5 - Calada da noite

Dezoito anos atrás


Será que vão nos deixar de castigo? — Lucas perguntou enquanto corria ao lado de Dimitri, a mochila escolar sacudindo nas costas.

O garoto de doze anos deu um riso travesso.

— Só se descobrirem que a gente matou aula.

— Meus pais e seus pais sempre descobrem.

— Dessa vez, vamos ser mais espertos.

Rindo, os meninos apertaram o passo, deixando a escola pública onde estudavam cada vez mais para trás.

— Quero te mostrar o jogo novo que eu ganhei.

— Você conseguiu aquele jogo de luta? — Os olhos de Lucas brilharam. — O que acabou de lançar?

— Minha mãe adiantou meu presente de aniversário. Ela e minhas irmãs queriam fazer uma surpresa, mas eu descobri antes.

— Sua mãe é demais. Seu pai também.

Dimitri se viu obrigado a concordar. Sabia que não era um moleque fácil; mesmo assim, seus pais e suas irmãs sempre faziam de tudo para vê-lo bem, mesmo diante da vida difícil que levavam. Esperava, um dia, poder dar conforto e luxo a todos eles.

Uma vida de gente rica.

Era isso que pessoas trabalhadoras como seus pais e suas irmãs mereciam.

— Você vai me deixar jogar um pouco, não vai?

— Claro, e...

A fala de Dimitri se perdeu no ar quando um abalo pareceu chacoalhar o chão sob seus pés.

Um barulho, semelhante a um estrondo, fez os garotos se entreolharem.

De repente, um pavor que jamais sentira em todos os seus doze anos tomou posse de Dimitri, e ele disparou. Correu sem olhar para trás. Correu como se a existência do mundo dependesse da sua velocidade. Lucas gritava, tentando acompanhá-lo.

Outra vez, escutaram o barulho, o abalo; um som ecoante que estremeceu todo o seu coração.

Um som que mudou a vida de Dimitri para sempre.


****************


Atualmente


Já era tarde da noite, mas um homem treinado como Dimitri sempre se mantinha alerta.

Ainda mais quando tinha chances de avançar com seu plano.

Ele circulou pelo jardim da residência dos Antonelli, cumprindo seu papel de segurança. O pai de Hadassa o contara no começo da noite, pedindo para que ele viesse até a casa e ficasse de vigia enquanto estava fora. Dimitri, é claro, não recusara o serviço.

As árvores e as flores do jardim exalavam um perfume adocicado. Mas suas sombras poderiam servir como esconderijos perfeitos para um invasor. Emanuel Antonelli garantira que o sistema de alarme da casa era o mais sofisticado do mercado; contudo, Dimitri tinha consciência de que não havia nada que não pudesse ser desativado.

Ele sabia que muitos pais com grande poder aquisitivo temiam pela segurança dos filhos. Mas a justificativa de Emanuel para colocar um guarda-costas atrás da filha o tempo todo ainda não parecia completamente plausível para Dimitri. Era uma proteção excessiva para um caso simples.

Então, alguma coisa estava acontecendo. Ou estava prestes a acontecer. Não importava; ele descobriria.

Dimitri aguardou até ter certeza de que todos os funcionários da casa tinham partido ou se recolhido à ala dos empregados.

Girou nos calcanhares, indo para dentro da casa.

O luxo e a sofisticação dos cômodos exalavam por onde passava. Dimitri manteve o semblante rígido. Parou diante das portas trancadas do escritório particular de Emanuel Antonelli. Sabia que o grande advogado possuía outro escritório no centro de Belo Horizonte, o qual dificilmente teria acesso. Por isso, começaria pelo que estava em seu alcance.

De soslaio, checou as câmeras de vigilância que serpenteavam pelo teto. Olhou em volta do corredor outra vez. Hadassa estava dormindo há horas no quarto do andar superior. Os empregados já haviam encerrado mesmo as tarefas.

Tudo o que tinha era silêncio e solidão.

Ótimo.

Puxou o celular e digitou a mensagem para Lucas.

"Estou dentro. Preciso que você cegue as câmeras".

Em pouco tempo, a resposta de Lucas chegou.

"Já invadi o sistema. As câmeras vão ficar em loop por dez minutos. Não consigo mais do que isso. O sistema é sofisticado e qualquer falha poderá ser detectada pela empresa de segurança. Seja rápido".

Dimitri fez os cálculos.

Dez minutos era mais do que precisava.

Com precisão, maestria e habilidade adquiridas com anos de treinamento no exército, ele não teve problema algum em violar a porta do escritório. Nenhum rastro da violação ficaria visível.

Correndo contra o tempo, avaliou o escritório. Os olhos percorreram a estante com nomes e livros famosos da área de Direito, a decoração séria e impecável do ambiente, a mesa de trabalho organizada.

Dimitri analisou os objetos, tomando um porta-retrato em mãos. A foto de Emanuel com a única filha tinha sido tirada em um dia ensolarado. A moça sorria, abraçada ao pai, a luz incidindo no pingente de seu colar; a metade de um coração. O mesmo colar que ela nunca tirava. Os cabelos dela caíam livres pelos ombros, causando um formigamento irritante nas mãos dele. Ele já havia visto muitas mulheres bonitas, mas algo na beleza de Hadassa divergia de tudo o que conhecia. E quando a vira naquela barra de ballet, tão concentrada, leve e graciosa...

Agitou a cabeça, recriminando-se.

Foco.

As dívidas do passado exigiam foco no presente.

Voltou a fitar o porta-retrato.

Hum.

Sim. Ali era o melhor lugar.

Habilmente, abriu o porta-retrato, deixando a foto de pai e filha sobre a mesa. Do bolso, tirou uma pequena escuta e a acoplou na madeira. Voltou a foto para a moldura. A escuta estava bem escondida. Deixou o porta-retrato onde o encontrara, limpou qualquer digital que podia ter ficado e saiu do escritório, trancando a porta outra vez.

Checou o relógio.

Sete minutos.

Aquilo era um novo recorde. Lucas não acreditaria.

O grito feminino e desesperado, vindo do segundo andar, fez todos os sentidos dele dispararem.

Dimitri correu escada acima, sacando a arma com rapidez e agilidade ao constatar que o grito vinha do quarto de Hadassa.

Empurrou a porta com toda a força que tinha, irrompendo para dentro do quarto dela, batendo a mão no interruptor para encher o cômodo de luz, pronto para eliminar qualquer ameaça.

Mas não havia ninguém ali além de Hadassa.

Dimitri ficou paralisado.

A garota estava tendo um pesadelo.

Um terrível pesadelo.

Antes que ele sequer pudesse processar aquilo, Hadassa virou e gritou, debatendo-se embaixo das cobertas. Era um grito desesperador. Dimitri não pensou duas vezes enquanto voltava a arma para o coldre e se inclinava sobre ela.

Os tremores iam e vinham; com o que ela estaria sonhando?

— Hadassa? — Dimitri segurou os pulsos dela, tentando contê-la, surpreso pelo traço de preocupação na própria voz. — Hadassa, acorde.

— Mãe! Mãe! Mãe, não!

— Hadassa, é um sonho. Hadassa, acorde. Vamos lá — sua voz falseou outra vez. — Não tenho paciência com isso. Acorde.

Mas as palavras dela desapareceram no ar e tudo o que restou foi o som baixo de um choro que vinha do fundo de sua alma.

Ele continuou falando, chamando-a, até que o choro se foi.

Hadassa. Hadassa.

Ela abriu os olhos lentamente, piscando para se acostumar à luz do quarto. Inclinado sobre a cama, Dimitri ainda segurava os pulsos dela, a pele suave e quente contrastando com a aspereza e o suor frio das mãos dele.

— Dimitri? — A respiração de Hadassa era rápida, confusa, entrecortada, e roçava seu rosto; seu nome nada mais era do que um sussurro nos lábios dela; um sussurro que foi suficiente para fazer sua pulsação disparar. — O que... O que você está fazendo aqui?

Os dedos dele se abriram aos poucos, libertando os pulsos dela; o calor do contato ainda parecia fluir através de um cordão invisível entre suas peles.

— Você estava gritando.

Os olhos de Hadassa, grandes e escuros, o analisaram. Dimitri recuou assim que percebeu que ainda estava inclinado sobre ela. Deixou que ela terminasse de acordar e entendesse o que estava acontecendo.

Com um suspiro trêmulo e confuso, Hadassa ficou de joelhos sobre o colchão, os cabelos caindo sobre o rosto. Ele quase se pegou estendendo a mão para acariciar os fios grossos da cor do carvalho escuro. Mas se conteve, deixando a mão cair para o lado, e esperou, tentando não olhar para a camisola fina e curta que ela vestia.

— Foi um pesadelo — ela murmurou para si mesma, empurrando os dedos para trás da orelha, fazendo o que ele queria fazer. — Só isso.

— Você estava chamando pela sua mãe.

— Minha mãe? — Ela fechou os olhos, num esforço óbvio para se recompor, puxando o ar. — Que estranho. Faz tanto tempo que não sonho com a minha mãe.

Dimitri não disse nada. Por algum motivo, pensou na própria mãe; fazia muito tempo que também não sonhava com ela.

No mesmo instante, os olhos de Hadassa reluziram; eram lágrimas que enchiam as íris escuras.

Ele sentiu um aperto no estômago.

— Já que está tudo bem e não há nenhuma ameaça, vou deixá-la em paz para que volte a dormir.

— Espere.

A mão de Hadassa segurou seu braço. Dimitri virou o rosto e voltou a fitá-la. As lágrimas não tinham escorrido, apenas cintilavam nos olhos dela como chuva ema uma noite nevoenta.

— Por que você está aqui, na minha casa, a essa hora?

— Seu pai pediu para que eu cuidasse da segurança enquanto ele estivesse fora — Dimitri respondeu, firme e categórico; era como se a pressão suave dos dedos dela fosse derreter o tecido da sua camisa social. — Estou apenas cumprindo ordens. Entrei em seu quarto porque te ouvi gritando.

Hadassa balançou a cabeça, correndo as mãos pelo colchão; movimento que fez o lençol deslizar mais para baixo, revelando parte de suas coxas. Dimitri desviou o olhar bruscamente quando um calor estranho inflamou seu sangue.

— Algum dos empregados me ouviu gritando? O mordomo?

— Creio que não.

— Você poderia... — ela sussurrou, mordendo o lábio. — Você poderia não contar para o meu pai sobre isso? Não quero que ele se preocupe ainda mais comigo.

Dimitri estranhou o pedido, mas assentiu.

— Obrigada — Hadassa murmurou baixinho, voltando a deitar e puxar as cobertas sobre o corpo.

Certificando-se de que tudo estava bem, Dimitri se virou, apagou a luz e caminhou na direção da porta do quarto. O perfume dela dançava no ar, entrecortado pela respiração assustada que ela tentava disfarçar.

Controlou a vontade de bufar e brigar consigo mesmo. Inspirando fundo, voltou a olhar para a Hadassa.

— Precisa de alguma coisa? Quer que eu te traga algo?

A dica de um sorriso ameaçou subir pelos lábios dela.

— Não, não, obrigada. Hã... Na verdade, tem uma coisa sim. Você poderia pegar minha caixinha de música? Está em cima da penteadeira.

Que pedido incomum.

Dimitri estava começando a suspeitar que nada naquela garota era simples ou fácil de entender.

Mesmo assim, fez o que ela pediu.

Pegou a tal caixinha de música e deixou na mesinha de cabeceira ao lado da cama. Não olhou para o rosto da garota, mas se pegou quase limpando a garganta.

Enquanto saía do quarto, observou-a com o canto dos olhos; Hadassa se levantou apenas o suficiente para abrir a caixinha e deixar que a música e a pequena bailarina cirandassem pelo ambiente.

Dimitri soltou o ar apenas quando alcançou o corredor.

Seu coração batia de um jeito descompassado e alucinado.

Encostou-se à parede, buscando por um apoio frio, decidido a fazer seu trabalho — bom, o trabalho pelo qual estava sendo pago para fazer.

A caixinha de música continuou tocando pela hora seguinte.

Ele não deixou o segundo andar, o corredor e a porta do quarto dela até que Emanuel Antonelli regressasse de seu compromisso e o dispensasse da tarefa noturna.

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