Capítulo IV

NORMAL

Luna Azevedo era muito calculista, centrada e organizada. Embora ela não fizesse metade dos seus serviços, afinal ela pagava alguém para qualquer tarefa boba, a garota sabia exatamente cada um dos seus passos. Nunca se atrasava, estava sempre impecável, decorava suas falas em um dia e não perdia tempo com aleatoriedades. Ela cobrava o mesmo comportamento dos demais, mas ninguém a acompanhava. As pessoas simplesmente não agiam como uns robôs e não rodavam na mesma velocidade que ela, o que ocasionava várias discussões com a jovem atriz. Eu podia apostar que a ouvi gritar com seus funcionários umas dez vezes em um curto período de tempo.

Eu suspeitava que Luna não respirava. Se ela pudesse pagar alguém para puxar oxigênio para seus pulmões, com certeza o faria sem hesitar. Ela não gostava de usar seus minutos preciosos com qualquer coisa, e eu até ficava um pouco surpreso com a minha facilidade de convencê-la a andar comigo. Todos os dias, mesmo depois do seu nervosismo no restaurante do Senhor Rodrigo, Luna fazia questão de saber dos nossos compromissos. Eu tentava não enchê-la demais com tanta novidade, porque ela precisava usar do próprio impulso para realizar minhas tarefas. Sem contar que eu não queria que ela desistisse na primeira oportunidade como acontecera há alguns dias.

Mas eu sentia que ela até gostava do que eu trazia dia após dia. Seja dando trocados a mais aos garçons ou oferecendo carona aos seus colegas de trabalho, seja se voluntariando para passar a tarde em casas de repouso ou correndo uma maratona para arrecadar dinheiro para cachorrinhos abandonados. Eu via um brilho natural em seus olhos castanhos. Sob o Sol, eu jurava que suas íris sorriam, prontas para abraçar o mundo. Certa vez até a vi apertando a mão de um desconhecido sem usar uma luvinha de proteção.

Eu também estava aprendendo. Ainda que eu fosse uma Potência de origem negativa, não significava que não existia bondade dentro de mim – o mesmo valia para quem vivia no "paraíso" batizado de Dimensão Primordial. Era justamente por isso que nos enviavam à Casa de Gaia, porque nenhuma existência podia ter apenas uma energia. Não fazia o mínimo sentido. Tínhamos de aprender o nosso oposto para que entrássemos em equilíbrio com todo o resto. Simples.

Luna não podia saber das nuances mais profundas. Eu não sabia bem o porquê, mas acreditava que algo bem ruim já havia acontecido no passado para terem alterado as Escrituras. O Universo como conhecíamos hoje em dia nem sempre havia sido assim, mas algumas histórias precisavam ficar para outro dia. Naquele momento, eu precisava ser o foco. E Luna. Precisávamos dos holofotes.

No final da semana, Luna teve a mágica ideia de me levar a um restaurante "de verdade" (Segundo ela, o estabelecimento de Senhor Rodrigo não passava de uma "espelunca". Nota: perguntar o que significa "espelunca").

Eu tinha viajado à Casa de Gaia com um propósito, mas claro que aproveitaria todas as comidas possíveis. Na Dimensão Oculta não tínhamos a necessidade de comer. Perguntava-me quem havia tido a magnífica ideia de se privar de alimentos. Eu não precisava de um corpo imortal e coisas do gênero quando podia colocar uma coxinha cheia de ketchup na minha boca enquanto a fazia descer com um caldo da cor laranja geladinho.

Luna não sabia aproveitar também, porque ela só ficava nas folhas sem graça e salada de frutas sem leite condensado como sobremesa. Ainda bem que eu não precisava me preocupar com a "saúde" como ela alegava, porque eu não seria capaz de entupir minhas artérias comendo o quer que seja da forma que eu já estava acostumado. Ainda bem! Assim podia lamber os dedos e pedir uma terceira, quarta ou quinta rodada.

— Tenho um presente para você! — Luna anunciou assim que o meu bife acebolado chegou. Ela sabia muito bem como ignorar o cheiro delicioso daquela comida, porque sequer olhou para meu prato. Bom que sobrava mais. Ela puxou um caderninho de capa dura e preta debaixo da mesa. — Aqui.

Fiz bico.

— O que é isso? Você não pode dizer que tem um presente para mim quando estamos em um restaurante. Não é por aqui que vocês fazem pedidos bregas de casamento? Eu sou novo demais para me envolver com uma Humana, minha docinho. Espero que não tenha nenhum anel enfiado no meu purê de batata, senão vou comê-lo também.

— Cala a boca e abra! — Luna sorria.

Eu limpei meus dedos em um guardanapo (algo mais fascinante que encher a boca de comida era devorá-la com as mãos) e acomodei-me no meu assento. Luna estava meio apavorante com o sorriso incrivelmente branco. Abri o caderno e percebi de cara algumas cartas escritas. Fiquei curioso e não esperei a deixa para começar a lê-las.

Eu não era um amante da literatura, consigo confessar. Eu sabia quem era Fernando Pessoa ou Machado de Assis, mas há pouco tempo estava pensando que Bentinho era um Humano real que havia sido desintegrado da existência porque seu grau de alucinações era elevado demais para ser tratado. Como assim Capitu traira alguém? De qualquer forma, eu sabia apreciar a arte da escrita, que era uma "pintura que falava" (tinha certeza que ouvi isso em algum lugar).

"Para Normal:

Árvores são mães das laranjas. Bom, nem todas são mães delas, mas algumas sim. Laranjeiras. Acho que o nome da fruta realmente veio da cor, mas é só isso que elas têm em comum. Pensa comigo: qual o gosto do verde? Ou amarelo? Ou roxo? Existem, sim, comidas que possuem essas cores, mas o sabor tem a ver com a coloração? Eu não sei bem.

Se você quer um delicioso suco de laranja como tenho em casa, então primeiro você precisa ter uma Laranjeira no seu quintal. Depois só precisa de alguém para colher os frutos e fazer o suco para você. Desculpe, Normal, mas não sei como faz suco de laranja. Mas se você realmente estiver interessado, empresto o meu celular para você pesquisar no Google.

Luna."

— Isso é bizarro — ri, passando o dedo pelas linhas. — E eu adorei!

— Cartas... Cartas... — Luna degustou as palavras. — Elas não são cartas de amor. Eu só usei o formato para responder algumas coisas que você tanto pergunta, porque cartas são chiques e eu adoro a minha caligrafia. Ainda preciso colocar outras coisas, e sei que novas indagações virão, então vou preencher o caderninho rápido demais.

— Ótimo. Prevejo um best-seller — brinquei.

— E você viu o trocadilho no início? Eu sou bem inteligente, sabe?

— Eu podia apostar que era um trocadilho óbvio, mas obrigado — zombei mais uma vez.

Eu não podia deixar a máscara cair, porque não queria que ela percebesse a vulnerabilidade que crescia. Era a primeira vez que ganhava um presente. Tampouco a minha criadora me dera algo especial. Luna, que era tão ocupada e tão egoísta a ponto de não fazer nada para ninguém (ou para si mesma), havia usado do seu tempinho precioso para escrever naquelas páginas em branco. Eu estava nas nuvens!

Então fazê-la ser uma melhor pessoa não era tão difícil assim.

LUNA

Há dois meses havia conhecido o meu Anjo da Guarda. No início suspeitei que meu cérebro estivesse me pregando uma peça, mas logo percebi que eu estava bastante afogada na realidade. Normal era feito de carne e osso — ou qualquer outra coisa que anjos eram feitos.

Mamãe estava planejando até mesmo o meu casamento. Ela amava o suposto "Tomás". Eu não sei se ela achava que Normal só servia para elevar a autoestima dela, mas podia revelar que a relação estava dando muito bem. E era profunda também. Eles trocavam muitas conversas intensas demais para que meu raciocínio pudesse acompanhar. Mamãe estava mais leve, mais feliz e menos insuportável. Pela primeira vez em dezesseis anos, eu não era o seu foco mais. Ela estava desencanando de mim.

Eu gostava do espaço. Podia observar o meu Anjo da Guarda de longe e segurar as pontas sem que ninguém percebesse. Ok. Ele era tão perfeito que faria a Branca de Neve enviar um caçador ao Príncipe Encantado. Sempre prestativo, atencioso, gentil e bonito. Eu nunca o vi sem o seu sorriso característico no rosto. Sabe, aquele meio torto e sem mostrar muito os dentes, com a ponta do lábio superior mais elevada, mas maravilhosamente correta para o seu rosto.

Eu não sabia de onde vinha tanta atitude dele. Será que todos os anjos eram iguais ou somente o meu era assim? Sentia-me mais disposta todos os dias. Antes, quando precisava acordar cedo para alguma sessão de fotos ou qualquer baboseira assim, o desgaste emocional já batia. A minha empresária, também conhecida como minha mãe, queria que eu fosse sem falhas o tempo inteiro. Sorria. Câmera. Um sorrisinho um pouco melhor, vamos lá. Flashes. Eu não podia comer uma porção de coisas, muito menos visitar lugares inapropriados porque alguém podia tirar uma foto, mas estava tudo bem fazer fotos de salto alto e maquiagem pesado quando se tinha dezesseis anos. A beleza juvenil, sabe?

Podia ser um clichê ambulante: mamãe não teve tanto sucesso como atriz mirim e passara suas vontades para mim, porque ela sabia que existia felicidade naquele caminho. Eu realizaria os sonhos dela, descobriria os meus naquele mundo cheio de privilégios e fugiria para algum país da Oceania. Mas não... Às vezes eu sentia a exploração falando mais alto. Mamãe só vira que eu tinha talento para atuar e aproveitara-se disso. Ela não queria que eu me afastasse das câmeras, porque, consequentemente, ela perderia o seu único papel naquele mundo de atuações. Ela seria jogada no limbo, no esquecimento, sem dinheiro ou legado. Pelo menos era assim que a mulher pensava.

Não havia nada que mudasse mamãe... Ou alguma salvação para mim. Era só raiva o tempo inteiro, e eu estava bem acomodada com ela, porque a danadinha era a minha única companhia há anos.

Agora eu tinha Normal, o que era sinônimo de ganhar na loteria: Não era sempre que ficávamos tão amigos de um Anjo da Guarda.

— Hoje vamos fazer compras — Normal falou, sorridente.

Eu arregalei os olhos, porque não podia acreditar naquilo. Eu vivia para fazer compras, e nunca tínhamos feito algo que eu realmente gostasse naquele meio tempo. Por que uma novidade tão boa de repente? Eu não estava reclamando, claro, mas estava um pouquinho curiosa.

— Compras? Qual a pegadinha da vez? — cruzei os braços.

— Não, sério. Nós vamos fazer compras. Surpresa! — Normal me abraçou pelos ombros. — Não está feliz?

— Sim...?

— Todo esse tempo de aprendizado. Ah! Estou tão orgulhoso, Lunazinha. Ontem jantamos no McDonald's e você pediu um McChicken. Isso é algo para comemorar! Por isso nós vamos fazer compras hoje.

— Você está falando sério? — tentei não ficar tão esperançosa, mas meu agudo de animação já estava aparecendo.

— Seríssimo! — Normal levantou a mão para um cumprimento. Eu bati em sua palma em um estralo generoso.

— Certo, certo. Vamos lá! — eu peguei meu celular da bolsa, porque pretendia pedir ao motorista para deixar o carro preparado.

Mas o meu querido Normal segurou o meu celular.

— Nós não vamos precisar do Reginaldo, minha queridinha.

— Sabia que tinha alguma reviravolta nessa história — bufei, aguardando o pior. — Vamos de táxi, então?

— Ônibus — Normal me empurrou.

— Não, não, não... — fui brecando meus passos, mas ele era tão mais forte. Eu também me sentia estranhamente agitada perto dele. — Não mesmo, Normal! E se alguém me vir lá dentro?

— E aí vão dizer: nossa, nossa, a Luna Azevedo é gente como a gente! Publicidade — Normal tentou me convencer.

— Mas eu odeio esperar por algo, e você sabe bem disso.

— É, a mobilidade urbana nessa cidade é péssima. Transito e mais transito. Mas vai dar certo, Luna, não se preocupe. Agora vamos, senão as lojas se fecham — ele concluiu o assunto.

Eu não podia contra-argumentar. Talvez fosse legal se alguém me reconhecesse dentro de um ônibus. Eu recuperaria os pontos que perdi depois daquela briga no Instagram com a ex-namorada do verdadeiro Tomás Toledo. Ela teve a ousadia de dizer que eu era antipática e que não tirava fotos com os meus fãs. Era claro que eu tirava! Eu tinha um horário marcado das oito às nove da manhã às segundas para qualquer pessoa comum que tivesse interesse em transcender para uma posição melhor. Eu não tinha culpa que elas, geralmente, trabalhavam nesse período. Alguns idiotas ficaram ao lado daquela ex-chiquitita de Chernobyl. Eu só me perguntava o porquê.

Devia ter passado tempo demais no meu falatório mental, remoendo de ódio ao lembrar da confusão, porque paramos em um lugar que parecia muito o Beco Diagonal, exceto pela quantidade absurda de pessoas, prédios antigos caindo aos pedaços e cheiro de urina. Eu nem lembrava do ponto de ônibus, ou do momento em que pegamos o veículo, tamanho era o meu espanto. Talvez eu houvesse esquecido meus passos com o deslumbramento daquele lugar insano e incrivelmente curioso.

— Luna, conheça agora a 25 de Março, onde tudo é possível. Tudo mesmo — Normal apresentou como se fosse um locutor de rádio.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top