4 - Um passo
— Este desvio não estava na agenda do dia — Dimitri observou, ligando a seta para mudar de faixa.
— Eu não sabia que não podia fazer nenhuma alteração na minha rotina — Hadassa retrucou de volta, deixando uma nota ácida na voz.
— Monto um protocolo de segurança em cima da agenda diária.
— É só um estúdio de ballet, não um clube de luta clandestina.
Em favor da sua sanidade mental e paz de espírito, Dimitri não falou mais nada e dirigiu até o estúdio de ballet Coreodance.
A fachada do prédio sofisticado fez com que um sorriso nostálgico se abrisse na boca dela.
Puxou o celular da bolsa, querendo avisar Cecília de que havia chegado; mas a empolgação de fitar a entrada do estúdio fez com que o aparelho escorregasse de suas mãos e caísse entre seu banco e o banco de Dimitri. Com um movimento elegante e militar, que fez o cheiro da colônia dele atingi-la com mais força, Dimitri esticou o braço e apanhou o celular, entregando-o para ela.
— Obrigada.
Hadassa arriscou um sorriso pequeno, um sinal de trégua para que quebrassem a tensão instaurada desde manhã, olhando-o por debaixo dos cílios longos. Dimitri moveu a cabeça de forma quase imperceptível, virando o rosto como se estivesse checando algo no painel.
Ok, já entendi que ele é um cara de pouco papo e sorrisos.
Precisou morder a língua para não perguntar por que ele tinha aceitado o trabalho de guarda-costas, já que parecia odiar aquilo e possuía ótimas referências para trabalhar em qualquer outro lugar.
— Você pode ficar me esperando aqui no carro — ela simplesmente disse. — Vou só assistir a uma dança e volto logo.
— Meu trabalho é acompanhá-la.
— Será rápido. É sério.
Dimitri ponderou por um instante, lançando um olhar para a entrada do estúdio, como se buscasse por criminosos de alta periculosidade em um bairro chique e tranquilo.
— Tudo bem. Mas, se você demorar muito, irei atrás de você.
— Combinado.
Hadassa desceu do carro, respirando aqueles minutos de liberdade. Não sabia quanto tempo aguentaria aquela sombra atrás dela e... Ao olhar por cima do ombro, viu Dimitri descendo do carro, procurando por um lugar para ficar em pé com aquela cara de poucos amigos.
Voltou a olhar para frente.
Respire. Inspire. Não pire.
Ao subir a escadaria e cruzar as altas portas de vidro, Hadassa foi recebida por uma sensação antiga e familiar; de repente, era como se o tempo não tivesse passado e ela fosse uma menina e uma adolescente outra vez.
As paredes nude transformavam o estúdio em um ambiente elegante e delicado. Música clássica deslizava das caixas de som suspensas, fazendo os pés de Hadassa formigarem enquanto ela olhava ao redor, em busca de Cecília. Uma das paredes estava coberta por um espelho gigante, que ia de ponta a ponta, do chão ao teto, acompanhado por uma barra de apoio.
As alunas do período da tarde estavam se aquecendo nas barras centrais, todas vestidas com collant, saia curta, meia calça clara e sapatilhas, mantendo os cabelos presos em um coque alto.
Hadassa localizou Cecília na outra ponta do estúdio, se preparando para uma performance. Assim que a viu, a garota abriu um sorriso confiante, e Hadassa sorriu de volta para ela. A afilhada de seu pai tinha quinze anos e era um prodígio no ballet.
Quinze anos... A mesma idade que eu tinha quando...
Ela bloqueou os pensamentos, puxou o ar três vezes e empurrou a sensação de estar sendo comprimida entre as paredes do estúdio, concentrando-se em assistir aos movimentos executados por Cecília.
A garota deu várias piruetas; e então, as mãos do parceiro de dança dela a seguraram pela cintura, erguendo-a e a jogando para cima enquanto Cecília esticava um braço em noventa graus e outro na vertical, abrindo as pernas para executar o grand jeté.
Hadassa se viu segurando o pingente de coração, suspirando longamente, maravilhada e, ao mesmo tempo, tomada por um súbito vazio, enquanto Cecília realizava o movimento com perfeição.
— Hadassa? — uma voz feminina pairou atrás dela.
Ela olhou por cima do ombro, reconhecendo Anastácia, a dona do estúdio.
— Oi, Anastácia. — Ela se inclinou, beijando o rosto da mulher.
— Quanto tempo, menina! O que está fazendo por aqui? Me diz que é a velha história de "o bom filho à casa retorna".
Hadassa abriu um sorriso fraco, balançando a cabeça.
— Não. Cecília me pediu para vir assisti-la. Acho que está nervosa.
— Ah, todos estão. Vamos dançar Romeu e Julieta esse ano. "Estas alegrias violentas têm fins violentos. Falecendo no triunfo, como fogo e pólvora, que num beijo se consomem" — Anastácia recitou, toda teatral. — Não quero nada menos do que a perfeição. Cecília tem grandes chances de pegar o papel de Julieta.
— Deve ser por isso que ela me mandou tantas mensagens.
— Ceci é boa. — Anastácia ergueu o rosto, os olhos analíticos pairando dentro dos olhos de Hadassa. — Mas não tão boa quanto você era.
O ar desceu arranhado por seus pulmões. De repente, respirar parecia a coisa mais difícil do mundo.
— Anastácia, eu...
— Eu sei. Eu sei. Águas passadas, assunto resolvido. E a faculdade, como está?
— Enfrentando um último ano bem puxado.
— Logo, logo, você vai estar assumindo o escritório do seu pai.
— Sim, este é o plano.
Novamente, a sensação obtusa de que a vida nada mais era do que um sopro efêmero subiu por suas pernas.
As paredes ameaçaram se fechar em volta dela outra vez.
Antes que Hadassa pudesse falar ou pensar, outra mulher se aproximou, corrigindo as posturas das bailarinas e ditando algumas ordens.
— Teresa! — Anastácia chamou. — Venha aqui, quero te apresentar a uma antiga aluna do nosso estúdio.
A mulher, alta, magra e elegante, se aproximou. Seus olhos claros estudaram Hadassa de uma forma minuciosa demais.
— Hadassa, esta é Teresa, uma das atuais professoras do estúdio. Teresa, essa é a Hadassa, minha antiga aluna.
Teresa encrespou o cenho.
— Eu já te vi antes?
— Acho que não. — Hadassa manteve a postura ereta, como se fosse uma bailarina sendo examinada. Os olhos de Teresa continuaram sobre ela; em seu rosto, em seus olhos, em seu colar, em suas roupas. — Faz tempo que deixei o ballet.
— Hum, compreendo. — E, sem dizer mais nada, Teresa se virou, voltando a chamar a atenção das alunas.
Hadassa se conteve para não soltar um assovio baixo.
— Ela é bem rígida.
— Rígida é um eufemismo. — Anastácia riu. — Mas Teresa é uma das melhores professoras que já passaram pelo estúdio. Preciso cuidar do telefone e do balcão de recepção, mas fique à vontade. Você é da casa.
Acomodando-se em um banco, Hadassa assistiu ao resto da aula de Cecília. Vez ou outra, captava o olhar curioso de Teresa sobre ela. Como não era alguém que se intimidava, não abaixou a cabeça nenhuma vez, fazendo com que a professora sempre rompesse o contato primeiro.
Quando a dança terminou, Cecília largou o parceiro e correu até ela, o rosto brilhando de suor.
— Hadassa! Você veio! O que achou?
— Você foi perfeita, minha linda. Tenho certeza de que o papel da Julieta será seu.
Um sorriso entusiasmado cresceu nos lábios de Cecília.
— Meu sonho é um dia dançar junto com você. O que me diz?
— Um dia, quem sabe — Hadassa riu, tentando desconversar. — Quer uma carona para a casa?
— Não, obrigada. O motorista do meu pai virá me buscar.
Seguindo as instruções de Teresa, as bailarinas executaram mais uma sequência de movimentos. O intervalo foi anunciado e, em questão de segundos, o estúdio esvaziou.
Aproveitando o momento de solidão, Hadassa tirou as sandálias e andou até a barra fixada no grande espelho. Deveria fazer aquilo com sapatilhas, mas...
Um passo. Só um passo.
Podia sentir as batidas furiosas do coração.
Apoiou a mão na barra e inspirou fundo, fazendo uma pequena flexão com os joelhos para executar o plié.
Algo se agitou em seu sangue.
Mantendo o queixo erguido, ela afastou a perna em exercício da outra perna, arrastando o pé, levantando primeiro o calcanhar, depois a planta do pé, conversando a ponta apoiada no chão.
Seu coração bateu ainda mais rápido.
Era curioso como o corpo conservava uma memória marcante.
Hadassa continuou com os movimentos, performando um jeté ao atirar a perna esticada, os pés saindo do chão.
Não havia mais música, mas ela podia ouvi-la em todo o seu ser.
Deixando que um sorriso subisse por seus lábios, ela fez a perna desenhar um semicírculo no chão, de frente para trás, de novo e de novo e...
Hadassa precisou se segurar na barra para não cair quando viu o reflexo de Dimitri no grande espelho.
— Minha nossa! — ela exclamou, o coração aos pulos, o rosto quente. — Você é mesmo silencioso.
O rosto de Dimitri era ilegível, mas Hadassa podia jurar que algo lampejava nas íris dele, ameaçando se revelar, como manchas de uma tempestade aprisionada; algo que a emudeceu, a atingiu, feito um raio luminoso que despencava sobre as montanhas.
— Você dança?
Aquela era a primeira pergunta que não tinha a ver com segurança que ele lhe fazia.
Hadassa deu de ombros, empurrando uma mecha do cabelo para trás da orelha, os olhos de Dimitri acompanhando o movimento, o ar parecendo entrar em combustão ao seu redor.
— Isso foi só uma brincadeira. Uma distração.
Dimitri entreabriu os lábios.
— Vamos, por favor — Hadassa falou primeiro. — Estou cansada. Quero ir para a casa.
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A tarefa era clara.
Simples? Nem tanto.
Bom, pelo menos, era o que Neves achava.
Armados, eles desceram as escadas. As luzes amareladas e fracas estremeciam acima de suas cabeças. O calor ficava mais insuportável conforme desciam. A ausência de janelas era uma medida de merda, mas uma merda necessária.
— O chefe quer que a gente escolha uma mercadoria boa.
— Claro. — O cara ao seu lado, que todos conheciam como Olho de Vidro, deu um longo trago no cigarro. — Já até sei qual.
Neves riu.
Seria uma tarefa simples em qualquer outra situação.
O único problema ali era que a mercadoria gritava.
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