Capítulo III

LUNA

O imbecil era legal demais. E bonito também. Ele até cheirava a flores. Mas eu não o queria por perto.

Depois do espanto do primeiro dia, passei a acreditar em vários seres fantásticos. Só assim para explicar como o Tomás Toledo se transformara em algo melhor. Sério. Eu nunca pensei que dava para deixá-lo ainda mais bonito. Tudo bem que Normal e Toledo eram pessoas diferentes, mas, pra mim, Normal sempre seria primeiramente o meu ator favorito.

Eu tinha inúmeros afazeres durante o dia, porque estava gravando uma novela e um filme ao mesmo tempo. Dessa maneira, quase não tinha tempo de fazer outra coisa, mas meu Anjo da Guarda continuava no meu pé e parecia bem feliz em me acompanhar naquilo tudo. Talvez o lugar onde ele morava não era tão legal quanto a Terra. Ele me fazia mil perguntas retardadas. "Para que serve um microfone?", "Por que você tem que passar essa coisa colorida na pele?", "Como fazemos um caldo da cor laranja?", "Vocês andam tão devagar. Não tem como voar ou algo assim?" Eu estava quase dando na cara dele. Mas, pelo menos, ele não ficava me paparicando como a maioria das pessoas ao meu redor. E ele também respondia todas as perguntas que as pessoas faziam para mim. Ele realmente me conhecia.

— Ela gosta de pastel de camarão. Traga dois. E mais suco de laranja — dizia Normal para minha equipe.

Mamãe o estava adorando, porque ele era bastante prestativo e a elogiava a cada cinco segundos, mas quem trabalhava para mim não estava entendendo nada como um novato podia ter tanto poder em pouco tempo. Eu só deixava, porque ele estava me poupando um trabalho grande.

Eu também sequer sabia o propósito daquela sua "missão" que ele tanto falava. Acredito que ele não podia contar em detalhes. Eu tinha medo de correr algum perigo naquela gracinha, mas ele estava muito animado para quem estava esperando o outro simplesmente cair duro no chão e morrer.

No final das gravações, Normal beijou as costas da mão de mamãe e praticamente me arrastou para longe de todos. Eu, sem saber o porquê, apenas o obedeci. No fundinho do meu coração, conseguia confessar que estava interessada naquela quebra inesperada de rotina. Ele podia não ser o Tomás Toledo, mas era uma boa imagem para se admirar. Sem grandes esforços, porque eu parecia uma patinha atrás dele, fomos para uma zona mais agitada da cidade. Eu tive de chamar um Uber, claro, por mais que ele houvesse tentado nos fazer pegar um ônibus. Imagina se uns paparazzis me vissem pegando transporte coletivo? Quanta vergonha!

— Eu andei pesquisando muito, sabe? E estudei bastante antes de vir pra cá — Normal falava em tom muito animado para quem havia passado o dia inteiro fazendo o seu trabalho de ajudante. — Você tem algumas atividades. Eu planejei tudo.

— Eu não estou muito feliz com isso, Normal — admiti. O cheiro de cidade grande entrava em minhas narinas e queria sair em forma de vômito. — O que vamos fazer?

— É surpresa. Se vamos fazer a nossa amizade funcionar, você precisa confiar em mim.

— Eu não confio em você — pisei duro.

— Oras, Luna, deixe de ser sem graça — ele bateu gentilmente em meu ombro e continuou me guiando. Eu esperava de verdade que ninguém me reconhecesse. — Você vai adorar. Eu passei o dia inteiro te ajudando mais cedo. Agora você me ajude!

Só paramos de andar dez minutos depois. Por que ele não me dera o endereço exato do local para onde estávamos indo? Assim não precisaríamos gastar nossas energias caminhando naquelas calçadas sujas. Eu teria de jogar meus tênis no lixo, porque não colocaria as solas encardidas no meu piso laminado de jeito nenhum. Entramos em um estabelecimento de segunda e o odor de óleo repassado me alcançou. Outra ânsia de vômito. Enquanto isso, o meu querido Anjo da Guarda estava radiante.

Normal saiu em sentido ao velho parado no balcão.

— Rodrigo? Prazer em conhecê-lo. Eu sou o Tomás. A gente se falou no telefone, lembra-se?

Normal, o mentiroso patológico, estendia a mão para o homem barbudo. O adulto me dava calafrios, mas estava sorrindo e apertando a palma do meu Anjo da Guarda.

— Lembro sim. Entrem.

— Entrem? — assustei-me. Ele queria que meu cabelo ficasse com cheiro de fritura?

Normal olhou feio para mim. Primeiramente que eu não devia nem ter ido até ali naquele horário, visto que acordaria cedo no dia seguinte. Segundo que eu não trabalhava para ninguém que não fosse um diretor com algumas especializações extras. Terceiro que eu não entrava nem mesmo na minha própria cozinha, então por que faria o favor ao tal Rodrigo?

— Desculpe, Rodrigo, mas a minha irmã ainda não se recuperou do baque que foi perder a nossa herança. Ela ainda não sabe dar valor ao verdadeiro trabalho. Mas tenho certeza que ela aprenderá muito aqui. Eu tomo total responsabilidade pela minha queridinha, tudo bem? — Normal falou em tom profissional.

Eu queria esmurrá-lo umas dez vezes no nariz. Rodrigo me direcionou um olhar desconfiado, mas assentiu.

— A cozinha fica aqui em frente. Escutem a Adriana, porque ela quem comanda os fogões — Rodrigo nos entregou toucas descartáveis e dois aventais.

Tive de segurar o "uniforme", porque ele simplesmente empurrava em minhas mãos. Mas eu estava totalmente desgostosa com a cena. Seguimos como o pedido. Bem, Normal seguiu como o pedido, porque eu só estava agindo no automático. Estava tão surpresa que o choque não me deixava raciocinar direito. Eu não tinha total controle dos meus movimentos, senão já teria saído correndo dali em dois segundos. Sem contar que o Rodrigo me dava um pouco de pavor, e eu não queria saber o que ele faria se eu desistisse assim.

— Você sabia que eu sou menor de idade? Eu não posso trabalhar aqui! — belisquei o Anjo Mentiroso.

Ele não esboçou nenhuma reação, porque, claro, não devia sentir dor. Mas isso não me impediu de apertar sua pele um pouco mais.

— Claro que podemos. Se não trabalharmos, quem pagará nossas contas? — Normal sacudiu os ombros, cínico demais para o meu gosto. — Afinal, não é isso que vocês fazem? Nascem, estudam, trabalham, trabalham, trabalham e morrem?

— Algumas pessoas, sim — dei passos leves, porque não queria chegar ao nosso destino. — Mas eu? Não mesmo.

— Você parece que trabalha. Faz algo e ganha por isso. Vai continuar nisso até morrer. Então precisam encontrar diversão nisso também, senão a vida só vai ser estranha mesmo — Normal abriu a porta da cozinha em um empurrão. Adriana olhou para nós dois e acenou em um cumprimento, que Normal retribuiu como se a conhecesse há anos. Eu não me dei o trabalho de sorrir também. Ele se voltou para mim por um segundo. — Aliás, você nem parece feliz trabalhando como atriz.

— O quê? — ri alto, porque ele estava delirando. — Claro que eu sou feliz trabalhando como atriz.

— Se você gostasse, não trataria todas as pessoas daquele jeito. Nem mesmo usaria o pó colorido no seu rosto para esconder as marcas de expressão originadas graças à sua ira diária – falou, por fim. Eu engoli em seco e tentei responder, mas nada saiu. Ele me deu uma esponja e um detergente, apontando para a pia lotada de coisas. — Vamos trabalhar, Luna.

Eu não negava um desafio. E ele havia ferido algo dentro de mim. Honra, talvez? Ele podia ser um Anjo e ter provado que me conhecia bem, mas ele não podia dizer o que se passava dentro de mim. Às vezes nem eu mesma sabia o que rolava com os meus sentimentos. Então ele não podia deduzir coisas sobre mim. Peguei os objetos com uma agitação desconhecida, mas fiquei estática olhando para a quantidade de pratos.

— Eles não vão morder você, fofa — Adriana zombou.

— Eu acho que vão sim — respondi, mas a mulher já não estava no recinto para me ouvir.

— O que foi, Lunazinha? — Normal perguntou, fanho.

Eu apontei a torneira para sua cara e despejei água nele. Só por um breve momento, porque Adriana estava de volta. Ela não podia descobrir nosso disfarce. Abaixei a torneira e ri de Normal tentando se secar sorrateiramente para não levar uma bronca. Ele estava bem disposto a lavar a montanha de louça suja. Enfiou a mão sem nenhum pudor naquela nojeira e começou o seu trabalho. Olhei para minha própria pia encardida e tive vontade de vomitar pela terceira vez.

— Com licença, Adriana. Será que você teria umas luvinhas? Eu tenho alergia a produtos de limpeza no geral — falei. Normal estava me ensinando a ser uma mentirosa.
Adriana bufou, porque eu estava criando inúmeros obstáculos para adiar o inevitável. Mas, felizmente, a mulher me deu duas luvas horrorosas e amarelas de borracha. Bom, isso serviria.

Comecei o trabalho, ao passo que Normal já estava na metade. Ele narrava a beleza daquilo como se pudesse ter algum divertimento em passar a mão no resto de comida das pessoas. Eu não sabia o seu objetivo, mas não me parecia que estava dando nada certo. Apenas ele se divertia em "polir porcelanas para uma nova e saborosa refeição", porque eu estava me segurando bastante para não gorfar. No termino, a sensação de vitória se instalou, assim como o pensamento que eu jamais lavaria uma louça de novo. Céus. Eu nunca havia feito aquilo, e mesmo que eu gostasse de novas experiências, não pretendia repetir aquela.

Adriana novamente havia nos deixado sozinhos. Aproveitei a emoção do triunfo e apontei estrategicamente a torneira para a minha única companhia. Normal estava distraído demais organizando as louças no escorredor enferrujado. Por um momento, achei-o uma gracinha, quase como uma pessoa normal. Ele não tinha truques absurdos para terminar aquilo de uma vez sem perder tempo; ele estava de fato se esforçando. Achava bonitinha a forma que sua língua escapava para fora à medida que sua testa franzia devagar, as mãos firmes e o cabelo loiro impecável até mesmo dentro daquela touca ridícula e sem estilo algum. Eu mesma estava me entretendo com a visão, de modo que não percebi quando ele resolvera me encarar também.

— Qual foi? — Normal debochou, rindo.

Perdi o encantando imediatamente. Isso só me deu mais forças para girar a torneira e despejar água para cima dele. As gotículas, em câmera lenta, embebedaram o seu suéter. Ele tentou desviar, mas eu tinha um reflexo absurdo. Apontei a mangueirinha para o local onde ele pensava em fugir, atingindo-o com mais rajadas. Olhei para porta me certificando que Adriana não me pegaria no flagra e desliguei o jato abruptamente.

Normal estava encharcado, mas havia um deslumbre interessante em seus olhos castanhos.

Adriana, como pensado, voltou ao recinto. Eu tentei disfarçar e segurei o riso, mas ela estava olhando feio para Normal, como se ele houvesse causado o desastre. Fiquei com mais vontade de rir, porque o garoto estava um pouco em choque. Há quanto tempo ele não tomava um bom banho?

— O que é isso? — Adriana bufou.

— Decidi que seria melhor lavar a cozinha. Não acha? Tem tanta gordura grudada no piso — Normal suspirou. Adriana estava prestando atenção. — A minha irmãzinha que teve a ideia. Ela é tão proativa.

Antes que eu pudesse responder, o Anjo saiu e voltou com um balde, vassoura e rodo, tudo pendurado em suas mãos habilidosas. Adriana estava satisfeita. Eu pensei que o trabalho já havia acabado, mas, pelo visto, ficaríamos o resto da noite naquele lugarzinho fedorento. Eu perdi totalmente a forme que havia se instalado dentro de mim. Agora eu precisava mesmo usar o banheiro e soltar algumas nojeiras do meu estômago para combinar com o restaurante.

NORMAL

Luna Azevedo não estava esperando pela reviravolta. Ela achava que uma loucinha lavada e um chão esfregado seriam capazes de transformá-la em uma boa pessoa? Não, não. Ainda precisávamos de mais. Muito mais. Eu não seria o único Primeiro do Século a falhar em uma Missão. E aquela ainda era a minha primeira! Eu deveria passar mais de cem anos cuidando do equilíbrio na Casa de Gaia, e não seria Luna que me pararia.

Quando a Lua, mãe-de-todos, apossou-se dos céus, soube que já era a hora de encerrar nosso turno. Luna estava realmente cansada, mas eu não entendia as razões, considerando que não fizemos um trabalho tão pesado. Aquilo só era o começo das nossas aventuras. Eu havia feito uma lista de atividades, e algumas eu suspeitava que fossem impossíveis para Humanos tão frágeis e limitados, mas tentaria mesmo assim. Eu queria testar limites.

— Eu não vejo a hora de passar uma hora dentro da minha banheira me livrando de toda imundice desse lugar — Luna sussurrou no pé do meu ouvido como se aquilo fosse algo muito legal e gentil de se dizer. — Eu só quero a nossa recompensa para ficar um pouquinho feliz. E ai nos mandamos daqui.

— Recompensa?

— É, o salário do dia. O último dia. Não vamos voltar aqui, não é? — Luna estava levemente desesperada.

Eu ri, mas não havia humor algum na risada.

— Querida, não temos recompensa alguma. A única recompensa válida é a realização pessoal. Sente-se bem?

— Era pra eu ficar bem depois de limpar a sujeira dos outros? — ela arregalou os olhos escuros.

Eu revirei os meus, porque a menina precisava de uma chacoalhada. Eu podia ser uma Potência de natureza negativa, e nunca ter visitado a Casa de Gaia antes, mas sabia que tudo era questão de equilíbrio — e ciclo. Se alguns sujavam, outros teriam de limpar, e era importante que fosse você mesmo, senão a bagunça do outro ficaria à mercê. Se você fazia algo, tinha de lidar com as consequências. Tudo tinha um meio, começo e fim, mas a forma definitiva que chegava ao final só dependia daquilo que grudaria pelo caminho. Um caminhão não voltaria do mesmo jeito para casa. Ele passaria por lama, por chuva e por Sol, poeira se prenderia em alguma embreagem, animais poderiam defecar no vidro... Não era o melhor exemplo, confesso. Mas com seres humanos era ainda mais abrangente, porque eles mudavam a cada instante, influenciados por todas as forças da natureza — Não dava para se banhar na mesma água duas vezes.

— Alguém limpa as suas sujeiras — respondi.

— É, mas... Mas elas foram feitas para isso — Luna cruzou os braços, desconsertada.

— Ah, não foram... Elas só foram influenciadas pelo caminho. Ninguém nasce destinado a nada. Quer dizer, as Potências nascem, claro, porque somos seres superiores e o Universo depende da gente. Mas os Humanos? — bufei de leve e sacudi os ombros. — Você tem muitos privilégios, Luna, mas eles estão te cegando.

— Você fala nada com nada, Normal. Aliás, você não tem nada de "normal". Anormal, isso sim. Você é um cara estranho! — Luna provavelmente explodiria a qualquer instante. Eu estava na paz absoluta sabendo que a Lua me vigiava lá de cima. — Eu não sei qual é o seu plano aqui comigo, mas eu desisto.

Ela saiu andando na minha frente. Eu a deixei tomar distância e, quando ninguém estava olhando, parei em seu encosto em um piscar de olhos. Luna resfolegou de susto, mas continuou o seu percurso. Ela estacionou os pés molengas em uma calçada e pegou o seu telefone portátil, outro objeto limitado e muito sem graça dos Humanos, mas que trazia uma carona até você em poucos minutos.

— Você não pode desistir. Você é minha Missão.

— Para de dizer isso! — ela apertava ferozmente o seu telefoninho. — Eu não pedi por um Anjo da Guarda. Estive bem todo esse tempo, não foi?

— Esteve? — desafiei.

A essência de Luna se revirava dentro dela. Se ela fosse capaz de enxergar... Talvez não estivesse tão relutante. Eu não podia deixar que tanta negatividade corresse dentro de um corpo Humano, porque o resultado daquilo podia ser muito, mas muito catastrófico. E ninguém, nem mesmo aqueles que não acreditavam em divindades, queria que a ordem natural do Universo saísse de rumo.

— Eu não preciso de você.

— Eu só vou embora depois de atingir o meu objetivo — garanti.

Ela me deu um olhar bruto e nada sensível.

— E qual é o seu objetivo?

— Eu não posso dizer.

— Então eu não posso ajudá-lo.

Cocei a minha testa. Bem que me contaram que Humanos conseguiam ser muito irritantes. Eu queria ter a liberdade de contar algumas coisas, mas também não podia abrir a boca. Qual seria a graça se começassem a teorizar certeiramente sobre a nossa origem, sobre a morte, sobre a vida, sobre a essência de cada um? Não haveria mistério nenhum.

— Bom, podemos fazer um acordo. Se você fizer todas essas tarefas que vou trazendo dia após dia, você também terá o direito de escolher novas aventuras. Um dia de cada. O que acha? — propus.

Ela desligou o pequeno telefone e pareceu hesitar na pauta.

— E eu vou poder fazer uma pergunta também? Sabe, sobre você, sobre lá em cima? — Luna apontou sorridente para o céu.

— Eu não sei o que poderei responder...

— Eu não vou fazer perguntas absurdas, Normal. Eu também posso responder o que desejar — sua voz havia ficado de repente mais fina. Isso deveria, sei lá, convencer? — Eu posso escrever para você.

— Eu sei lê-la muito bem — pisquei, convencido, porque não precisava das regras dela.

— Eu gosto de escrever, e pensei que seria legal se eu organizasse umas coisinhas durante a semana. Então, aos sábados ou domingos, pararíamos para conversar sobre. E aí? — Luna estava ansiosa.

Eu não estava vendo muito nexo naquilo, mas talvez porque não possuísse um cérebro pequenino sem grandes ligações, e a lógica só funcionasse para quem não tivesse tanta esperteza assim. Se a ideia era a solução aparente para Luna Azevedo, logo eu acataria. Eu não via problemas naquilo, e acreditava que não seria tão difícil conversar com garota — e enrolá-la.

— Concebido — estendi a mão para selar nosso acordo. Luna a apertou com agitação. — Um dia de cada. E uma pauta por dia. Isso também vale para mim. Você não me respondeu para que serve um microfone.

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