em mim. E se eu fizer qualquer coisa, pode me dar um soco no estômago. — piscou o olho direito, como sempre. A diferença fora o arrepio em minha nuca, nunca ocorrido antes.
Não soube o que responder, sempre acreditei que aquela era uma fobia fácil e necessária de ser superada. Com certeza ele não insistiria se recusasse, e eu continuaria como sempre. Tirando o fato daquela ser a primeira vez em anos que eu ao menos quis tentar driblar a sensação ruim. "Vamos lá, princesa, você consegue!", ouvi a voz de papa em minha memória.
— Lembrarei do soco. Pois não, onde fico? — respondi.
— Primeiro, pegue meu cachecol. É uma imagem inspiracional, então eu preciso de cor.
— Certo...*sniff*... algo mais? — falei, inserindo o amarelo gritante em meu vestuário.
— Só...fica confortável. Eu não sou bom com isso, mas aprendi o básico com uma conhecida minha. Seja espontânea. — falou enquanto ajustava o ângulo do celular.
Me posicionei da primeira forma surgida em meus pensamentos, os braços em torno do tórax em forma de abraço, as mãos nos cotovelos, o rosto virado pra o lado e os olhos fechados numa expressão séria.
— Agora fala, Portinariiiiiiii! — falou Apolo de uma forma engraçada.
Não consegui conter a risada presa na garganta. Só então ouvi o som da foto sendo tirada.
— Perfeito, Monalisa. — comentou ainda olhando a tela do telefone.
— Mariénne. — corrigi.
— Eu sei, mas a partir de agora você é minha Monalisa. — revelou.
Os olhos dele encontraram os meus, e o tempo parecia ter congelado. Estávamos perto demais e eu nem mesmo vi quando me aproximei.
— Melhor seguirmos agora não? Nos restam dois caminhos. — avisei, rompendo seja lá o que estivesse acontecendo ali.
— Ah, com certeza. — para minha sorte, ele fez o mesmo.
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🎨Apolo🖌
Santo Velázques, eu estava tão ferrado... não, aquilo não estava acontecendo, não podia.
Eu não sabia de verdade a sensação de se apaixonar, todavia sentir o estômago revirar ao olhar nos olhos de alguém não podia ser um bom sinal. Muito menos a vontade repentina de beijá-la, sem nunca ter beijado ninguém antes.
"Nada disso Apolo, nem pensar!", eu mesmo me repreendi, "Ela é tinta demais para o seu pincel" completou o subconsciente. Minha irmã, a Dona Clarisse, a cidade mais romântica do mundo...tudo aquilo estava confundindo minha cabeça, nada demais. Aumentei a frequência de pedaladas para acompanhá-la.
— Qual o nosso destino? — perguntei.
— Passage des Panoramas. *sniff* — devolveu friamente.
Usei a deixa para dar o play na música, coincidentemente, Cold, de Maroon 5, era a primeira na reprodução.
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"Seja bem vindo a um dos lugares que mais refletem a essência de Paris." A ouvi dizer, ao passo que eu estava deslumbrado com a rua estreita e o teto coberto por placas e luminárias vintage.
De longe era a passagem com mais cafeterias entre todas que visitamos, mais pessoas passando. Numa das padarias, dava para sentir o cheiro de pão fresco do lado de fora. Tão maravilhoso que fez meu estômago roncar.
— Tô com fome, dá pra gente parar em algum lugar desses? — perguntei
— Definitivamente ...*atchim!*... não aguento mais andar.
Só aí eu percebi o quanto estava fraca. Espirrava o dia todo e fazia umas duas horas que tínhamos saído, alternado entre caminhar e pedalar. Quem sabia há quanto tempo tinha sido sua última refeição?
Passei o braço por suas costas e entramos na padaria fofa com aroma de pão quente.
— Deixa que eu faço os pedidos. — pedi a ela.
— Mas você não fala...*atchim!* — lembrou.
— Esqueceu que eu era obrigado a traduzir tudo até descobrir suas habilidades com o português? — arrumei a cadeira dela e segui rumo ao expositor.
Como o bom brasileiro que sou, só precisei de pouco de mímica e um leve toque de Google, para pedir um croque monsieur e um chocolate quente pra mim, junto com uma porção de mini baguetes recheadas acompanhadas por chá de alecrim e limão que ela escolheu.
Ela comia educadamente, parecia uma princesa. Enquanto eu controlava as mordidas e a vontade de pedir mais dois...ou três salgados.
— Só espero que a Senhora Castro nunca descubra nossa traição. — comentou ela enquanto adoçava o chá.
— Traição? Como assim?
— Nós, nos deliciando em outra Boulangerie (padaria).
— Ah tá! Nossa, verdade. — enfim, a lerdeza.
Mantínhamos uma conversa agradável, sobre a atmosfera do lugar e a paleta de cores da Passagem des Panoramas. Cada vez mais, eu me tornava ciente do quanto Mariene era incrível, e de como me desagradava a ideia de perder sua companhia quando eu voltasse para casa.
Nisso, logo após ouvirmos La belle de Jour, de Alceu Valença, a introdução de American clichê, de FINNEAS, chega aos nossos ouvidos:
"I'm an American cliché
Missing a girl in a French café
I say: How'd I get along so long without you?
And you say: Same"
(Eu sou um clichê americano
Sentindo falta de uma garota em um café francês
Eu digo: Como sobrevivi por tanto tempo sem você?
E você diz: Digo o mesmo)
Quando percebo, minha mão está sobre a dela. Quando ela percebe, a puxa.
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🖼 Mariénne📚
Não soube catalogar o que acontecia comigo na presença de Apolo. Só tinha certeza de que não era eu, mas sim uma Mariénne de muito tempo atrás, cuja vida não possuía o tom acinzentado por cima. Ter a mão dele sobre a minha foi estranho, não diria ruim, apenas...diferente. "Você é minha Monalisa", a voz murmurou em minha memória.
Óbvio que eu estava sendo ridícula, culpa da fome, do sono, daquela cidade e da atmosfera aconchegante. Não havia nada, somente uma cabeça atordoada com tantos espirros. A sensação era que formigas subiam pelo meu antebraço, a partir da região em que nossas mãos encostavam. Por reflexo, puxei a minha mão dali.
Algum cliente deixara a porta aberta e uma brisa fria entrou rompendo o calor e aconchego da cafeteria. Voltei a espirrar por vezes seguidas, fazendo cair o fone em minha orelha.
— Nada não, eu pego. — Apolo se ajoelhou para procurar embaixo da mesa, enquanto eu secava o nariz com um dos lencinhos disponíveis em minha bolsa.
As pessoas presentes no café começaram a se virar, logo todos os olhos estavam em nós. Ainda abaixado, me entregou o fone e perguntou se estava funcionando.
— Está, oui. *sniff* — confirmei.
De repente, uma salva de palmas explodiu por ali. Pessoas na entrada aplaudiam também. Uma senhora chorava numa mesa próxima.
— O que está acontecendo? — indagou Apolo.
— Pensam isso foi um pedido de casamento. — não tive forças nem para me preocupar com o equívoco.
— Isso o qu... ah, certo. Vou pagar a conta e a gente sai daqui.
Vi pelo menos cinco pessoas parabenizarem Apolo no caminho até o caixa, e outras quatro vieram até mim.
— C'était un petit malentendu... (isto é um pequeno mal entendido...) — comecei a justificar.
Apolo veio até mim, o belo sorriso aberto, entrelaçou os dedos nos meus e seguimos para fora do local.
— Que foste aquilo? Não desmentiste? — questionei.
— Claro que não. — afirmou tranquilamente.
— Por quois? Novamente com tal brincadeira. — não soube se ficava com raiva ou admirada com a atuação.
— A mulher no caixa falou que nossa conta seria presente pelo noivado. Eu que não sou bobo! — mal pude acreditar.
— Tu me surpreendes demais, sabias? — falei.
— Meus sinceros agradecimentos. Agora vamos para casa antes que apareça mais alguém nos dando parabéns. — inseriu as moedas na catraca.
— Mas ainda falta uma... — seria bom se ele colaborasse com o cronograma.
— Tenho toda a inspiração que preciso no momento, Monalisa. Não se preocupe. — piscou o olho esquerdo.
Aquele apelido, os olhos brilhantes, os cachos angelicais ao redor da face, eu realmente precisava ir para casa. Necessitava urgentemente falar com Nabi.
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🎨Apolo🖌
Eu estava com sérios problemas, Mariene marcava presença em cada pensamento meu. Nunca imaginei ficar tão animado por fingir ser noivo de alguém. Cheguei a fantasiar como seria e me assustei.
Depois de um bom banho morno, peguei o celular e mandei para ela a receita da canja de legumes da minha mãe.
"Segue a receita do caldinho milagroso. Cortesia de Dona Lisandra, vulgo minha mãe 🍲 😋" - (13:27)
"Merci, a ambos." - (13:32)
"Até amanhã, Monalisa. ✨♥️" - (13:34)
"Até, Apolo da Vinci." - (13:36)
Tamanho foi meu susto, ao me perceber sorrindo feito um bobo para o telefone. Mandei mensagem para a única pessoa possível.
"Atena Vitória Rodrigues, você andou fazendo alguma magia contra mim?" - (13:53)
"Primeiramente, obrigada por dar algum sinal de vida. Segundo, QUE?" - (14:02)
"Não que eu acredite e tal, mas eu sei que você pratica a lei da atração." - (14:04)
"E o que isso tem a ver? Espera, eu vou ligar." - (14:04)
Péssima idéia, agora com certeza eu seria descoberto. Como pude ser tão burro? Não levou um minuto para o telefone tocar.
— Qual é a boa? Perdeu a aposta? — adivinhou ela, o universo só poderia estar de brincadeira.
— Não... mas é sobre isso. — fiquei por um triz de desistir de contar.
— EU NÃO ACREDITO! Jurava que fosse impossível, mas cá estamos. Vou avisar a vovó pra tirar o Santo Antônio de dentro da garrafa. — Sério que ela falou para nossa avó? filha da mãe! E ainda fica rindo!
— Com que direito você contou pra vó? — perguntei.
— Ela quem perguntou, não pode mentir para os mais velhos. Fiz ela prometer não dizer a ninguém, nem pra mamãe. — ela deu de ombros.
— Claro, a integrante chefe do grupo de avós fofoqueiras vai deixar tudo no sigilo, CONFIA! — Senhor, me segura. Se me der força eu bato.
— Já era, como vai minha cunhadinha? — será que eu mereço isso?
— Não tem história de cunhadinha, não tá acontecendo nada. Eu só ando me sentindo estranho.
— Estranho tipo: borboletas no estômago ou no mundo da lua?
— Estranho do tipo: o cheiro dela me faz arrepiar.
— Puta merda. — exclamou Atena.
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Do outro lado do corredor, uma conversa bastante semelhante ocorria entre as duas melhores amigas. Uma se embebedando com chás e desculpas esfarrapadas, outra mandando conselhos e pedindo calma há milhares de quilômetros de distância.
🎨Apolo🖌 — Quinta-feira, 17 de fevereiro.
Acordei bem mais cedo, em relação ao meu horário natal, comecei com muito pesar a iniciar o recolhimento das minhas coisas. Aproveitei o tempo a mais para dar uma geral no quarto.
Mais tarde do que nos outros dias, ouvi as familiares batidas na porta. Marienne, a prancheta, o mapa enrolado e... uma sacolinha?
— Vosso tablette, estava pronto há dias, acabei esquecendo de pegá-lo. — O lilás do cachecol combinava muito bem com o tom de sua pele.
— Certo... para onde iremos hoje? Vejo que se sente melhor. — falei, colocando o fone esquerdo nela.
— E estou deveras recuperada. A rota de hoje é perto do Sena. — disse, arrumando-o.
— Em nome de Tarsila, que não seja longe. — eu não aguentava mais pedalar.
— É nossa última volta, deve ser a mais detalhada. Pretendo vos mostrar a cidade da luz, a noite. — Falou, soando orgulhosa do roteiro que havia planejado. "Tu iria até pro brasil de bicicleta se ela pedisse", acusou minha consciência.
— Pois bem, Monalisa. — guardei o Ipad e saímos.
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Em pelo menos metade do caminho, eu repetia minha aflição com a bicicleta, insistindo que estava velha demais e era perigosa.
— Se eu morrer nesse troço, avise Atena que a cama não fica pra ela. Nem minha suíte. — parecia até algo sério.
— Não vais morrer, é completamente seguro. — afirmou.
Paramos quase em frente ao Museu do Louvre, o sol acabava de se pôr.
— Pensei tê-la proposto um tour não convencional.
— Já viste algum monumento acendendo?
— Não lembro. — falei a verdade.
— Allors, 10 ... 9 ... 8.. — iniciou uma contagem.
— ... 7 ... 6... 5.. — continuei.
— 4,3,2...começou! - continuamos juntos. No "1" ela apontou para a pirâmide de vidro que começava a acender.
Aos poucos, a luz amarelada tomava conta de tudo. Pouco ofuscada pela camada de neve. Um verdadeiro espetáculo incomum. Se alguém soltasse fogos, facilmente confundiria com a comemoração de ano novo.
Chegamos aos arredores da place de la concorde, os postes já estavam acesos.
— Passe a mão pela água da fonte. — indicou Mariene.
— Tá doida? Nesse frio?
— Confie em mim. — sorriu e inclinou a cabeça. Lá fui eu.
Chegando um pouco mais perto vi que a água não se mexia.
— Uau! É gelo! — parecia acrílico transparente, moldado como jatos d'água.
— Apesar de não estarmos em valores negativos agora, a temperatura ambiente conservou uma camada superficial de gelo, muito frágil. — explicou. — Porém não saímos para ver água congelada, sigamos.
Pedalamos pela conturbada Champs Élysée, estacionando as bicicletas na borda da praça do arco do triunfo.
— Auf! Merde. — compreendi o xingamento.
— Que foi? — busquei entender.
— Algumas vezes por ano, podemos ver a lua cheia quase alinhada com o arco. Todavia calculei mal o tempo e chegamos atrasados! — bateu a palma da mão na testa.
— Relaxa, podemos fazer outra coisa. — sugeri.
— Era apenas isso que eu tinha planejado por cá. Uma breve passagem.
Não gostei de ver a frustração no rosto dela, gastei boa parte dos meus neurônios pensando em como reverter aquilo, até ter uma ideia, digamos, estupidamente brilhante.
— Fica detrás dessa coluna, fecha os olhos e conta até vinte. — se ela já me via como um besta, eu me tornaria o maior de todos.
— Qual a finalidade?
— Não está claro? Esconde-esconde no Arco do Triunfo!
— Os transeuntes nos tirarão por loucos. — hesitou.
— E daí? Podemos convidá-los a se juntar na brincadeira. — brinquei.
— Que seja, vamos. — e se debruçou no pilar.
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🖼 Mariénne📚
Duas horas de sono, muito pouco para meu corpo. O suficiente para tornar-me uma criança, brincando de esconde esconde com outro ainda mais infantil.
— ...dix-neuf, vingt! — competitiva como sempre fui, andei sorrateiramente ao redor dos pilares, um por um.
Um tipo de tensão divertida percorria meu corpo, me sentia leve. O fone, que eu esqueci estar em meu ouvido, iniciou uma bossa nova familiar: La fille d'Ipanema (garota de ipanema), a versão original em português. Do outro lado, captei o resquício de riso, vindo do pilar oposto. Com passos sutis, me aproximei e olhei de uma vez para o lado onde acreditei estar Apolo. Ao ser explicitamente enganada, a gargalhada dele explodiu, exatamente atrás de mim. Fui pega pela cintura, ambos rindo sonoramente encostados na estrutura.
— Não acredito que você caiu nessa! — falou entre respirações profundas.
— Tampouco eu! — disse, finalmente acalmando o fôlego.
Meio segundo em seguida, nos demos conta do arranjo em que nos encontrávamos. Eu, envolvida por seus braços e nossas mão entrelaçadas. Era constrangedor, mas eu não queria realmente sair, notei quando Apolo hesitou soltar-me.
— Tem algum lugar para lanchar aqui? — questionou ele.
— Há um quiosque por perto. — revelei — nada demais, baguettes e água. Talvez sorvete.
— Eu adoraria sorvete, combinaria com a neve na minha roupa. — a ironia visível na fala dele.
Caminhamos lado a lado, rindo e falando alto. Ele comprou duas baguetes e eu paguei pelos sucos de caixinha. Voltamos ao arco, sentamo-nos com vista para as estrelas e a lua cheia, tão brilhante que possuía um halo ao redor.
— Incrível não acha? — ele iniciou.
— O céu? Com certeza. Tivemos sorte dele não estar coberto.
— Nós, meros humanos, desfrutando de tudo isso. Donos do universo por uma fração de segundo. — expôs.
— As estrelas não pertenciam ao Homem de negócios? — fiz referência a Le Petit Prince (o pequeno príncipe).
— Isso é o que ele dizia, enfim. Ainda podemos ser donos da lua. — Mordeu a baguete novamente. E tomou um gole do suco.
— Vais retratar esta cena em tua criação? — interroguei.
— Não sou habilitado a pintar o céu, e já existe uma noite estrelada. Mas... esse sentimento... não me perdoaria se perdesse a chance de recordá-lo. — estava genuinamente admirado.
— Consegue descrever para mim? — quis saber.
— Acho que não. — respondeu.
Ouvi seu suspiro profundo, e logo retomou o diálogo.
— Já amou alguém na vida, Mariénne? — mudou brusca e aleatoriamente de assunto.
— Aos quinze, achei que sim. Até eu mesma perder o interesse e terminar. Estive em outros dois relacionamentos depois disso, o mais duradouro levou dois meses. Aos dezoito, os estudos tomaram todo meu tempo. — sem sono, sem filtro. Pareceu-me tão normal aquilo, tal qual fôssemos amigos de longa data. Apenas com Nabi eu falava de temas assim.
— A única criatura não-familiar que realmente gostei foi um gato, Aquiles. Fugia toda noite pra encontrar a gata de Angelina, minha vizinha, numa dessas foi atropelado e morreu. Eu tinha uns nove anos. — fez graça, ainda reflexivo.
— Sinto muito. — falei eu
— Eu que deveria sentir, sabe, pelos seus pais.
— Minha mãe está viva, nós só não nos falamos muito.
— Entendi, desculpa se toquei num ponto frágil. — pareceu temeroso, fofo.
— Tudo bem, nenhuma de nós duas soube lidar com a perda do meu pai. — tomei outro gole do meu suco.
— Tenho certeza que ele foi um homem extraordinário. — disse.
— É, ele foi. — confirmei.
— posso fazer uma última pergunta? Não precisa responder se não quiser. — pediu.
— Vá em frente. — indiquei.assentindo com os meus ombros.
— Vocês tinham uma boa relação? — senti um baque.
Eu e meu pai, nossa vivência resume metade da minha vida. Eu sempre fui mais próxima dele do que de mamãe. Na partida de papa, tudo que eu era foi junto.
— Sim, tínhamos. — ele pausou a música — Eu não sou totalmente francesa, minha mãe é do Senegal. Quando eu nasci, viemos morar em Paris. Nunca foi fácil ser quase sempre a única criança negra nas escolas de elite que meu pai me colocava. "Intrusa", era como me chamavam. Papa virava uma fera, por isso eu sempre trocava de escola. Ele era meu Porto Seguro, quem me ensinou a amar a arte, quem curava minhas feridas. Sem papa, me deixei levar pela necessidade de superar as expectativas do mundo. — parecia ter uma rocha presa em minha garganta
— Seja a melhor, assim não terão o que dizer. — incluiu Apolo.
— Isso. Não funcionava sempre, mas dava certo.
— E sua mãe? —perguntou de forma cautelosa, mas àquela altura tudo que eu precisava era por pra fora os sentimentos que eu não me permitira sentir.
— Mama, ela amava muito ele. Era recíproco, dava pra ver. Nós duas nos tornamos indiferentes, porque eu nunca parei de buscar o sonho de papa, mesmo que isso sigficasse não me deixar ser abalada pelo luto. Brigamos, me mudei. Nossa ligação hoje é através do Tio Claude, o melhor amigo do meu pai. Ele foi como a rede de apoio para que nenhuma de nós acabasse quebrando com o impacto.
Ouvi a respiração de Apolo, cada vez mais profunda. Então começou a falar.
— Quando eu tinha 5 anos, descobri que gostava de desenhar e brincar com tinta. Sai espalhando aos quatro ventos que seria pintor. Sempre foi tido como brincadeira de criança, até que eu fiz treze anos, e Atena passou em arquitetura. Meu pai sempre quis que um dos filhos fosse médico, igual a ele, a favorita sempre tinha sido minha irmã, já que eu nunca me interessei no ramo apesar das boas notas. Tudo recaiu pra mim do dia para a noite, até meus dezoito. Passei em artes plásticas sem que ele soubesse e, mesmo calado, eu via o desgosto na cara e em tudo que dizia. Minhas crises de pânico começaram a aumentar, minha sorte foi ter mamãe e Atena comigo. Tudo ao meu redor tentava me engolir, partindo da escola, com as piadas frequentes sobre meus olhos, até chegar em casa, onde meu pai pressionava cada décimo de nota, dizendo que eu seria um Zé ninguém se não o ouvisse.
— E cá estamos, duas pessoas psicologicamente abaladas expondo seus demônios para o céu. — comentei.
— Merecemos um brinde, de suco de caixinha. — sorriu com pesar, o mais belo dos sorrisos tristes.
Apolo se levantou e estendeu a mão para me ajudar. Jogou nossos resíduos no lixo, exceto pelas caixinhas de suco que ainda tomávamos.
— Um brinde, a todas as pessoas psicologicamente ferradas. — estendi a mão.
— Àqueles que contam seus segredos ao luar. — continuou ele.
— À lua que ouve, e pelas palavras por ela protegidas. — Encostei a embalagem na sua, nossos olhos se encontrando.
— Um brinde a...como era nome do seu pai?
— Jean Baudelaire.
— Um brinde a Jean Baudelaire! —me emocionei a ouvir aquilo.
— Em nome de arte! — falei, estávamos cada vez mais perto.
— E...claro, um brinde às coincidências. — sussurrou ele, pondo uma mecha do meu cabelo para trás, pouco antes de extinguir o resto de distância entre nós.
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🎨Apolo🖌
Era um sonho, só poderia ser. Meu corpo pareceu acender quando meus lábios encostaram nos dela, meu primeiro beijo, com provavelmente o amor da minha vida. Da minha parte ao menos, parecia amor, não havia outra saída. Eu sorri quando nos afastamos, ela parecia envergonhada. E se eu acabei forçando? E se ela na verdade não quero nada? Santo Deus, o que eu fiz?!
— Desculpa... eu... não pensei antes...desculpa... — tentei me explicar.
— Não precisa se desculpar. — declarou, me puxando de volta para ela em um outro beijo.
Só podia ser sonho, eu não merecia tanto
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Uma neve fina começou a cair, parecia glitter voando sobre nós. De alguma forma, meu celular deu o play sozinho, e Snowman, da SIA, ecoava para nós.
— Me daria a honra desta dança, Monalisa? — me inclinei em reverência.
— Com prazer, Apolo da Vinci.
"I want you to know that I'm never leaving
'Cause I'm Mrs. Snow, 'til death we'll be freezing
Yeah, you are my home, my home for all seasons
So come on, let's go
Let's go below zero and hide from the sun
I love you forever where we'll have some fun..."
(Eu quero que você saiba que eu nunca vou te deixar
Porque eu sou a Sra. Neve até que a morte nos congele
Sim, você é minha casa, minha casa por todas estações
Então vamos, vamos
Vamos abaixo de zero e nos esconder do Sol
Eu te amo para sempre e vamos nos divertir)
Ainda sob efeito do momento, subimos nas bicicletas rumo a pousada, a corrente da minha rangeu e rompeu nas primeiras pedaladas.
— Completamente segura, não é? — brinquei com a situação usando as palavras dela há horas atrás.
— Sacré bleu! — exclamou Mariene.
— Tem algum ponto onde eu possa trocar? — perguntei.
— Há um logo ali, entretanto está vazio. — apontou para as cinco catracas metros à frente.
Pus a bicicleta na catraca, não deixando que o imprevisto arruinasse o momento. Para nossa sorte, minha criatividade estava a mil
— Me empresta a tua, eu pedalo e você vai na frente. — uma cena super comum no Brasil. Ela arqueou as sobrancelhas, incrédula.
— Não tens um plano?
— Esse, cara Monalisa, é o plano. — continuei.
— O veículo é meu, eu pedalo. — sentenciou.
— Sou mais alto, e certamente mais pesado. — argumentei.
— Não és nem mesmo um palmo superior. — revirei os olhos, ela era incrível. Mesmo insistindo sem necessidade.
— O cavalheirismo não está morto, mademoiselle, admiro seu posicionamento mas... convenhamos, não é justo que me carregue não é? — me sentei.
— Não foi feito para duas pessoas. — avaliou a bicicleta de uma ponta a outra.
— Ah, querida, se tem uma coisa aprendida desde cedo na minha terra é que sempre tem espaço para mais um. — segurei sua mão e a ajudei a subir. — com ou sem emoção?
— Como é que.... Aah! — dei partida.
Lá estávamos nós, deslizando pelas ruas da Cidade do Amor e Luz. O vento levando seu perfume suave em direção ao meu rosto. Eu me sentindo o cara mais sortudo do mundo.
"If I could ride a bike
I'd zoom around the world
With you sitting there behind me
I'll take you to places
Past several faces
Just livin life so carefree..."
(Se eu pudesse andar de bicicleta,
Eu pedalaria ao redor do mundo
Com você sentada atrás de mim.
Eu te levaria pelos lugares,
Passando por vários rostos
Vivendo a vida tão livre...) — If I could ride a bike, Chevy & Park Bird.
🎨Apolo🖌
Cheguei em casa e peguei o celular, duas chamadas perdidas de mamãe, e uma mensagem dela.
"Se ainda não arrumou a mala, arruma agora, seu voo sai às dez e você sabe que o fuso daí é diferente." - (13:36)
"Ah, se puder traz um vinho pra mamãe viu. Vem com Deus, Zeus te proteja no céu" - (13:37)
Que estranho, ainda faltavam dois dias. Achei melhor avisar ela para que não se preocupasse.
"Relaxa mãe, já comecei a ajeitar tudo, ainda faltam dois dias 🤣🤣🤣" - (14:25)
A resposta chegou minutos depois:
"Dois dias nessa sua cabecinha de vento, só se for. Eu quem comprei as passagens criatura!🙄😑"
Corri até meus documentos, abri os comprovantes, muitos papéis caindo com meu desespero. Acabei enfim encontrando o que procurava.
= PARIS - BRAZIL, 18 DE FEVEREIRO - 05:45 fra / 22:45 bra. =
Minha respiração acelerava mais e mais, eu estava indo embora. Em algumas horas estaria com um oceano inteiro de distância dela, sem aprovação alguma. Fadado ao fracasso em todos os sentidos. Disparei murros no travesseiro, se eu gritasse Mariene me ouviria. Os desenhos e algumas telas que comprei nesses dias, em vão. Me esforcei como pude, as lágrimas não saiam, meu corpo formigava.
Não conseguiria dizer a ela, com que cara eu ia bater na porta dela pra dizer "ei, eu estou apaixonado por você, mas vou embora daqui algumas horas porque não sei nem controlar minha própria vida.", pensei. Ótimo, aumentava muito minhas chances. Chances essas que nem poderiam existir, afinal, quem sou eu? Um idiota, nada além disso. Mariene merecia alguém melhor, alguém que não dependesse emocionalmente de um hobbie inútil. Ela merecia o melhor, e não era eu.
Enfiei tudo de todo jeito na mala, tremendo, recolhi as telas e empilhei tudo num canto. Ia entregar todas a ela, porque, querendo ou não, Mariene tinha sido a inspiração para cada traço, minha Monalisa desde que a vi pela primeira vez e seus olhos se fixaram na minha mente.
Não soube como passei a madrugada, devo ter adormecido em algum momento. Não me lembrava do que tinha escrito na carta, só esperava que fosse legível. Vi o sol na janela, faltava uma hora para o embarque, conferi se tudo estava no lugar, pus o desenho e as pinturas na porta do quarto de Mariene, a carta por cima. Saí, me obrigando a não olhar para trás.
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🖼 Mariénne📚 — Sexta-feira, 18 de fevereiro.
Ouvi o despertador tocar às cinco como o todo dia útil da semana, o diferencial era que eu havia dormido muito mais cedo e estava... pelas minhas contas, com sete horas e meia de sono. Fiz minha higiene normalmente e optei por usar um dos casacos amarelo bebê no fundo do armário. Abri o celular enquanto tomava meu chá matinal e vi uma mensagem de Apolo, mandada apenas alguns minutos antes.
Minha foto, a que o deixei tirar na Galerie Colbert. Eu tinha dito para não me mostrar, mas ver aquele pequeno passo foi gratificante. Abaixo estava uma legenda: "Monalisa em traje de inverno, Por Apolo Rodrigues.", me recordei do dia anterior, da brincadeira, os brindes e o beijo. O melhor da minha vida. Lembrei da sensação de estar parada no tempo, isolada do mundo. Nada mais importava.
Não percebi o fone dele ainda em meu ouvido até que fosse tarde demais para bater em sua porta, mas, pelo horário da mensagem, ele estava acordado. Terminei o chá e segui para seus aposentos.
Ao abrir a porta, dois quadros estavam encostados na parede, no primeiro eu estava de costas, no cômodo secreto sob a biblioteca, admirando as pinturas. A vela em minha mão era o ponto de luz em toda a figura, espalhando iluminação pelo cenário. No segundo, A rue Crémieux parecia infinita, a silhueta da torre Eiffel ao longe. O brilho do sol ao fim da tarde, coberto pelas nuvens do temporal que chegaria logo depois. Presa pela moldura do quadro dois, um envelope.
Abri exasperada, sem saber o que esperar. Um desenho meu, no sofá de sua sala, sorrindo com a taça de vinho na mão. Uma lembrança do dia em que nos tornamos partes significativas da vida um do outro, mesma data em que eu passei a apreciar cada vez mais sua companhia.
Feliz, abri a carta, notei pequenas manchas circulares e o mau pressentimento aflorou em mim.
"Paris, 17 de fevereiro de 2022.
Querida Monalisa,
Acabei de descobrir que meu voo é em poucas horas e, como o covarde que sou, não consigo avisá-la pessoalmente. Tenho medo que, perto de você, não queira mais voltar. Porque você, Mariene, é a pessoa mais extraordinária que já conheci, provavelmente também a mais especial que conhecerei. Não me dei conta da sorte que tive quando você tropeçou em mim, seria apenas um esbarrão numa moça bonita, mas foi além. Além da sua personalidade brilhante, do sotaque pesado e gostoso de ouvir, do seu cheiro de Lavanda e do sorriso raro, o qual tive a chance de apreciar mais de uma vez. Peço desculpas por tentar por tudo isso numa pintura. Não te mereço, sei disso, mas fui egoísta e imbecil para me aproximar e lhe tomar um beijo. Eu te amo, e sou tão lerdo que levei quase uma semana pra perceber. Sou o homem mais sortudo do mundo, graças a você...e às coincidências.
(Ps: a lua sempre foi mais sua do que minha mesmo, assim como meu coração.)
Do Olimpo e além,
A.R. "da Vinci"."
Não soube o que pensar, fiquei estatística, raiva e tristeza misturadas. Ele não tinha o direito, nem mesmo a permissão de ir embora sem saber que tudo aquilo era recíproco.
Tentei ligar três vezes e não fui atendida. Mandei diversas mensagens antes de perceber que estava bloqueada.
Sequer me dei ao trabalho de trocar o pijama. Corri para fora do prédio e quase entrei em colapso esperando um táxi, se Apolo pensava que ficaria por aquilo mesmo está incontável mente enganado.
"O maior medo que deve ter na vida é o de se esquecer do que é capaz.", "Seja espontânea."
O tão esperado veículo amarelo estacionou poucos metros a frente, um homem já tinha aberto a porta e estava prestes a entrar quando eu me joguei no carro. Pedi desculpas ao senhor engravatado e me dirigi ao taxista:
— Para o aeroporto, o mais rápido que puder. Evite sinais.
Quem se importaria se eu faltasse a faculdade pela segunda vez na semana? A verdadeira Mariénne Baudelaire estava de volta, graças ao idiota com complexo de inferioridade e prestes a ir embora. Queria esganá-lo, ao mesmo tempo que queria abraçar e beijar ele até perder o fôlego.
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🎨Apolo🖌
Nada além da sensação de vazio enquanto fazia o check-in. O voo atrasaria meia hora porque nevou durante a madrugada e não seria seguro decolar sem limpar a pista. Ótimo, como se meus instintos não estivessem gritando pra não seguir em frente. "É o certo a se fazer. Ela fica melhor sem mim.", repetia eu, como um mantra.
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Recém chegada de viagem, Nabi bate a porta do pequeno apartamento de sua melhor amiga. Ninguém abre. Liga para o telefone e desliga ao ouvir o toque do lado de dentro do cômodo. "Estranho, Énne sempre acorda cedo e ela nunca sairia sem o celular", pensou.
O único contato que lhe restava era o da mãe da garota, sabia que elas não eram muito chegadas, mas Mariene estava sumida.
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Um número desconhecido brilhou no telefone de Dália Baudelaire. Ela nunca atendia números estranhos, mas apertou o botão verde sem querer.
— Tia Dália, a senhora sabe onde Mariénne está? — uma voz feminina, com sotaque forte e muito nervosa soou.
Mariénne, sua filha. Faziam dois anos que não se encontravam e aquele era o maior arrependimento de todos na vida. Agora não sabia onde ela estava, sua própria filha.
— Não. O que aconteceu? — tentou não deixar aparentar o medo na voz.
— Não sei, acabei de chegar de viagem,eu ia fazer uma surpresa mas ela não está em casa e não responde mensagens nem ligações. — explicou a garota.
— Estou indo para aí. — e desligou.
Outro problema é que Dália não tinha noção onde ficava o apartamento da filha. Por sorte, conhecia alguém acostumado a visitá-la.
— Claude, preciso que me leve ao apartamento de Mariénne, rápido, sem perguntas.
— Estou indo, seja o que for, mantenha a calma.
Em questão de minutos, os três estavam reunidos no corredor estreito que dava para o quarto.
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🖼 Mariénne📚
Eu estava quase tomada pelo desespero, ainda estávamos a dez minutos de distância e o medo de não dar tempo me sufocava.
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🎨Apolo🖌
Imagino a alegria do meu pai. "É o certo a se fazer". Lembro do sorriso de Mariene. "É o certo a se fazer". Tenho um vislumbre do futuro. "É o certo a se fazer". Torço para não ter magoado ela. "É o certo a se fazer".
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— Vocês não tem nem ideia de onde ela possa estar? É muito cedo para já ter ido à faculdade. — questionou a garota asiática.
— Se soubéssemos, nem estaríamos mais aqui, não acha? — respondeu a mulher, visivelmente alterada.
— Precisamos manter a calma, entrar em pânico não vai ajudar agora. — o homem tentou tranquilizá-las.
— Não seja hipócrita, Claude, está prestes a furar o chão de tanto andar. — rebateu Dália.
Em meio ao clima caótico, Nabi encontra a carta caída no chão. Sem saber ler nada do que estava escrito na folha, perguntou se algum dos dois mais velhos saberia.
A senhora Baudelaire empalideceu, a carta estava em português. Língua que seu falecido marido fizera questão de ensinar para ela e a filha. Pela leitura silenciosa, viu que se tratava de uma declaração amorosa, uma despedida. Um apelo. Sentiu o peito arder em lembrança do amor de sua vida, junto com o amargor de não saber nada sobre a vida da filha.
Não tinham tempo para dor ou lamentação, a melhor aposta era que Mariénne estaria atrás desse rapaz.
— Todo mundo para o aeroporto, agora! — gritou a mulher mais velha.
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🖼 Mariénne📚
Finalmente o táxi parou em frente ao destino final, não estava com dinheiro ou alguma cartão comigo então o mandei esperar para que eu pudesse pagar a ida e a volta.
Muitos olhares recaíram sobre mim quando entrei, pouco me importava. Eu possuía um objetivo, um par de olhos diferentes não poderia ser tão difícil de achar, a menos que... nem pensar!
Me debrucei no balcão da recepção, o atendente apenas ergueu o olhar para mim, ágil como um bicho preguiça. Parfait!
— Bom dia, como posso ajudá-la? — falou na maior plenitude.
— Quando sai o voo para o Brasil? — eu estava quase em cima do balcão.
— Saiu há trinta minutos. — checou no monitor.
Não... impossível! A conta não batia. Continuei rodando pelos corredores e alas. Lojinhas, lanchonetes, todo lugar onde um rapaz de pelo menos 1,80 pudesse ir atrás de comida, ele realmente adorava comer e estava sempre com fome.
Tentei ligar outras dezenas de vezes prestando atenção a todo som de telefone ao alcance de minha audição.
Perdi a paciência, no limite da decência humana. Comecei a gritar e chamar seu nome.
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🎨Apolo🖌
Entorpecido, com apenas um dos lados do fone ligado, já que o outro eu tinha deixado com ela, comecei a reconfigurar o iPad para matar o tempo. De frente para o janelão do prédio e com as costas apoiadas, tive por vezes a impressão de ouvir meu nome, entretanto eu não seria o único Apolo no mundo, seria?
"APOLO DA VINCI!"
Certo, era eu. Mal pude acreditar que ela estava ali, Mariene tinha ido atrás de mim, não importava o motivo, fosse se despedir ou simplesmente me bater, ela estava ali, por mim. Larguei tudo onde estava e corri ao seu encontro.
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🖼 Mariénne📚
Meu coração quase sai pela boca, eu estava certa e Apolo estava ali. Corremos feito loucos pro meio do aeroporto. O choque quase nos derrubando, Apolo me segurou pela cintura e girou como se estivéssemos num filme. Eu sorria abertamente, ele ainda mais. Me abraçou com força, parecendo não acreditar que eu estava realmente ali. Dei um soco em seu estômago.
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🎨Apolo🖌
— Aí! — me queixei.
— Isso é por não ter me avisado. — estapeou minha cara
— Aí!
— Isso é por cada gota de desespero que me fez passar hoje, e por ter me feito sair de casa de pijama, e por ter — esbravejou.
Mariénne entrelaçou os braços pela minha nuca e grudou os lábios nos meus, até que precisássemos parar para respirar.
— E isso... é para dizer-te que eu sinto o mesmo, Apolo, eu te...
— ILS SONT LÀ! (Lá estão eles!) — berrou a voz de um homem, não muito distante.
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🖼 Mariénne📚
Reconheci a voz do meu tio Claude, junto dele estavam Nabi e... mamãe? Minha melhor amiga correu em minha direção, me puxando para longe de apolo e pondo a mão na minha testa.
— Enlouqueceu? O que te deu para sair assim sem avisar literalmente ninguém? Quem é esse cara? — começou a me encher de perguntas.
— Eu estou bem, só descobri que nem sempre vale a pena seguir a razão. — olhei para a causa de tal descoberta, ele estava numa chamada de vídeo explicando o que estava acontecendo para duas vozes femininas. Supus serem a mãe e a irmã.
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🎨Apolo🖌
Não poderia ser uma hora melhor, ou pior, para que mamãe e Atena ligassem, de vídeo ainda por cima. Me embolei todo para explicar o porque eu não estava embarcando naquele momento, e o que significava o barulho ao meu redor.
— É barraco? Vira a câmera que eu quero ver! — exclamou minha irmã.
— Apolo o que está acontecendo meu filho? — insistiu mamãe — Se meteu briga? Você não é disso meu filho.
— Em nome de Matisse, se acalmem! — pedi.
A garota com traços asiáticos, Nabi, foi para cima de mim, segurada pelo homem que acompanhava a "comitiva".
— I don't care if understand me or not, You are a stupid idiot and i don't need a verbal language to make you know this! (Não ligo se me entende ou não, você é um estúpido idiota e eu não preciso de linguagem verbal pra te mostrat isso!) — Entendi que me xingava e agradeci pelo aperto firme do cara.
— Nana, tu n'as pas besoin de ça. (Nana, não precisa disso.)
— Cette... insolente t'a fait pleurer ! Je peux le voir sur ton visage. (Esse... insolente te fez chorar! Posso ver no seu rosto.)
— Como assim você fez alguém chorar? Vira a merda da câmera agora Apolo! — "pediu" Atena.
— Não foi proposi... — tentei apaziguar a fera.
— Écoute, petit chérie, je connais toute l'histoire. Ayant fait pleurer celui qui va pleurer, nous sommes tous les deux d'accord pour dire que c'est un idiot. (Olha aqui queridinha, eu sei de toda história. Tendo feito seja lá quem for chorar, ambas concordamos que ele é um idiota.) — espera, eu conhecia aquela última palavra. — Qui, sain d'esprit, abandonne la personne qu'il aime sans même se battre? (Quem em sã consciência abandona a pessoa que ama sem nem lutar?) — Atena estaria realmente me defendendo?
— Avez-vous vu Énne? Au moins une autre personne sensée ici. Au fait, qui es-tu? (Viu Énne? Ao menos outra pessoa sensata aqui. A propósito, quem é você?) — deu de ombros a amiga.
— Sa sœur. (irmã dele.) — falou minha defensora de fachada como se contasse uma piada, em seguida piscando para a menina.
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🖼 Mariénne📚
Passada a pequena discussão, Nana cochichou em meu ouvido:
— Eu desisto da ideia de matá-lo se você me arrumar o número dela. — propôs.
— Tá. — Tive "pena" da pobre garota sendo alvo das investidas da minha amiga, mas ao menos ele ficaria em paz.
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Nos sentamos todos juntos num espaço de assentos vazios, eu ao lado de Apolo e o restante na fileira da frente, Nabi segurando o telefone dele. Explicamos o básico e, quando olhei, o rapaz à minha esquerda parecia mais pálido que o normal.
— Aquele... é... Claude LeBlanc...? — perguntou boquiaberto.
— Oui, meu tio Claude. Não precisa se apavorar. — uni nossas mão, a dele estava gelada.
— Sócio de três das maiores galerias da Europa, um dos maiores nomes da crítica artística atual...seu tio?
— Como eu falei antes, pode ficar tranquilo, já te falei como ele é legal. — tranquilizei.
— Acho que você não está entendendo... esse cara é meu ídolo! Eu já cheguei a sonhar um quadro meu numa das galerias dele mas nunca, em meus vinte e um anos de existência, pensei em vê-lo pessoalmente. Quanto mais me salvando daquela pinsher da sua amiga! — não pude aguentar o riso.
Estávamos tão entretidos que não percebemos os cinco pares de olhos em nós.
— Alors, por que não me ligou, Mariénne? É fácil resolver isso. — questionou tio LeBlanc. Traduzi tudo para Apolo.
— Eu só soube hoje de manhã. — respondi.
— Eu... tudo bem eu estava em uma crise de pânico e não ia incomodar ela. — se defendeu ele.
— Já que estamos reunidos, proponho que volte para o Brasil, busque o restante de seus pertences e termine os estudos aqui. Tem até setembro para dominar o idioma garoto.
Uma típica proposta irrecusável, a melhor possível. Apolo estava hesitante e paralizado, apertando minha mão com força. Todos aguardavam em silêncio.
— Agradeço a oportunidade, mas não posso aceitar. — ele estava louco o quê?
— Não traduzirei esta insanidade. — eu disse.
— Mariene não posso me manter aqui. Minha faculdade está lá, tudo ficou lá.
— Mas você deixou seu coração comigo, e eu estou aqui. — segurei seu rosto em minhas mãos.
— Exatamente por isso, que eu hesitei. Estou prestes a sugerir um relacionamento a distância. — sorriu.
— Você me fez perceber que há sempre um jeito pra tudo, mas ok. Vou avisá-lo então. — mentir para o bem é errado?
— Il remercie mais prétend que le collège est là et ne peut pas rester ici. (Ele agradece, mas alega que a faculdade está lá e não pode se manter aqui.) — revirei os olhos, bem arquitetado.
— Modéstia parte, ele só precisa de uma carta de recomendação minha. E bem que eu gostaria de saber o preço daquela rua Crémieux. Aceita quinze milhões nela garoto? — eu sabia que ele faria algo do tipo.
— Ele disse que pode te dar uma carta de recomendação. E quer saber se você vende o quadro da rua Crémieux por 15 milhões de euros.
— Meu Deus, MEU DEUS! — passou a mão no rosto.
— Quer dizer que isto é um sim? — perguntei, mesmo já sabendo a resposta.
— Não. Isso é um com certeza. — me abraçou.
Remarcada a data de retorno, fomos todos juntos comemorar na padaria da Senhora Castro.
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Ao final da noite, ajudei Apolo a se reestabelecer no quarto, seu futuro lar em algumas semanas. Cansados de toda a agitação do dia, nos jogamos no sofá e nos servimos com água, já que era a única coisa disponível.
— Foi um dia tão louco que até esqueci de te pedir um negócio. — começou a dizer.
— Fale. — prossegui eu.
— Quer namorar comigo?
Realmente espero que o beijo tenha servido de resposta.
🎨Apolo🖌
Cinco anos depois...
Subi no palco improvisado dentro da galeria, dezenas de repórteres e pelo menos uma dúzia de câmeras voltadas para mim. Apesar do nervosismo, eu estava confiante. E também, tinha ensaiado o discurso várias vezes na última semana. Minha família e amigos estavam na fileira da frente, Mariénne me acalmando através do olhar. Respirei fundo, acenei para os tradutores e comecei, em francês:
— (Boa Noite, "É uma verdade universalmente conhecida que um jovem, em posse de boas notas, busca um emprego socialmente valorizado." Bem, eu pensava esse mesmo absurdo há alguns anos, e foi tal tipo de pensamento que quase me impediu de chegar até aqui. Reconheço a realidade onde pessoas com vocação artística ainda não são vistas como futuras atuantes do mercado de trabalho nas áreas que desejam, e essa não é uma realidade somente brasileira, mas sim do mundo todo. Por toda falta de apoio, seja familiar ou governamental, grandes nomes são perdidos para os empregos convencionais, é triste, é a verdade. Sou uma prova viva dos poucos que tiveram sorte de poder seguir seus sonhos, só não estou satisfeito com isso, afinal não é justo. Assim, acreditando nos potenciais escondidos pela desigualdade ou repressão, é com muita alegria que celebro a inauguração do projeto Cores do Amor, uma grande associação entre a Galerie Baudelaire e instituições de ensino públicas ou particulares. Para cada amante de arte, para cada indivíduo que a ama o que faz, tanto quanto eu amo misturar cores numa tela, quero que todos possam ter seu trabalho reconhecido. Convido agora a senhorita Mariénne Baudelaire, diretora geral da galeria, para nos agraciar com algumas palavras.) — estendi a mão e aproveitei nossa proximidade para sussurar "vai lá amor, arrasa" e roubar um selinho.
Me sentei na cadeira onde ela tinha estado, se eu não já tinha me emocionado na minha vez, ver minha namorada — se tudo desse certo, futura esposa — sob os holofotes, fez as lágrimas desabrocharem em mim.
— (Boa noite a todos. Me sinto honrada em fazer parte deste projeto, hoje damos um passo à frente na difusão da arte em todos os seus formatos. Inicio lhes perguntando: Quanto vale uma obra prima? Creio que alguns diriam milhões de euros ou algo do tipo, mas há muito além de dinheiro, cada produção leva tempo, habilidade e , acima de tudo, sentimento para ser feita. Por tal razão escolhemos nomear o projeto como As Cores do Amor, simbolizando nosso apreço e em forma de homenagem ao Apolo, quem idealizou o primeiro esboço de tudo e pratica a pintura. Também visamos aflorar a paixão dos nossos futuros integrantes por meio de apoio financeiro e divulgacional. Em nome da Galerie Baudelaire, afirmo que é um prazer apadrinhar os novos talentos. Essa instituição onde estamos foi antigamente o sonho de meu pai, que o céu o tenha, cada criação contida nesses cômodos simboliza o legado, a esperança e ao mesmo tempo a sensibilidade. Tenho muito a agradecer, a muitas pessoas, espero retribuir tudo e um pouco mais, ajudando nossos parceiros do mesmo modo como fui ajudada. Voltando à pergunta inicial, peço novamente sua reflexão. Quanto valeria uma obra prima? Para mim, garanto que vale à pena. ) — uma salva de palmas encheu o local, eu assobiei.
Sem me importar com as outras pessoas, abracei ela com força assim que ela desceu o degrau do palco. Envergonhada como sempre, dei um leve giro erguendo-a a poucos centímetros do chão.
— Ainda vamos ter que subir ou falar alguma coisa? — perguntei, ansioso.
— A cerimonialista está lendo os nossos patrocinadores e fazendo os agradecimentos finais. Nossa parte acabou. — ela começou a andar até o assento e eu puxei ela de volta. — o que está fazendo?
— Só me segue. — sorri, o coração quase errando as batidas.
Percorrendo os corredores, entrei numa salinha escondida numa das alas novas ainda em reforma. Tampei os rosto dela com as mãos e entramos juntos.
— Apolo, tem muita gente importante lá fora, o que estás a tramar? — resmungou, mas eu vi que estava ansiosa e animada também.
— Monalisa, lembra quando tudo começou? — introduzi.
— Comigo te atropelando? Lembro.
— Bem, não poderia ser nada além disso. Passamos dias sendo vizinhos sem nunca nos ver, o universo foi lá e deu um empurrãozinho. — em nome de Monet, eu estava quase morrendo de ansiedade
— E que empurrão, hein? — lembrou ela
— Gosto de pensar que a senhoria usa como desculpa para não admitir que se jogou para cima de mim.
— Abusado. — com o tempo, aprendi a notar quando ela ficava ruborizada.
— Certo, não viemos aqui para que eu flertasse com você, já faço isso todo dia. — pulei para o próximo passo.
— Vá direto ao ponto ora! Tira essa mão suada da minha cara. — tentou se desvencilhar de mim.
— Certo amor, olha o que eu fiz. — a libertei.
Deixei que ela visse os quadros do porão da livraria, restaurados e o da Torre Eiffel, enfim completo.
— Sempre que lembro da história deles fico pensando se não seria nossa função completar as lacunas. — passei meu braço por seus ombros.
— Completar as lacunas? — a voz dela começou a ficar desconfiada.
— Exatamente. — será que minha lerdeza passou pra ela? — hora do próximo destino.
— Apolo, depois daqui nós vamos jantar com o pessoal, Nana ficará muito chateada de não estarmos. Você sabe o quanto foi difícil convencer sua irmã a vir.
Com uns seis meses de namoro, Atena conseguiu uma vaga home office para poder acompanhar Nabi em suas viagens com a companhia de teatro. Entendo o porque dela ter preguiça de sair justo na rara oportunidade onde pôde parar em casa. Mas convenhamos, Paris é muito mais calma do que Nova York, principalmente na rua onde elas moravam.
— Quanto a tua mãe? Logo ela voltará pro Brasil.
— Mamãe é uma mulher divorciada, livre para estar onde quiser e etc. Vamos, amor, deixe de desculpas e vem comigo. — joguei o casaco sobre seus ombros.
Guiei ela pela saída dos fundos, onde uma única bicicleta nos esperava. "Overdose de romantismo" reclamou o subconsciente. Pus o fone esquerdo em seu ouvido, dividir os AirPods se tornara um hábito nosso, esperei a pergunta previsível:
— Somente uma?
— Ah, querida, se tem uma coisa aprendida desde cedo na minha terra é que...
— Sempre tem espaço para mais um. — completou, tornando tudo melhor do que o roteiro, como sempre.
A ajudei na subida, me posicionei logo atrás, dei o play na música escolhida a dedo e comecei a pedalar.
"Wise man say, (homens sábios dizem,)
Only fools rush in... (que só os tolos se apaixonam...)
But I can't help (mas eu não posso evitar)
Falling in love with you..." (me apaixonar por você...)
— Sacré Bleu! Eu amo essa música!
— Foque na letra chérie. — se eu tinha me tornado fluente em francês, óbvio que passaria a misturar as duas línguas. Um vício de linguagem dela passado para mim.
"Like a river flows (como o rio que corre)
Surely to the sea (certamente para o mar)
Darling, so it goes (querida, é assim)
Some things are meant to be... (algumas coisas estão destinadas a acontecer...)"
Chegamos no Campo de Marte, uma toalha de piquenique poucos metros distante da torre Eiffel nos esperava. Quem se importaria que era inverno? Já tínhamos passado dessa fase. O sorriso de Mariénne se alargou, o brilho nos olhos mais intenso.
— Achei que não te lembrarias... — pôs as mãos na boca, supresa.
— Do melhor acidente da minha vida? Nem se eu fosse doido. — sentei sobre a toalha, acenando para ela se juntar a mim.
— Vos ocorreu alguma coisa?
— Não só uma, várias. — coloquei o indicador em frente aos seus lábios, "sem perguntas" significava o gesto. — Me ocorreu que muita coisa mudou nesses últimos cinco anos, principalmente nós dois. Me ocorreu que já não tenho os mesmos sentimentos que antes, e é muito difícil conciliar isso agora. Estamos em uma nova fase, Monalisa. E nela, eu não quero mais ser seu namorado.
— Quoi? Qu'est-ce que c'est que ça... (O quê? Mas que porr...)
Elemento surpresa, check! Ela ficava linda demais com a carinha perplexa e um toque "pode começar a se explicar ou eu bato em você".
— Exatamente, não quero mais ser seu namorado. Quero ser o cara que passa literalmente o dia todo ao seu lado, quero dividir cada cômodo com você, ser o pai de pequenos artistas ou divindadezinhas gregas se você quiser. Quero tudo isso e muito mais. — abri a caixinha de anel escondida em meu bolso — agora, eu pergunto: Você quer...
— Quer casar comigo? — fui interrompido, uma outra caixa de anel estava nas mãos dela, apontada para mim.
— Não é justo, você roubou minha declaração!
— Em minha defesa, eu faria o pedido no jantar. Tu quem adiantaste o processo.— ela estendeu a mão no peito.
— Não tem jantar nenhum, todos eram cúmplices. Foi só uma desculpa pra você não desconfiar. — expliquei.
— Mas eles também agiam como meus aliados, entretanto ninguém contou-me nada disto.
— Palhaços, duas caras, vigaristas! — resmunguei e ela gargalhou.
Permanecemos em silêncio, admirando a torre, eu peguei um dos espetinhos de queijo, e voltei a falar:
— Sabe o que é engraçado?
— hum? — apoiou-se nos cotovelos.
— Tantos dias significativos e nós dois calhamos de escolher o mesmo. — eu sorri.
— Onde e quando tudo começou... — suspirou.
— Então... — hora da segunda tentativa.
— Veux-tu... (você quer...) — ela teve a mesma ideia.
— Casar comigo? — completei
— Com certeza. — ela selou a confirmação com um beijo.
Cinco anos, exatamente cinco anos. E eu ainda ficava desnorteado com o cheiro dela.
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"Pessoas ligadas pelo destino sempre vão se encontrar"
— The Witcher.
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