10. Cookies

Tag de hoje - um fato sobre mim: aparentemente sou incapaz de escrever histórias sem que os personagens comam cookies em algum ponto.

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O efeito do álcool no corpo era familiar para Guilherme, mas ele nunca se acostumaria com a dor de cabeça. Dessa vez não estava tão ruim, o que fez sentido quando ele abriu os olhos e viu uma garrafa d'água quase vazia em sua frente.

Ele olhou ao redor, a luz fraca que vinha de um poste pela janela foi suficiente para que ele encontrasse seu celular. Eram quatro da manhã, ele pegou a garrafa d'água e bebeu o resto do líquido. Conforme os segundos se passavam as memórias do que acontecera mais cedo naquela noite iam se tornando mais claras.

Um barulho atrás dele seguido de uma voz sussurrando a palavra "merda" chamou sua atenção. Ele se levantou e andou até a cozinha. Laura pegou a tigela que tinha derrubado e colocou em cima do balcão.

-O que você tá fazendo? - ele perguntou num tom de voz baixo.

-Eu te acordei? Desculpa - ela fez uma careta.

Ele deu de ombros.

-Estou com sede - ele caminhou até a geladeira. - Mas o que você tá fazendo com uma tigela as quatro da manhã?

-Bom... Eu não consegui dormir, então comecei a assistir Grey's Anatomy, aí fiquei com vontade de comer cookies. Só que sem a maconha. Pra minha sorte, o Google tem várias receitas assim - ele levantou o celular.

-Uau. Essa foi uma longa história... E estranha também. Se eu ajudar, posso comer?

-Pode - ela riu. - Mas não podemos fazer barulho. Se minha mãe acordar ela me mata. Eu duvido que isso vá acontecer depois da quantidade de drinks que ela pediu na festa, mas é melhor evitar.

-Sabia que quando eu era pequeno queria ser ninja? - ele estendeu a mão e Laura lhe passou a tigela.


-Você tem mesmo tanto medo de mim a ponto de não conseguir dormir? - Guilherme perguntou com um pequeno sorriso no rosto. - Foi o lance do beijo no pé aquele dia, né?

-Não - ela riu. - Mas confesso que o negócio do beijo foi estranho mesmo.

-Você sabe que não pode espalhar isso porque eu tenho que manter minha fama - ele brincou. Não sabia dizer por que ia contar essa história, talvez fosse a o cheiro dos cookies assando no ar ou o fato de ainda estar levemente bêbado. - mas eu tenho uma sobrinha de dez anos, o nome dela é Mel...

-A menina pra quem eu liguei - Laura interrompeu.

-Isso. Quando meus pais morreram, eu fui morar com o meu irmão e ele não é o melhor pai do mundo. A mãe da Mel sumiu quando ela era bebê, então eu cuidei dela. Ela não para quieta um segundo e vive se ralando toda. Comecei com os beijinhos pra "sarar logo" quando ela tinha seis anos.

-Ah, isso é tão fofo. Aposto que se eu contar isso pros nossos professores eles param de te deixar de castigo - ela zombou.

-Eu ainda sou faixa preta em judô. Eles vão ter que me castigar se eu quebrar uma carteiras - ele falou e os dois riram.

-É sério - Laura parou de rir e o encarou. - É muito fofo. E pelos dois minutos que falei com ela, ela parece te amar muito.

Guilherme não estava acostumado a ouvir comentários positivos ou elogios. Não soube o que dizer e só abaixou a cabeça e encarou o chão. Depois de alguns segundos de silêncio desconfortável, ele cruzou os braços e resolveu mudar de assunto.

-Já que você não estava com medo de eu matar sua família com uma faca de manteiga, por que não conseguia dormir? Ou você costuma acordar no meio da noite pra ver série?

-Não - foi a vez de Laura olhar para o chão. - Quando eu fui procurar roupas pra você, achei a caixa com as coisas do meu pai que minha mãe esconde no guarda-roupa. Ela doou quase todas as coisas dele quando ele morreu, o que sobrou fica na caixa. Não consegui dormir porque fiquei pensando no quanto sinto saudades dele - a voz estava calma, meio chateada, até essa parte da história. Ela ergueu o rosto e abriu um sorrisinho quando viu a expressão de Guilherme. - Não se preocupe, eu não te dei as roupas do meu pai, isso seria estranho. Essas são cortesia do último namorado da minha mãe. Ainda estranho, mas bem menos.

-É, parece que nós dois somos estranhos - ele levantou o pulso e eles trocaram um soquinho.

-Eu assisto Grey's quando estou triste porque a vida da Meredith sempre consegue ser mais triste que a minha. Isso me faz mais ou menos estranha?

-Tenho mesmo que responder? - Gui perguntou.

Laura riu, fechou os olhos e inspirou fundo o cheiro dos cookies.

-Eu amo esse cheiro - falou.

-Reação de Maillard - Guilherme assentiu, olhando distraído para um canto aleatório da cozinha.

-O que? - Laura se virou pra ele.

-Ah. É uma reação química entre a proteína e o açúcar, é o que faz os cookies terem esse cheiro - ele explicou.

-Como...? Onde...? Anh?

Guilherme olhou para ela, negando com a cabeça e com um olhar de falsa decepção.

-Você por acaso pode me dizer porque tem tanta certeza que sou burro, meritíssima?

-Não é isso! É que você nunca presta atenção na aula. E tá sempre de castigo. E os professores vivem te dizendo pra estudar mais - ela tentou se defender. Não era bem isso que os professores diziam, eles eram muito mais rudes.

-Se você diz, Juíza Pão de Mel - ele levantou as mãos até a altura dos ombros.

-Tudo bem, - ela revirou os olhos - me desculpe, Eistein.

-Pode me chamar assim pra sempre. Eu com certeza vou te chamar de Juíza Pão de Mel.

-Por favor, não. Já entendi que você é inteligente.

-E um péssimo professor - ele reclamou. - As notas da Mel em matemática estão caindo e de tudo que eu falei pra ela, ela só aprendeu que dá pra multiplicar números por nove com os dedos. O que não é muito útil se a prova for sobre polígonos.

-Eu posso ajudá-la - Laura se desencostou do balcão onde estivera até o momento, animada. - Dei aula particular pra algumas crianças nas férias. Eu não iria cobrar nada, claro, porque ela é fofa demais.

-Você nem conhece ela - Guilherme falou. Depois de desabafar daquele jeito, algo que nunca fazia, ele não aceitaria a ajuda dela, de jeito nenhum. Tinha de haver um jeito de ensinar a sobrinha ele mesmo... - Tá bom. Eu vou falar com ela e a gente marca.

Enquanto Guilherme refletia sobre que tipo de droga seus amigos deviam ter colocado na bebida sem ele saber para que agisse de maneira tão incomum, Laura pegou o celular para ler uma mensagem.

-Vou ter que ir buscar o Davi na casa da babá. Ela disse que ele tá chorando faz vinte minutos, dizendo que quer ir embora, e pediu pra ir pra lá quando acordarmos - falou ela olhando para o celular. - Eu estou acordada, então estou indo.

-Eu vou com você - ele falou. Laura ficou olhando para ele sem dizer nada. - São cinco da manhã, não vou conseguir dormir mesmo.

-Eu vou pegar um casaco. Tira os cookies do forno e coloca num pote pra gente comer no caminho - ela disse e saiu correndo em direção ao quarto.

A vida de Laura talvez não fosse uma pintura cheia de arco-íris e unicórnios, como ele pensava. Naquela madrugada, Guilherme percebeu que talvez houvesse preto e branco escondidos nos cantos.

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