3 | Conversação

O espírito caminhou sobre as folhas secas alaranjadas e as minúsculas manchas de água que cobriam o pavimento, aproximando-se com cautela do banco de jardim. O homem nele sentado estava inclinado para a frente, com um objeto fino e retangular nas mãos, indiferente à sua presença. Encarava a superfície negra à frente dos seus olhos, mas era evidente que a sua mente não estava ali.

Lírio chegou mais perto, inclinando a cabeça para espreitar a cara do homem assim sentado. Parecia-lhe ter ouvido um fungar.

O humano, que tinha apanhado o movimento pelo canto do olho, voltou a cara para ele por uns  momentos, desconfiado.

— Tens o Outono no olhar....

O semblante do homem estremeceu, numa rara mistura de estranheza e curiosidade, com a amargura em pano de fundo. Depois, abanando a cabeça e voltando a fitar o objeto nas mãos, bufou num riso forçado e disse:

— Não sei se fico mais espantado por seres um daquele adolescentes que fala em código, com mania que é poeta ou rapper, ou por encontrar outro português, aqui, a estas horas, neste país no fim do mundo.

Lírio trocou o peso de pé, sem saber o que responder. Como espírito da Primavera, ele não possuía idioma ou dialeto próprio. A comunicação com as outras estações dava-se simplesmente, sem que algum dos quatro tivesse a necessidade de identificar como. Talvez até tivessem a sua própria língua, mas nenhum deles alguma vez tinha parado para refletir sobre o assunto. Porém, quando vinha à Terra, todos com quem fala o ouviam na sua língua nativa. Nunca lhe tinha ocorrido que poderia encontrar pessoas deslocadas do seu país de origem, e com as quais seria estranho falar no seu idioma nativo sem ter recebido qualquer indicação da sua nacionalidade, porque nunca antes tal situação teria sido possível. Só na atualidade é que os humanos poderiam dar a volta ao mundo em menos de nada e não fazer caso do assunto.

A Primavera debateu-se durante uns segundos sobre como explicar o estranho fenómeno. Depois, rendido, decidiu esquecer o comentário.

— Precisas de ajuda? — perguntou, juntando as mãos atrás das costas e inclinando o corpo para o banco, ainda a uma certa distância. — Doí-te alguma coisa?

O homem voltou a olhar para ele, passando a mão debaixo dos olhos para afastar os últimos vestígios do seu choro anterior.

— E a tua educação, ficou em casa, miúdo? Desde quando é que se trata um desconhecido mais velho por "tu"?

Lírio ficou de novo sem reação. Durante todo o dia, o espírito da Primavera tinha ouvido incontáveis humanos a falarem uns com os outros sem os formalismos que seriam necessários noutros séculos dos quais ele fora testemunha. Quando ainda não tinha estado tempo suficiente na Terra, Lírio tinha mantido um tom cordial sempre que trocava algumas palavras com terráqueos. Porém, depois de todos os comentários que ouvira e de todas as risadas de que fora alvo, a Primavera ajustara-se ao coloquialismo desta nova era, otimizando a sua camuflagem. Com todas aquelas coisas novas a acontecer à sua volta, também nunca lhe tinha passado pela cabeça que, em certas situações, esta nova comunicação terra-a-terra fosse desadequada.

— A juventude de hoje... Volta mas é para casa. — Lírio tomou de novo atenção quando o homem ligou a proteção de ecrã do telemóvel para ver as horas. — Está demasiado tarde para alguém da tua idade andar sozinho na rua. Mesmo que os tenhas avisado, a tua família deve estar preocupada.

— Tem uma linda família — comentou a Primavera, referindo-se à fotografia de uma mulher e de uma criança de colo na proteção de ecrã do telemóvel. Endireitando-se, Lírio caminhou até ao poste ao lado do banco de jardim. — Como é que se chamam?

A mudança abrupta de assunto espantou o humano.

— Catarina e Inês. Agora vai andando para casa, miúdo.

— Lírio — respondeu o espírito, encostando as costas e a sola de um dos sapatos na estrutura do poste de iluminação. — O meu nome não é "miúdo". É Lírio de Zéfiro.

O homem não o verbalizou, mas podia ler-se do seu semblante que estava a duvidar da sanidade mental da pessoa que tinha feito o registo da existência do aparente adolescente no mundo.

Okay, Lírio... — disse o homem, levantando-se. — Está tarde. Eu vou andando para casa. Devias ir também.

— Não se preocupe com isso. Elas sabem onde estou e ainda não passou da minha hora de recolher — respondeu Lírio, imóvel, referindo-se a Brisa e Polaris e ao tempo que tinha até voltar a ser um fogo-fátuo. O que dissera não era mentira, mas também não era verdade. Era uma inverdade. — Há quanto tempo não as vê?

O humano, que tinha acabado de passar por ele no passeio que cruzava o parque, congelou alguns passos depois das costas do espírito.

— As lágrimas. As horas que são. O facto de estar aqui sozinho. A distância a que está da sua pátria. A saudade e a nostalgia no seu olhar — enumerou a Primavera. — Posso estar a ligar os pontos ao contrário, mas não me parece. 

O silêncio foi a confirmação necessária. O espírito, iluminado pelo candeeiro, inclinou a cabeça ligeiramente para que o seu ouvido focasse o humano sem, no entanto, o conseguir olhar.

— Há quanto tempo já não as vê?

— Há mais de meio ano — suspirou o homem, derrotado.

Lírio não se mexeu e, eventualmente, viu o humano a entrar no seu campo de visão, abrindo caminho por entre as folhas secas até se sentar de novo no banco.

— Era para ser um posto de trabalho temporário. Era suposto ficar a dar formação aos futuros empregados da nova filial da empresa por um mês e tal, pouco mais do que isso. Já lá vão mais de seis meses.

O ecrã do telemóvel ganhou vida outra vez e a família do humano sorriu-lhe de um jardim florido noutro tempo, noutro local.

— Só quero voltar para junto delas, mas ainda me faltam dois meses. Não sei como é que vou conseguir aguentar! 

 O telemóvel apagou e a cabeça do homem descaiu, enterrando-se nas mãos que a seguravam pelas têmporas. 

— Posso tratá-lo pelo nome?

— Gabriel Sottomayor.

Lírio sorriu. Tinha derrubado uma importante defesa na atitude do humano.

— Porque é que está aqui, Gabriel? Se está a sofrer assim, porque é que não volta?

— Tu não passas de um miúdo, Lírio — disse Gabriel, levantando a cabeça para o olhar. Mesmo àquela distância, a Primavera conseguia ver o nevoeiro e a falta de foco provocados pelas lágrimas que não foram derramadas. — Talvez ainda não te tenham dito, mas o mundo dos adultos não funciona assim. Nem sempre querer é poder. 

» Preciso de estar aqui para receber dinheiro suficiente para comprar uma casa maior. Não quero que a Inês cresça numa caixa de sapatos. E não quero que a Catarina se mate a trabalhar para conseguimos uma qualidade de vida acima do "pagar as contas todas ao fim do mês". Fui promovido antes de vir para aqui. Depois da formação, vou receber um bónus. Quando voltar a casa vou ter mais responsabilidades e um ordenado maior, mas vou trabalhar menos. Vou ter mais tempo para a minha família. — O homem suspirou. — Se é que vou ter família para a qual regressar.

Lírio matutou naquelas últimas palavras.

— Porquê? Já não se amam?

— Eu ainda a amo. Eu acho que ela ainda me ama. Mas o amor não resolve tudo. 

— Eu acredito que resolve — ripostou Lírio.

Gabriel bufou noutra risada pouco sentida.

— Quase que consigo medir a tua tenra idade pela tua ingenuidade — disse, ignorando o facto de que Lírio era, provavelmente, mais velho que a própria Terra. — Não há amor suficiente no mundo que compense as conquistas da Inês que já perdi, e que continuarei a perder até voltar a casa. No outro dia, ela chamou pai ao meu cunhado! Estou fora há tanto tempo que a minha própria filha não se lembra de mim.

O humano engoliu o nó na garganta.

— Não há amor suficiente que compense a Catarina por todos os momentos em que não fui o pilar de força e suporte que prometi ser, ou por todas as horas de dúvidas sobre o futuro do nosso casamento que lhe dei nos últimos meses. Não há amor suficiente que compense o facto de ela estar a criar a nossa filha sozinha e não poder fazer mais nada do que algumas vídeo chamadas por semana, recheadas de promessas que tardarei a cumprir.

» A Catarina é uma mulher de ações e não de palavras. Não há amor suficiente no mundo que a convença de que tudo aquilo que estou a fazer é por nós e que não a esqueci, nem por uma mísera e insignificante fração de segundo. Não há amor suficiente no mundo, nem força suficiente nos meus atos, para lhe provar que preciso tanto ou mais dela, do que dela de mim;  que o meu coração ficou com ela e a nossa filha, naquela velha e fria casa, e que não sei como continuo vivo, mesmo com o coração a tantos quilómetros de distância do meu corpo.

Gabriel perscrutou o parque à sua volta. Não se via vivalma. Estava cada vez mais escuro. 

— Ainda assim, acredito que o melhor remédio para a vossa relação é o amor — afirmou a Primavera.

O humano olhou-o, talvez em descrença, mas nada disse. Seguiu-se um silêncio estranho, em que os dois acabaram a olhar em volta, incapazes de compreender o ponto de vista um do outro.

— Como é que se conheceram? — perguntou Lírio de novo.

Como se tivessem concordado em discordar, Gabriel retomou a conversa.

— Vi-a pela primeira vez numa tarde de Outono, no parque da cidade — disse. Os seus olhos perderam o foco de novo, como se ele estivesse a ver algo que não estivesse realmente ali. — Eu estava sentado no banco a alimentar os patos do parque com o pão que a minha avó tinha deixado ganhar bolor. Tinha-a visto ao longe, mas só quando passou por mim em passo apressado e com as mãos nos bolsos é que percebi que estava a chorar. Tínhamos vinte e poucos anos. Não foi amor à primeira vista, até porque tivemos quase quatro anos de amizade antes de começar a namorar, mas algo me atraiu para ela naquela tarde. Talvez tenha sido as lágrimas. Não consigo ver ninguém chorar sem me sentir ansioso ou preocupado. Mas foi quando tomei coragem para me levantar e lhe perguntar o que é que se estava a passar de errado na sua vida que a minha mudou por completo.

— Quatro anos de amizade? Mais me ajuda, Gabriel! — disse Lírio, gesticulando. — Como passaram de amigos a amantes, têm uma amizade sólida na base da vossa relação. Não é apenas um tipo de amor que vos une, mas dois!

O homem franziu o cenho na direção da Primavera.

— Ainda estás a insistir nisso?

— Sim. E vou continuar a insistir até o fazer perceber que eu tenho razão — declarou, presunçoso.

Um sorriso irónico desenhou-se nos lábios enregelados de Gabriel.

— Se eu e a Catarina fossemos um caso de enemies-to-lovers, talvez acreditasse em ti.

— Inimigos para amantes? — A voz da figura adolescente, ainda iluminada pelo poste onde se encontrava encostada, transmitia a sua confusão.

— Sim. É o género de romance favorito da Catarina. — Depois de uma pausa a estudar as feições de Lírio, Gabriel entendeu que o jovem continuava um pouco perdido. — Não és muito de livros, pois não?

O espírito de Primavera encolheu os ombros.

— Nem por isso.

Gabriel suspirou.

— O passado da Catarina está cheio de pessoas que a desiludiram. As suas lágrimas no dia em que nos conhecemos no parque foram provocadas por um ex-namorado que não cumpriu nada do que prometeu. E eu sinto-me miserável porque acho que estou a trilhar o mesmo caminho que aquele desgraçado.

Ele recostou-se no banco, inclinando a cabeça para trás para olhar o céu noturno, sem se dar ao trabalho de esconder as lágrimas que lhe corriam livremente pelo rosto.

— Estou a desiludi-la. Não era, de todo, a minha intenção, mas estou a falhar-lhes, tanto à minha mulher como à minha filha. As saudades estão a matar-me. Quem me dera ir já para casa. — O seu braço encasacado levantou-se para ir repousar sobre os seus olhos. — A Catarina disse-me que já não aguenta muito mais tempo a minha ausência, mas a verdade é que já somos dois a pensar assim.

Caíram os dois no silêncio. No meio do parque, naquela hora da madrugada, nem era possível ouvir os sons da cidade para lá das sebes e das árvores cuidadosamente plantadas.

Lírio olhou para cima, para admirar o céu estrelado, como tinha pensado fazer inicialmente. Em breve, a magia que sustentava o seu corpo humano desapareceria e ele voltaria a ser apenas um fogo-fátuo.

— A distância está a magoar-vos aos dois. Mas, se confiarem no amor, as coisas têm solução.

Gabriel destapou os olhos e rodou um pouco a cara para olhar Lírio de soslaio. O espírito da Primavera, por seu turno, fitava o firmamento.

— A noite já vai alta — disse o homem, sem olhar as horas daquela vez. Provavelmente não se sentia capaz de encarar a sua proteção de ecrã naquele momento. — Vou andando. Obrigada por... me ouvires desabafar.

Gabriel levantou-se, esfregando os olhos para secar as lágrimas. O espírito da Primavera desencostou-se do poste de iluminação, para se aproximar do humano de mão estendida.

— Gostei de o conhecer, Gabriel Sottomayor. Tão depressa não me esquecerei de si.

O homem à sua frente hesitou, mas acabou por retribuir o aperto.

— Posso dizer que também não me devo esquecer de ti tão cedo, Lírio de Zéfiro.

No final do cumprimento, o humano urgiu o adolescente a voltar para a sua família depressa. Lírio sorriu e desejou-lhe felicidades, para ele e para a família, antes de ver o Gabriel a afastar-se pelo trilho que cruza o parque.

— Confie no amor. Confie na primavera que leva no seu coração — disse Lírio uma última vez.

Apesar de estar longe, Gabriel ouviu aquelas palavras como se o adolescente vestido de rosa estivesse mesmo a seu lado. Porém, quando virou costas para o olhar uma última vez, encontrou apenas o parque recheado de poças de água e folhas de outono.

O equinócio tinha chegado ao fim.

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