15. Divergências
Como passaram a semana? Eu fiz a matrícula na faculdade e já imaginei uns dez cenários diferentes em que tudo pode dar errado. Mas pelo menos estou postado no dia certo!
Boa leitura ♥
O clima tenso em casa tinha feito desta semana uma das piores daquele ano e as provas do fim do semestre tinham deixado tudo dez vezes pior. Guilherme estava direcionando todos os pensamentos positivos para as provas de filosofia e geometria, pois tinha certeza que só por um milagre conseguiria a nota média.
Finalmente a sexta-feira tinha chegado e tudo iria voltar ao normal, ele só precisava esperar a ligação do tio de Felipe. Estava sentado no sofá da sala do apartamento que o amigo dividia com dois outros rapazes. Guilherme tomou um gole de cerveja e colocou os pés no encosto do sofá.
Aline estava sentada no outro sofá, fumando um cigarro, e Carlos estava deitado no chão, digitando rapidamente no celular. Alguém tocou a campainha e Felipe gritou que a porta estava aberta antes de se juntar a Guilherme no sofá.
Tina abriu a porta e entrou, disse um olá geral para os meninos e se sentou ao lado de Aline.
-O que é aquilo? - Tina apontou para a estante de livros.
Aline virou o rosto para olhar, Tina tirou o cigarro da boca da namorada e apagou no cinzeiro da mesa de centro, em seguida se inclinou para depositar um beijo na bochecha de Aline, que a olhava de cara feia.
-Não achei graça - Aline resmungou.
-Você disse que ia parar e eu estou te ajudando, ao contrário dos seus amigos.
-Eu avisei que você ia ficar brava - Guilherme se defendeu.
-Porque você não queria fumaça na sua cara - disse Aline, ela segurou o cabelo escuro no alto da cabeça e prendeu com o elástico que carregava no pulso. Esse mês, as mechas eram azul claras.
Gui deu de ombros e levou a garrafa até os lábios novamente.
-Sinceramente, vocês não merecem as tortinhas que eu trouxe pra vocês - Tina balançou a cabeça.
Os três rapazes ficaram subitamente mais interessados na conversa. Tina tirou um pote da bolsa e entregou uma tortinha para cada um deles.
-Fiz sua preferida - disse para Aline e a garota desfez a cara de brava.
Guilherme nunca entendeu como exatamente aquelas duas tinham começado a namorar. Aline era geralmente mal humorada, sua paciência se esgotava rápido, usava roupas e maquiagem escuras o tempo todo e tinha vários piercings nas orelhas, já Tina estava sempre de bom humor e frequentemente perguntava a todos como estavam, mas não aqueles "tudo bem?" que se usa por educação, ela realmente queria saber. Além disso, o guarda-roupa da menina devia ter saído de uma comédia romântica, repleto de vestidos floridos e tons pastéis e o único furo que tinha em cada orelha era usado para colocar um brinco dourado em formato de estrela.
Quando saíam juntos, Tina se destacava, não apenas por causa das roupas mas também por sua personalidade alegre. Quando estava perto dela, Aline ficava um pouco menos irritada com o mundo e de vez em quando o amigo a pegava sorrindo de um jeito diferente, um sorriso reservado para Tina.
Assim que terminaram de comer, Aline se levantou e estendeu a mão para Tina fazer o mesmo.
-Vamos, tenho uma entrega pra fazer - falou.
Tina fez uma careta e abriu a boca, mas se interrompeu antes de dizer qualquer coisa, se levantou e se despediu de cada um dos meninos com um beijo no rosto.
-Gui, você vai na festa de aniversário da Jade? - Aline perguntou.
-Acho que não - ele respondeu.
Aline levantou uma sobrancelha.
-Veremos - ela pegou a mão de Tina e as duas saíram sem explicar.
Sem entender, Guilherme virou o resto da cerveja e colocou a garrafa na mesa de centro. Alguns minutos depois, Felipe disse que seu tio mandara uma mensagem dizendo que estava tudo pronto, então os três pegaram o elevador até o térreo, Carlos se despediu dos amigos na porta e os outros dois seguiram andando pelo bairro. Passaram por duas lanchonetes, uma sorveteria e várias casas com jardins na frente. Parecia um lugar bom para se viver.
Eles pararam na frente de uma casinha consideravelmente menor que as outras da vizinhança, as parede externas precisavam de uma nova camada da tinta verde e à esquerda da porta de entrada havia um espaço para um jardim, mas este não tinha plantas. Felipe tirou um molho de chaves do bolso e abriu o portão, caminharam até a porta e entraram depois que essa foi destrancada também.
-Esse é o lugar, pode olhar tudo - Felipe se sentou no único sofá da sala. - Não vou mentir, a porta dos fundos não abre e a pia da cozinha só funciona quando quer, mas pelo menos o chuveiro tem água quente.
-É ótimo - Guilherme andou pelo ambiente, analisando tudo em seu campo de visão. - Ainda mais pelo que eu posso pagar. Se não fosse por você e o seu tio nunca conseguiria um lugar decente.
As paredes internas também precisavam ser repintadas e os únicos móveis eram o sofá e uma estante, na cozinha havia um fogão e uma geladeira usados mas aparentemente funcionais. Ele foi para o corredor e espiou os outros cômodos, um banheiro e dois quartos, um deles tinha uma cama e o outro estava vazio.
-Você sabe que pode confiar em mim, né, cara? - Felipe se virou no sofá quando ele voltou.
-Sei. Por isso pedi sua ajuda com isso - Gui se sentou no braço do sofá. - E por enquanto ninguém mais pode saber.
Felipe assentiu.
-Vai trazer a sua sobrinha pra morar aqui com você?
-É o plano.
-Tem certeza que não quer me falar por que resolveu se mudar com um criança urgentemente? Sem julgamentos.
Guilherme o encarou e considerou falar ao amigo sobre os eventos que o forçaram a tomar essa decisão, mas desistiu. A coisa mais séria que já tinham falado fora sobre o que fazer se um dia apanhasse tanto que precisasse ser levado ao hospital.
-Tenho. Valeu por conseguir o lugar e... Tudo certo para a luta segunda?
-Sim, o cara confirmou hoje de manhã. Se você quiser esperar mais uns dias, eu posso ver com ele - Felipe ofereceu.
Guilherme ainda tinha os hematomas da luta do dia anterior no peito e as costelas doíam quando ele se mexia, mas nada ruim o suficiente para impedi-lo.
-Preciso do dinheiro, cara - ele deu de ombros.
-Bom - Felipe se levantou e entregou o molho de chaves para o rapaz - o aluguel vence dia quinze. E se mudar de ideia sobre conversar, é só me ligar... Vou chutar que você que você não vai trazer nenhum móvel da sua casa pra cá...
-Não vou - negou com a cabeça.
-Vou ver o que posso fazer.
-Valeu mesmo, cara - eles se cumprimentaram.
Antes de saírem da casa, Guilherme olhou uma última vez para para o ambiente, sentindo uma pontada de esperança no peito. Talvez as coisas pudessem ser melhores ali. Não era muito, mas Mel poderia crescer sem medo e ele faria o que fosse preciso para que ela pudesse ser o que quisesse, mesmo que para isso precisasse se arriscar. Tudo valeria a pena quando o medo que tomara conta de sua expressão desaparecesse e deixasse um sorriso no lugar.
***
-Você vai dormir na casa da sua amiguinha hoje, né?
-Sim, Gui. Você já perguntou três mil vezes - Mel não se virou para olhá-lo, concentrada em se equilibrar no meio fio.
-E falou pro seu pai? - Guilherme ajeitou a mochila vermelha dela nas costas. Os cadernos e livros que a menina levara para a casa de Laura balançando lá dentro.
-Falei - ela escorregou para o lado da rua e voltou, dessa vez com os braços abertos.
Eles chegaram em casa e Guilherme checou se o irmão não estava mesmo em casa antes de chamar a sobrinha.
-Temos que conversar, é uma coisa séria, então preciso que você preste muita atenção - os dois se sentaram na cama dela, um de frente para o outro, e Mel apoiou a cabeça nas mãos. - Sei que você não quis falar sobre isso, mas o que seu pai ameaçou fazer semana passada não foi certo, na realidade foi muito, muito errado. Estou feliz por você ter me ligado e nada pior ter acontecido, mas não podemos arriscar. É por isso que você ficou na casa da Laura quando eu... precisei sair.
-Eu gosto de ficar na casa da Laurinha - foi tudo que a menina respondeu.
-Eu sei. Mas não podemos depender dela sempre, esse é um problema nosso. Então, como eu não posso estar com você o tempo todo e não podemos confiar no Miguel, eu aluguei uma casa pra gente, vamos embora hoje. Essa parte é importante, Mel. Ninguém pode saber que nos mudamos, nem a Laura. Nós dois sabemos que eu posso cuidar de você, mas as pessoas não vão achar isso.
-Nem a Laurinha?
-A Laura... A Laura é diferente. Mas ela vai ficar muito, muito brava se souber que estou fazendo isso sem contar pra ela. E se eu contasse ela não ia deixar.
-Por que não? - Mel virou a cabeça de lado.
-Quando é meu aniversário?
-Vinte e dois de agosto!
-Certo. Nesse dia eu vou fazer dezoito anos, mas até lá eu não posso ser legalmente responsável por ninguém, nem por mim mesmo. O que significa que não posso pedir pra um juiz deixar eu cuidar de você. A Laura quer que eu espere até lá, mas não é seguro. Você tá entendendo?
-Eu sei o que é ser maior de idade, Gui - ela revirou os olhos, mania que com certeza estava pegando de Laura.
-Eu preciso que você confie em mim se formos fazer isso. É a melhor opção, na minha opinião, a melhor maneira de ficarmos seguros. Se você não quiser ir, tudo bem. Damos um jeito e esperamos até agosto.
Mel levantou a cabeça e olhou para as mãos, apertando os dedos de uma mão com a outra. Quando o encarou novamente, os olhos estavam se enchendo de lágrimas.
-Eu tenho medo dele, tio Gui. O meu pai me fala coisa ruins quando você não está aqui, coisas muito ruins. Eu tenho medo de que ele faça essas coisas.
As lágrimas escorriam livremente e ela soluçava, Guilherme se aproximou de Melissa e a envolveu num abraço.
-Vai ficar tudo bem, eu prometo - ele beijou o topo da cabeça dela. - Temos três horas pra arrumar nossas coisas, vamos levar só o necessário.
Era tão injusto que uma criança tão nova tivesse que temer alguém que devia amá-la e protegê-la, assim como os pais de Guilherme tinham feito com ele. Ele a segurou por mais alguns minutos, esperando estar certo sobre tudo ficar bem e sobre aquela ser a melhor opção.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top