Capítulo 1

Alguns acreditam que quando nascemos já estamos destinados a algo, e quem conhece a história de Édipo rei sabe que por mais que fujamos o destino sempre dá um jeito de nos encontrar, mas se assim é.... Onde está o livre arbítrio nisso?

Eu particularmente não acredito em destino, acredito apenas em consequências de nossas decisões.

Talvez vá haver alguém que diga que nós estávamos destinados.

Eu, porém, digo que tudo não passou de um fruto de nossas decisões.... E devo dizer.... Que ele foi a melhor consequência da minha vida...".

(Carta de Micaela Belmok à sua amiga Amália).

Que há alguns países que possuem relações, digamos, ácidas uns com os outros não podemos negar. E isso não era diferente dos países de Vienere e Montanaris, vizinhos e ambos, ainda que no século XXI, uma monarquia.

Embora as famílias monarcas dos países possuíssem um alto grau de amizade, os parlamentos não andavam se dando bem. Não eram muito grandes e, portanto, brigavam por um pedaço de terra que deveria pertencer a um dos dois reinos. O problema é que nenhuma das partes estava disposta a ceder. Sendo assim houve duas semanas inteiras de reuniões entre eles para que pudessem discutir sua situação e evitar ao máximo o conflito que tanto temiam.

A guerra.

A família real Lambertini, pertencente à Vienere, foi passar alguns dias na casa da família Belmok, que reinavam em Montanaris. Susana e Benício Lambertini tinham Heitor e Laura Belmok em alta conta, no entanto seus filhos, Nicolas e Micaela, respectivamente, não estavam se entendendo nos últimos tempos, apesar de terem crescido juntos.

Talvez isso fosse reflexo da tensão que estavam vivendo e isso preocupava seus pais. Enquanto os homens iam para mais uma reunião, as mães ficaram na casa de campo para conversarem e colocarem os assuntos em dia.

-- Sinceramente, não sei mais o que posso fazer com Nicolas. - Reclamava Susana - Está abusado demais. Fez 18 anos e acha que pode mandar em tudo e todos.

-- Jovens! Sempre petulantes. - Riu Laura - Não se preocupe, minha amiga, essa é uma fase que todos nós passamos. Tenho certeza de que ele vai amadurecer.

-- E eu mal posso esperar para isso acontecer.

Continuaram tomando seu chá e falando sobre seus filhos orgulhosos. Há quem dizia que as duas pareciam irmãs por causa da aparência.

Ambas tinham olhos e cabelos castanhos, a pele pálida e apenas uma diferença: Laura tinha os cabelos cacheados enquanto que Susana lutava para prender os fios extremamente lisos.

Em poucos minutos a porta foi aberta de supetão e ali apareceu uma menina com a roupa repleta de lama, seus cabelos lisos na raiz e cacheados nas pontas estavam grudados no rosto, que levava uma expressão furiosa. Os olhos extremamente azuis brilhavam com as lágrimas empoçadas ali. As duas mães ficaram ali paradas observando a menina de quinze anos, mas que àquela hora aparentava ser uma criança de sete que passara o dia todo brincando na poça de lama.

-- Minha filha, o que aconteceu? - Perguntou Laura preocupada.

-- O seu filho.... - Respondeu Micaela apontando para Susana - É melhor que ele esconda aquele carro se não quiser que ele apareça com os pneus furados!

-- O que Nicolas fez agora?

-- Acelerou em cima da poça de lama, apenas para me sujar!

-- Ah, quando aquele garoto vai crescer?

-- Tudo bem, tudo bem. - Interveio Laura - Vamos nos acalmar, sim? Micaela, suba e vá tomar um banho para se limpar. Depois desça e se junte a nós para o chá, talvez se acalme.

-- Eu não vou me acalmar com um chá, mamãe. Vou me acalmar quando tiver arranhado aquele carro todo!

-- Micaela! Nem pense nisso! Você vai fazer o que estou mandando e tratar de se comportar!

-- Mas são dez horas da manhã! Quem toma chá à essa hora?

-- Nós tomamos! E te aconselho a fazer o mesmo.

-- Sem chance, prefiro mil vezes ler aqueles livros de setecentas páginas que ganhei.

-- Faça o que quiser, Micaela. Mas mantenha distância do carro e de Nicolas.

A menina cruzou os braços e saiu pisando duro da sala.

-- Eu sinto muito. - Foi logo dizendo Susana que tinha o rosto todo corado de vergonha.

-- Não se preocupe com isso, Susana. - Tranquilizou-a Laura - Um pouco de lama nunca fez mal a ninguém. Além disso, essa implicância deles vai passar. Só devemos ficar mais atentas para que isso não evolua.

-- Tenho que ter uma conversa com ele.

****

Enquanto isso, Micaela estava enfiada no banheiro da suíte tentando tirar toda a lama que se acumulara nela.

-- Aquele garoto me paga! Quem ele pensa que é? Mexeu com a pessoa errada!

Pegou a toalha, se enxugou e depois enrolou-a no corpo. Com outra toalha fez o mesmo processo no cabelo, saiu do banheiro e caminhou até o outro lado do enorme quarto até abrir outra porta e entrar no seu closet. Escolheu qualquer roupa, já que ficaria enfornada no seu pequeno mundo o resto do dia. Quando saiu do closet se jogou na cama enorme que ficava logo à direita e ficou olhando para o teto. Ela pedira que seu pai mandasse fazer uma pequena réplica do que era o espaço. E ali estava.... O teto do seu quarto era uma pequena constelação.... Uma constelação somente dela. De dia não se dava muita atenção a essa decoração, mas a noite aqueles pequenos pontos brancos começavam a brilhar. Na parede oposta, pintada de azul Royal, ficavam duas janelas enormes, cobertas por cortinas brancas e pesadas, em uma das janelas ficava uma luneta e quando aquela constelação artificial a cansava, ela observava uma real. Não entendia muito de astronomia, apenas era uma admiradora do espaço. Ao lado direito da luneta, na mesma parede Royal, ficava seu pequeno acervo de livros. Três estantes estavam cheias e em frente elas o tapete e as almofadas no chão também estavam cheios. Definitivamente precisava de mais uma estante.

Toda vez que se deitava nas almofadas para ler, se deparava com a frase que mandara escrever na parede oposta, ao lado da porta:

"Tal como o espaço vazio numa pintura, o tempo em que nada acontece tem seu propósito."

De Bono.

Adorava aquela frase, porque de vez em quando achava que sua vida era totalmente parada e sem graça, e embora muitas garotas quisessem estar em seu lugar, ser a filha do rei, o que ela queria mesmo era sair e dar a volta ao mundo, se sentir importante, fazer algo que pudesse mudar a realidade das pessoas, fazer algo que quando partisse as pessoas ainda se lembrariam dela. Sendo assim, se apegava na ideia de que aquele espaço em que nada acontecia em sua vida, era apenas um prelúdio do que ainda estava por vir.

Micaela não suportaria ficar muito tempo ali. Tendo uma ideia melhor do que ficar o dia inteiro trancada e de mal humor, levantou-se, entrou no closet novamente e colocou uma roupa para cavalgada. Andar com Heros, seu cavalo, sempre a deixava mais calma, e agradecia pela propriedade ter uma enorme extensão de terra e gramado para poder trotar e até correr pelo lugar. Algumas árvores aqui e ali, ajudavam a decorar o enorme jardim. Colocou a cabeça para fora da janela, e avistou há 1km de distância, à direita da casa, o estábulo onde estaria o animal.

Saiu quase correndo para que sua mãe não a visse, e foi na direção desejada. Chegando ao estábulo foi logo entrando na baia e selando o Heros.

-- E aí, amigão! Como está?

Em resposta o animal, de pelo amarelo e crina preta, relinchou como se a cumprimentasse de volta.

-- Vamos dar uma voltinha. Estamos precisando relaxar não concorda?

Em pouco tempo Micaela estava trotando pela propriedade, sem destino certo. Sentir o vento no rosto era a melhor sensação. Se sentia livre, sem ninguém por perto dizendo o que fazer, como fazer, aquela proteção exagerada, aqueles seguranças chatos...

"Alteza, por favor, não vá por aí!", "Senhorita, não pode fazer isso, é perigoso!", "Por favor, senhorita Belmok, tenha mais modos!", "Alguém da realeza não pode se comportar assim!".

O que não daria para ser uma pessoa "normal" ....

De repente um estampido cortou o ar e Heros se assustou, começou a relinchar e empinar. Micaela lutou para controla-lo e com muito custo não caiu dele.

Olhou em volta para identificar de onde tinha saído o som e avistou aquela cabeleira preta, densa e lisa que conhecia tão bem. Virou o cavalo na outra direção, cutucou suas costelas e galopou até chegar perto do rapaz.

-- O que pensa que está fazendo? - Perguntou parando a pouco centímetros de Nicolas.

-- Atirando! - Ele lhe mostrou o revólver e fez uma expressão como se aquilo fosse óbvio.

-- Você assustou Heros!

-- Ah eu sinto muito! - Respondeu ele com falsa desculpa - Não sabia que seu cavalinho era tão sensível!

-- Ele não é sensível, só não está acostumado com isso.

-- Sempre há tempo para se acostumar com tudo.

Dando essa resposta ele virou de costas novamente e ergueu a arma mirando o alvo à frente.

Como estava perto o suficiente e não querendo que seu cavalo se assustasse de novo, Micaela deu-lhe um chute nas costas, jogando Nicolas para frente. Este procurava se equilibrar balançando os braços, quando finalmente conseguiu, voltou-se com uma expressão furiosa. Os olhos castanhos se estreitando e a respiração aumentando.

-- Qual o seu problema? - Gritou.

-- Você está na MINHA casa, trate de ser mais gentil.

Ele não respondeu e tornou a lhe virar as costas. Ela poderia muito bem ir embora, poderia ficar muito bem longe de confusão, mas um chute nas costas ainda não lhe bastava, sendo assim ela levou Heros um pouco mais para trás e o amarrou em uma árvore, em seguida voltou para perto de Nicolas e do empregado que estava com ele.

-- Então.... Podemos atirar? -Perguntou.

O garoto a olhou confuso, como se não conseguisse digerir a ideia.

-- Como assim.... Podemos atirar?

-- Bom você parecia estar se divertindo tanto, que achei que poderia tentar também. - Respondeu ela com ar de inocência.

-- Não. Você não pode!

-- Claro que posso!

-- Não, não pode, e acabou!

-- Por que não? - Perguntou ela cruzando os braços.

-- Você sabe o motivo. É uma....

-- O quê? Não posso atirar só porque não tenho a mesma coisa que você tem no vão das pernas?

Ao ouvir isso Nicolas arregalou os olhos ao mesmo tempo em que o criado ao seu lado censurava Micaela.

-- Alteza!

-- Falei algo fora do comum?

-- Você.... - Começou Nicolas, mas foi interrompido por sua mãe e Laura que chegavam.

-- Não estavam discutindo, não é mesmo? - Perguntou Susana.

-- Claro que não, mãe!

-- Ótimo! - Interrompeu Laura - Porque teremos uma visitante hoje, a senhora Lunes vem tomar um café da tarde conosco.

-- A senhora Lunes? - Reclamou Micaela.

-- Sim, e você irá se comportar. Está entendendo?

-- Sim, mãe.

-- Ótimo. Sendo assim, precisamos preparar as coisas.

As duas saíram em direção a casa novamente enquanto os dois ficavam parados, atônitos, olhando suas mães se afastarem e compartilhando do mesmo sentimento. O repúdio à senhora Lunes.

Ela era uma senhora desagradável, que não perdia a oportunidade de criticar alguém, não entendiam como suas mães ainda lidavam com aquela velha senhora baixinha de cabelos brancos.... E com um penteado horrível.

A tarde passou e os dois foram chamados de volta para a casa para tomar o café que seria servido na varanda atrás da casa. O lugar era confortável, a mesa redonda, branca com cinco cadeiras estava repleta de coisas, bolo, suco, café, pães, torradas, geleias, frutas, frios....

Tudo muito apetitoso, porém com a desagradável companhia daquela mulher. Os cinco se sentaram à mesa para o lanche, Nicolas se sentia desconfortável e Micaela estava faminta, não se importava em como se sentia, só queria satisfazer sua vontade de comer, havia ficado sem comida o dia todo e não sabia como ainda estava de pé.

Seu estômago reclamava pedindo para que ela o atendesse a atirasse alguma coisa para ele.

"Ao menos uma migalha!" ele clamava.

E aquela senhora não calava a boca! Insistia em falar e falar e falar, e nada de comer. Ninguém ia ser mal-educado de arrumar a comida antes da visita.

Maldita regra de etiqueta! Seu estômago se agitou de novo e ela colocou os braços na barriga procurando apertá-lo e fazer com que se calasse. Ele ameaçou a fazer aquele barulho tão constrangedor... Ela apertou um pouco mais e então tudo se acalmou.

Ao olhar para a comida a boca salivada e tinha a ligeira impressão de que a pupila se dilatava já que ela faz isso quando vemos alguma coisa de que gostamos, faz algum sentido, não é?

E então, aconteceu.... Aquele órgão traidor rugiu dentro da barriga fazendo todos o escutarem e saberem que ELE QUERIA COMIDA!

Todos os olhos se voltaram para ela ao mesmo tempo e os da senhora Lunes expressavam um imenso desprezo.

-- Que horror! Isso não é algo que uma moça deva fazer. - Disse ela.

-- Me desculpe! Não pude controlar meu estômago rebelde. - Respondeu Micaela.

Enquanto sua mãe a repreendia, Nicolas disfarçava o riso com uma crise de tosse, fingido se engasgar.... Só não se sabia com o que, já que ele não tinha nada na boca.

-- Me desculpe. - Disse a menina mais brandamente.

Depois disso começaram a comer para a felicidade de todos, principalmente de Micaela.

O resto da tarde transcorreu normalmente e logo os homens estavam de volta à casa. Eles se trancaram no escritório junto com as esposas e os filhos acharam aquilo tudo muito estranho, mas não deram muita atenção, então se distraíram com outras coisas.

Duas horas mais tarde foram chamados ao escritório, ao entrarem os pais pareciam muito tensos e preocupados, e começaram a imaginar o que poderiam ter feito para aquela situação tão estranha acontecer.

-- Bom, já devem saber que os nossos países não andam muito bem em suas relações, não é? - Começou Heitor fechando e abrindo os olhos lentamente, aqueles anéis azuis demonstravam imenso cansaço.

Os dois confirmaram com a cabeça.

-- Foram muitos dias de negociação, muitas conversas e confusões, não vou negar. - Continuou.

-- Vai ficar tudo bem, Papai?

-- Sim, Micaela. Assim esperamos. Chegamos a uma decisão hoje e parece que o parlamento concordou.

-- Isso é bom. - Interrompeu Nicolas - Quer dizer que essa tensão toda vai acabar!

-- É o nosso objetivo, filho. - Disse Benício pela primeira vez - A decisão tomada foi de unir os dois países.

-- O quê?! - Exclamaram os dois filhos em uníssono.

-- Mas como assim? Não vai dar maior confusão ainda? - Perguntou Micaela.

-- Não filha, essa alternativa foi a única mais sensata que tivemos. Ainda que não pareça. - Essa última frase Heitor murmurou para si mesmo.

-- Mas como que um país pode ter dois reis, dois parlamentos? - Questionou Nicolas.

-- Eu vou ser direto, filho. - Respondeu Benício - Assim que os dois países se unirem Heitor e eu vamos renunciar a nossa posição....

-- Mas...

-- Eu ainda não acabei. Sendo assim os próximos na linha de sucessão seriam vocês dois, isso seria vantajoso para todos. Falamos a mesma língua, temos uma boa economia.... Mas só podemos nos unir se.... Se vocês dois governarem juntos.

-- Como assim? Não estou entendendo!

-- Vocês devem se casar!

-- O QUÊ?! - Novamente em uníssono.

-- Por favor, se acalmem. - Interveio Heitor.

-- Me acalmar, pai? Eu tenho quinze anos!

-- E eu dezoito!

-- Sabemos disso, meninos. Mas não queremos que se casem agora. É apenas um noivado, uma garantia de que podemos nos unir seguramente.

-- Como assim, papai? Isso é absurdo! Não há outra forma de isso acontecer?

-- Sinto muito, filha. É a lei dos dois países.

-- Uma lei idiota e retrógrada. - Gritou Micaela de volta - parece que voltamos para a idade média! Eu não sou uma mercadoria para ser negociada!

Dizendo isso ela saiu batendo a porta com força deixando todos atônitos. Enquanto ela despejava fúria Nicolas apenas ficara parado, sem reação alguma, como se alguma coisa o congelasse.

Um pouco mais a noite Hugo, primo de Nicolas, a encontrou sentada em um fecho de feno no estábulo. Ele se aproximou e se sentou ao lado dela. Ficou em silêncio por alguns instantes, até dizer:

-- Eu fiquei sabendo da novidade.

-- Se é que podemos chamar isso de novidade. Não sabia que tinha vindo também.

-- Acabei de chegar, o tio Benício sempre me leva em reuniões. Se eu quero ser parlamentar eu preciso conhecer um pouco da rotina.

Apesar de possuir apenas vinte e um anos, Hugo já tinha uma grande ambição, e pelo esforço que aplicava em seguir seu sonho, não demoraria muito em alcançar seu objetivo.

O moço não se parecia em nada com Nicolas, parecia totalmente oposto dele com aqueles cabelos loiros e os olhos castanhos.

-- Olha, eu nem sei o que dizer. – Começou ele – Achei realmente muito injusto e.... Juro que se pudesse fazer algo, eu faria.

Ela sorriu para ele e respondeu:

-- Nem nossos pais puderam fazer algo, que dirá você. Não querendo te ofender, claro. Mas obrigada pela boa intenção.

-- Sabe que pode contar comigo.

Ele segurou a mão dela e a olhou diretamente, um pouco envergonhada ela tirou a mão da dele.

-- Posso te dar um abraço? – Perguntou Hugo.

-- Claro.

Eles ficaram abraçados por um tempo e quando se separaram os rostos estavam próximos, não que Micaela se sentisse confortável com isso.

-- Obrigada mesmo, Hugo.

Ele sorriu e respondeu se levantando:

-- Bom, acho melhor deixar você um pouco sozinha. Deve estar precisando desse momento.

Ela assentiu e ele se afastou devagar. Um pouco depois Nicolas se aproximou devagar e se sentou ao lado dela, no mesmo lugar onde o primo estivera antes. Micaela estava perdida em pensamentos, olhava um ponto fixo à sua frente, mas sabia que ele estava ali ao seu lado.

-- Como você está? – Perguntou.

-- Como acha que estou, Nicolas? Tenho só quinze anos e já sou prometida para alguém. Sequer perguntaram nossa opinião. Eu odeio aqueles homens.

-- Se te serve de consolo, eu não gostei nem um pouco dessa ideia também.

-- Eles acabaram com nossa liberdade. Não é justo! – Exclamou ela finalmente o encarando. – Como se a situação do meu primo não fosse o suficiente para me deixar chateada.

-- Quanto a isso, tenho certeza de que ele se recuperará. Thomas é forte.

-- Eu não sei, Nicolas. Ele está sozinho agora! Imagina quando acordar e souber que seus pais...

Seus olhos estavam cheios de água e o azul deles se destacava ainda mais na escuridão do lugar. Sabia que o acidente de Thomas a deixara abalada, e aquela ideia louca de casamento estava piorando as coisas. Então ele resolveu descontrair para tentar distraí-la.

-- É tão ruim assim casar comigo? – Perguntou.

Ela sorrindo respondeu:

-- Não sei, mas tenho a ligeira impressão de que não seria boa ideia considerando o tanto que brigamos.

-- Então é ruim?

-- Acho que seríamos incompatíveis. Eu até que gosto de você, Nicolas, mas admita que você é insuportável.

-- Insuportável, eu? Já se olhou no espelho, Belmok. Você é terrivelmente mimada.

-- Só eu? Está vendo como não vamos nos dar bem?

-- Tem razão. Nunca daria certo. Acha que chegaram à essa conclusão por causa do que aconteceu antes? – Perguntou Nicolas receoso.

-- O que aconteceu entre nós, ou melhor, não aconteceu, ninguém ficou sabendo. Acho que essa idiotice foi só porque somos herdeiros mesmo.

-- Sobre aquilo.... Eu não deveria....

-- Esquece, Nicolas. Nada aconteceu, então não tem do que se desculpar. Eu fui uma boba iludida e você um idiota completo.

-- Antes nunca tivéssemos ficado sozinhos aquele dia. – Respondeu ele irritado.

Micaela não teve tempo de responder, pois um empregado viera avisar Nicolas de que os pais já estavam de partida e o estavam chamando. Ele logo se levantou e depositando um beijo na bochecha de Micaela disse mais brandamente:

-- Daremos um jeito nisso.

Depois partiu em direção à casa. Os Lambertini optaram por voltar para casa mesmo sendo tarde. E naquela noite nem Nicolas, nem Micaela puderam dormir. Como assim teriam de se casar? Isso tudo apenas para evitar uma guerra? Apenas para satisfazer os desejos de homens egoístas e ambiciosos?

Seus pais não gostaram nada da ideia, era óbvio. Mas prezavam pela paz e pela segurança de ambas populações. Assim sacrificaram a liberdade de escolha dos filhos sem nem ao menos consulta-los.

Ah se tudo pudesse mudar!

Micaela se levantou e olhou pela luneta, assim que viu uma estrela cadente passando fechou os olhos e fez um pedido. Alguma coisa que a livrasse daquela loucura toda, e ela achava que aquele pedido seria atendido e que seria algo bom.

Não poderia estar mais enganada.

****

Vários  dias depois ela estava de malas feitas fugindo do país, deixara para trás tudo, pais, reino, amigos, e.... E o noivo.

Apenas seus pais sabiam para onde ela ia. Dava graças a Deus porque seus pais nunca a deixaram ser exposta em mídia alguma, assim, quase ninguém a conhecia. Tinham algumas fotografias de quando era pequena, mas depois que cresceu e aprendeu a se esquivar de paparazzi, ninguém mais sabia como ela estava. Desse modo seria fácil se esconder em outro país. Não estava fugindo por causa do noivado, isso era o que menos a preocupava naquele momento. Estava fugindo porque sua vida tinha sido ameaçada, quase morrera e as marcas ainda estavam no rosto e nos braços.

Sua mãe tinha uma amiga que morava em um país mais distante, então pediu ajuda e a mulher não hesitou em lhe estender a mão. Micaela ficaria em um quarto alugado dentro da casa, e seus pais lhe proveriam em tudo. Em momento algum se esqueceu do primo e a toda semana buscava notícias dele, e elas vieram boas, ele havia acordado do coma a ainda que não pudesse andar sua recuperação era boa.

 No começo foi um pouco difícil se ajustar à rotina, mas logo se acostumou. Aquilo que desejara há algum tempo, enfim se realizava.

Se matriculou em uma escola, fez novos amigos, andava com liberdade para todo lado e logo não se contentou em ser sustentada pelos pais distantes. Arrumou um emprego e começou a pagar por si só suas contas.

Era uma pessoa "normal". Uma cidadã.

****

Cinco anos havia se passado, Micaela já era uma mulher, uma jovem muito bela, por assim dizer.

Os cabelos com cachos nas pontas estavam longos e os olhos azuis, herdados do pai, pareciam mais penetrantes.

Estava feliz, satisfeita consigo mesma e com a sua vida. Se tornara parte da Família Torres, que era composta pela mãe Chiara e por suas duas filhas, Amália a mais nova e Maria Eduarda. As filhas eram incrivelmente parecidas com a mãe, negras de cabelos pretos e cacheados. Aqueles anéis brilhavam de tal forma que Micaela desejava que seu cabelo fosse igual.

Infelizmente o pai das meninas havia morrido sete anos antes e deixara a mãe para terminar de criar as filhas. Chiara era uma mulher extremamente forte e sábia, professora do jardim de infância e louca por crianças. Maria Eduarda já era formada em direito, acabara de abrir o próprio escritório e aos poucos ganhava cliente. Já Amália - que tinha a mesma idade de Micaela - Cursava física, e Micaela nunca entendera porque a amiga gostava tanto daquela matéria detestável. Estudavam na mesma universidade, mas em cursos completamente diferentes.

Também trabalhavam no mesmo escritório. Em suma, não se desgrudavam.

Por algum motivo que não soube o que era, Micaela escolhera cursar Relações Internacionais. O que era surpreendente na verdade, pois não pretendia voltar ao seu país, por mais que isso pudesse causar espanto aos seus pais.

Naquela manhã ela estava particularmente perturbada, por cinco anos não se permitira se envolver com ninguém, afinal estava noiva, por mais que não soubesse mais se essa era realmente sua condição. Mas nos últimos tempos vinha lutando contra um sentimento que, sem querer, nutria por um colega. Aqueles olhos verdes e os cabelos castanhos de Alex mexiam com ela de certa forma. Não estava apaixonada, tampouco o amava, apenas sentia uma atração.

Sentadas em um banco na imensa área verde da faculdade, ela Amália e Lara falavam sobre ele.

-- Mi, tenho certeza de que ele tem uma quedinha por você também. - Disse a garota sardenta de cabelos castanhos.

-- Então temos algo em comum pelo menos, Lara. - Respondeu Micaela com um sorriso travesso.

-- Eu acho que deveria arriscar. - Interveio Amália.

-- Acha mesmo?

-- Por que não, Micaela? O que tem a perder?

-- Pode ter razão.

-- Eu duvido que tenha coragem de chegar nele. - Desafiou Lara.

-- Ah, duvida? Pois então vai aprender que não se deve jamais me desafiar.

Se levantou e foi em direção a Alex que estava sentado em um banco um pouco mais adiante. Se sentou ao seu lado e o cumprimentou:

-- Bom dia!

-- Bom dia! - Disse ele fechando o caderno e se voltando totalmente para ela - Posso ajudar?

-- Claro! Eu vi que você tem mais afinidade que eu em uma matéria.... Sabe minha habilidade de cálculo é péssima.... - E a de flerte também, pensou - Será que poderia me dar algumas dicas?

-- Claro! - Respondeu ele entusiasmado - Vou adorar te ajudar.

-- Não sei como agradecer! Quando tiver um tempo livre podemos estudar juntos, o que acha?

-- É uma ótima ideia. Estou livre amanhã depois da faculdade, se quiser me encontre na biblioteca.

-- Por mim tudo bem. Te encontro lá! Obrigada, Alex.

-- Não por isso.

Mostrando um meio sorriso ela se afastou e voltou para perto das amigas. Com uma expressão triunfante no rosto. Parecia até aquelas adolescentes do ensino médio que inventam a mesma história de precisarem de aulas particulares.

-- Eu não acredito. Você não tem vergonha na cara! - Acusou Lara, rindo.

-- Você me desafiou, e eu odeio que duvidem de mim. Tudo bem que foi um péssimo argumento, mas amanhã vamos estudar juntos na biblioteca, depois da aula.

-- Ficou maluca, Mi? Esqueceu que temos trabalho? - Disse Amália.

-- É verdade! Até esqueci disso, mas tenho uma hora até entrarmos no escritório, então posso usufruir livremente desse meu tempo livre.

-- É muita cara de pau!

-- Aprendi com a melhor.

Resolveram ir andando para não se atrasarem para a próxima aula. No meio do caminho Micaela se distraiu com um gatinho que passeava pelo gramado sem muita preocupação. Ela se abaixou e acariciou o pelo do bichano que ronronou preguiçosamente, apenas para roubar o pedaço de chocolate que ela tinha na mão e sair correndo.

-- Que sem educação! - Disse se levantando.

Quando, porém, ela se voltou para as amigas notou que elas estavam paradas olhando em uma certa direção, pareciam cravadas na grama como estacas.

Notou também que outras pessoas as imitavam, de fato uma movimentação muito estranha no local.

-- O que está acontecendo? - Perguntou procurando o que atraía aqueles olhares.

-- Quem será que aquele cara ali?

-- Quem, Amália?

-- Ali, Micaela. - Respondeu Lara virando ela para a esquerda - Aquele bonitão que parece um príncipe encantado.

-- Parece mais é que saiu do século XIX! - Exclamou Amália.

-- E nem precisou de um celular para isso! - Comentou Lara.

O coração de Micaela ameaçou parar, depois congelou e por fim pareceu querer sair do peito. E aquilo a atormentava, não era possível que aquilo estava acontecendo. Ficou rígida da mesma forma que as amigas, talvez até pior. Não conseguia falar, nem pensar direito. Como seu passado poderia voltar para assombrá-la? E como a encontrara?

A medida que tomava consciência da situação, sua respiração acelerava, embora fosse cada vez mais difícil o ar entrar.

Lá estava ele, com aquele cabelo extremante preto, os olhos castanhos, os ombros largos e a altura parecia ter aumentado. Quase uns dois metros talvez? Estava vestido de forma muito atípica. Um paletó azul escuro, fechado, que mais parecia um uniforme de um militar, a gola, que quase se prendia ao pescoço, levava um detalhe em dourado,assim como o bolso, as calças pretas um pouco coladas, e.... Aquelas botas que eram o mais bizarro.... Vinham até os joelhos. 

Os joelhos de Micaela ameaçaram traí-la e tremeram um pouco. Ali estava.

Nicolas Lambertini.

Ele também procurava algo ao redor.... Alguém que ela sabia exatamente quem era. Por fim, seus olhos encontraram os dela, ele os arregalou e depois assumiram uma expressão furiosa. Devagar e ameaçador ele começou a vir em sua direção.

As meninas ao seu lado se agitaram.

-- Ai meu Deus! Ele está vindo para cá! - Gritou Lara - Por que ele está vindo para cá? Vocês conhecem?

-- Eu não! - Se adiantou Amália - Você conhece, Mi?

Ainda chocada Micaela demorou para responder. Quando enfim recuperou as palavras não pensou no que dizia:

-- Conheço... - Sussurrou - É meu.... É meu noivo.

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